Marcella

Minha semana havia sido bem complicada, primeiro porque a minha advogada tinha me dito que seria muito melhor eu tentar fazer um acordo para as visitas de Bernardo, do que entrar em uma briga perdida, pois com certeza o juiz autorizaria as mesmas. Ele era pai das meninas, e tinha o direito garantido por lei de vê-las. Então tive que engolir a seco e aceitar o que a doutora Leandra aconselhou.  Depois minha vó havia parado no hospital às pressas, foi um susto, ela gritava de dores e teve um sangramento intestinal, mas agora estava melhor, o mais estranho é que não havia nada na radiografia ou nos exames que mostrasse o que tinha causado aquele problema. Então eu decidira colocar duas enfermeiras para cuidar dela, mantendo-a sempre sob cuidados.

Acontecera um imprevisto na empresa também o que me obrigou a ficar fora de casa dois dias. Coisa que eu não fazia desde que Marina se fora. Eu sei que deveria voltar a trabalhar, afinal aquela era a empresa da minha família,  mas ainda não me sentia totalmente confortável em deixar as meninas sozinhas em casa, mesmo que na companhia de empregados..

Caminhei até o jardim e fiquei observando o pôr do sol, adorava aquela cor de fim de tarde na primavera. O dia havia sido seco e ensolarado e o céu tomava aquela cor que passava do dourado para o vermelho intenso, cobrindo-o como se fosse um incêndio a se espalhar sobre nós. As folhas das árvores já haviam começado a nascer novamente, dando nova vida ao jardim, e as flores soltavam no ar o seu perfume adocicado. Era a minha estação preferida do ano. A primavera é época de renovação, de renascimento. Eu esperava que a minha vida a partir daquele ponto também mudasse para melhor já que haviam acontecido coisas terríveis demais para um só ano. Tinha medo de não aguentar se aquilo não mudasse logo.

Embevecida pela linda visão, caminhei pelo gramado em direção ao caramanchão e me sentei, adorava aquele cantinho de sossego, me dava paz e tranquilidade, coisas que eu estava precisando muito. Olhei em direção à casa e vi que Lucia, a enfermeira do dia vinha em minha direção trazendo vovó pelo braço. Me levantei esperando que chegassem até mim.

- Oi minha filha, fui te procurar no escritório. Mas devo confessar que fiquei feliz de encontrá-la aqui. Prefiro muito mais este lindo lugar para ficar em sua companhia. - Me disse enquanto eu lhe dava um beijo na testa.

- Bom te ver andando novamente. Mas não lhe fará mal tanto esforço? – Perguntei preocupada

- Não dona Marcella. Pode ficar tranquila. Na verdade, é bom que dona Maria Thereza caminhe um pouco, e o ar fresco lhe fará muito bem. – Respondeu a enfermeira.

- Então pode deixar que cuido dela Lucia. Depois a levo para o quarto. Pode ir descansar. – Retruquei.

A moça virou as costas e partiu enquanto eu ajudava vovó a se sentar ao meu lado, ainda estava bem abatida e debilitada, mas sua aparência estava muito melhor. Ela apoiou-se ao me braço e encostou a cabeça em meu ombro.

- Como é lindo esse jardim! Sempre me orgulhei dele. Saudades de mexer na terra, replantar as mudas, podar as roseiras. Pena que não tenho mais forças pra cuidar das minhas flores.

- Mas elas estão lindas, e muito bem cuidadas por José que tem um amor enorme pela profissão, por isso as trata com muito carinho e respeito, fique tranquila.

- Ah, sim, estou tranquila, dá pra ver que o trabalho é bem executado, só sinto falta. E você minha filha, como está?

- Bem. Pelo menos o melhor que posso. De tudo o que mais me incomoda é saber que aquele mal caráter vai poder frequentar nossa casa, mas tenho que aceitar.

- Eu sei meu amor, mas Deus colocará as coisas nos eixos. Espere e tenha fé.

- Eu tenho vó, mas é que as coisas andam tão pesadas pro meu lado que tenho até medo do que possa acontecer daqui pra frente.

- Não pense assim. Ás vezes o mal abre caminho, mas o bem sem vence, você verá Cella. Tudo será como foi desenhado pelo Criador.

- Difícil acreditar sempre nisso vovó, porque tantas coisas horríveis acontecem, coisas tão pavorosas que não imagino Deus fazendo parte disso!

- Querida há uma lei universal nada acontece no Mundo sem o consentimento do Pai, Ele tudo vê e tudo ouve, está presente em cada dia de nossas vidas. Se existem acontecimentos maléficos, é por algum motivo. Tudo têm uma razão de ser. Você vê o ar que respira?

- Claro que não.

- Então, mas sabe que ele existe, não é? E como sabe disso? Por que para viver precisa respirar e se está viva, é porque o ar está lá. Assim é Deus, ele está lá, mesmo que você duvide às vezes por conta da maldade da humanidade. Porém Ele sempre vai estar com seus filhos, na alegria e na tristeza.

- Você é espetacular. Sempre tem a resposta para tudo. Nunca se revoltou contra Deus? Sempre aceitou tudo com resignação?

- Uma única vez, há muito tempo. Mas depois passou.

- Nossa o que aconteceu pra que se voltasse contra Ele? Nunca vi você fazendo isso.

- Você sabe que sua mãe foi minha única filha, mas não porque eu quisesse isso. Quando me casei com seu avô nossa vontade era ter pelo menos três filhos. Porém logo após o nascimento de Luísa, eu tive uma infecção no útero e infelizmente por não ter sido diagnosticada a tempo se alastrou de tal forma que precisei retira-lo. – Ela começou a contar

- Nossa vó! – Me espantei, pois aquilo realmente era novidade pra mim.

- É minha menina, naquela época tudo era mais difícil, a medicina não era tão avançada. Quando soube que teria que fazer a cirurgia, eu fiquei arrasada, era muito jovem, tinha sonhos, sempre adorei crianças, e isso fez com que eu virasse a minha ira contra a única pessoa que julgava culpada do meu infortúnio: Deus. – Continuou ela

-Imagino como deve ter sido. – A informação me deixou pesarosa e deixei isso transparecer em minha voz

- É Cella, mas o Senhor tem armas poderosas pra nos abrir os olhos para a realidade. Eu vivia triste. Cada vez que via uma mulher gravida, me sentia infeliz, e minha raiva contra Ele crescia. Até que nos mudamos para esta casa. Sua mãe tinha quase dois aninhos. Não fazia nem uma semana que estávamos aqui quando uma vizinha veio me trazer um bolo de boas vindas. Seu nome era Clotilde que o Senhor tenha a sua alma. Assim que eu a convidei pra entrar seus olhos recaíram sobre minha Luísa. Imediatamente eles ficaram umedecidos por lágrimas, e um sorriso terno aflorou de seus lábios. Depois enquanto tomávamos um chá ela me contou sua história. E tudo mudou naquele dia. – Sua voz embargou

- O que ela te contou vovó? – Perguntei curiosa

- Clotilde havia se casado aos 18 anos, quando ia completar um ano de casada seu marido foi assassinado em uma briga de bar, naquela época ela estava gravida de seis meses e quando soube da notícia saiu correndo para o local, no meio do caminho foi atropelada. Quando acordou do coma duas semanas depois, tinha perdido a criança e não poderia mais engravidar devido a complicações pelos ferimentos causados no acidente.

- Que tragédia!

- Sim minha neta. Uma tragédia. Mas a lição veio depois, quando ela me disse com um sorriso doce nos lábios “sorte a sua que Deus te deu um presente tão maravilhoso, uma joia de extrema beleza e perfeição, tantas outras como eu gostariam de ter pelo menos uma chance de carregar nos braços um filho.”  Na hora meu coração se apertou, e pra piorar ela ainda continuou “Mas jamais posso reclamar do Nosso Senhor, pois ela poupou a minha vida, e assim pude ajudar muitas pessoas e cumprir minha missão. ”  - Terminou de contar

- Entendi. – Me sentia mal por uma pessoa maravilhosa que não cheguei a conhecer.

- Sim acredito que tenha entendido, pois é uma mulher inteligente. Daquele momento em diante eu passei a agradecer todos os dias da minha vida pela benção que Ele havia me dado em forma de filha, e nunca mais duvidei do amor Dele por mim. Como já havia te falado, só acontece o que tem que acontecer, pois como diz o ditado, não há uma só folha que cai de uma árvore sem o consentimento do Senhor. E quando me perguntam como posso ter fé em um Deus que me roubou a chance de ter outros filhos, depois tirou meu marido, filha e neta eu respondo com toda convicção do mundo que a minha fé é inabalável e pergunto ao interlocutor, que valor seria dado a luz se não houvessem as trevas, ao calor se não houvesse o frio, a alegria se não houvesse a tristeza, ao prazer se não houvesse a dor? Enfim, para que possamos aprender o significado do bem, infelizmente tem que haver o mal. E pra que tudo isso termine um dia temos que evoluir muito ainda.

- Você tem razão. Muitas vezes não lembramos que muitos sofrem mais do que nós, e acabamos esquecendo de agradecer tudo o que temos. Vemos apenas a escuridão, sem lembrar que o dia amanhecerá e o sol voltará. Vovó você é incrível.

- Não querida, apenas sou uma pessoa madura. Mas não pense que não sinto saudades dos que partiram. Quando olho para esse jardim ainda consigo ver sua mãe brincando, as perninhas rechonchudas, correndo toda feliz. Minha menina, sempre e pra sempre. – Uma lágrima solitária desceu por seu rosto.

Eu a abracei comovida. A falta de minha mãe invadiu meu peito, sempre sorridente, carinhosa, amorosa e amiga tinha as palavras certas para todas as ocasiões. Se não fosse por ela e seu apoio incondicional não sei o que teria acontecido comigo no período mais negro da minha existência. Minha avó passou a mão delicadamente em meu rosto.

- Você se parece tanto com ela, os mesmos olhos acinzentados, que demonstram os sentimentos tão nitidamente, a mesma pele acetinada, o formato do rosto, os cabelos. Sua irmã parecia mais com seu pai, mas você Cella, é uma cópia da minha Luísa.

- Menos o gênio né? – Sorri

- Ah sim, sua mãe não era assim tão tempestuosa. Aliás, devo confessar que não sei de quem herdou isso, pois todos de nossa família são calmos.

- Sei, Roxanne está ai pra provar isso! – Retruquei sarcástica.

- A verdade é que a Zanne, poderia facilmente ser sua filha, pois se parece mais com você do que com a própria mãe. Por isso brigam tanto. – Disse rindo.

Eu balancei a cabeça e ri também porque no fundo sabia que ela estava certa, eu e minha sobrinha éramos realmente muito iguais.

Estávamos ali as duas abraçadas quando Bianca apareceu junto com Duda para brincar no gramado, só de vê-la meu coração disparou, e aquele sentimento confuso tomou conta de mim. Ainda me lembrava do que tinha ocorrido na sala, aquele beijo, que por loucura minha, quase acontecera ainda vagueava por meus sonhos e desejos. Aquela mulher mexia demais comigo, de uma forma que eu não conseguia explicar. Há muito que não sentia nada parecido. Meus olhos acompanhavam cada movimento daquele corpo gracioso.

- Ela realmente te tira do prumo não é mesmo querida?

A voz suave de minha avó me tirou do devaneio, e eu fiquei encabulada. Será que estava tão evidente assim?

- O que você quer dizer com isso? – Perguntei

- Oras Marcella, você acha que eu sou o quê? Alguma anciã cega e burra? Sua respiração mudou no instante em que ela pisou porta a fora. E seu rosto se embeveceu de ternura.

- Para com isso vovó. Já falei, não estou e nem quero estar envolvida por ninguém.

- E por acaso você acha mesmo que consegue mandar nesse tipo de coisa. Entenda não há como comandar o sentimento, ele acontece, apenas isso. Simples como respirar. E você está apaixonada, mesmo que não admita nem pra si mesma. Não há como fugir. Escute o que essa velha esta te dizendo. – Ela argumentou com certa impaciência.

-Você não acha que eu já me machuquei demais com esse tal sentimento chamado amor? Eu mereço passar por tudo isso de novo? – A angustia transparecia em minha voz.

-Marcella eu já te falei, esqueça. O que aconteceu tem que ficar no passado, você não pode e nem deve acreditar que ...

- Que o que vó? Que eu não tenho direito a amar? Pois é nisso que eu creio! – Me alterei. – Eu não quero, entenda, não quero amar novamente.

-Cella, Viviana está morta! E você viva!

Me levantei de um pulo e olhando pra ela com terror gritei:

- Você não precisa me lembrar disso! Eu sei muito bem que ela está morta e sei quem é a culpada! Nunca vou me esquecer! Nunca! Podem passar milhões de anos e eu sempre vou me lembrar, por que fui eu que a matei!

Virei as costas e sai dali o mais rápido que pude. Eu a ouvi me chamando, mas segui em frente de cabeça baixa e mãos crispadas, e ao passar por Bianca nossos olhos se cruzaram e eu vi o horror estampado nos dela. A culpa me corroía, e ver aquilo em seus olhos piorou e muito o meu desespero. Ainda assim parei e me dirigi a ela

- Bianca por favor, olhe minha avó que eu vou chamar a enfermeira.

E sem dizer mais nada segui o mais ereta possível para dentro de casa, retornando assim para meu mundo sombrio, onde só a tristeza e amargura poderiam me fazer companhia.

Fim do capítulo