São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza e Goulart caminhavam pela vila militar onde residiam após terem praticado uma corrida.

 

--O senhor tá ótimo, tenente-coronel Goulart! – a mulher elogiou brincalhona – Manteve o ritmo por todo o percurso, gostei de ver!

 

--Da mesma forma a senhora, capitão Elza! – respondeu no mesmo tom – Mas percebi que deu uma reduzida na marcha pra não deixar seu velho tio passar vergonha! – piscou para ela

 

Achou graça. -- Que nada! O senhor não precisa que eu faça isso. – mentiu para não magoá-lo – Agora me responda, tio: quando sairá sua promoção a coronel? – queria saber – Papai, Fernandão e eu fomos promovidos neste ano e só faltou o senhor!

 

--Talvez no ano que vem, não sei. Mas o fato é que esse governo está olhando pra nós e isso aumenta minhas chances de subir mais um degrau. – respondeu enquanto caminhavam – Nos dois mandatos de Ferdinando Patrick não ganhamos nada! – afirmou com desgosto

 

--O senhor tá gostando desse governo? – surpreendeu-se – Nem os comunistas gostam dessa composição que o partido de Luiz Horácio fez! – lembrava-se das palavras de Yara

 

--Exatamente, esse governo não é de comunistas! – respondeu de pronto – Eles são uma esquerda que quer conciliar e não estão dispostos a nos hostilizar, o que é muito positivo! Ouvi dizer que vão começar a liberar verbas pra grandes projetos estruturantes nas três Forças!

 

--É mesmo? – novamente se surpreendeu – Vamos ver se é vero ou se é só papo de político pra nos conquistar. – olhou rapidamente para o homem – Tio, mudando de assunto, gostaria também de lhe pedir um favor. – passou a mão na cabeça – Eu convoquei uma reunião hoje com todos os tenentes e alguns praças pra reforçar que quero todos eles atuantes na missão de continuar indo nas escolas, promovendo palestras e apresentando o que nós fazemos à população civil! – gesticulava – Deixei com tenente Luiza a responsabilidade de manter o periódico que criei, sendo que pretendo continuar publicando também enquanto estiver fora, só que numa frequência menor que a atual. – explicava – Será que o senhor poderia ficar diligenciando pra garantir que eles cumprirão as minhas ordens enquanto eu estiver fora?

 

--Com toda certeza! – respondeu enfático – Pode deixar comigo! – garantiu – Toda hierarquia superior apoia muito estas suas ideias!

 

--Obrigado! – sorriu para ele – Sei que ainda estamos em agosto mas é necessário ser previdente. Preparo a transição desde já pra que ninguém afirme que fiz tudo de qualquer maneira!

 

--No que faz muito bem! – diminuiu o passo da caminhada – É, Elza... – pensava em como abordar o assunto – Suas férias no Rio e em Goiás... – pausou brevemente – Devem ter sido muito especiais porque você voltou tão radiante! – comentou – E nos últimos tempos você andava tão taciturna, tão estranha... – colocou as mãos para trás – O que será que aconteceu, hein? – sorriu – Alguém especial balançou seu coração por lá?

 

“Por que será que ele tá vindo com esse papo?” – pensou sem entender – Os estresses do trabalho tavam me deixando muito tensa. Com as férias desestressei e voltei revigorada! – respondeu com parte da verdade – O contato com a Alê, o clima alegre do Rio e aqueles ares gostosos de Goiás... – gesticulou – Foi isso! Não houve uma pessoa em especial; foram as várias pessoas que lidaram comigo nessa viagem. – mentiu

 

--Hum... – não acreditava – E... você gostou mesmo de Goiânia? É uma cidade bonita?

 

--Eu adorei! – afirmou de pronto – Pena que não deu tempo de conhecer muita coisa... – pausou brevemente – Ah, falando nisso, -- aproveitou a deixa – reencontrei uma garota, amiga de uma das oficiais que conheci em Brasília naquela viagem de trabalho, lembra? – preparava-se para introduzir o motivo da visita de Yara – Ela tá pra ir pra São Paulo no final do ano e eu a convidei pra dar uma esticada aqui em São José. – mentiu

 

--Você reencontrou com ela em Goiânia? – prestava atenção – Qual o nome dela? Tem certeza que é gente de confiança? Porque se vai dormir na sua casa...

 

“Os anos passam e tio Goulart nunca deixa de ser desconfiado com quem se aproxima de mim!” – pensou achando graça – O nome dela é Yara e eu a conheci em Brasília. Só que a reencontrei em Goiânia por causa de um festival de cultura indígena que tava acontecendo na cidade. – mentia – Ela é indígena e tava participando. E eu fiquei curiosa, fui ver o festival e calhou da gente se encontrar. – gesticulava – E sim, ela é gente de confiança mas não vai dormir lá em casa. Vai ficar em hotel.

 

--Hum... – achava aquilo tudo muito estranho – Se essa moça vier mesmo, quero conhecê-la! – afirmou enfático

 

--O senhor vai. – respondeu disfarçando a empolgação – “O senhor, meu pai e Fernandão!” -- pensou

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Yara almoçava com colegas de trabalho.

 

--Então eu fiquei de pés e mãos atadas, sabe? – Lenira dizia revoltada – A mulher quis voltar praquele traste e ainda retirou a queixa contra o marido. Disse que foi tudo fruto de um momento de raiva! – riu de nervosa -- Aí o que se pode fazer? Amanhã ou depois o desgraçado mata ela ou alguma das crianças e nem vai adiantar dizer: “eu avisei!” – falava contrariada – Ser assistente social é foda! – deu uma garfada

 

–Eu ando amargando até hoje as dores de cabeça daquele caso do homem que queimou os dois filhos e a esposa com o ferro de passar! – Luiza comentou – Ele foi condenado e preso, mas a mulher se reconciliou com ele na prisão, imagina! – olhava para as demais – Acho que por isso na semana passada recebi um oficial de justiça lá em casa me convocando pra mais uma audiência. O advogado dele tá pleiteando uma redução da pena e me arrolaram como testemunha! – gesticulou contrariada – Maldita hora que levei esse caso adiante quando aquela maluca apareceu pedindo ajuda! Devia ter deixado pra lá! – deu uma garfada

 

--Tem mulher que é masoquista e gosta é disso aí! – Andrea criticou – Eu só tenho pena das crianças, mas delas? – fez cara feia – Vive com o cara, é mal tratada, apanha e continua com ele? Anêim! – bebeu um gole de suco – Então que fiquem juntos até que a morte, a dela, os separe! – deu de ombros

 

--Não diz isso, Andrea, ninguém gosta de apanhar e nem de ser mal tratado! – Yara se contrapôs – Qualquer pessoa pode experimentar um relacionamento abusivo e continuar nele apesar de tudo. – olhava para a outra -- Enquanto prefeitura nos cabe acolher, buscar entender e não condenar. Além de trabalhar em campanhas de conscientização pra que as mulheres não aceitem passar por isso e nem os homens imponham isso a elas! – limpou os lábios com o guardanapo – Existe toda uma cultura de feminicídio nesse país que alimenta esse tipo de situação. E um discurso como esse seu não ajuda!

 

--Você é sonhadora demais, Yara! – Lenira finalizava a refeição – Se a gente é burra de se envolver em um caso ou outro, você se envolve em todos! – sorriu para a colega – Concordo que essa cultura de feminicídio sustenta o que aí está, mas não será a prefeitura de Goiânia com sua meia dúzia de funcionários que vai resolver essa situação!

 

--Claro que não! Mas se a gente fizer a nossa parte com dedicação, com afinco e perseverar nisso, esse exemplo cresce e muitas coisas boas podem ser semeadas por aí! – a indígena respondeu de pronto

 

Andrea revirou os olhos e decidiu mudar de assunto. – Eu só quero saber é de uma coisa: do recesso de final de ano que o prefeito decretou pra gente! – sorriu – Vamos parar no dia 19 de dezembro e voltar só em 05 de janeiro, olha que maravilha! – comemorou

 

--Hã? – Luiza não entendia a felicidade da colega – Ele fez isso pra não pagar banco de horas, viu, fi? Não é pra ficar feliz, não, uai!

 

--Ah, eu também gostei! – Lenira afirmou animada – Quem não quer ficar uns dias sem trabalhar e justo no final do ano? – sorria

 

“Hum...” – Yara pensava ao ouvir aquilo – “Errado está, mas por outro lado... De repente eu posso ficar em São José mais tempo que por um mero final de semana...” -- considerou

 

 

Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro

 

Alessandra e Elza seguiam para a varanda aberta do salão de festa às gargalhadas.

 

--Ai, amiga, a gente dançou muitoo! – Elza exclamou empolgada – Que festa maravilhosa que tá sendo esse casamento! – sorria para a outra – Com certeza, uma noite inesquecível!

 

--Se a minha dinda tá dizendo isso, eu acredito! – brincou e elas riram – Até seu pai tá se esbaldando, olha só! – apontou para o sargento

 

--Ai, ai... – a militar observou divertida – O único que veio fardado pra festa, oh my! – riram

 

--E outro babado fortíssimo, amiga, olha lá! – Alessandra segurou o braço da outra – Parece que minha irmã Alana e sargento Fernandão tão se entendendo, abafa o caso!

 

--Gente! – constatou impressionada – Que casal inesperado! – olhou para a amiga – Mas eu faço gosto! E fica tranquila que ela não é uma canalha, muito pelo contrário!

 

--Até que enfim! – benzeu-se – Minha irmã só vinha se pegando com merd*, vou te contar! – revirou os olhos

 

--A notícia triste que eu lamento informar é que não rola pra sua tia Norminha. – apontou discretamente – Ela não fisgou meu tio Goulart! – achava graça

 

--E eu não vi que ele tá fugindo dela a festa inteira? – riram – Ih, olha lá, vai até aproveitar pra ajudar meu sogro a vender os pedaços da gravata do Jonas! – riram novamente

 

--Ai, Alê! – segurou as duas mãos da amiga – Apesar de tudo que eu já falei do Jonas, tô muito feliz por vocês! – falava com sinceridade – E desejo de coração que esse casamento seja uma coisa maravilhosa na sua vida!

 

--Own, que fofinha, minha capitã gostosa! Abraça aqui! – abraçaram-se com carinho – Também desejo que você e sua comunista sejam um arraso! – cochichou no ouvido

 

--Hum, tenho umas fofocas rápidas pra te contar! – romperam o abraço – Porque afinal você é a estrela da festa e não pode só ficar comigo. – olhava para a amiga – Os planos mudaram! – afirmou empolgada – Yara chega em São Paulo na noite de segunda e eu vou pra lá receber ela na rodoviária. – contava os planos – Ficaremos juntinhas na cidade até o dia 24 e daí iremos pra São José! – sorria – Falei pra família que tô indo pra São Paulo pra comprar coisas e me preparar pra viagem!

 

--Gentem, vocês duas sozinhas em São Paulo, que delícia! – exclamou animada – E ela vai passar o natal na sua casa? – perguntou curiosa

 

--Isso ela não quer, mas eu vou argumentar com o que tenho de melhor! – apertou os seios brevemente

 

--Ui, mas que argumentação matadora, hein, bandida? – deu-lhe um tapinha no braço e riram – E ela volta pra Goiânia quando?

 

--Na noite do dia 30. Dona Kedima pediu que ela passasse o réveillon no abrigo e eu entendo. – respondeu de pronto – Já viajo no dia 31, o voo é à noite, e nem teria porque fazê-la passar a virada do ano dentro de um ônibus. – gesticulou – Já basta eu vivendo isso dentro de um avião! – revirou os olhos

 

--Nossa, então ela chega no dia 21 e vai embora no dia 30? – admirou-se – Amiga, aproveita, curte, namora e trepa muitoo!

 

--Criatura, fala isso baixo! – arregalou os olhos – Eu hein? – riram juntas

 

--Goularzinho, fecha aqui o zíper do meu vestido, meu general? – Norminha pediu melosa – O calor tá me comendo nessa festa, eu abri um pouquinho... – fazia caras e bocas – Agora não tô conseguindo fechar! – deu as costas para o homem

 

--Ah, eu... – pensava no que dizer -- Antes eu preciso terminar de ajudar a vender os pedaços da gravata do noivo! – respondeu constrangido – Com licença! – saiu quase correndo

 

--Eu ainda pego esse general de jeito! – Norminha ajeitou os seios no decote – Ah, se pego! – cruzou os braços

 

--Senhora, por obséquio! Peço-vos licença! – Machado curvava-se diante de Malu – Vossa senhoria aceitar-me-ia como vossa contraparte neste momento de fugazes alegrias gingantes? – sorriu para a tia de Alessandra

 

--Ah... – a mulher não sabia o que dizer – É... ele tá me pedindo o que? – cochichou para a irmã

 

--Eu sei lá! Será que é pra dançar? – respondeu desconfiada – Esse pai da Elza é tão esquisito... – reparava no homem

 

--Ai, Fernandão... -- Alana gem*u dengosa quando pararam de dançar – Você não para, nossa! Quanta disposição! – sorria insinuante – Será que você é assim tão insaciável... em tudo? – mordeu o lábio inferior

 

--Garota, nunca menospreze as baixinhas! – a sargento respondeu espremendo os olhinhos – O que nos falta em altura, sobra em outras coisas! O codnome Fernandão não me foi dado à toa! – jogou os cabelinhos

 

--E se eu disser que tô doida pra descobrir porque? – Alana fez um charme

 

--Eu vou dizer que... – aproximou-se caprichando no olhar – Tô à disposição! – estufou o peito

 

--Ui... – abanou-se de um jeito sexy – Vamos fugir no final da festa? – propôs ao piscar

 

--Na hora que você quiser, baby! – piscou também – “Eita, que me dei bem!” – a sargento pensou empolgada

 

 

São Paulo, estado de São Paulo

 

Yara descia do ônibus na rodoviária da cidade. Carregava apenas a mochila e uma pequena mala de mão. “Ô, meu Gólgota, que viagem longa, Ave Maria!” – pensava – “Esse ônibus tinha as rodas quadradas, será possível!” – caminhava no meio do povo – “Agora é esquecer de todos os contratempos e encontrar com minha musa da perdição!” – sorriu – “Ô, tentação, glória ao céu!”

 

--Eu acho que o ônibus dela é aquele! – Elza falava consigo mesma – Será? – esticava o pescoço procurando pela indígena – Ai, olha ela ali! – sorriu e acenou – “Hum, mas ela tá tão selvagemente sexy!” – pensou empolgada – “Com esse jeans rasgadinho, blusa com motivos indígenas, sandalinha, cordão e os brincos de penas... Até tatuada ela veio...” – reparava – “Adorei!” – mordeu o lábio inferior

 

Yara reconheceu a militar de imediato e respondeu ao aceno enquanto caminhava na direção dela. “Ela tá linda naquele vestido curto estampado!” – sorria abobalhada – “Como sempre usando salto, maquiada, cheia dos adereços estilosos...” – reparava – “Ô, minhas sete chagas, é muita aleluia pra minha hosana louvar...” – suspirou – “Ô, glória!”

 

***

 

--Aí agora o que você prefere? – Elza falava ao destravar o alarme do carro – A gente vai pro hotel pra você tomar um banho, relaxar um pouco e depois vamos jantar ou você tá com fome e prefere jantar primeiro? – olhou para a outra -- São muitas horas de viagem e você deve estar exausta! -- abriu a mala do veículo

 

--Eu... tô acostumada com viagem longa e cansaço não é o principal. – parou em frente ao carro – Se você não levar a mal, a gente podia ir jantar primeiro? – pediu timidamente – E será que eu posso colocar meus trem no banco de trás? Não precisa ir na mala.

 

--Imagina, fique à vontade. Como quiser! – fechou a mala – “Eu acho tão fofos esses momentos de timidez dela depois de tudo que já aconteceu entre nós!” – pensava achando graça

 

A indígena acomodou as bagagens no banco de trás depois que Elza ocupou o assento do motorista. Na sequência, entrou no carro e sentou ao lado dela no banco do carona. – Antes de você ligar o carro e a gente sair daqui, tem uma coisa que preciso te falar. – a negra olhou para ela desconfiada – Não é nada ruim, calma! – sorriu – É que... – sentou-se de lado – Eu não cheguei a te pedir isso e achei que ficou faltando. – segurou uma das mãos da negra – Quer namorar comigo, Elza Machado? – olhava nos olhos

 

--Own, que pedido fofinho... – levou uma das mãos ao rosto da outra e a beijou carinhosamente – Claro que eu quero, Yara Saraíba! – beijou-a novamente – Claro que eu quero! -- sorriu

 

***

 

--Reparei que você pediu um prato sem carne. – Elza comentou antes de dar uma garfada – Você é vegana ou vegetariana, Yara? – prestava atenção na outra

 

--Vegetariana, porque ainda como peixe e ovos. – esclareceu – Os peixes do Centro-Oeste são maravilhosos e eu adoro ovo de galinha caipira! – limpou os lábios com guardanapo – Já você, me parece que come carne mas com moderação. -- bebeu um gole de suco

 

--É verdade, como com bastante moderação. – bebeu um gole de vinho – Mas por que você é vegetariana?

 

--Já sou há muito tempo por não concordar com a matança dos animais e nem com o tanto de água que se gasta na criação deles pro consumo humano. – pausou brevemente – O planeta não aguenta mais esse modelo de produção de alimentos. É uma questão de tempo a Natureza nos cobrar essa conta! – deu uma garfada

 

--Eu já ouvi falar disso, desse consumo de água exagerado. – limpou os lábios com guardanapo – Aposto que você também deve preferir consumir orgânicos, de pequenos produtores e empresas sustentáveis e tal. -- concluiu

 

--Exatamente. – finalizou a refeição – Já você, eu percebi que privilegia marcas que talvez te passem a impressão de maior qualidade. -- limpou os lábios com guardanapo – Não necessariamente precisam ser aquelas mais famosas.

 

--Não posso negar. – bebeu o último gole de vinho – O que mais percebeu em mim, Yara Saraíba? – perguntou cheia de charme

 

--Quer saber minhas impressões sobre Elza Machado? – debruçou-se sobre a mesa – Tá bom, vou fazer um resumo observacional. – sorriu – Você é uma pessoa extremamente organizada, sistemática, precisa, rigorosa e focada. Gosta de ter tudo planejado com antecedência, trabalha pra evitar os imprevistos ao máximo, e preza muito pelo que entende como ordem. – olhava nos olhos – Você é inteligente, culta, perfeccionista, chique, estilosa... – pausou brevemente – E tem plena consciência que sabe seduzir! A quem você quiser!

 

Adorou o que ouviu e debruçou-se sobre a mesa também. – E você foi seduzida por mim, Yara Saraíba? – provocou insinuante

 

--Você sabe que sim! – respondeu de pronto – Mas... o que me salva nessa história, é que apesar de ser uma mulher perigosa, seu coração é um tesouro que arde por ser conquistado! E eu quero esse prêmio! – afirmou convicta – “Ave Maria, não parece nem eu falando!” – pensou surpreendida com si mesma – “Ô, glória eu!”

 

--Hum... – alternava o olhar entre os olhos e lábios da indígena – E você acha que pode conquistar? – continuava provocando

 

--Me diz você, Elza Machado? – não desviava o olhar – Tenho o que é preciso ter pra isso?

 

--Hum... – fez um charme – Deixa eu pensar... – fingiu que pensava – Você é uma pessoa disciplinada, forte, passional, intensa e muito fiel ao que acredita. – analisava a outra – Mas não faz planejamentos pra si, vive cada momento e parece ignorar o sentido de ordem... – sorriu – Você é inteligente, culta, artista, porém simples, humilde... – pausou brevemente – Mas tem plena consciência que leva uma mulher à loucura na cama... – afirmou em tom mais baixo

 

Ficou toda prosa com o que a namorada disse. – E isso quer dizer o que, Elza Machado? – insistiu – Tenho chances?

 

--Por que você não descobre por si mesma, Yara Saraíba?

 

***

 

--AH, AH, AH, AH! – Elza gemia alto enquanto Yara a penetrava com paixão – AH! – arranhava as costas da amante – AH! – envolveu a cintura dela com as pernas – AH!! – fechou os olhos e entregou-se a um orgasmo delicioso – AH!!!

 

--AH! – Yara gem*u excitada com o clímax da parceira – AH! – beijou-a com desejo enquanto continuava penetrando a negra – Ah! – colocou testa com testa e acompanhou os movimentos do corpo da outra – Ah... – interrompeu a penetração e abraçou-a com força antes de beijá-la novamente

 

As duas perderam-se em um delicioso amasso.

 

--Ah... – mordeu o lábio inferior da indígena – Vem, amor, -- introduziu dois dedos dentro dela – goz* também... – beijou-a enquanto a penetrava

 

--AH! – Yara fechou os olhos e cavalgou sobre a mão da parceira – AH!! – reclinou o tronco e gozou – AH! – novamente deitou-se sobre a outra e se abraçaram com força

 

Quando os corpos se acalmaram, as duas continuavam beijando-se e se acariciando mutuamente.

 

--Ai... – Elza suspirou – Você acaba comigo, sabia? – sorriu dengosa – Acaba... – beijou-a

 

--E você me deixa doida, Ave Maria! – beijou-a também – Eu fico fora de mim... – olhava nos olhos – Mal me reconheço... – beijou-a mais uma vez

 

--E eu inocentemente achando que cê tava cansada de viagem... – deslizou um dedo na sobrancelha da namorada – Que nada! – beijou-a

 

--Tem coisa que revigora a gente! – sorriu – Mas embora você seja uma mulher maravilhosamente atlética, -- movimentou-se para deitar de barriga para cima – deixa eu sair de cima e te dar um alívio. – abriu os braços – Deita aqui, vem? – pediu com carinho

 

--Eu não tava reclamando... – aconchegou-se no colo da outra – Mas assim também é tão bom... – sorriu e a abraçou – Olha só, tem uma série de perguntas que quero te fazer! – comentou dengosa – E você não vai deixar de responder!

 

--Agora é a capitã me dando ordem? – brincou e elas riram – Tá bom, pergunta o que quer saber. – abraçou-a e beijou a cabeça dela

 

--Conta como você foi parar no abrigo e por que não pensa em sair de lá?

 

--Ah, é uma longa história mas eu vou tentar resumir. – acariciava as costas da negra – Você sabe da história do genocídio, sabe que minha mãe e eu rodamos por várias cidades por medo de perseguição e represália, mas um dia a gente chegou em Olinda e parou. – lembrava do passado – Depois que ela morreu, continuei na cidade e morando no mesmo lugar, que era uma casa de religiosas. Porém aconteceram uns problemas por lá e tive que fugir, indo parar em Salvador, onde vivia, e vive até hoje, padre Camilo.

 

--Aquele que denunciou o genocídio junto com você. – lembrava do homem – Sei.

 

--Isso, ele mesmo. – confirmou – Então fiquei morando numa escola internato religioso e também teve uns problemas que me fizeram fugir. – deram-se uma das mãos – Só que eu havia conhecido o Comuna por causa do movimento pelo impeachment em 92 e foi o que mudou tudo pra mim! Fui atrás deles pra pedir ajuda, e como o Partido organizava uns movimentos em Goiás, viajei com eles pra lá. – entrelaçaram os dedos – Através da presidente do Partido na época, soube do abrigo de dona Kedima. E como eu me apaixonei por Goiânia, fui procurar pouso na casa dela. – sorriu – Foi amor à primeira vista! Ela virou minha nova mãezinha e não me imagino deixando ela sozinha pra cuidar de um projeto tão bacana! Ainda mais agora que, aceite-se ou não, virou deficiente física.

 

--Entendo... – acariciavam-se mutuamente – Mas você não sente falta de um cantinho seu? Só seu? – estranhava

 

--Linda, a vida inteira eu morei em ambientes comunais. – respondeu com carinho -- Talvez se um dia tivesse vivido numa casa, tipo você com seu pai, eu sentisse falta. Mas não foi o caso, então...

 

--Sabe o que eu pensei? – levantou a cabeça e olhou para Yara – O Comunismo entrou na sua vida de uma forma tão natural quanto o Militarismo sempre fez parte da minha. – concluiu – Tudo bem que ambas sentimos afinidade por cada uma dessas coisas, mas talvez... tenha sido meio inevitável, não sei.

 

--É verdade... – beijou-a – Cada vez mais penso que dona Kedima e a Fernandão têm razão quando dizem que a gente não pode deixar que essas diferenças nos separarem. – olhava para a negra – Elas fazem parte de nós, mas não nos definem, não nos limitam!

 

--Uhum! – beijou-a – Mas... – mordeu o lábio inferior da outra – Não me passou despercebido que a senhora arrumou confusão por duas vezes e teve que fugir! – observou brincalhona – O que andou aprontando, hein, Yara Saraíba? – soltou a mão dela e apertou-lhe a bochecha de leve

 

--Não foi bem como você pensa! – sorriu também

 

--Então me conta! – deitou-se no colo da namorada de novo – Quero saber de tudo!

 

Suspirou. – Ô, minha via Crucis... – lamentou bem humorada – Vamos lá... – pensava em como iniciar – Na Casa das Religiosas de Olinda havia duas irmãs que eram amantes e um dia descobri isso sem querer... – pausou brevemente – Eu vi as duas no ato e observei que elas usavam um acessório tipo... um p*nis.

 

--Gente! – levantou a cabeça novamente – E você descobriu isso e contou pra alguém? – perguntou curiosa

 

--Não! – balançou a cabeça negativamente – Eu jamais faria isso e nunca fiz! – afirmou com ênfase – O que aconteceu é que... de quando em vez eu espiava as duas... ali, no ato... – ficou meio sem graça

 

Riu brevemente. – Ai, mas que safadinha! – beijou-a – E foi esse o motivo da treta?

 

--Não exatamente... – pensava em como falar – Teve um dia que uma delas chegou com uma bolsinha e escondeu na sala. Depois que ela saiu, fui ver o que era e... – gesticulou brevemente – Era um acessório e eu... peguei escondido.

 

--O que?? – achou graça e riu

 

--Aí ela e a amante dela descobriram que eu namorava Edivânia, acabaram desconfiando que fui eu que peguei o trem e armaram uma cilada pra gente. – continuou a falar – Pegaram Edivânia e eu no maior amasso lá na Casa e... na hora H, Edivânia falou que foi seduzida por mim e todo mundo aproveitou pra me transformar na vilã da história. – resumiu a narrativa – Então as irmãs decidiram pela minha expulsão da Casa, padre Louzada achou que eu deveria ir prum convento e, pra evitar isso, fugi pra Salvador atrás de padre Camilo.

 

--Gente, tô boba! Tudo isso por causa de um consolo? – achou graça novamente – Me perdoe, mas é surreal! – balançou a cabeça – E essa sua namorada, viu? Que trairona, puta merd*! – criticou

 

--No passado eu também pensava assim, mas depois refleti e entendi o lado dela. – acariciava o rosto da negra – Edivânia vivia com a madrinha, fugindo da casa da mãe, que morava com um cabra que era doido pra estuprar ela. Imagina o que é viver dia a dia sob o pânico de ser violentada! – lembrava da história – Ela teve medo da madrinha saber que me namorava por livre e espontânea decisão e por isso a mandasse de volta pra casa da mãe. – considerou – Eu entendo porque ela fez o que fez quando fomos pegas no flagra.

 

Ficou olhando para o rosto da indígena. – Eu não tenho essa grandeza toda... – respondeu admirada – E em Salvador, o que a senhora aprontou? – perguntou curiosa

 

--Tive um namorico com uma garota que era desejada por uma professora pedófila. – Yara resumiu a história – Ela deve ter achado que eu atrapalhava e decidiu me tirar do páreo. Professora Clea, o nome dela. – lembrava da mulher – Pra azar o meu, ela tinha família em Pernambuco e procurou padre Louzada pra saber porque tive que sair de Olinda. Então, quando descobriu, fez um fuxico na escola e mais uma vez decidiram me internar num convento!

 

--Mas que azar! – reclamou – E foi aí que o Comuna entrou na sua vida e te salvou?

 

--Isso. – respondeu simplesmente – Pode ser surreal, mas é a minha história! – sorriu e a beijou

 

--Hum... – deitou-se novamente no colo da indígena – Agora eu quero saber de outras coisas! – abraçou-a – Quero saber de todas as mulheres que teve na vida! – pediu imperativa – Em detalhes!

 

--Nossa, e foram milhares! – brincou e riu

 

--Para, tá? – beliscou a cintura da indígena de leve – Mas fala, Yara, quero saber tudo! – insistiu ciumenta

 

--Ai, ai, tá bom... – respirou fundo – Edivânia foi minha primeira namorada e mulher. Quando aconteceu ela tava com 15 e eu com quase 14 anos. – acariciava as costas da negra – Depois foi Gil, que conheci em Goiânia quando tava com 18 anos, e com quem namorei por um ano mais ou menos. – pausou brevemente – Ela me largou porque meu tempo era muito cheio, sabe? Faculdade, Comuna... e ela é rapper, viajava pra fazer show... A gente se desencontrou. – visualizou o rosto da mulher em sua mente – Depois veio Natália, aos meus 19 anos, mas a gente não namorou. Ela mora em Salvador, ficávamos juntas quando os eventos do Partido nos colocavam numa mesma cidade, mas ela nunca quis saber de nada sério. Ficamos nessa por três anos.

 

--Ela é do Comuna?! – levantou a cabeça preocupada – Então vocês se veem até hoje! – concluiu

 

--Sim, mas hoje em dia ela já tá até morando junto com a namorada que arrumou em Salvador. – esclareceu – Tem mais nada a ver! – enfatizou

 

--Humpf! – fez uma cara feia – E as outras depois dessa? – brincava com uma mexa do cabelo da indígena

 

--Depois dessa teve a Perla, uma paraguaia que conheci num evento Latino Americano do Comuna, mas a gente ficou junta só por um mês. – acariciava a cabeça de Elza – Foi em 99, perto do final do ano.

 

--Esse Comuna é a maior pegação, fico só vendo! – reclamou enciumada ao se movimentar para sentar – Vocês ficam nessa de Comunismo pra lá e pra cá e aproveitam pra ficar se pegando com mulher de tudo que é lugar! – encostou-se no estofado da parede e se cobriu com o lençol – Maior pouca vergonha! – cruzou os braços de cara feia

 

Sentou-se também e acabou rindo um pouco. – Não é nada disso... – passou a mão nos cabelos – Te contei das duas únicas mulheres com quem me envolvi por lá. – olhava para a negra – Encerrando a resposta da sua pergunta, no ano 2000 aconteceu uma mulher que virou minha vida de cabeça pra baixo... – pausou brevemente – E não houve outra depois dela!

 

--Cê tá falando de mim? – mexia no lençol sem olhar para a namorada

 

--Você sabe que sim! – respondeu resoluta – Você sabe que desde a nossa primeira noite tudo mudou! – silenciou brevemente -- Pelo menos pra mim...

 

--Pra mim também! – confessou ao olhar para a amante – E da mesma forma não estive com mais ninguém depois de você! – admitiu

 

--Sabe...? – passou a mão nos cabelos – Não sei se tô preparada pra te ouvir falando das ex... – confessou – Com certeza a sua vida amorosa foi bem mais intensa e interessante que a minha, que fiquei sozinha na maior parte do tempo. – olhava para a negra

 

Sorriu. – Aí é que você se engana... – suspirou – Assim como você, tive quatro mulheres antes de nós e minha vida amorosa não foi um sucesso. – começava a contar – Fiquei com várias, mas na cama foram quatro: Carla, Renata, Patrícia e Ana Maria. – pausou brevemente – Carla e Renata conheceram a Elza inocente, bobinha, que acreditava em tudo que ouvia, que se apaixonava fácil... Patrícia e Ana Maria conheceram a Elza que não se envolvia com ninguém, só curtia. – ajeitou os cabelos – Eu tinha 15 anos na minha primeira vez e Carla me deixou logo depois. Sumiu sem mais e foi morar nos Estados Unidos com o pai. – resumia a história – Conheci Renata exatamente por causa dos movimentos pelo impeachment e quando aconteceu com ela, eu tinha 17 anos e fiquei completamente apaixonada! – abaixou a cabeça – Ela me deixou também sem mais, porque foi viajar com a namorada oficial, a presidente do Comuna de São Paulo... – falava com mágoa – Por causa dela perdi até o vestibular e entrei na faculdade um ano mais tarde do que poderia... – pausou brevemente – Patrícia e Ana Maria foram garotas que conheci em São Carlos, lá na faculdade... casos sem a menor importância.

 

--Então o que Renata matou em você foi a coragem de amar, de se entregar novamente? – Yara perguntou com jeito – A disposição pra acreditar no Amor mais uma vez? – Elza permanecia de cabeça baixa – Você ainda não percebeu que no fundo Renata é uma fracassada? – insistiu no assunto – Uma mulher que nunca conquistou nada sem usar de artifícios sujos e que vive correndo atrás de coisas que passam! – olhava para a namorada com carinho – Você não pode deixar ela ser vitoriosa nisso, em matar algo tão bonito dentro do seu peito! Olha pra mim, linda? – pediu e ela fez – Eu adoraria ter lhe conhecido antes dela, mas infelizmente não posso mudar o passado. Mas eu te peço e peço do fundo desse coração sofrido que eu tenho: -- bateu no peito – se ela matou algo em você, me deixe entrar onde ela já esteve e eu prometo que lhe ajudo a renascer! – falava com verdade – Dou minha palavra abaixo de Deus e em nome dos meus ancestrais!

 

Elza se emocionou e se movimentou para sentar no colo da indígena. Abraçou-a com força e envolveu a cintura dela com as pernas. – Não brinca com isso! – pediu chorando contidamente – Não brinca comigo! – pediu sofridamente

 

--Ei... – segurou o rosto dela com as duas mãos – Eu não tô brincando! – olhava nos olhos – Você e eu temos muitas dores no coração. – secava as lágrimas da negra com os dedos – É hora de curar essas feridas abertas! – acariciava o rosto da amada – Entrego meu coração pra você, mesmo com todos os receios! – falava com intensidade – Entrega o seu pra mim? – pediu com humildade

 

--Entrego! – beijou-a – Eu entrego! – beijou-a apaixonadamente

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza e Yara conversavam no carro da militar, do lado de fora da vila onde a negra residia.

 

--Você lembra da história toda, né? Nós nos conhecemos porque você é amiga da tenente Bárbara, que serve em Brasília.– Elza orientava – E aí você foi pra São Paulo pra comprar coisas pro abrigo.

 

Suspirou insatisfeita. – É dessa parte que eu não gosto! Da mentirada... – reclamou – Não sou acostumada com isso! – franziu o cenho

 

--Own, amor, eu sei, mas por enquanto tem que ser assim! – beijou-a

 

--E você não acha um trem sem base isso de eu chegar pra passar o natal com a sua família? – continuava reclamando – Como vai ser, hein?

 

--Ai, não, amor, sem essa de querer voltar atrás! – beijou-a – E você me prometeu que ia passar o natal aqui comigo... – cobrou dengosa

 

“Ô, minha cruz do Calvário, é cada coisa que a gente promete na cama...” – pensou se lamentando – “Namorar uma mulher que abunda em aleluia dá nisso: a gente promete os trem sem perceber e depois se arrepende!” – suspirou – Ô, glória...

 

--Ô glória, nada, você vai cumprir com o que me prometeu! – beijou-a – Amanhã te levo pro seu hotel como prometi.

 

--Fazer o que, né? – benzeu-se duas vezes – Ave Maria, crê em Deus Pai! – olhou para cima – Ô, Cristo Santo, me ampara! – fechou os olhos brevemente – Queima língua de fogo, lambe com fé! Saravá, minha Mãe!

 

--Eu hein! – Elza riu e se ajeitou para ligar o carro – Vamos entrar na vila. – começou a dirigir – Meu pai e tio Goulart encomendaram alguns quitutes de natal na padaria do Centro e foram buscar. – informou – Vamos aproveitar que Fernandão tá sozinha na minha casa.

 

Yara se benzeu mais uma vez.

 

***

 

--Eu achei que vocês formam um casal super da hora! – Fernandão sorria para as duas – Meu, e essa tatuagem aí nos braços, me explica? – perguntou curiosa – Negócio diferente! – reparava nos antebraços da indígena

 

--É tatuagem temporária. Dentro da tradição indígena, feita com pintura de jenipapo. – mostrava os detalhes – Simboliza a textura da pele da onça pintada.

 

--É a minha oncinha! – Elza mordeu a bochecha dela de leve – Hum! – segurou-a pelo queixo e a beijou nos lábios

 

--Aproveitem a liberdade enquanto o sargento e o tenente-coronel ainda tão na rua. – a sargento ajeitou-se no sofá – E eu aproveito pra dizer pra vocês que minha Alana me disse que vem passar o réveillon comigo aqui! – sorria – Já pensou? Minha Beyonce carioca abriu mão de assistir à queima de fogos em Copacabana só pra ficar comigo! -- suspirou

 

--Nossa, já tão assim? – Elza perguntou surpreendida – Que amor, hein? – brincou com a outra

 

--Tem amores que são assim: avassaladores! – deu um tapa na coxa de Yara – Né, não? Confessa aí!

 

Achou graça. – É, Fernandão, confesso... – estava simpatizando com a sargento – “Ela parece ser massa!” – pensou – Eu não sei quem é Alana, mas tô entendendo bem dessa coisa de amor avassalador! – olhou para Elza

 

--Own... – beijou-a mais uma vez

 

E de repente um barulho de carro se fez ouvir do lado de fora da casa. – Eles chegaram! – Fernandão se levantou rapidamente – Meninas, olha o disfarce! – advertiu batendo palmas – Desmancha esse clima aí!

 

--Agora tudo muda. – Elza cochichou para Yara ao se levantarem – Não me chama de linda e nem de amor, tá? – ajeitou-se toda

 

“Ô, meu Santo Sudário, me cubra!” – Yara pensou nervosamente – “Pra que eu fui prometer o que não devia?” – novamente se lamentou

 

--Atentai-vos, oh, elementos femininos deste clã militar, -- Machado chegava carregando caixas – preparai-vos vossos aparelhos digestivos, pois em breve chegará a hora em que arrumar-se-ão os comensais para a ceia das doze badaladas da renovação! – entrava em casa – Oh! – reparou na indígena e colocou as caixas sobre a mesa de jantar – Quem sois? – perguntou surpreendido

 

--Demoramos, né? – Goulart seguia atrás carregando outras caixas – A padaria tava lotada de gente! – reparou na mulher também e fez como o amigo – “Deve ser a tal moça de Goiás.” – deduziu

 

--Pai, tio Goulart, essa é Yara, aquela amiga sobre quem falei! – apresentou – Aproveitei que fui em São Paulo fazer minhas comprinhas pré viagem e marquei de encontrar com ela por lá. – mentia – Daí viemos juntas hoje.

 

--Senhor. – a indígena estendeu a mão para Machado – Prazer em conhecê-lo. – tentava disfarçar o constrangimento que sentia

 

--Povos originários! – o sargento sorriu ao apertar a mão da mulher – Oh, representante dos nativos desta terra bendita, eis que meu lar é o vosso e que as portas da residência machadiana estejam sempre abertas para recebê-la em terras joseenses! – cumprimentou animado

 

“Ele fala que nem os autores dos textos que estudei em literatura no segundo ano!” – pensou divertida – Obrigado! – soltaram-se as mãos – Eu lhe agradeço muito pela acolhida. Especialmente numa noite de natal! – olhou para Goulart – Igualmente é um prazer, senhor. – estendeu a mão

 

--Prazer, Yara. – apertou brevemente a mão da jovem – A casa não é minha, mas me atrevo a pedir que se sinta à vontade. – sorriu – E ainda teremos muito o que conversar ao longo da noite.

 

“Ave Maria!” – pensou ao se afastar do homem – “Só quero ver o nível dessa conversa...”  

 

***

 

Todos haviam acabado de cear logo após uma oração conduzida por Yara. Antes de tudo isso, haviam trocado alguns presentes. O grupo permanecia na mesa apenas para conversar.

 

--Tem feito muito frio em Massachusetts, então eu comprei alguns conjuntos de roupas de inverno pra me prevenir. – Elza gesticulava – Mas o sobretudo que o senhor me deu hoje foi a cereja do bolo! – sorria para o tio – Vou usar no meu primeiro dia no Instituto!

 

--Também gostei muito da bolsa de golfe que você me trouxe de São Paulo! – Goulart respondeu sorridente – Coisa de qualidade!

 

--Elzinha sabe escolher bons presentes! Adorei minha caixa de ferramentas! – Fernandão comentou animada – Como também adorei os doces e perfuminhos amazônicos, Yara! – olhou para a indígena – “Vou estrear esses perfumes quando Alana chegar!” -- pensou

 

--Igualmente devo expressar minha gratidão militar pelo vosso presente digno dos povos originários mais cheirosos! – Machado olhava para Yara – E os chocolates soberbos em explosões de sabores exóticos inigualáveis! – sorriu para a filha – E minha empoderada capitão não podia ter me feito mais jubiloso com o capacete que trouxera para mim!

 

--Que bom que gostaram, fico feliz! – a indígena sorria – Também agradeço pela ceia maravilhosa e repito o agradecimento pela acolhida!

 

--Também devo agradecer pelos chocolates e perfumes que me deu. – Goulart afirmou com certa formalidade – Até o bauzinho onde os doces vêm guardados é um artesanato riquíssimo! – comentou – Os índios vendem estes produtos em Brasília? – perguntou curioso

 

--Na verdade, tenho acesso a produtos do tipo quando o Movimento dos Povos Originários do Brasil ou o Centro da Cultura Indígena no Brasil organizam algum evento em Goiânia. – explicou – Tivemos um evento em julho e uma feira no final de novembro, que foi quando comprei estas lembrancinhas. – olhava para o tenente-coronel

 

--Elza me falou desse evento de julho. – lembrava das palavras da sobrinha – Parece que vocês se reencontraram durante ele, não foi isso? – olhava atentamente para Yara

 

“Ele desconfia de nós!” – a indígena percebeu – Sim. – respondeu simplesmente

 

--E a... tenente Bárbara? Como vocês se conheceram? – continuava perguntando

 

--Então, tio, eu já falei. – Elza se envolveu na conversa – A Bárbara serviu no Amazonas, trabalhou com tribos indígenas e uma vez transferida pra Brasília, ela sempre participa dos eventos que acontecem por lá. E foi numa dessas que ela e Yara se conheceram. – olhava para o homem – Yara fez graduação e mestrado na UnB.

 

--Hum... – reparava nas duas – É que eu tinha esquecido desses detalhes... – sorriu – E você... é muito atuante nestes movimentos indígenas, Yara? – insistia

 

--Sim. – não desejava alimentar aquela conversa – “Aonde será que ele quer chegar?” – pensava desconfiada

 

--E tá muito certa de ser! – Fernandão comentou – Os índios já foram e ainda são muito massacrados! Têm mais é que se unir! – levantou-se da mesa – Gente, vou recolher os pratos. – buscava mudar o rumo da conversa – Com licença.

 

“Tio Goulart tá tão estranho!” – Elza pensava – “Será que ele tá desconfiando de alguma coisa?”

 

--Aquietai-vos, pois hoje é meu dia de apartar as louças! – Machado afirmou ao se levantar – Continuai-vos mantendo vossos doces colóquios, pois cuidar-lhes-ei da limpeza pós ceia! – começou a recolher os pratos com a ajuda de Fernandão

 

--Posso ajudar também! – Yara se ofereceu

 

--Por favor, você é visita! – a sargento piscou para ela

 

--Povos originários, não vos lobrigueis! – Machado respondeu – A faina está sob meus cuidados! – prestou continência para Goulart – Permissão para me retirar, senhor! -- olhou para Fernandão – Sargento, marche! – os dois seguiram para a cozinha levando tudo

 

--Pensando aqui... seu rosto não me é estranho! – Goulart reparava – Onde será que lhe vi?

 

--O senhor deve ter visto ela nas matérias sobre o genocídio de 79. – Elza comentou – Ela e padre Camilo fizeram a denúncia no Brasil e no exterior. Por isso apareceram na TV.

 

Gastou uns segundos calado até que perguntou à queima roupa: -- Você é comunista, Yara? – mantinha os olhos fixos nela – “Eu lembro de uma conversa dessas...” – pensava – “Lembro de falarem de uma índia comunista que denunciou o governo militar!”

 

--Sim, eu sou! – respondeu de imediato – E filiada ao Partido Comuna! – olhava para o homem – Isso não é segredo.

 

--Hum... – o militar cruzou os braços

 

--Agora vamos fazer uma coisa que eu adoro! – Elza se levantou da mesa – Ver fotos antigas! – fez sinal para Yara – Faço isso em todo natal pela madrugada afora! Vem comigo? – chamou – Vou te mostrar fotos da minha infância e você vai ver minha mãe e tia Gracinha! – olhou para o homem – Licença, tá, tio?

 

--Com licença, senhor. – Yara levantou-se da mesa também

 

--Toda. – o homem respondeu enquanto manteve-se reparando nas duas – “Elza não pode continuar de gracinha com essa mulher!” – pensou revoltado – “Essa proximidade pode acabar com a carreira dela!”

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Renata e Romero conversavam em um barzinho próximo à sede.

 

--Cara, tá foda! – a loura reclamava – Sou presidente do Comuna mas é o mesmo que nada! – falava de cara feia – Yara é uma oposição ferrada, ela torna meu mandato praticamente inviável! – deu um soco na mesa – E o pior é que com ela não rola de fazer acordo!

 

--Será que ela não tem um podre que a gente possa buscar? – Romero perguntou – Alguma coisa que a gente descubra e faça com que ela ou a palavra dela fique desacreditada no meio dos camaradas?

 

--Eu já pensei nisso, mas não tem nada! Aquela porr* só não é santa porque de vez em quando come umas mulherzinhas! – respondeu mal humorada – Já tentei até colocar uma garota na fita dela pra ver se me dava um adianto mas ela não se empolgou com a mina que eu arrumei!

 

--Ah, mas olha só, o Comuna é um partido pequeno e não elege ninguém! – Romero considerou – Já pensou da gente passar pro partido de Luiz Horácio? Não seria muito melhor? – propôs

 

--Claro que eu penso nisso, mas entende uma coisa: -- olhava para o homem – no Comuna a gente é peixe grande e no partidão a gente é peixe minúsculo! – passou a mão nos cabelos – Pra gente mudar, tem que ser pra chegar por cima e eu queria subir esses degraus fazendo uma presença no Comuna. Só que Yara me atrapalha os planos!

 

--Entendo o raciocínio, mas também penso que é melhor ser rabo de tubarão que cabeça de sardinha! – o homem retrucou

 

Embora não reparassem, Celeste estava perto e ouvia toda conversa. “Tenho que conversar com camarada Yara sobre isso!” – pensou – “Não se pode deixar essas duas cobras darem um bote surpresa!”

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--Foram dias maravilhosos passados ao seu lado! – Yara segurou a mão da negra – Adorei nossos momentos em São Paulo, os dias aqui em São José e a ceia de natal com a sua família. – dizia a verdade – Gostei muito da Fernandão, do seu pai, mas, me perdoe a franqueza... – pensava em como falar – Seu tio Goulart e eu... – balançou a cabeça negativamente – Não deu liga!

 

--Tio Goulart é muito desconfiado, sempre com os dois pés atrás com quem se aproxima de mim... – olhava para a namorada – Mas é uma pessoa maravilhosa, um dia a cisma vai passar! – sorriu – Também amei esses dias com você! Cada minuto a seu lado foi inesquecível!

 

As duas se despediam na rodoviária de São José dos Campos.

 

--Boa viagem pros Estados Unidos, bons estudos, muito cuidado e o mais importante: -- olhava nos olhos – não se esqueça de mim! – pediu

 

--Nunca! – abraçou-a com força – Eu te dei me coração, lembra? – sussurrou no ouvido

 

--E você tem o meu! – respondeu aos sussurros também

 

--Você me deu o crucifixo da sua mãe. – mostrou o cordão quando romperam o abraço – Agora eu vou te dar uma coisa que foi da minha. – entregou uma pequena bolsinha na mão da outra – Deixei pra te dar agora, porque queria fazer isso nesse momento de despedida. – sorria – Sei que não fui tão romântica e gentil quanto você, mas... – pausou brevemente – Creia que é de coração!

 

--Eu tô achando muito bonito! – abriu a bolsinha e retirou um pequeno anel dourado -- Que lindo! – olhou admirada para o objeto – Com um dedo tão pequeninho, acho que vai caber no meu mindinho. – estendeu a mão esquerda – Quer colocar em mim? – pediu sorridente

 

--Quero. – colocou o anel no mindinho da indígena – Agora você também tem algo pra usar e se lembrar de mim. – sorria

 

--Não que eu precise pra me lembrar de você. – sorria – Mas vai ficar aqui, indefinidamente!

 

--E eu também vou ficar no seu coração indefinidamente? – perguntou melosa

 

--Vai! – abraçou-a com força mais uma vez

 

--E você também no meu! – fechou os olhos emocionada – Fazia muito tempo que eu não deixava ninguém entrar! – abraçou-a com mais força – Não me machuque, viu?

 

--Não vou! – sentia pena de se despedir – Não vou!

 

As duas não sabiam, mas Goulart as observava de longe, escondido em seu carro.

 

“Essas duas não são simples amigas!” – pensava desconfiado – “Não sei como tudo isso começou, mas sei como vai acabar!” – ligou o veículo e foi embora

 

 

 

 

Fim do capítulo