Marcella

Sai da sala espumando de ódio. Como alguém podia fazer mal a uma pessoa como Bianca? Tão doce, delicada, suave, linda e... Meu Deus, eu não podia mais ficar inventando desculpas para o que estava sentindo. Mas como tinha sido tão idiota a ponto de deixar aquilo acontecer? Não sabia que era uma pessoa proibida para amar? Minha alma carregada de pecados pesados, não tinha o direito de ser feliz, além disso todos os que eram tocados por esse sentimento vindo de mim padeciam de alguma maneira.

O que fazer com essa descoberta? Pois era um amor impossível de acontecer, a menina era hetero, criada em um orfanado por freiras, e ainda por cima virgem. Pra ela eu devia ser como o monstro do Lago Ness, um ser assustador e desconhecido. Nunca conseguiria conquista-la. Talvez isso fosse o melhor, pois assim teria que desencanar daquele sentimento de vez. Era loucura da minha parte, e eu precisava acabar com aquilo. Ficar criando imagens em minha mente tortuosa, só estava me deixando mais doida.

Subi as escadas remoendo minha ira e fui para o quarto de minha avó. Amanda estava sentada em uma cadeira ao lado da cama anotando o que ela dizia em um bloco de notas. Só de vê-la tão calma como se nada tivesse acontecido aumentou ainda mais a minha raiva.

- Boa tarde vó. – Disse indo até ela e dando um beijo em sua testa.

- Oi meu amor. Tudo bem? – Retrucou passando a mão carinhosamente em meu rosto.

- Sim tudo. – Respondi de cenho franzido

- Sua expressão está carregada. Algum problema Marcella? – Soa voz saiu preocupada

- Nada com que precise se incomodar. Você já terminou com Amanda, pois preciso dela. – Meu tom de voz foi mais rude do que gostaria

- Sim. Já terminamos por hoje. – Ela me olhou de um jeito estranho como se soubesse o que eu pretendia com sua secretária.

- Ótimo. Venha comigo Amanda, por favor. Depois eu volto pra te dar boa noite vó.

- Tá bom querida.

Sai e nem olhei para trás pra ver se ela estava me acompanhando, sabia que viria. Fui direto para o escritório e me encostei na mesa ela entrou logo em seguida.

- Feche a porta. – Disse com a voz seca e ela obedeceu prontamente.

- Algum problema Cella? – Sua voz estava um pouco alarmada.

- Sério mesmo que você não sabe porque está aqui? Ou só está se fazendo de tonta pra ganhar tempo? – Perguntei sarcástica levantando a sobrancelha.

- Nossa! Precisa mesmo me tratar assim? – A expressão em seu rosto foi de mágoa

- Isso não foi nada perto do que eu tenho pra te dizer, acredite. – Respondi enfatizando cada palavra

- O que eu fiz de tão ruim assim?

- Vamos deixar de brincadeira ok? Amanda, está será a última conversa que terei com você. Espero que ouça e entenda, pois da próxima vez que eu te chamar para essa sala será para demiti-la. Minha paciência com você chegou ao fim. – Falei isso apontando o dedo em sua direção.

- Meu Deus! Parece que eu cometi algum crime.

- Eu quero saber exatamente o que você falou para Bianca, e sem essa que foi apenas perguntar o porquê dela ter chegado atrasada. Você a fez chorar, e eu não aceito isso. Ela é uma menina que não faz mal a ninguém. Prestativa, exerce muito bem sua função, amiga de todos, sempre pronta a ajudar. O que você fez? E por que fez?

- Mas eu não fiz nada Marcella. Juro! – Disse fingindo inocência.

- É? Então porque ela estava chorando? – Sua encenação estava me deixando ainda mais nervosa

- Não sei. Pergunte para ela. Se fiz algo pra deixa-la assim com certeza te dirá.

- Ela não quis me dizer porque é tão boba e ingênua que te protegeu. Só que tem uma coisa, eu não acreditei nela e nem acredito em você. Sei que aprontou alguma coisa. Então fique esperta porquê da próxima vez não vou perder meu tempo olhando pra sua cara de pau. Estou sendo clara? – Meus olhos se fixaram nos dela.

- Eu não entendo. Por que você está tão brava comigo?

- Porque não admito certas atitudes suas. Você é uma simples empregada aqui dentro. Não é mais que ninguém. Não tem o direito de questionar nada de nenhuma outra funcionária. Nunca te dei autorização para isso.

- Por que está me tratando desse jeito? Você nunca falou assim comigo antes? – Seus olhos marejaram

- Já faz tempo que eu estou com você por aqui. Pensa que eu não vejo como trata todo mundo? Com esse seu arzinho superior de dondoca, nariz empinado como se fosse uma madame, a dona da casa. Olha pra todos por cima. Entenda de uma vez, você não é nada além de secretária. É uma subalterna. Ordens aqui só eu e minha avó podemos dar. Só porque é filha de uma amiga da minha irmã, e, diga-se de passagem, uma amiga que ela não via há anos, você se acha melhor que os outros. Caí na real. Você não manda em nada e nem em ninguém.

- Você está me humilhando por conta daquela...

- Daquela o que? Fala Amanda, se tiver coragem. Vamos, continue. – Instiguei.

- Não tenho nada pra falar. – Ela abaixou a cabeça

- Que bom que pareceu entender a situação. Então já está ciente. Mais uma dessas e está fora.

- Você faz isso comigo porque sabe que eu te amo, e que não quero me afastar, pois não suportaria ficar longe. – Choramingou

- Para com isso também Amanda. Já te falei, entre nós não há a mínima possibilidade de existir alguma coisa. Estou cansada disso! – Passei a mão pelos cabelos nervosa.

- Mas aquele dia, quando me beijou, foi tão intenso. Eu senti...

- Aquele dia eu estava bêbada. Já te falei isso um milhão de vezes. Não foi intenso, foi embriagado. Eu teria beijado um poste se ele estivesse ao meu lado me acariciando. – Cortei categórica

- Você está me ferindo sabia? Parece que gosta de me fazer sofrer.

- Lamento, mas é verdade. Não posso mentir só para não te magoar e com isso criar uma ilusão maior ainda. E depois eu já te falei, isso é coisa da sua cabeça.

- Não é. Eu sei muito bem o que sinto. Você pode mandar em muita coisa Marcella, mas não no meu sentimento.

- Então só posso dizer que sinto muito. Nunca foi minha intenção que isso acontecesse e sei muito bem que nada fiz para que você se apaixonasse por mim. E por favor, não vamos falar mais sobre isso. É ruim pra mim e pra você. – Aquele assunto me desagradava.

- Tudo bem. Posso ir agora ou tem mais alguma coisa pra me falar, ou será melhor dizer pra me ofender? – As lágrimas caiam dos seus olhos.

- Pode ir.

Ela saiu da sala ainda chorando, mas eu não podia fazer nada quanto aquilo. Não a amava ou sequer estava apaixonada por ela. Na verdade, nem tesão eu sentia. Era uma linda mulher sem dúvida, mas não chamava a minha atenção. Sendo muito sincera comigo mesma nenhuma mulher depois de Viviana havia me provocado excitação. Ficara com algumas, e até tentará ter um relacionamento, mas sem sentimento e sem desejo verdadeiro. Ninguém havia conseguido tirá-la da minha cabeça, pelo menos até aquele momento. Ultimamente quase não pensava mais nela pois a maior parte do meu tempo era tomada por pensamentos em Bianca.

O que será que ela faria se eu tivesse a coragem de me declarar? Estava cada dia mais difícil me manter distante de Bi. A vontade de toma-la em meus braços às vezes me deixava louca. Sentir seu corpo grudado no meu, sua boca na minha. Só de pensar naquilo meu sex* reagia como há muito não fazia. Um calor começou a queimar em meu ventre. Também desde que Marina morrera eu nunca mais trans*ra com ninguém. Parecia uma ermitã.

Precisava dar um jeito de apagar esse fogo. Estava ficando cada dia mais estranha e só. Sabia que aquilo não era bom, mas não tinha vontade de me encontrar com ninguém, até chegara a pegar o telefone várias vezes pra ligar para Olivia, que era aminha amiga colorida, mas desistira. E agora que não ligaria mesmo. Como ir pra cama pensando em outra pessoa? Melhor ficar quieta. Resolvi subir pra tomar um banho antes do jantar. Água fria me faria bem.

Depois de comer, fui para a biblioteca e comecei a procurar um livro para ler, e então encontrei um de Fernando Pessoa que há muito não folheava pois me trazia uma tristeza enorme, nele havia uma poesia que remetia demais a minha realidade, ela era de 1931 e chamava-se Eu Amo Tudo O Que Foi.

“Eu amo tudo o que foi

Tudo o que já não é

A dor que já não me dói

A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia”

Era bem assim que eu seguia, amando um passado que já não existia, querendo tudo o que nunca mais teria, a dor como minha companheira já não me doía, eu estava habituada demais a tê-la ao meu lado diariamente, e sempre era uma nova manhã, mas tão antiga como as demais. Areia esvaindo dos dedos. Fechei o livro e o coloquei de volta na estante. Já não tinha mais vontade de ler.

Caminhei até o sofá, me sentei, recostei a cabeça no encosto, fechei meus olhos e deixei que as lembranças me viessem a mente enquanto uma lágrima solitária escorria pelo meu rosto.

Ela era linda como uma manhã de sol, e o sorriso aberto e franco. Sua pele morena típica dos seus antepassados espanhóis, os cabelos negros e cacheados, os olhos risonhos escuros como contas. Uma verdadeira obra de arte e isso aos dezesseis anos. Só de olhar para ela meu peito se aquecia. A sua alegria era contagiante, não havia como ficar perto de Viviana sem ficar feliz.  Um ano mais nova que eu e mesmo assim tão mais madura, tinha um jeito especial de ver a vida, não se iludia, mas apreciava tudo o que ela tinha de bom e descartava o que era ruim. Sua voz melodiosa vivia solta pelo ar em doces harmonias que ela passava o dia a cantar. Estar com ela era como estar no paraíso. Foi inevitável me apaixonar.

Os dias passavam e eu cada vez mais encantada, até o peso da tristeza de ter perdido meu pai diminuiu. Mas como declarar amor a uma menina vinda de uma família tão tradicional, extremamente católica, e que me enxergava apenas como uma amiga mais velha? Mesmo assim eu não conseguia me afastar dela, e aos poucos fui buscando mostrar meus sentimentos. Fiz amizade com a família toda, inclusive com sua irmã.

Consuelo era uma moça inteligente e perspicaz de vinte anos, que pareceu não se incomodar em ser amiga de uma menina mais nova. Passamos a ser inseparáveis, saíamos sempre juntas, para festas, compras e passeios. Íamos às matinês e depois tomávamos sorvete. Marina chegou a ficar com ciúmes da nossa relação, dizia que elas pareciam mais minhas irmãs que ela mesma. O meu sentimento só crescia dia a dia. Éramos tão felizes naquela época. Ríamos de tudo. O mundo parecia uma bolha colorida.

Então em um determinado dia, quando estava passando a noite em sua casa não resisti e enquanto ela dormia eu depositei um beijo em seus lábios. Ela acordou assustada, e me empurrou. Por que Meu Deus eu não aceitei aquele empurrão? Por que continuei a insistir naquele amor? Tudo teria sido tão diferente. Ela ainda estaria viva.

Abri os olhos e sai daquele mundo onde vivia me escondendo, levantei e fui até o bar, enchi um copo de whisky e engoli de uma vez. Hoje seria mais uma daquelas noites intermináveis. Mais uma vez me embriagaria pra tentar esquecer minha culpa e tentar tirar a dor da perda de Viviana de dentro de mim.  

Fim do capítulo