Karen desfaleceu nos meus braços e eu entrei em pânico. Não consegui raciocinar direito, tentei acordá-la mas completamente sem sucesso. Com muita dificuldade puxei o seu corpo para o sofá e deitei-a com cuidado. Chamei o seu nome inúmeras vezes e ela não se mexeu. Senti meu coração batendo na garganta e uma sensação de angústia contraiu meu estomago quando peguei o pulso e percebi que a pulsação era muito fraca.

 

--Karen...Karen, acorda Karen, pense no teu filho, resista...Karen.

 

Por mais que eu gritasse ela não reagia. Meus olhos ficaram turvos de lágrimas, puro desespero.

 

Corri para o telefone mas não sabia a quem ligar, minha cabeça não funcionava.

 

Susan, claro. Ela era veterinária e saberia o que fazer...

 

Marquei o número dela e tive a impressão que demorou séculos até que alguém respondesse. Não tirei os olhos de Karen que permanecia de olhos fechados.

--Alô!

Não era a voz de Susan...Ciara? Muito azar...

--A Susan por favor...

--Ela não está e esqueceu o telefone em casa...

--Droga. - Devo ter gritado porque percebi que ela assustou-se.

--Está tudo bem? Catherine?

--Sim sou eu...preciso de Susan...preciso que ela me indique um médico...preciso muito.

--Aconteceu alguma coisa...contigo?

Não estava com disposição e muito menos com tempo para falar com Ciara.

--Obrigada, depois eu falo com a Susan.

Desliguei e corri para junto de Karen, ela ainda dormia, ou parecia dormir, o semblante estava tranquilo e a barriga mexia, tudo mexia...ela estava viva.

Num lampejo de consciência liguei para o serviço social da empresa e pedi um médico. Disseram que para a minha sorte uma equipa de medicina do trabalho estava no prédio e em minutos chegariam à minha sala.

Karen mexeu-se parecendo querer despertar e corri para junto dela. Segurei-lhe numa das mãos e ela abriu os olhos devagar.

--Karen...que susto. - Apertei-lhe a mão entre as minhas.

--Catherine...- Ela falou com a voz fraca.

--Estou aqui...calma, não te canses, o médico vem aí...

--Não precisa. - Ela fez menção de levantar-me mas impedi-a com veemência.

--Fique onde está, estás pálida e muito fraca...Karen estás gravida...gravida...- Parecia surreal, mas pior ainda era a minha falta de noção.

--Sim...estou gravida...

--Quantos meses?

Ela olhou-me e pareceu pensar antes de responder.

--Sete...

--Sete?

--Sete meses...- Fio de voz.

--Estás gravida de sete meses e eu nunca notei?

Instintivamente coloquei as minhas duas mãos na barriga dela, pequena mas claramente uma barriga de gravida.

--Ela é pequena para sete meses, primeiro filho e uso essas roupas...

--Sim Karen, essas roupas escondem muito, mas nota-se e eu nunca percebi...do teu lado e não percebi...

--Muitas viagens e és muito ocupada, eu não fiz alarde...

--Do teu lado e não percebi...não acredito.

Eu estava atonita e ela tentou esboçar um sorriso.

**************************************************

--Onde anda essa cabecinha linda dona Susan?

Perguntou Ciara enquanto entregava o telefone à mulher.

--Numa loira linda...ela não sai da minha cabeça.

Susan brincou e piscou para a mulher.

--Obrigada meu amor, sai correndo para ir ao hospital para a cirurgia do Bob e esqueci tudo.

--E ele, já está pronto para outra?

--Nem brinque. A cirurgia foi complicada, mas ele passa bem.

--Alguém precisa dizer a esse bicho que ele é um simples cão e não um felino para correr desenfreadamente, e ainda por cima é doido.

Risos.

--Ele é apenas um bebe...

--Daquele tamanho?

--Só tem 1 ano e convive com muitos gatos, por isso a propensão a largas corridas, tentativas de subir em árvores, escalar telhados...

--E minha mulher linda que corra a qualquer hora do dia para socorre-lo, culpa dos donos doidos.

Risos.

--Ranzinza!

--Que te ama muito.

Trocaram sorrisos cúmplices.

--Sue...a Catherine ligou há bocado e parecia descontrolada. Não entendi absolutamente nada. Por causa da ligação dela que percebi que tinhas deixado o telefone em casa.

--Descontrolada? A Cathe?

--Sim, ela gritou no telefone, parecia desesperada...já é a segunda vez que a percebo assim...

--Não entendi.

--Ontem, esbarrei com ela na saída do lounge e estava péssima, parecia que tinha visto um fantasma...descontrole absoluto.

Susan ficou muito preocupada com a amiga e aguardou o momento seguinte, uma crítica da mulher em relação a Catherine, mas ela não veio.

--Não vais falar mal dela?

--Não...

--Que bom...- Ela sorriu e piscou para Ciara.

--Pensei muito e cheguei à conclusão que minha implicância com a tua amiga é no mínimo questionável...

Susan bateu a cabeça afirmativamente.

--O fato de ela ser a cópia quase fiel daquela me por pouco não roubou a minha sanidade não justifica o meu comportamento.

--São parecidas sim, mas nem tanto...

--Para mim são gémeas separadas à nascença.

Susan riu muito.

--Como se uma é Americana e a outra Italiana?

--Detalhe...e para completar ainda têm comportamentos semelhantes...

--Não senhora, a tua italiana louca é maquiavélica, manipuladora, no lugar do coração tem um bloco de concreto, a Cathe é um amor, só não sabe que é, ela tem um coração imenso, é meio perdida ou está perdida mas ela se encontra, eu tenho a certeza que sim.

--Ela é estranha...não tem parentes por aqui?

--Não, ela não fala na família, só sei que o pai vive no Maine e ela nunca fala dele. Cathe não é estranha, ela é complexa...

--Porque gostas tanto assim dela?

Susan sorriu feliz.

--Porque por trás daquela aparente frieza existe um coração enorme...ela gosta de gatos, adora o Scoutie, ela é cómica, inteligente, simpática, sempre disponível para mim, não diz apenas o que gosto de ouvir...os problemas pessoais dela não interferem na nossa amizade. Claro que ela tem comportamentos que não concordo mas a vida é dela, na parte que me compete, ela é maravilhosa...às vezes eu sinto que ela só precisa abrir as portas da muralha que ergueu à sua volta...precisa de amor, mas não se permite, deve ser mais fácil viver no limbo.

--Wow, gostas mesmo dela.

--Muito. E dona Ciara, eu poderia muito bem ficar com ciúme...

-Porquê?

--A senhora implica com a Cathe porque ela parece um pouco com a ex cafajeste...

--Parece muito...

--Que seja, eu posso acreditar que isso é sinonimo de que ainda gostas dela.

--Nunca meu amor, nunca. Eu te amo como jamais amei ninguém na minha vida e seria muito doida se pusesse nossa relação em perigo. Sue, és a mulher mais maravilhosa que eu já tive na minha vida, jamais faria qualquer coisa para te magoar...eu te amo.

Susan sorriu e mesmo sendo muito discreta abraçou Ciara e a levantou no ar à porta da clinica.

--Também te amo meu amor, minha ranzinza linda.

--Preciso ir...com vontade de ficar mas o dever me chama. - Entre uma frase e outra apertava a mulher mais nos seus braços.

--Hmmm...guardo uma surpresa para logo à noite.

--Wow...já estou curiosa.

--Pois fique, não vou adiantar nada.

--Adoro essa mistura perfeita de timidez com safadeza.

Risos.

--Eu?

--Nunca...coitada da Susan, tão inocente.

Risos felizes.

--Preciso ir minha gata linda...não te esqueças de ligar à tua amiga.

Ciara beijou a testa da mulher e foi embora correndo.

Susan ligou para Catherine mas não obteve resposta. Sentiu uma leve preocupação.

 

**************************************************

--Eu já perdi dois bebés...o primeiro com 7 semanas e o segundo com 9.

--Já trabalhavas aqui?

--Sim...o último aborto foi no ano passado, mas estavas ausente...

Olhei para Karen completamente incrédula.

--Corro o risco de perder esse também. - Karen chorou e senti um nó na garganta.

--Tens algum problema?

--Sim...alguma coisa no útero, não sei explicar porque usaram muitos termos técnicos, mas resumidamente é como se o meu útero expulsasse os meus filhos, acontece alguma anomalia e ele expulsa...

--Mas tem solução? Já vais no sétimo mês...

--Repouso absoluto. - Karen arregalou os olhos e Catherine não entendeu a razão.

--E não estás de repouso porquê sua teimosa?

Karen olhou para cima claramente para impedir que lágrimas descessem...em vão.

Abracei-a. Não sou dessas coisas mas eu gosto de Karen...muito.

--Desde o quarto mês que tive ordens expressas para ficar de repouso...

--Karen?

--Não posso Catherine, não posso perder o meu emprego.

--Mas é um caso extremo, não vais perder o teu emprego.

Ela olhou-me descrente e suspirou.

--Sou contratada para trabalhar e me esmerar, o que ganho trabalhando dá para viver mas em casa seria o caos...o Juan ganha muito pouco, ele se esforça tanto...a empresa colocaria outra pessoa em meu lugar e depois se voltasse iria para um cargo inferior...além do dinheiro que é muito importante, eu gosto...eu gosto de trabalhar contigo.

Experimentei várias emoções naquele momento...alegria porque ela gostava de mim, preocupação pelos seus problemas que não pareciam ser poucos, odio de pertencer a uma organização quase desumana...Karen tinha razão, ela seria substituída e depois colocada numa posição inferior.

--Juan não faz ideia que estou proibida de trabalhar...de vez em quando passo mal e ele entra em desespero. Nós queremos tanto esse filho...

Meu telefone interno tocou arrancando-me daquela sensação...o celular já gritara mil vezes e eu sequer sabia onde o aparelho estava, mas o telefone interno tocava insistentemente e esse estava ao alcance dos meus olhos.

Perdera a reunião, mas rapidamente remarquei para o dia seguinte, minha secretária estava em apuros e precisava de mim.

Sei que sou esquisita e não demonstro meus sentimentos mas sempre nutri muita admiração por essa moça. Ela me aturava como ninguém, meus rompantes, loucuras, sempre prestativa e muito eficiente. Chegara meu momento de retribuir.

--Catherine, por minha causa perdeste a reunião com a Clarks...era muito importante.

--Mais importante que a tua saúde? Que o teu bebé? Nunca. Não te preocupes, já remarquei para amanhã.

--Agora vamos para casa dona Karen. O teu carro está no estacionamento?

Ela esforçou-se para rir.

--Não tenho carro...

--Vou levar-te em casa, agora e sem reclamações. Estás com fome? Podemos almoçar por aí...

--Moro longe...bem longe e prefiro comer em casa, quero descansar.

--Ok, compro nosso almoço e comemos em casa. Não interessa se é longe, meu carro é potente e não se perde.

Ela sorriu e eu me senti mais aliviada, estava muito preocupada.

**************************************************

Susan acabara de se encontrar com Ciara, Skya e Rebeka num café mas sua cabeça estava longe dali. A mulher e as amigas riam felizes de mais um sucesso e já criavam coisas novas mas ela não conseguia acompanhar aquele entusiasmo. Ciara percebeu e imediatamente virou sua atenção para ela.

--Aconteceu alguma coisa?

--Ainda não consegui falar com a Catherine...

--Desde mais cedo?

--Sim, ela não atende o telefone, nem o fixo nem o celular...

--A secretária?

--O estranho é que ela também não atende...estou preocupada ainda mais que na portaria do prédio dela me informaram que não viajou e Scoutie está em casa...

--Calma meu amor...não deve ter acontecido nada.

Skya ouviu o nome Catherine e seus sentidos ficaram em alerta. Tentou ser discreta mas a ansiedade não permitiu.

--Aconteceu alguma coisa com a Catherine?

--Não sabemos mas a Ciara disse que ela estava estranha ao telefone hoje cedo e desde então tento falar com ela e nada. Ah e ela disse que ontem também esbarram-se e Catherine estava descontrolada.

--No Lounge Skya...fui para ver a vossa performance e esbarrei com ela, ou melhor ela saía correndo e quase me atropelou.

--Ela estava lá? - Skya olhou para Rebeka como que tentando entender alguma coisa.

--Sim, mas deve ter ficado muito pouco tempo, porque eu ainda vi grande parte do show. Ela saiu correndo e muito estranha...

Skya e Rebeka trocaram olhares mas as demais não perceberam.

**************************************************

Atravessei a cidade para chegar onde Karen morava. Chegamos e quase a carreguei no colo para que não cansasse, não fi-lo porque ela estava pesada e eu cansada. Contei com a ajuda de dois rapazes dos arredores do bloco onde ela morava e chegamos ao terceiro andar sem que ela fizesse muito esforço.

Karen vivia num bairro visivelmente pobre cujos moradores eram na sua maioria imigrantes.

Seu apartamento era relativamente espaçoso mas não tinha quase nada. Percebi que ela estava desconfortável e imediatamente agi com a maior naturalidade possível.

Fui à cozinha e preparei tudo para almoçarmos. A comida já estava pronta, apenas deixei a mesa arrumada e minimamente atraente. Tive que obriga-la a comer e com excelente resultado.

Depois do almoço, arrumei tudo na cozinha e voltei para a sala onde ela estava estendida no sofá.

--Estás melhor? O remedio fez efeito? O médico disse que melhorarias em pouco tempo...

--Estou sim...obrigada Catherine.

--De nada Karen...farias isso e muito mais por mim, aliás já fizeste, ou melhor, fazes todos os dias no escritório.

--Minha realidade é tão diferente...

Passei a mão nas pernas dela que estavam estendidas no sofá. Eu não sabia nada ou quase nada da vida da minha secretaria e fiel escudeira...talvez fosse altura de saber.

--Karen, és de onde?

--El Salvador...nunca disse antes?

--Não...- Se dissera eu não prestara atenção.

--Eu e Juan somos de lá...eu tive sorte na vida. Sou de origem muito pobre, mas sempre me esforcei muito. Estudei com freiras e ganhei uma bolsa para estudar na capital, depois com mais luta consegui uma bolsa para vir estudar nos Estados Unidos, graças a um programa para jovens em situação de risco...a bolsa era ínfima, e tive que batalhar muito...consegui.

--Excelente profissional.

Ela sorriu e pareceu viajar para longe dali.

--Sempre tive essa meta, ser boa profissional e ajudar os meus...

--Tens parentes lá?

--Quase todos, mas os mais importantes são a minha mãe e meus dois irmãos mais novos. Eu consegui o green card e posso ficar aqui, mas eles estão lá e sobrevivem com minha ajuda. Meus irmãos estudam, mas é fácil demais enveredar-se por outros caminhos na minha terra...droga, tráfico de armas, gangs e os jovens pobres são alvos fáceis.

Ela suspirou e meu nó na garganta voltou a intensificar-se.

--O Juan também é de lá, mas ele não teve a mesma sorte, tem poucos estudos mas é esforçado e batalha muito para termos uma vida melhor. Ele tem dois empregos e ainda tenta estudar.

--Ele é ilegal? - Que idiota que sou, às vezes falo sem pensar. - Desculpa, não quis dizer isso...

--Tudo bem, tem muitos ilegais por aqui mesmo, mas ele não...o Juan é serio demais para entrar ilegalmente num país. Ele veio com uma petição da irmã mais velha, a família dele é muito unida e todos batalham juntos. Eles ainda têm irmãos por lá que não conseguiram vir, um está perdido nas drogas...eu morro de medo que meus irmãos descambem para o mal...

--Não penses nisso agora...

--Não tem como evitar Catherine...e penso também no meu bebe...

O telefone dela tocou e levantei para buscá-lo na bolsa.

Era o marido...tive que ouvir a conversa. Romance puro, não obstante todas as dificuldades. Ele preocupado com ela, ela evitando preocupá-lo já que seu dia-a-dia era de muito stress, ele querendo saber do bebe...fiquei pasma.

Ela desligou com um sorriso brilhante no rosto...amor.

--Eu amo muito o meu Juan, a melhor coisa da minha vida. Está para nascer criatura mais íntegra...

O semblante dela entristeceu mais uma vez.

--O que foi Karen?

--Não posso perder o meu emprego...não posso.

--Não vais!

--Estou gravida e correndo riscos de perder meu filho mas sem trabalho meus sonhos de vida vão por água abaixo...

--Não vais perder o teu emprego e esse bebé vai nascer para dar-vos muitas alegrias, prometo.

Ela estendeu o braço para me abraçar e mesmo sem jeito, correspondi àquela demonstração de afeto.

 

Fim do capítulo