Uma demonstração
Eu acordei sentindo as carícias de Amy nos meus cabelos. Levanto a cabeça e sorrio para ela, recebendo seu beijo nos meus lábios. Sento lentamente no colchão, esticando os braços em cima da cabeça a fim de me alongar e espantar o sono.
— Boa noite. — Ela me disse ao observar os meus movimentos enquanto se sentava junto dos travesseiros.
— Já anoiteceu? — Olho pela janela que tinha do outro lado do seu quarto, vendo a tempestade ainda forte lá fora, mas já estava escuro e eu a olhei de volta. — Eu dormi demais, não é mesmo?
— Não se preocupe, eu acordei um pouco antes de você. Só aproveitei a sensação de ter você dormindo comigo aqui.
— É, realmente foi boa. — Sorrio, deslizando os olhos pelo seu corpo, dessa vez ela corou para o meu deleite, jogando-me o travesseiro. — Agora está com vergonha?
— É diferente! — Defendeu-se.
Ela estava sendo ainda mais adorável. Eu engatinhei até ela e voltei a beijá-la, agora mais devagar, sentando perto dela e a recebendo no meu colo. Ela relaxou nos meus braços, depois de algum tempo pressionou a testa na minha e ficamos nos olhando, rindo baixinho.
— Você é tão linda. — Digo, e calo seus protestos com um beijo. — Você é linda, então aceite.
— Eu gosto do quanto você é e emana confiança.
— Não somos modelos, querida, e eu estou feliz assim. Espero que tenha te mostrado o quanto te quero do jeito que é.
— Você definitivamente mostrou.
— Eu gostei do quanto se entregou hoje, então não pare. Eu te quero entregue assim todos os dias, porque não vou tirar minhas mãos de você, vet.
— Não? — Ela sorriu, eu somente balanço minha cabeça de maneira negativa. — Eu gosto de ter você assim, sem restrições. Aberta para mim.
— Já faz tanto tempo que não fico assim com alguém que tinha me esquecido o quão libertador isso pode ser. Eu me sinto tão leve que não sinto qualquer necessidade de te afastar. Pelo contrário.
— Então não me afaste. Eu sei que ainda temos que ter aquela conversa, mas eu não esconderei nada de você.
— Eu acredito em você. Eu também não te esconderei nada. — Eu a abracei, ouvindo o som da chuva lá fora. — Talvez eu deva voltar para casa.
— Não comece com isso, você vai ficar bem aqui.
— Vou?
— Você não tem outro compromisso, tem?
— Não. — Rio, então escutamos a campainha e eu olho para ela. — Mas parece que você tem.
— Não deve ser nada importante.
— Mas você deve atender mesmo assim.
— Odeio que tenha razão. Eu tenho um banheiro aqui, você pode tomar banho primeiro. Tem uma toalha a mais lá dentro e você pode usar minhas roupas.
— Está bem, eu vou, mas não demore lá embaixo. Eu vou te esperar aqui.
— Isso me faz querer não atender a porta agora. — Ela grunhiu quando a campainha tocou outra vez. — Eu serei rápida. Pode usar tudo o que precisar.
— Está bem. Vá antes que o seu visitante desista.
Ela selou meus lábios e saiu de cima de mim, vestindo alguma roupa e saindo do quarto. Eu levei meu tempo para sair da cama, só então reparando no quarto de Amy. Quando chegamos na casa dela eu percebi que era maior do que a minha, mas agora vendo por dentro entendia a dimensão. Ela realmente tinha condições de se bancar.
O quarto era grande, espaçoso e nem de longe era organizado. Tinha livros espalhados pelo chão junto de meias. Tudo parecia estar fora do lugar e precisava de limpeza. A cama ficava no centro do quarto, era grande e bem confortável, com lençóis vinho e macios. Tinha um tapete quente em cada lado da cama e uma calçadeira no pé da cama, onde tinha uma pilha de roupas que julguei que fossem limpas, porque estavam dobradas. A janela dava vista para o jardim frontal, onde eu vi um luxuoso carro parado na frente.
O armário de Amy era grande e fundo, ficava em frente da cama do outro lado do quarto, ela não tinha muita roupa lá dentro, para a minha surpresa. Provavelmente está tudo para lavar, constatei. O banheiro estava ao lado do armário e também parecia tudo fora do lugar. Ela não devia passar tanto tempo em casa para pensar em limpar tudo, era a única explicação, ou ela simplesmente era preguiçosa demais.
Tomei um banho quente e demorado, mas não bastou para Amy me alcançar infelizmente. Então voltei para o quarto e escolhi uma calça de moletom preta e uma camisa de manga comprida vermelha que tinha o tecido macio ao toque. Coloquei meias que julguei que estivessem limpas, mas parei quando terminei, sem acreditar no que tinha encontrado logo ali, debaixo da cama. Uma arma! Por que diabos Amy teria uma arma debaixo da cama?
Sem saber o que fazer, eu a peguei, temendo que um dos cachorros pudessem subir e acabar pegando. O metal era gelado no cano, mas onde segurava era de couro. Eu nunca vi uma arma de perto e muito menos pego uma na mão. Era longa e tinha um tubo a mais no bico. Era pesada. Será que estava carregada? A trava estava acionada, ao menos eu sabia disso. Era melhor levar para ela e deixar que ela decidisse o que fazer. Então saí do quarto carregando uma arma.
Parei no corredor, tentando me localizar. Tinha três portas fechadas a esquerda e outra à direita. A escada ficava em seguida, e eu fui até ela, descendo enquanto escutava a conversa alterada que Amy tinha na porta da frente.
— Eu já disse que perdi o prazo e que não tenho todo o dinheiro aqui, e eu não vou fazer a droga de uma ligação porque você não pode esperar um dia. — Amy disse irritada.
— Então você virá comigo e vamos pegar o resto do dinheiro, é simples. — Era uma mulher que falava em tom autoritário e firme. — Eu preciso dele para hoje, você já está atrasada dois dias, Fontenelle.
— Eu nunca perco as datas, não dá para me dar um desconto? Amanhã de manhã eu mando entregar tudo com juros, hoje eu não posso.
— Meu carro está logo ali, não vai levar nem meia hora. — Eu vi o braço de Amy ser segurado e ela, puxada.
Eu estava andando sem sequer pensar, e antes que Amy fosse puxada para a varanda, eu passei um braço sobre seus ombros e debaixo do seu queixo, impedindo que a mulher continuasse a arrastando. Ela estreitou os olhos quando me olhou, então eu agi sem pensar e estendi o braço que segurava a arma, apontando para ela. Meu dedo baixou a trava.
— Você está surda? Ela disse que não pode ir hoje. — Eu falei em tom seco e áspero. — Agora solte minha namorada e vá embora antes que eu suje a entrada da casa.
— Você tem certeza de que sabe usar isso, boneca? — A mulher era alta e tinha a pele pálida como giz, olhos claros e uma expressão enigmática como a de uma cobra, mas ela soltou o braço de Amy e ficou parada no lugar.
— Eu posso testar em você ou... — Inclino a arma de lado, e como uma idiota eu atirei.
Eu mirei a roda e acertei o vidro do passageiro, mas foi o suficiente para irritar a mulher. A arma não produziu o estalo que eu achei que produziria, nem o coice que achei que sentiria, foi estranhamente sutil. Amy segurou meu braço e me fez mirar no peito da mulher, provavelmente sabendo da minha inexistente experiência como atiradora.
— Você vai pagar por isso Fontenelle.
— Não hoje. — Amy pontuou. — Agora saia.
Ela nos xingou, mas foi embora, então eu baixei o braço e me senti trêmula. Que merd* eu tinha feito? Amy me empurrou para dentro e trancou a porta, segurando meu rosto e checando meus olhos.
— Você estava se drogando lá em cima? O que deu na sua cabeça de aparecer aqui com uma arma e atirar? Você me assustou!
— E o que queria que eu fizesse? Tinha uma mulher te arrastando para fora de casa!
— Eu daria um jeito!
— Não me parecia ter jeito algum! Eu nem estava pensando, que saco Amy. Eu estava tentando te proteger. Achei que você corria perigo! Você queria que eu sentasse e esperasse que aquela mulher te levasse para o carro dela sem fazer nada para impedir?
— Está bem! Só... não faça isso de novo. Você não sabe usar uma arma e você podia ter se machucado. Droga... — Ela passou as mãos pelos cabelos em pleno nervosismo. — O pior é que você parecia tão natural que até eu acreditei.
— Eu já vi muitos filmes. — Justifico, então olho para a arma em minha mão e aciono a trava outra vez. — Não estava pensando quando atirei, eu só queria que ela te soltasse. O que você faria se fosse o contrário?
— Provavelmente pior. — Suspirou e segurou minha cintura, mais calma. Até mesmo sua voz atenuou — Se você quer aprender a usar uma arma, se quer ter uma, eu vou te ensinar a usar. Tudo bem? Eu. Você treinará comigo e só terá uma quando eu disser que sabe usar. Caso contrário, nunca mais pegue uma arma e atire.
— Você me ensinaria? — A ideia me fez recuperar um pouco do ânimo somente de imaginar Amy me ensinando.
— Sim, meu amor. Se é o que quer, eu o farei.
— Então posso ficar com a arma? — Sorrio com expectativa. — Ela é tão sutil e leve.
— Nem brinque com isso. — Ela tirou a arma da minha mão no mesmo instante, fazendo-me suspirar.
— Não devia deixar jogado, sabia? É perigoso para os cachorros. Afinal, onde eles estão?
— Eu os coloquei na lavanderia. E Lênin não vai no meu quarto. Mas sim, eu não deveria deixar tão facilmente visível. — Acrescentou quando ergo as sobrancelhas. — Eu vou tomar mais cuidado.
— Até porque se ele fosse no seu quarto ele teria inesgotável fonte de diversão.
— Está reclamando da minha bagunça, escritora? — Ela pareceu ofendida quando as suas sobrancelhas ergueram.
— Estou dizendo que se precisar de ajuda para ser organizada, eu posso ajudar.
— Que namorada prestativa eu fui arranjar. — Ela sorriu e envolveu os braços nos meus ombros, ainda segurando a arma. — Mesmo que eu não goste de te ver usando uma arma sem saber usar, eu agradeço pelo que fez aqui. Eu nunca diria que você é impulsiva a ponto de se colocar em risco assim.
— E eu não sou. Eu só... agi. Eu sei que não devia ter atirado, imagina se eu a acerto? Eu não saberia o que fazer.
— Que bom que você tem a mim então. Eu não te deixaria atirar nela. Não se preocupe, você não vai atirar em ninguém.
— Espero que não. — Envolvo sua cintura e apoio as nossas testas. — Acho que precisamos conversar de uma vez e deixar de ignorar tudo o que está acontecendo aqui. Mas eu estou com fome e você devia tomar banho.
— Quer pedir comida?
— Não. Posso usar sua cozinha para fazer algo?
— Claro. Use o que precisar, eu vou tomar um banho rápido e já volto para te ajudar.
Ela beijou meus lábios, então se afastou com a arma e subiu as escadas. O andar debaixo de Amy parecia mais organizado, mas precisava de uma limpeza. Ela tinha uma cozinha grande, com muitas coisas para usar e uma dispensa cheia. Mas eu queria algo rápido e saboroso, então separei os ingredientes e levei ao balcão, fazendo uma massa de pizza e então fazendo o recheio.
Amy apareceu pouco tempo depois que eu coloquei no forno junto a Lênin e Aurora. Eu brinquei com ambos, mas tão logo comeram eles preferiram a companhia um do outro. Amy me ajudou a servir a pizza na sala de estar dela, onde nos sentamos no tapete e comemos com a mão, bebendo a cerveja que ela tinha na geladeira.
Ela tinha um videogame igual ao meu e uma grande quantidade de jogos também, o sofá e a mobília em geral era mais cara e requintada, mas apesar da sala e do pouco que vi nos demais cômodos, ela não parecia passar muito tempo ali porque sua bagunça não tinha se espalhado.
— Você ficou quieta por tempo demais. — Amy comentou. — A arma realmente te incomodou?
— Não, não a arma. Eu ouvi parte da sua conversa com aquela mulher. — Digo lentamente, buscando as palavras certas. — Ela disse que você devia dinheiro a ela. Pelo que entendi você sempre está nessa situação de pagante. Então... eu devo saber com que tipo de gente está envolvida que sabe onde você mora e te trata dessa forma?
— Não acontece dessa forma sempre, acredite em mim. — Ela desviou o olhar, parecendo mais distante por um momento. — Eles ficam impacientes quando o pagamento é atrasado, mas normalmente eu não atraso, eu só estive muito ocupada essa semana e não lembrei de enviar o dinheiro. Aquela mulher se chama Amanda. Ela é somente a coletora, ninguém com quem se preocupar. Ela só busca o dinheiro, nada mais. E ela é uma idiota às vezes, eu sei, não costuma ser agressiva como hoje.
— Tudo bem. E por que você tem que dar dinheiro a ela?
— Para pagar as munições. — Ela me olhou, analisando-me, mas como eu não digo nada, ela continua. — Sim, meu grupo usa armas, então fazemos negócios com pessoas que contrabandeiam armas e munição.
— E para o que exatamente vocês usam armas? Vocês caçam soldados?
— Não, meu amor, é para proteção. Soldados atiram antes de questionar. Se eles encontram pessoas de grupos organizados, a ordem é matar primeiro. Nós atiramos para nos defender.
— Você já atirou para se defender?
— Sim. — Assumiu a suspirar. — E sim já matei, se era essa a sua dúvida.
— O que torna vocês diferente deles então, Amy? Se os dois estão dispostos a matar para defender o que acreditam, quem garante que é o melhor que a cidade precisa?
— Não queremos morrer sem lutar, sem ter a chance de nos defendermos, Ana. Eu não sei se somos a melhor opção para a cidade, mas estamos lutando de uma forma ou de outra, para que as coisas mudem. Se eles querem continuar no poder, eles precisam ser transparentes e então aceitar uma oposição, porque as pessoas não deveriam ser obrigadas a pensarem de um jeito só.
— E o que exatamente vocês querem?
— Que os representantes sejam todos trocados e que aceitem um membro do grupo para representar os demais e também como forma de manter a transparência. Não queremos soldados nas ruas interrogando civis. Dividiremos entre soldados e nosso pessoal para manter a segurança nas ruas sem intimidar as pessoas como se fossem criminosas.
— E como Isa Miranda entra nisso?
— Eu quero que Isa seja uma comunicadora ativa dos ideais do meu grupo e que continue propagando a mensagem de mudanças. Mas de maneira mais aberta e direta, sem mascarar.
— Eu te disse que a editora está me dando um gelo. Se eu postar algo ainda mais direto minha identidade correria risco.
— Não, eu não deixaria isso acontecer. Você não precisa continuar na editora porque eu assumirei os custos.
— Você? Querida, devo saber de onde tem tanto dinheiro?
Ela riu, realmente achando graça. Eu me ocupei no último pedaço de pizza e finalizei minha cerveja, sentindo-me leve e cansada de um jeito mais realizada. Amy tocou meu rosto e acariciou minha bochecha, olhando-me mais de perto, provavelmente escolhendo as palavras certas para não me fazer pensar errado dela.
— Eu cortei relação com os meus pais por causa da minha participação no movimento dos grupos. Eles têm grandes posses, realmente. Minha família sempre foi próxima dos representantes, dos Generais. Então eu herdei alguma herança de certa forma, eles me deram minha parte da fortuna quando me afastei deles. Eu investi na faculdade e no petshop. Nos últimos anos minha tia tem me ajudado e investido dinheiro para manter o grupo, mas é uma informação sigilosa, hm? Ela correria perigo se soubessem e eu não digo isso nem para todos no meu grupo.
— Eu sou a última pessoa que você veria passando informações sobre grupos, Amy. — Sorrio, inclinando o rosto e beijando a palma de sua mão para assegurá-la.
— Eu sei. Então... o que você acha de tudo isso? Sei que é muita informação e você não precisa me dar uma resposta agora, mas eu quero saber como se sente com toda essa situação.
— Bem... Já que foi sincera comigo eu serei contigo. Você não foi a primeira a me fazer uma proposta sobre Isa ser usada como marca de um grupo.
— Eu posso imaginar. Quem entrou em contato contigo então?
— Pró-Independência.
— Sério? — Ela estava surpresa, mas também incomodada.
— Sim. Eles quiseram ser mais diretos e vieram ao meu encontro ontem enquanto eu passeava com Aurora. Conheci os membros principais. Foi quando soube que eles têm mantido acesso à minha página da Isa Miranda e como descobriram minha localização. Pelo que disseram agora a página está protegida, mas eles continuam com acesso, então...
— Eles sabem quem tem contatado Isa por lá. — Constatou, eu somente movi a cabeça para concordar. — Por isso entraram em contato pessoalmente então.
— Provavelmente. Só me incomoda que eles mantiveram vigilância de minha vida por todo esse tempo, inclusive sabiam sobre você.
— Sobre mim?
— Sim. Eles disseram sobre a Resistência Avant e que você já sabia sobre Isa desde o início, mas eu resolvi ouvir de você.
— Eles são uma cobra em questão de tecnologia. — Ela pareceu não gostar da informação. — Eu vou tomar mais cuidado com meus movimentos agora. Só me irrita que tenham me usado para você ficar com raiva de mim para se juntar a eles.
— Não se preocupe, eu não acho que tenha sido ideia deles. Só tinha aquele idiota do Marcus, mas eu o coloquei no seu devido lugar.
— O ex-marido de Trisha?
— Precisamente. De qualquer forma, eu entendi que nenhum de vocês podem me falar como pretendem atingir seus objetivos enquanto eu não garantir que estou do lado de vocês e que usarei Isa a seu favor.
— Sim... — Ela suspirou descontente. — Eu queria poder dizer a você, eu sei que você não diria a ninguém, mas serve para a sua própria proteção.
— Eu posso entender. Mas eu queria saber o que acontece se eu entrar em outro grupo, em qualquer um. Os grupos são rivais entre si?
— Não no sentido que lutamos uns contra os outros. Mas cada um tenta atingir o objetivo da própria forma sem deixar os demais saberem.
— Vocês não fazem parceria?
— Às vezes. — Ela moveu os ombros, sem dar importância.
— E o que acontece se eu aceitar a proposta deles e não a sua?
— Você não deve se preocupar. — Ela sorriu e subiu no meu colo para a minha surpresa, fazendo-me rir enquanto beijava meu rosto. — Eu vou continuar mantendo meus olhos em você e continuar preocupada com a sua segurança. Mas não é como se eu fosse deixar de estar contigo, logo agora que eu tenho você.
— E você não ficaria nem um pouco chateada?
— Sim, eu ficaria. Mas porque eu seria obrigada a esconder algumas coisas de você e você de mim. E eu não sei como isso seria bom para nós.
— Seria bom para nós fazermos parte do mesmo grupo? Teríamos uma relação intensa.
— Eu não sei, talvez não. — Ela pausou os beijos para me olhar. — Eu estive num “relacionamento” com uma mulher dentro do grupo. Eu não quero comparar porque cada relacionamento é de uma forma, mas vamos dizer que não terminou muito bem quando decidi parar e ela me dá dor de cabeça até hoje.
— Por que exatamente? Ela quer voltar para o tal “relacionamento”? — Imito suas aspas no ar.
— De certa forma. Mas ela está sempre me contestando ou desacreditando nas minhas informações, enquanto eu assumo que a corte de muitas operações e reuniões.
— Vocês se odeiam. — Suspiro com a ideia. — Você não considerou isso quando acrescentou nos seus planos me seduzir para entrar no seu grupo? — Pergunto em tom mais sutil, não querendo que ela se ofendesse.
— Considerei. Eu só cheguei à conclusão de que te quero perto, independente das possibilidades ou riscos.
— Mesmo que signifique que seu plano inicial de me manter no seu grupo seja comprometido com nossa relação?
— Sim, mesmo assim. Eu lidarei com as consequências.
— Tudo bem, então eu vou pensar no assunto antes de te dar uma resposta. — Selo os seus lábios, deslizando-os pela sua bochecha e então descendo para o seu pescoço, distribuindo beijos lentos.
— Enquanto isso... eu vou simplesmente aproveitar o agora.
Concordo com o raciocínio, porque o agora era simples, enquanto o depois era complicado.
Alguns dias passaram. Após o final de semana eu não vi mais Amy, ela continuava ocupada demais e eu imaginei que fosse por causa da Resistência Avant, além do seu trabalho como veterinária. Durante a semana eu busquei frequentar novas lanchonetes que aceitassem a presença de cachorros, porque não queria deixar Aurora sozinha em casa para destruir mais da minha mobília. No meio daquela semana eu estava sozinha quando sou abordada por Trisha, o que estranhei, porque ela também estava sozinha.
— Eu devo me preocupar com vocês terem implantado um rastreador em mim? — Perguntei quando ela se sentou à minha frente na mesa e eu olhava ao redor, procurando pelos demais.
— Não. — Ela sorriu, achando graça, então se inclinou sobre a mesa e estendeu a mão para Aurora, que estava ao meu lado no chão. — Olá, garota. Como vai hoje? — Minha cachorra abanou o rab* e recebeu as carícias na cabeça. — Boa garota. Qual o seu nome? — Ela pegou a plaquinha no pescoço dela para ler. — Oh, Aurora. É um prazer te conhecer oficialmente, eu sou Trisha.
Balanço a cabeça, suspirando. Eu estava numa mesa no centro, a lanchonete era menos espaçosa e tinha maior movimento, mas as cadeiras eram mais confortáveis e as mesas fixadas, com um gancho na mesa para prender a coleira do animal. Aurora era uma de vários animais ali. Eu contei dois gatos, três cachorros e uma calopsita. Agradeci que ali tivesse uma lógica de não deixar os animais tão próximos para evitar confusão.
— Então... — Insisto, atraindo a atenção de Trisha. — O que está fazendo aqui?
— Eu te vi entrar, achei que deveria falar um oi.
— Eu não lembro de te ver aqui quando entrei.
— Você tem razão, eu não estava. — Ela sorriu. — Eu tenho contatos próximos daqui, e tenho bases de encontros no interior de alguns comércios.
— Como esse aqui. — Defini, e ela moveu a cabeça para concordar. — Então você não devia me falar isso.
— Não, realmente. Mas eu não acho que você diria à sua namorada se não falou sobre nós, e muito menos às autoridades.
— Quem garante que eu não falei sobre vocês e que agora eu faço parte do grupo dela?
— Ninguém garante, realmente. Mas do que pude observar de você é que mantém sua palavra e que valoriza as ações dos outros para estabelecer confiança. Eu aprecio isso. Você é escritora, mas vai além das palavras e julga pelas ações. Então eu decidi depositar confiança em você para provar minhas intenções com o Pró-Independência.
— Talvez tenha razão. Mas o que está pensando em fazer?
— Bem, se importa em me acompanhar?
— Depende, para onde?
— Quero que tenha uma ideia de como trabalhamos. Assim você terá uma ideia de como estamos lidando para mudar as coisas. Era o que você queria saber, não é?
— Sim, é. Mas não me entenda errado. — Inclino a cabeça. — Você veio me procurar rodeada de pessoas da sua confiança, agora aparece de repente e sozinha.
— Eu entendo. — Ela riu, sua voz ecoando melódica com o ato, seu sorriso era encantador. — Você é desconfiada, eu gosto disso em você. Te mantém com cautela e assim protegida. É bom ser assim para o tipo de coisa que fazemos, as pessoas se descuidam quando se sentem seguras demais. É sempre bom manter precaução.
— Baixar a guarda nunca desenterrou ninguém.
— De fato. — Ela ainda sorria. — Você pode manter seu localizador ligado para a sua namorada ou alguém de sua confiança saber onde você vai estar. Parece melhor para você?
— Um pouco, sim. Mas vou contigo.
— Ótimo. Eu te espero lá fora então.
Ela se levantou e saiu da lanchonete. Eu pedi pela conta enquanto enviava uma mensagem breve para Amy, dizendo que se eu não enviasse uma foto comprovando que estava viva em algumas horas, ela podia ter a guarda de Aurora. Então enviei minha localização. Ela poderia me localizar a qualquer momento.
Eu não achava que Trisha ou algum dos grupos iria me matar. Mas também não achava que meu celular estava seguro de algum invasor, então achei melhor ser mais direta sobre as instruções em caso algum incidente viesse a acontecer com soldados. Afinal, Trisha era de um grupo organizado, e se me achassem no meio deles, eles não iriam esperar explicações. Amy foi a primeira a me alertar disso quando contou sobre o uso de armas em seu grupo, eu não faria menos dessa informação.
Paguei a conta e segui para fora junto a Aurora. Trisha sorriu para mim e abriu a porta de uma caminhonete. Então iríamos para longe, constatei, caminhonetes costumam ser usadas para viagens distantes. Entrei junto a Aurora e a prendi em segurança do meu lado no banco traseiro. Trisha assumiu o volante, começando a conduzir o veículo para longe do centro de Cidade de Canéia.
— Você vai me falar para onde vamos ou é um mistério? — Perguntei.
— Pode demorar um pouco para chegarmos lá. — Ela comentou em tom mais neutro, atenção voltada na rua. — Espero que tenha a agenda vazia.
— Muito engraçado. Você sabe que Isa está de férias oficialmente.
— Sim, eu sei. Vamos ao extremo sul da cidade. — Revelou, nos encaramos pelo espelho retrovisor por um instante. — Você sabe o que tem lá?
— Uma área residencial. — Balanço os ombros, sem dar importância. — É o que tem em todo lugar ao redor do centro e dos comércios.
— Sim. Você já foi lá?
— Não. Você já visitou a cidade inteira? — Retruco.
— Não. — Eu vi seu sorriso acender descontraído. — Mas vou muito lá. É um ponto principal das operações do meu grupo.
— Que tipo de operação? Vocês entregam muitos panfletos lá? — Pergunto com ironia.
— Algo assim. Você vai ver. Aqui. — Ela abriu o porta-luvas e pegou uma máscara artística, colorida, com a boca curvada para cima num sorriso medonho, fazendo contornos acentuados nas bochechas e com sobrancelhas brancas, dois chifres no topo. — Você vai precisar.
— Vou? — Seguro a máscara em mãos, analisando o interior e as faixas que eu deveria prender atrás da cabeça. — Para o que exatamente eu precisaria cobrir meu rosto?
— Não se preocupe, você não corre perigo, você vai apenas assistir. Eu te manterei em segurança. — Assegurou ainda descontraída. — A máscara é para proteger sua identidade. Lá é cheio de câmeras.
Eu poderia continuar fazendo perguntas, mas ela não me responderia nada diretamente. Eu teria que esperar e ver, porque eu ainda estava curiosa.
Levou quase uma hora para chegarmos no extremo sul da cidade, eu quase dormi no caminho diante do silêncio. Passamos por plantações de cevada e fazendas de gado. Fomos paradas três vezes para termos as identificações verificadas nesse meio tempo, soldados árduos para cumprir com o seu papel e alegar nossa proteção. O tempo que perdíamos...
Quando ela parou o carro num beco, notei que era mesmo um bairro residencial, mas de alto luxo. Havia dezenas de mansões e condomínios vigiados por câmeras. Eu senti meu estômago embrulhar. O que estávamos fazendo ali? Diria facilmente que famílias ligadas aos Generais e consequentemente à Bandeira Azul moravam em lugares assim. Pensar nisso até fazia sentido Trisha alegar que era um ponto de ação do seu grupo, ainda que eu não soubesse como, seria como invadir o covil dos lobos.
— E você disse que não são um grupo armado. — Comento enquanto olho o prédio que tínhamos parado ao lado. — Você planeja invadir o lugar dizendo palavras carinhosas?
— Não exatamente. — Ela me olhou já com a própria máscara, idêntica à minha. — Deixe Aurora no carro, não vamos demorar.
— Deixar minha cachorra sozinha? Nunca.
— Animais não podem entrar nesse prédio, só vai chamar atenção.
— Então chamaremos atenção, porque não vou deixá-la.
Ela inclinou a cabeça, mas não pude definir sua expressão por trás da máscara, somente ouvi seu suspiro profundo. Ela pegou o próprio celular e digitou uma mensagem, então moveu a cabeça em minha direção, concordando. Só então coloco minha máscara e a sigo para fora do carro. Meu coração batia acelerado, eu temia o que estávamos fazendo ali, mas meu orgulho me fez continuar seguindo Trisha adiante, porque se eu recuasse seria a maior covarde de todas e iria me arrepender depois.
— Rápido, por aqui. — Trisha falou sobre o ombro.
As ruas estavam estranhamente vazias. Não havia soldados naquela rua, nem seguranças ao redor do prédio, então entramos por uma porta na lateral onde outra pessoa com máscara igual à nossa nos esperava. Estávamos dentro do prédio de luxo em questão de um minuto. Havia um corredor escuro à nossa frente, e Trisha mandou que eu continuasse a seguindo e que fizesse silêncio, mas fosse rápida. O outro membro ficou para trás e nós seguimos sozinhas junto à Aurora.
Fomos pelo corredor e nos deparamos com uma escadaria. Não subimos, descemos. Passamos pelo estacionamento e caminhamos entre carros sem encontrar mais ninguém, o que continuei achando estranho, mas felizmente Aurora ficou em silêncio ao meu lado. Havia outra porta ao fundo, num cômodo, estava fechada, mas após Trisha bater uma vez ela foi aberta e nós entramos.
Lá dentro havia outros três mascarados, lá eu entendi porque não havia seguranças ou guardas no prédio: estavam todos ali, desacordados e amarrados num canto.
— Eles estão mortos? — Sou obrigada a perguntar.
— Por que amarraríamos os mortos? — Um homem mascarado perguntou com nenhum senso de humor, parecendo vigiar os corpos no chão.
— Então vocês não usam armas, mas sabem apagar soldados. — Defini, virando o rosto na direção de Trisha, que moveu a cabeça para concordar; sinalizou para o tal homem, que se aproximou e mostrou uma agulha com líquido transparente.
— Isso faz eles dormirem. — Trisha explicou. — Temos um contato aqui dentro, ele abriu a porta, o primeiro grupo entrou e teve o trabalho de apagar todos pelo caminho. O segundo grupo cuida de carregar os corpos e se certificar que não haja mais ninguém, enquanto o primeiro grupo avança e invade o sistema de segurança.
Ela apontou para a dezena de monitores mais a frente com uma mesa cheia de botões. Havia uma mulher sentada ali, e eu soube que era Deborah, porque ela se virou e falou “essa é minha garota” com a mesma empolgação do dia em que a conheci. Eu me aproximei dela e ela acariciou a cabeça de Aurora, que também a reconheceu, então voltou sua atenção aos monitores.
— Você é a hacker. — Defini.
— Precisamente.
Ela apontou alguns monitores, mostrando dois grupos avançando de maneira sorrateira com roupas escuras e aparentemente desarmados. Um grupo buscava os pontos cegos dos soldados, então avançava e aplicava o líquido da agulha no pescoço. Deborah falava com esse grupo através de um microfone, utilizando códigos para se referir a cada um no alerta de onde haveria soldados.
O outro grupo vinha mais atrás, recolhendo os corpos e colocando em salas que Deborah também destravava com os comandos no teclado, porque todas possuíam travas digitais.
No próximo corredor que o grupo seguia, eles não conseguiram acertar o ponto cego dos soldados armados, então a luta começou. Eram cinco pessoas mascaradas e três soldados. Dois avançaram contra o primeiro, buscando imobilizá-lo, mas ele era ágil e forte, e ainda que eles tenham conseguido desarmá-lo, o homem conseguiu acertar vários golpes neles e não se deixou atingir por nenhum.
Outro membro lutava com um soldado mulher, também já tinha sido desarmada, mas lutava bem. Os outros dois avançaram no último soldado, tentaram desarmá-lo e não conseguiram. O homem se afastou e começou a atirar. Um deles foi atingido no braço, o outro se jogou em cima do soldado para impedir de ser atingido. O soldado o chutou para o lado sem dificuldade, então ele mirou no outro membro que lutava com a mulher. Deborah o avisou e ele pegou a mulher para a empurrar em direção ao soldado, fazendo-a levar o tiro. Ela ainda se mexia no chão, julguei que usasse colete por baixo do uniforme.
O que tinha sido chutado se lançou sobre o braço de mira do soldado, conseguindo imobilizar. Então o que não tinha sido atingido montou nele e picou a agulha no seu pescoço. Os dois primeiros ainda lutavam sem conseguir avançar, os demais ajudaram, agarrando o soldado por meros segundos que foram suficientes para aplicarem a agulha no pescoço.
O outro grupo chegou em seguida e fez o procedimento de esconder os corpos numa sala e limpar o sangue do que tinha sido atingido. Esse seguiu com o segundo grupo agora depois de fazer um curativo no ferimento.
— Se não é um prédio residencial, do que estão atrás aqui? — Perguntei, sem entender.
— Informações e aliados. — Trisha quem me respondeu, porque Deborah estava concentrada.
Eu esperei, assistindo enquanto os grupos avançavam. Eles chegaram numa sala que me parecia vazia. Não tinha câmera lá, mas Deborah digitou alguns comandos e eu vi que o grupo tinha câmeras em seus trajes, de forma que tínhamos imagens de suas perspectivas. Eles avançaram, explorando o grande cômodo vazio até pararem diante de uma parede. O segundo grupo chegou com marretas e todos começaram a quebrar a parede.
Após algum tempo eu entendi: havia pessoas ali dentro! Eram prisioneiros e estavam em estado deplorável. Havia sangue em seus corpos e roupas, estavam magros até os ossos e seus rostos estavam abatidos, pálidos. Eles demonstraram um misto de alívio e felicidade, alguns fracos demais para esboçar reação. Devia ter dez pessoas ou mais ali, eu não soube dizer. Estavam presas a correntes e estavam no chão. Não havia luz ali dentro, mas as câmeras do pessoal do grupo tinham infravermelho. Um membro seguiu adiante e tateou a parede, descobrindo um cofre. Outra vez Deborah trabalhou no teclado e o cofre foi aberto.
Não havia dinheiro lá dentro, e sim papéis e dois pen-drives. Agora eu entendia. Aquelas eram as informações que estavam atrás; os aliados eram os reféns. Um misto de alívio e apreensão rondou pelo grupo dentro da pequena salinha. Ouvi xingamentos destinados aos soldados desmaiados, todos abalados pelo estado das pessoas ali dentro. Eu compreendia sua raiva. Ser preso dentro da parede era desumano em grau elevado. Como podia haver punição dessa forma?
Eu me virei para Trisha, suspirando incomodada com aquela cena.
— O que fazem com as informações que coletam?
— Depende do tipo de informação que coletamos. Podemos subornar soldados e até Generais. Com isso conseguimos mais informações e aliados em lugares assim. — Ela gesticulou ao redor, presumi que fosse o prédio. — Nos fortalecemos. Com informações nós podemos nos proteger, saber antes que nos ataquem.
— E você acha que vai conseguir informações sigilosas o suficiente para chegar nos representantes?
— Não, mas vamos chamar a atenção deles. Com a sua ajuda vamos conseguir mais pessoas.
— E vocês acham que eles vão ver tudo isso acontecendo sem tomar medidas drásticas? Vocês mesmos disseram que eles eliminam antes de fazer perguntas. Eles não terão pudor em eliminar seu grupo se representarem um perigo para a ordem deles.
— Eu sei disso. Mas eu tenho informantes lá dentro, pessoas importantes, e eu sempre fico sabendo do movimento deles. Se a situação piorar, faremos reféns porque temos a localização das suas famílias. Os obrigaremos a negociar. Mas tendo visibilidade do público na cidade, eles vão pensar duas vezes antes de criar um massacre. Intervenções assim irão a público. — Ela apontou os monitores. — E a imagem de ordem irá enfraquecer. Eles não vão querer perder o poder, isso é óbvio, mas tendo a opinião do público ao nosso favor, eles vão aderir aos nossos requisitos e mudar de representantes, porque ainda vão querer ter controle. Mas teremos controle também.
Ponderei. Eles lutavam obtendo informações e usando isso contra os representantes. Eles treinavam pessoas que se arriscariam em campo para apagar os soldados. Eles eram realmente organizados, e se possuíam pessoas infiltradas tão próximas aos representantes e Generais, então eles estavam preparados para o pior e eram estrategistas, porque estavam preparados para esse momento.
— Não se preocupe, você não precisa nos dizer nada agora. Eu só queria que visse com os seus próprios olhos. — Trisha me assegurou.
— Tudo bem, eu levarei sua proposta mais a sério agora.
— Ótimo, é só o que quero nesse momento. Além de sigilo, é claro. — Ela pousou a mão no meu ombro. — Vamos embora antes que mais deles cheguem.
— Claro.
Eu a segui para fora daquele prédio pelo mesmo caminho que fizemos para chegar ali. Fomos andando pela rua, mas eu a impedi de seguir em direção ao carro, o que ela estranhou, ao invés disso procurei por outro beco do outro lado da rua em que ela estacionou, então olhei para os dois lados, esperando alguns instantes. Eu podia estar enganada e estar paranoica, mas os anos escondendo Isa deveriam valer de algo sobre precaução de estar sendo seguida.
— Ana, o que foi? — Trisha me questionou, também olhando para a rua vazia. — Você viu alguma coisa?
— Não, eu só... fiquei com a sensação de que tinha alguma coisa fora do lugar. — Digo sem esperar que ela entendesse.
— Ninguém nos seguiu.
— Eu não tenho tanta certeza. Só... espere mais alguns minut-
Meus olhos fecharam e meus ouvidos zumbiram no mesmo instante, meu corpo se abaixando por reflexo. O carro de Trisha tinha explodido e o fogo agora comia o que restava de sua lataria e aos arredores. Vidros tinham quebrado nas proximidades. Aurora não reclamou quando a abracei, sentindo-me trêmula, nós duas com o mesmo medo diante do susto. Trisha se abaixou a minha frente e segurou meu rosto, tirando a máscara que eu nem lembrava de estar usando, subindo a própria enquanto nos olhávamos.
— Você estava certa, você acabou de nos salvar. — Ela falou com seriedade. — Você está bem?
— S-sim. Eu só... me sinto mole.
— Consegue andar?
— Acho que sim.
— Então vem. Temos que sair daqui antes que nos descubram.
Movo a cabeça para concordar. Cobrimos nossos rostos de novo e ela me guiou para além do beco. Ouvi sirenes pelo caminho que viemos, além do som de helicóptero. Meu coração acelerou como se fosse explodir. Nós quase morremos! E ainda corríamos o risco de sermos presas como os reféns que o Pró-Independência tinha acabado de libertar. O pensamento me fez parar.
— Trisha! — Eu a chamei, ela parou de súbito também, virando-se para mim. — Seu grupo. Eles vão ficar bem?
— Eles sabem se virar, não se preocupe. Nós quem precisamos desaparecer agora. Os soldados estão perto demais.
— Mas como vamos desaparecer sem um carro?
— Deixe isso comigo.
E com isso ela quis dizer que roubaria um carro, e o fez de maneira profissional, sem disparar alarme nem chamar atenção numa rua próxima dali e com pouco movimento. Sequer levou um minuto. O carro não era um modelo qualquer, naquela região só existia veículos de luxo. No entanto eu não queria ser presa por ter envolvimento com um grupo organizado, então eu entrei no carro após prender Aurora de alguma forma no banco detrás, deixando que Trisha conduzisse o veículo.
— Você devia tirar a máscara, estamos seguras agora. — Trisha me orientou, eu a olhei, vendo-a já sem a própria máscara, então eu obedeci. — Como você está?
— Isso sempre acontece? — Pergunto, olhando para frente, decidindo não pensar em como estava me sentindo.
— A explosão? Não. Eu sinceramente não sei o que houve. Todos os guardas e soldados estavam presos. As câmeras desabilitadas. Eu não sei quem poderia ter colocado uma bomba no meu carro.
— Não tinha ninguém nos seguindo e ninguém na rua, você não acha estranho?
— Fomos precavidos.
— Mesmo assim. — Insisto. — Se somente seu grupo estava lá, então alguma coisa está errada, Trisha. — Eu senti seus olhos em mim por um instante, mas ela não disse nada. — Você sabe disso, ou não quer admitir ou já desconfiava. Alguém no seu grupo te traiu.
— Não é algo que você tenha que se preocupar.
— Eu quase morri ali também Trisha! — Alego em voz alta, sentindo-me nervosa e frustrada, minhas mãos ainda tremiam e isso me deixava mais impaciente. — Claro que eu me preocupo. Não acha que isso é aviso suficiente que correrei perigo estando no seu grupo?
— Todos nós corremos riscos. Mas você tem razão. — Falou rapidamente, impedindo que eu retrucasse. — Eu desconfio de quem seja o traidor, eu só preciso de provas.
— Você não tem muito mais tempo para conseguir provas. Alguém te quer morta e ficaria feliz em me ter do seu lado.
Estávamos na estrada de volta para o centro de Cidade de Canéia, o trajeto seguia livre sem muitos carros para nos atrapalhar. Mas em determinado momento uma caminhonete nos fechou, ultrapassando o nosso carro e cruzando a nossa frente, obrigando Trisha a parar. Outra caminhonete parou atrás, freando de maneira ensurdecedora. Senti meu coração disparar e meu estômago se retorcer, certa de que ou morreria ali mesmo ou seria torturada por informações.
— Não se mova. — Trisha me disse. — E não fale nada.
Duas mulheres saíram armadas da caminhonete da frente, apontando em nossa direção, e um homem saiu da outra atrás. Todos vestiam coletes, óculos escuros, bonés e máscaras em frente aos lábios. Eles circularam o nosso veículo e abriram as nossas portas no mesmo instante. Aurora começou a latir quando me apontaram a arma.
— Ana Martins? — O homem me questionou.
— Quem quer saber? — Pergunto de mal humor, porque estava começando a odiar esse questionamento que vinha com tanta frequência.
— Sim, é ela. A foto bate. — A mulher do lado dele falou, então baixou a arma e deu tapinha no braço dele, que também baixou. — Sra. Martins, você pode sair do carro por favor?
— Quem são vocês? E por que eu seguiria seu “pedido”?
— Fomos enviados para coletar a você e o cachorro em segurança. A sra. Fontenelle disse que você estava em perigo e nos enviou. Você pode nos acompanhar? Nós lidaremos com esse perigo.
— O que? Não, deixem-na em paz. — Falo, constatando que falavam de Trisha. — Ela virá comigo.
— Não faz parte das nossas ordens, sra. Martins.
— Eu não me importo com as suas ordens, ou vocês fazem o que estou dizendo ou eu não vou a lugar algum com vocês. — Digo firme, irredutível.
— Se eu fosse vocês, obedecia. — Trisha falou com as mãos no volante ainda. — Ela não cede tão fácil.
Eu teria retrucado se isso não tivesse nos ajudado a fazer com que me obedecessem. Talvez temessem mais a Amy por não me levar junto do que levar junto a suspeita de ter me “sequestrado.” Só podia ser Amy. Ela era a única sra. Fontenelle que eu conhecia e aquelas deviam ser pessoas da Resistência Avant.
Abandonamos o carro ali mesmo e seguimos para a caminhonete da frente, sentando com Aurora no banco detrás. Ela estava agitada, julguei que estivesse com fome e sede, além de toda a mudança de ambiente repentina. Eu me sentia da mesma forma.
Seguimos para a cidade, já tinha anoitecido, então o movimento era intenso e pegamos trânsito. Eu estava nervosa e impaciente quando elas finalmente pararam em frente à minha casa. Amy estava ali, em frente à minha porta, esperando. Uma das mulheres saiu da caminhonete e foi ao encontro dela. Eu não esperei por autorização e gesticulei para Trisha, nós duas descemos junto a Aurora, que sequer mediu esforços para avançar tão logo reconheceu Amy. Soltei sua coleira e deixei que pulasse em Amy, que arregalou os olhos, sem conseguir conter o impacto e caindo no chão. Eu poderia ter rido se não estivesse tão cansada.
— Sua namorada realmente moveu as peças para te encontrar. — Trisha comentou baixo ao meu lado. — Achei que tivesse deixado o localizador ligado.
— Eu deixei. — Tateei meu bolso, então outro aperto no meu peito me alertou que o aparelho já não estava comigo. — Oh, droga... eu perdi meu celular.
— Sério? Você sabe onde?
— Não sei, acho que pode ter ficado no carro.
— Isso explicaria porque sua namorada fez tudo isso para te achar. Você sumiu do mapa.
— Sim, isso explicaria. Droga... eu acabei de pagar por aquele celular.
— Bem, eu vou falar com Deborah de qualquer forma e me precaver sobre isso, em caso o celular não tenha explodido junto e esteja na posse de alguém.
— Sim, eu agradeço.
— Eu te consigo outro celular, é o mínimo que posso fazer depois de hoje. — Ela tocou meu ombro e eu olhei em seus olhos castanhos. — Nossas vidas continuam porque você tornou isso possível, Ana. Eu achei que só seríamos aliadas enquanto eu te oferecesse proteção sobre sua outra identidade e você a usasse para influenciar o público. Mas eu estava enganada. Obrigada por me mostrar seu caráter e me salvo. Eu nunca vou me esquecer.
— Não me dê tanto crédito. — Falo com desconforto. — Eu sempre tive que verificar duas vezes sobre o ombro quando saía da editora de uma sessão de autógrafos. Os fãs perseguiam vários autores. Eu só me tornei boa em me esquivar e desconfiar de todos.
— Mesmo assim, eu vou me lembrar. Agora vá falar com sua namorada, eu tenho que ir.
— Você ficará bem?
— Sim. Eu vou me encontrar com Deborah e planejar meus próximos passos. Eu não deixarei outro incidente desse acontecer, você tem razão sobre eu não ter mais tempo.
— Que bom. Me avise se precisar de algo.
Eu tinha mais noção de onde estava me met*ndo agora, isso não diminuía minha preocupação e não me deixava mais contente. Mas se essa pessoa queria nos matar e abalar o movimento dos grupos, significava que ele era atrelado aos representantes e Generais de alguma forma. Então também mostrava que o grupo de Trisha estava incomodando o suficiente para que eles começassem a infiltrar seu pessoal no grupo a fim de desestabilizá-los por dentro. Eu devia me sentir apavorada, mas isso me acendia a vontade de lutar. A revolução estava em andamento.
Fim do capítulo
Olá revolucionários!
Um capítulo levinho, não acham? E também com informações novas :)
Quero agradecer aos comentários meninas, é um grande suporte e um grande incentivo para continuar escrevendo e postando aqui, mesmo quando me desanimo. Um beijo em cada uma :*
Todo comentário é bem-vindo e faz a diferança ;)
Revolucione-se!
Até o próximo :D
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HelOliveira
Em: 19/03/2022
Nada como ver um pouco de ação e sentir toda essa adrenalina, e claro Amy não perdeu tempo para proteger seu amar....
Apostando que o traidor é o Ex da Trishha..
Será que vai surgir uma aliança entre os dois grupos?
Resposta do autor:
Olá Hel!
E o medinho de ser pega, então? Nossa, já pensou?
Amy entrou no modo de defesa total :D
As apostas estão quentes no ex da Trisha, será que é ele mesmo?
Olhaaa, palpite bom o seu, muito bom :D já pensou acontece uma união?
Esperar para ver agora!
Obrigada por comentar, até o próximo ;)
kasvattaja Forty-Nine
Em: 18/03/2022
Olá! Tudo bem?
Entre mortos e feridos salvaram-se todas, mas alguns — ou algumas? — saíram respingados, ou não? Na verdade, acredito que os responsáveis — ou a responsável — não estejam tão distantes delas, talvez até sentando-se ao lado.
É isso!
Post Scriptum:
''Não há ninguém mais fácil de enganar do que um homem honesto; muito crê quem nunca mente, e confia muito quem nunca engana. ''
Baltasar Gracián y Morales,
Escritor
Resposta do autor:
Olá Kas!
Realmente, o/a responsável pode estar mais perto do que se imagina!
Será que é tão fácil enganar o homem honesto? Talvez seja um pensamento muito radical desse tal Baltasar. Mas quem sabe! Hahah
Beijos!
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Lea
Em: 18/03/2022
Acho que amo demais cachorros,pq assim que aconteceu a explosão a Aurora foi a primeira que me veio em mente,por muito pouco ela teria morrido. Ainda bem que a Ana a ama muito e a levou junto!
O traidor(a),creio que seja o ex da Trisha!
Amy mandou logo a tropa toda atrás da Ana,aí sim!
Resposta do autor:
Cachorros são maravilhosos, não são? Adoro. Se fosse a minha tinha fugido que nem uma desvairada e me deixado para trás com o barulho da explosão haha muito medrosa. Ainda bem que a Ana é ligadona (ou paranoica mesmo).
Será que é o doidão lá?
hahahah sim! Amy toda protetora e cautelosa protegendo o território haha
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