Bianca

Era minha segunda feira de folga e eu estava com Milli na sorveteria, ao meu lado na sacola de pano estavam os livros que tinha pegado na biblioteca antes de ir busca-la no orfanato. Ainda estava super encabulada só de pensar neles, imagine na hora que eu fui entregar para a bibliotecária fazer a anotação na minha ficha. Ela me olhou sob os óculos, pois me conhecia há tempos, e eu inventei uma desculpa esfarrapada de estar fazendo um TCC para uma amiga. Ficou evidente pelo seu rosto que ela não acreditou.

Que loucura a minha! Pra que eu tinha feito aquilo, com certeza nem teria coragem de ler. Ou teria? Minha curiosidade sobre o assunto aumentava dia a dia. Eu sabia que não devia, mas não conseguia me controlar. Cada vez que cruzava com Marcella um tremor me subia pelo corpo, a lembrança daquela tarde na sala onde quase me deixei ser beijada por ela não saía da minha memória, já estava povoando minha cabeça com outras coisas, coisas com as quais estava sonhando. O pior era que acordava dessas aventuras noturnas com o meu sex* molhado, e nem sabia o porquê aquilo acontecia, já que nunca havia sentido algo assim na minha vida. E o suor que me deixava encharcada a ponto de ter que trocar a camisola.

Como isso tinha acontecido? O que eu havia feito de errado para que aquelas sensações impuras dominassem meu corpo e minha mente? Eu lia e relia a bíblia na cabeceira da minha cama antes de dormir, mas não adiantava, os pesadelos vinham assim mesmo. Será que Deus estava me castigando? Não tinha as respostas, por isso fora em busca daqueles livros, eu precisava saber a todo custo.

- Bi! – A menina ao meu lado exclamou.

Me assustei! A quanto tempo será que Emília estava falando comigo? Isso sempre acontecia quando começava a pensar nela. Eu me perdia divagando.

- Oi Milli, quer alguma coisa? – Perguntei pousando minha mão sobre a dela.

- O que você tem? – Virou seus olhos sem vida em minha direção como se pudesse me observar.

- Como assim? – Franzi a testa diante da pergunta.

- Você está pensativa demais. Nem prestou atenção ao que eu estava falando.

- Impressão sua meu amor.  – Mas estremeci

- Não é não. Sua mente estava voando por aí qual passarinho sem ninho.

- Bobagem. Eu estou aqui com você.

- Bi eu te conheço desde que eu nasci. Você não consegue me enganar. Estava pensado nela não é mesmo?

- Nela quem??

Perguntei aterrorizada, não era possível que tinha deixado alguma coisa transparecer. A resposta da garota foi um suspiro antes de dizer:

- Tem certeza que não sabe de quem estou falando?

- Emília...

- Tá bom, eu falo, não precisa ficar brava! É da Marcella, afinal de quem mais poderia ser?

- E por que eu estaria pensando nela?

- Eu acho que já te falei isso uma vez Bi, mas vou repetir, a pessoa que é cega se torna mais perceptiva, os sentidos ficam mais aguçados. Percebemos sons e movimentos, afinal precisamos substituir o que nos falta na visão.

- Sim Milli você já me falou sobre isso.

- Então. O que eu estou te dizendo é que vejo mais do que qualquer outra pessoa possa ver o quanto você fica agitada quando fala dela.

- Agitada como?

- Seu tom de voz muda, sua respiração acelera, e você tende a ficar mais concentrada.

- Você está imaginando coisas.

- Não estou não. Você gosta dela, quando comenta alguma coisa sua voz fica carinhosa, como se a estivesse vendo em sua frente.

- É claro que gosto dela, ela é minha patroa e é muito boa comigo.

- Você sabe o que eu estou querendo dizer Bianca. Não é esse tipo de gostar.

- Maria Emilia, de onde você está tirando essas ideias? E por acaso você sabe o que é gostar de forma diferente?

- Eu assisto televisão, mesmo sem ver ouço, além disso alguns dos livros falam sobre amor. – Respondeu a sabichona.

- Mas amor entre um homem e uma mulher é claro! E se você ainda não percebeu eu sou mulher e Marcella também.

- E daí? Amor é amor, não importa. Amor é um sentimento. Ele acontece e pronto. Não há nada de errado se você ama outra mulher.

- De onde você tirou essa loucura? Isso é pecado!

- Pecado é não amar, é maltratar, matar, roubar, fazer maldades. Como pode o amor ser pecado se foi o amor que Cristo pregou? Se ele é considerado o sentimento mais puro e bonito do mundo? Se sem amor nada seria possível? Não Bi, amar nunca será pecado. Além disso hoje em dia o amor entre pessoas do mesmo sex* está cada vez mais aparecendo na mídia para que todos entendam que todo mundo tem o direito de amar e ser feliz com quem quiser.

Eu abri e fechei a boca um milhão de vezes enquanto aquela criança de seis anos de idade me falava tudo aquilo. Queria retrucar as suas palavras, mas elas me pareceram coerentes demais e fiquei sem ação. Será que ela estava certa? Tudo o que eu havia aprendido era errado?

- Bi não se deixe levar pelo que os outros falam. Deixe que seu coração diga a você o que é certo, ele não vai mentir e nem te enganar. – Ela falou com doçura.

- Milli eu tenho que te levar embora. Me desculpe, mas hoje acabei indo te pegar mais tarde. - Retruquei

- Tudo bem. Não tem problema. Já que você não vai mesmo tomar o seu sorvete que já deve ter virado leite.

Olhei para a taça e percebi que apenas havia mexido o sorvete sem tomar, mas como ela poderia saber aquilo se não enxergava?

- Devo admitir que você é mesmo muito perspicaz mocinha.

E ela soltou uma gargalhada alta.

Acabei chegando depois do horário e para meu desespero dei de cara com Amanda que não perdeu tempo e veio bufando em minha direção:

- Você está extremamente atrasada! – Praticamente cuspiu em minha direção.

- Não, foram apenas quinze minutos, e a culpa não foi minha o ônibus...

- Pode parar com suas desculpas esfarrapadas! Você é uma irresponsável! Eu sempre soube que Marcella havia cometido um erro enorme ao te contratar. Sua incapaz!

As lágrimas vieram aos meus olhos. Eu não era nada daquilo. Por que ela me odiava daquela forma? Aquele tormento nunca parava. Todas as vezes em que ela me via me tratava como lixo.

- Deixa de chororô. Já te falei que suas lágrimas de crocodilo não me comovem. Continue fazendo isso que eu vou ficar é bem feliz! Estou só precisado de algum motivo pra te colocar no olho da rua!

- Por que você é tão má comigo? – Perguntei tentando conter o choro.

- Que Diabos está acontecendo aqui! – A voz trovejou de forma ríspida pela sala.

Amanda deu um pulo assustada e se afastou de mim um pouco, então meus olhos se encontraram com os dela que estavam escuros como uma tempestade e carregados de ira.

- Nada Marcella, eu só estava perguntando para Bianca o que tinha acontecido, afinal ela chegou atrasada...

- E o que você tem a ver com isso? Por acaso é a patroa dela? – Perguntou se aproximando.

- Claro que não! Mas...

- Mas o que Amanda? Você não tem nada com o horário de Bianca, nem com o que ela faz, enfim ela não é problema seu. Minha avó quer escrever uma carta. Suba imediatemente!

A secretária emudeceu, mas suas mãos estavam crispadas ao lado do corpo. Tive a certeza que se Marcella saísse dali ela seria capaz de me socar. Sem dizer mais nenhuma palavra virou as costas e caminhou para fora da sala.

- Por que você está chorando? – Disse Cella olhando bem pra mim

- Eu não estou chorando senhora, foi só um cisco que entrou no meu olho. – Respondi abaixando a cabeça

Ela parou na minha frente e delicadamente levantou o meu rosto com a ponta dos dedos, depois secou minhas lágimas com o dorso da mão, tudo isso sem parar de me encarar. Seus olhos se enterneceram e com eles meu coração. Aquela loucura começou a tomar conta de mim novamente.

- Você não sabe mentir Bianca, por isso nem tente. – Falou suavemente. – O que foi que Amanda fez pra te deixar assim?

- Não foi nada. Ela só veio perguntar mesmo o porquê do atraso. É que o ônibus quebrou e aí demorou pra passar outro. Me desculpe. – Eu comecei a chorar novamente enquanto falava.

- Ei, não chore. Não fica assim. Foram só quinze minutos. Não tem problema.

- É que eu sei que tenho que cuidar da Dudinha, e...

- Shiiiiiiiiii, tudo bem. Ela está ótima. Está com Roxanne. Brincando. Vem cá. – E dizendo isso ela me puxou para seus braços.

Eu não queria, mas automaticamente minha cabeça encostou em seus ombros e me deixei ser envolvida por aquele abraço. As mãos dela em minhas costas em um carinho suave foram espalhando um calor pelo meu corpo e minha lágrimas secaram. Eu me senti segura dentro daqueles braços como nunca havia me sentido em toda a minha vida. Era como se ali fosse o meu lugar, o lugar que me pertencia há muito tempo. Por um momento o mundo parou de existir, só havia eu e ela. Não queria sair dali, ficaria aconchegada a seu corpo eternamente se isso fosse possível.

- Bi, eu estarei aqui sempre, não deixe ninguém te intimidar. Se alguém fizer qualquer coisa contra você, me avise por favor – Marcella sussurrou em meu ouvido.

Fechei meus olhos e viajei ao som de sua voz. Ela estava me oferendo sua proteção. E havia algo mais. Algo profundo. Mansamente ela me afastou e eu abri os olhos para encontrar os dela, nos encaramos por um tempo que pareceu não ter fim, e então com um suspiro ela deu dois passos para longe de mim.

- É melhor você subir para seu quarto agora, para deixar suas coisas. Depois pode ir buscar Eduarda. Se me der licença eu preciso ter uma conversa com Amanda.

- Claro senhora. – Respondi em um resto de voz.

Depois de me olhar por mais um instante ela saiu e me deixou ali sentindo frio por não ter mais seu corpo junto ao meu.

Depois de fazer a bebê dormir e tomar um banho demorado, me deitei e comecei a lembrar do que havia sentido. Não tinha mais como mentir para mim mesma, eu estava apaixonada por aquela mulher. Não sabia como aquilo tinha acontecido, mas era real e forte. Não podia mais negar aquele sentimento. Se aquilo não fosse amor o que seria então? Mas havia tanta coisa que eu não entendia, segredos sobre ela que eu desconhecia. Como o que ela havia dito naquele final de tarde no jardim. Ela assassinara uma pessoa! Como será que aquilo tinha acontecido? Era evidente que Cella tinha um gênio difícil, mas matar??

Meu Deus, que presente o Senhor havia me dado! Estava amando uma mulher e por cima assassina. Mas isso realmente importava? Não, nada me importava, só queria estar com ela, fosse quem fosse, tivesse feito o que tivesse. E depois se ela estava solta era porque fora inocentada. Um dia tomaria coragem e perguntaria a dona Maria Thereza, tinha certeza que ela contaria tudo.

Mexendo na sacola de pano que havia deixado ao lado da cama peguei um dos livros, abri e comecei a folhear. Pelo menos quanto a homossexualidade eu tinha como tirar as minhas dúvidas. Recostei-me sobre os travesseiros e comecei a ler com interesse.

Fim do capítulo