AVISO DE GATILHO: uso de drogas ilícitas, síndrome de abstinência, alucinações, racismo, violência, menção a abuso sexual.
Capitulo 14 - Desconfortavelmente entorpecida - Parte 1
*Quatro anos antes:
“Cadê a Aline?”
“Não sei. Combinamos de vir juntas, mas liguei para ela e o celular tá fora de área. Deve ter acontecido alguma coisa...” – respondeu Fátima, sem jeito.
Jordana tragou o cigarro, os olhos baixos.
“Amiga, o importante é pensar em você agora” – Jaqueline segurou a mão de Jordana, que tirou-a com um gesto meio rude.
“Falei com o Doutor Benigni” – a mãe continuou, constrangida – “Ele disse que, pelo menos o pior já passou.”
“E com um advogado, que é bom, nada de você falar, né?” – Jordana respondeu grosseira.
“Pra quê você quer um advogado?”
“Por que será, né? Não é só quem pega cana que precisa de um! Eu tô aqui presa nesse hospício, e você não faz nada pra me tirar daqui!”
Fátima calou-se, em choque. Buscou os olhos de Jaqueline, como que pedindo ajuda.
“Jordana, depois de tudo o que aconteceu, você ainda acha que deve sair daqui assim?” – Jaque não tinha mais nenhum vestígio do bom humor do início da conversa.
“Assim como, Jaqueline? Quem deu a vocês o direito de julgar minha vida e tomar decisões em meu lugar, como se eu fosse uma incapaz?” – Jordana deu um forte tapa na mesa, levando a uma das monitoras a repreendê-la. Praguejou baixo em resposta: – “Vai se foder você também!”
Tinha esperanças de que ao menos a namorada a ajudasse a sair daquele lugar, mas já era a segunda visita que Aline não comparecia.
“Eu tenho esse direito. O juiz te declarou momentaneamente incapaz de responder pelos seus atos, e você vai cumprir o tempo que for necessário aqui. Não quero buscar minha filha no IML.”
Jordana rangia os dentes e mordia os lábios, o cigarro queimando entre seus dedos, as cinzas quase caindo, conforme ela passava a mão pelos cabelos cortados, meio desalinhados e já sem a química do relaxamento.
Sob o olhar tristonho da mãe, decidiu apelar:
“Mãe, eu não aguento mais! Eu sinto falta de casa! Não é justo! Eu não te via há três meses, e você vem dizer que vai me deixar aqui neste inferno por mais tempo?” – as lágrimas brotaram espontaneamente.
“Só mais um pouco de choro, ela vai ceder...”
“Filha...”
“Eu me sinto tão sozinha! Quero minha casa, minha cama, tomar do seu café, comer a sua comida! Por favor, mãezinha! Eles tratam a gente pior que bicho aqui! Não suporto mais!”
Os olhos de Fátima e de Jaqueline também se encheram de água. O que mais doía na mãe não eram os sofrimentos reais ou inventados de Jordana ali, mas a advertência prévia da psicóloga sobre essa tentativa de manipulação emocional, típica de quem ainda não admitiu que precisava de ajuda.
Jordana prosternou-se no chão, a cabeça no colo da mãe, a soluçar descontroladamente.
“Me leva daqui, mãe! Me leva embora! Por favor!”
Sem uma palavra, Fátima a envolveu num abraço silencioso, cheio de um pranto dolorido. Depois de um longo tempo assim, murmurou:
“Como foi que eu deixei você chegar a esse ponto, minha filha? Me arrependo tanto de ter te rejeitado, não ter te abraçado e te aceitado incondicionalmente! A culpa é toda minha!” – a voz era monocórdia, mas as lágrimas corriam abundantes rosto abaixo daquela sofrida mulher.
“Não mãe, já passou! Não importa o que aconteceu, agora estou bem! Só preciso voltar pra casa e ficar com você, e tudo vai dar certo de novo!”
Quinze minutos mais tarde Jordana precisou ser contida. Urrava de frustração e destruía qualquer coisa na qual punha as mãos em seu quarto coletivo. Enfermeiros altos e fortes a seguraram pelos membros, caída ao chão, enquanto outro aplicava-lhe um forte sedativo.
Assim que adormeceu, foi atada a uma maca. Colocaram-lhe uma fralda, pois a ordem era que ela não saísse da contenção tão cedo, para seu bem e o das outras pacientes.
“Bom dia, Dona Fátima.”
“Aline, graças a Deus você atendeu! Onde você está? Nós te esperamos ontem até a hora de entrar...”
A mão de Aline tremia enquanto segurava o celular. Mordeu o lábio inferior, reprimindo o choro. A visão de Lucas brincando com outras crianças no playground da pracinha fez seu coração doer profundamente: não gostava nem de imaginar se seu filho um dia caísse nas garras de um vício. Apenas esse motivo – a compaixão e a empatia pela dor materna de Fátima – ainda a fazia postergar o já tão adiado fim.
Depois de um silêncio que falava por si só, Fátima disse, humilde:
“Eu sei o que você está sentindo e pensando, minha querida. Eu sei que não é justo que eu te obrigue a ficar com a Jordana, depois de tudo o que aconteceu. Seja como for, se você quiser seguir adiante com sua vida, não vou ficar chateada. Eu compreendo. Só me avise, para que a Jordana não fique te esperando a toa na próxima visita, por favor.”
A moça não conseguiu mais se segurar. Virou o rosto para um lado onde o filho não pudesse ver suas lágrimas.
“Dona Fátima, me desculpe!” – ela soluçou, e não pôde dizer mais nada.
Naquela noite, com Lucas adormecido ao seu lado no sofá, enquanto viam TV, ela tinha o pensamento longe. Desde a descoberta do vício de Jordana, até os eventos que culminaram em sua mais recente internação, a quarta durante todo esse tempo.
Naquela fatídica manhã onde tudo começou, no hospital municipal, o policial que falou com ela e com Fátima foi particularmente desumano. Olhou para Aline com aquele meio sorriso nojento de homem tarado, e fez a seguinte pergunta retórica:
“E por que um ‘morenão’ como você” – mediu-a de cima a baixo como uma besta faminta – “é amiga de uma ‘zé-droguinha’ como essa aí? Tem certeza de que não sabia de nada mesmo?”
Tanto Aline, quanto Fátima, rangeram os dentes de ódio. Sabiam que não podiam dar a esse porco fardado de merd* a resposta que ele merecia, ou estariam em sérios apuros. Seria a palavra e a força bruta dele, um “cidadão de bem, branco, mantenedor da ordem pública” contra duas mulheres negras de origem simples, que ainda por cima tinham laços com outra mulher negra viciada.
“Acabei de descobrir, assim que a mãe dela me avisou da internação” – Aline se esforçou para manter a calma e a compostura.
“Agora eles deram um ‘sossega’ nela, mas a gente vai ter que averiguar a sua casa. Qual o endereço?” – voltou-se insensível e arbitrário para Fátima, que percebeu a ameaça velada em suas palavras – “Tenho certeza de que, quem procura, acha.”
“Senhor, minha filha trabalha, essa moça aqui é a colega dela, ela nunca precisou mexer com coisa errada pra ganhar dinheiro, não! Pode ligar na empresa dela!” – Fátima estava em seu limite, mas não podia deixar a máscara de subserviência cair em momento algum, ou tudo estaria acabado. Só rezava em pânico para que aquele milico não estivesse precisando mostrar serviço naquele instante, e inventasse de plantar um flagrante dentro de sua residência.
Aline, a seu turno, franzia a testa e engolia a seco, torcendo para que, nem a sogra, nem o policial, ligassem para a loja e recebessem a má notícia, porque aí sim, tudo estaria perdido de vez.
Coincidentemente, nesse momento, seu celular tocou. Era Eliana, irascível, mandando-a voltar naquele minuto, porque tinha uma fila de clientes esperando. Aline bufou de raiva; estava prestes a mandá-la pra certo lugar, mas Fátima, prevendo problemas maiores, deteve-a:
“Pode ir, filha. A partir daqui, eu cuido de tudo. Obrigada, Deus te abençoe, você foi um anjo!”
“Tem certeza, Dona Fátima?”
“Não vá prejudicar seu trabalho, você tem um menino para sustentar, por favor!”
Ressabiada, encarando de revés o PM, Aline se retirou.
O companheiro de trabalho do policial o chamou em um canto. Conversaram por alguns minutos, olhando para Fátima de vez em quando, que aguardava com uma falsa tranquilidade no rosto.
No fim, recebendo pelo rádio da patrulha a ordem para atender ocorrências mais urgentes no momento, os dois resolveram não ir até a casa de Fátima. Ao vê-los pela janela do corredor do hospital, entrando na viatura e partindo, ela deixou escapar um longo suspiro alto e se escorou na parede, soluçando baixo.
Um jovem médico plantonista surgiu e explicou-lhe em poucas palavras o quadro, os procedimentos de ressuscitação que foram feitos em Jordana, e falou na necessidade de internação compulsória. Fátima estremeceu.
“Mas precisa de tudo isso, doutor?”
“É questão da senhora decidir se quer lutar para ver sua filha viva por mais tempo, ou não. Se dermos alta para ela depois que melhorar, a primeira coisa que ela vai fazer é correr atrás de mais droga.”
Nesse instante chegou Paula, que também foi avisada da situação e demorara porque seu carro estava no conserto e o ônibus atrasou. Abraçou a prima, ambas chorando.
“O que eu vou fazer, Paula? Por que a minha menina? Ô meu Deus, por quê?”
Em sua dor, não foi capaz de dar uma resposta definitiva para o médico sobre a tão temida internação. Pelas poucas e horripilantes histórias que ouvira sobre esses lugares de reabilitação, tanto públicos quanto privados, as pessoas saíam mais traumatizadas do que entravam, quando não cometiam suicídio.
Mal comeu ou bebeu qualquer coisa, apesar de instada pelas enfermeiras e por Paula. Disseram-lhe para ir para casa, que a avisariam quando Jordana acordasse, mas ela não arredou o pé dali o dia inteiro.
Ao cair da tarde, no horário de visitas noturno que estava prestes a começar, Aline reapareceu, ainda com o uniforme da empresa. Autorizaram-na subir, junto com Fátima, até o quarto de Jordana.
As duas não estavam preparadas para o que viram.
Jordana sentia-se flutuando em um lugar que não conseguia ver. Tentava abrir os olhos, mas um entorpecimento mais forte que tudo mantinha suas pálpebras coladas. Ouvia um barulho de vento, tilintar de coisas metálicas e murmúrios entremeados de ruídos animalescos ao seu redor.
Imaginou que estivesse voando em uma espécie de espaço sideral, seu corpo mais leve do que um sopro. Essa brisa boa durou até certo tempo, quando começou a escutar risos baixos e sinistros, e frases que ela não podia distinguir, mas que soavam como ameaças e maldições murmuradas.
Queria abrir os olhos para ver quem eram essas pessoas, mas não era capaz. Nem mesmo tinha forças para mexer a cabeça ou os membros por si só. Era como uma sacola plástica mole e inerte sendo levada pelo vento.
Ao murmúrio de poucas vozes foram se juntando outras. Pouco a pouco, era como se centenas de pessoas rezassem baixo uma missa, mas em vez de preces, o que se ouvia eram anátemas e blasfêmias de vozes medonhas, como num filme de terror.
Risadinhas sinistras e agudas, aqui e ali, ressoavam mais alto de vez em quando, em meio àquele coro macabro.
Jordana queria gritar, pedir por socorro. Tentou abrir a boca. Seus lábios não se moveram nem um milímetro.
Em vez disso, como que replicando seus gritos mentais, outras vozes urravam, lamentavam, gemiam de uma forma arrepiante. O coro agora ria e amaldiçoava cada vez mais alto aqueles que choravam.
“Morram, desgraçados”; “Vamos destruir vocês, filhos da puta imundos!”; “Drogados de merd*, vão morrer!”; “Vão morrer!” “Vão morrer!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!” “VÃO MORRER!!!!!”
Quanto mais o coro repetia aos berros a ameaça, mais alto os lamentos e gritos desesperados se levantavam. Jordana, apavorada como nunca esteve em toda sua vida, distinguiu algumas frases:
“NÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!!! EU NÃO VOU MORRER!!!!”
“SOCORRO DEUS, ME TIRA DAQUI!!!!”
“AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!!”
“NÃO, NÃO, NÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!!!!!”
“MÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃEEEEEEEEE!!!! PAAAAAAAAAAAAIIIIIIII, ME AJUDEEEEEEMMMMM!!!!!”
As vozes gargalhavam e escarneciam impiedosas:
“Chama a mamãe agora, sua puta, chama!!!!! Quero ver se ela é capaz de te tirar da gente!”
“Cadê seu Deus agora, crente mentiroso maldito? Cadê seu Jesus? Agora você vai lamber o sangue dele na cruz em pessoa HAHAHAHAHAHA!”
“Vamos te levar de volta para o inferno de onde você nunca deveria ter saído, filho da puta! Vamos arrombar seu cu até sair pela goela! Não adianta pedir socorro, você é nosso!”
“Chora mais, vagabunda, chooooraaaaaa! Hahahahahahaha!!!!”
Jordana queria chorar, gritar, seu corpo não a obedecia. Mas aqueles seres horríveis pareciam se comunicar diretamente com seus pensamentos.
“Olha essa aí! Tá novinha ainda! Vai dar pra gente usá-la bastante, o pó ainda não deteriorou tanto o corpo dela!”
Sentiu claramente mãos fétidas e geladas correndo pelas suas pernas, acariciando seus seios e partes íntimas. Pensou em fugir, e os seres responderam rindo:
“Não adianta querer escapar, daqui você não sai tão cedo. Relaxa! Hahahaha!”
O fedor de carne podre, fezes e chorume de lixo a nauseava. Achou que morreria só de inalar esses cheiros. Sentiu o sopro de uma respiração ruidosa e pestilenta em seu pescoço, rosto, orelhas.
De repente, como se tudo aquilo se dissolvesse aos poucos no ar, o odor, as vozes, as mãos, tudo foi se afastando, e ela entrou em uma escuridão silenciosa e pesada como chumbo.
Não teve ideia de quanto tempo permaneceu ali. Às vezes pareciam minutos, outras vezes dias, meses. Aos poucos, seus sentidos foram captando alguma coisa. Ela sentiu que podia mexer as mãos, os músculos do rosto, a língua e os lábios. Arriscou entreabrir os olhos algumas vezes, mas estes se fechavam em seguida. Ao menos, vislumbrou vagamente alguma coisa nessas tentativas, como um teto branco e luzes.
Agora ouvia vozes e movimentações relativamente normais, ainda que um tanto distantes. O ar não era mais carregado e pútrido. Cheirava a éter e medicamentos.
As vozes se aproximavam e se afastavam. Eram bem mais suaves, mas ela ainda não conseguia distinguir as palavras.
Um longo tempo depois – ou ao menos isso foi o que lhe pareceu – , abriu lentamente os olhos. Sua boca estava extremamente seca.
Uma enfermeira apareceu cerca de dez minutos depois.
“Olá, tudo bem? Consegue me ouvir?”
Jordana meneou quase imperceptivelmente a cabeça, com um “uhm”. A enfermeira fez mais algumas perguntas de praxe, mas percebendo que a paciente ainda estava muito dopada para responder adequadamente, limitou-se a avisá-la sobre onde ela estava e o motivo.
“Água...” – Jordana finalmente conseguiu sussurrar.
“Espera só um minutinho, que eu vou buscar.”
Depois, erguendo a cabeceira da cama, a mulher ajudou Jordana a beber, em pequenos goles, de um copo descartável.
Então Jordana se permitiu respirar aliviada e fechar os olhos para um cochilo leve.
Essa paz durou muito pouco.
Ao acordar, Jordana imediatamente se lembrou dos pinos em sua bolsa, arrumados por Gilson e outros funcionários de seu primo. Olhou ao redor, preocupada. Ainda fraca e meio zonza, levantou-se da maca e desceu a pequena escada metálica na lateral. Quase caiu.
Arrastando consigo o suporte com a bolsa de soro que ainda mantinha-se presa pela mangueira na dobra de seu braço, foi até o armário. Abriu a porta e respirou aliviada: lá estava sua roupa cuidadosamente dobrada e sua bolsa.
Ao pegá-la e abrir o zíper, seu coração gelou: não havia nenhum pino nos compartimentos internos secretos onde ela os tinha guardado. Revirou outros compartimentos, desesperada. Deixou cair a bolsa no chão ao constatar que realmente não tinha nada, agarrou avidamente suas roupas, procurou no bolso da camisa e da calça, em vão. Até dentro de seus sapatos ela enfiou obcecadamente a mão.
Já irritada e desesperada, arrancou com rudeza a agulha em seu braço, fazendo um pouco de sangue vazar e sujar o chão. Andou nervosamente em círculos pelo quarto, até que saiu porta afora.
Uma enfermeira, vendo-a naquele estado, o sangue escorrendo pelo braço, correu para acudi-la. Jordana empurrou-a, já começando a gritar:
“Quem mexeu nas minhas coisas? Quem me roubou?”
“Calma, volte para seu quarto...”
“Vai tomar no cu!!!! Quem foi que roubou minhas coisas??? CARALHO, QUEM FOI A FILHA DA PUTA QUE MEXEU NAS MINHAS COISAS??? ME SOLTA!!!!”
Enfermeiros e seguranças acorreram imediatamente, e a arrastaram de volta para o quarto, a mando da enfermeira. Jordana se debatia e xingava a todos, descontrolada.
Foi nesse exato momento que Fátima e Aline apareceram no corredor. Reconheceram imediatamente a voz de Jordana e correram para o quarto de onde ela vinha.
“FILHOS DE UMA CADELA, EU VOU ACABAR COM VOCÊS!!!! LADRÕES DESGRAÇADOS!!!!!! QUEM DEIXOU VOCÊS ROUBAREM MINHAS COISAS???? ME SOLTA!!!! ME SOLTAAAAAAAAA!!!!!”
O escândalo obviamente chamou a atenção de todos, dentre funcionários, pacientes e visitantes. Alguns cercaram curiosos a porta do quarto de Jordana, no que foram imediatamente repreendidos por outros enfermeiros, que os mandaram sair dali.
Um dos médicos plantonistas, um homem de cinquenta anos, de modos secos e arrogantes de profissional rico que já se cansou de seu ofício e de seus pacientes de baixa renda, entrou a passos largos no local, ordenando que a enfermeira preparasse uma injeção de sedativo. Em seguida, foi até Jordana e procurou sobrepor sua voz à dela:
“CALE A BOCA AGORA! SUA IDIOTA!!! SUA DROGADA LOUCA!!!! CALA A BOCA AGORA, OU EU CHAMO A POLÍCIA, E VOCÊ SAI DAQUI PRA CADEIA DESSE JEITO MESMO, PRA PASSAR A FISSURA LÁ ATRÁS DAS GRADES, SEM REMÉDIO NENHUM! TÁ ME OUVINDO???”
Gritava praticamente contra o rosto dela. Jordana se sacudia, espumava, os dentes arreganhados e os olhos irracionalmente esgazeados.
“NÃO!!! NÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!!! VOCÊS ME ROUBARAM! VOCÊS ME ROUBARAM!!!! EU QUERO MINHAS COISAS!!!! VELHO FILHO DA PUTA, DEVOLVA MINHAS COISAS!”
Fátima disparou na direção da filha, ficando entre ela e o médico, que parecia que iria esbofetear a desequilibrada paciente a qualquer momento. Pôs a mão sobre o peito de Jordana e implorou:
“Filha, pelo amor de Deus, para com isso! Para, Jordana! Eu estou aqui!”
“Mãe, eles me roubaram! Eu vou matar eles! Manda eles me soltarem!”
O médico afastou Fátima dali aos empurrões, sem nenhuma compaixão:
“Saia daqui agora, você tá atrapalhando!” – praticamente gritou, grosseiro.
Em seguida, a enfermeira passou por eles, pressurosa, com a injeção em riste. Os seguranças a essa altura tinham jogado a paciente sobre a maca, mas ela resistia, tentava chutá-los e livrar seus braços do forte aperto deles a todo custo. Foi difícil para a enfermeira finalmente aplicar-lhe o sedativo. Jordana urrou de dor pela picada, mas logo seus repelões de corpo inteiro foram enfraquecendo gradativamente, até que ela tombou, desacordada.
Do lado de fora, no corredor, Fátima soluçava desconsolada, abraçada por Aline, também em lágrimas.
O tal médico passou indiferente por elas, sem dirigir-lhes nem um olhar ou uma palavra, e sumiu. A enfermeira fez o papel que cabia a ele.
“Senhora” – foi até Fátima, condoída e um pouco sem jeito. Perguntou a Aline – “Quer que eu vá buscar um copo de água?”
A moça apenas meneou a cabeça, com um nó imenso na garganta. A poucos metros dali, a enfermeira encheu dois copos em um bebedouro e entregou-os um para cada uma. Depois de um tempo, em que Fátima se forçou a tomar uns goles, e seu choro cedeu um pouco, a enfermeira disse delicadamente:
“Senhora, eu sei que é duro falar disso agora, mas o caso da sua filha é de internação em uma clínica de reabilitação. Nós não temos estrutura, nem contingente para lidar com a situação dela, quando ela acordar de novo. Isso tudo pode se repetir, porque ela está em abstinência, e um paciente assim fica sem controle, e é potencialmente perigoso para si mesmo e para os outros. Ela pode até fugir daqui, e nós nunca mais a encontrarmos.”
Minutos depois, com uma pedra maior que uma casa esmagando-lhe o coração, as mãos tremendo, Fátima preenchia e assinava o formulário de transferência para a internação compulsória na Casa de Saúde Dra. Nise da Silveira.
Uma lágrima doída correu dos olhos de Aline, enquanto se entregava a essas memórias. A cena praticamente se repetiu mais três vezes depois, cada vez em um lugar diferente, no qual Jordana tinha que ser contida à força por um grupo de pessoas e levada de ambulância para a UPA, e de lá, para o hospital psiquiátrico.
Em todas as vezes, Jordana voltava de lá risonha, bem alimentada, distribuindo-lhe toda sorte de carinhos e beijos, jurando que desta vez tinha mudado, sempre pedindo-a em casamento.
Essa bonança durava poucos dias, até um novo ciclo de sumiços sem explicação, reaparecimentos nos quais ela se mostrava evidentemente chapada, discussões entre as duas, além das situações constrangedoras toda vez que saíam juntas, pois Jordana misturava a droga com álcool, e não demorava a puxar briga com alguém por motivos aleatórios.
Depois de sua demissão, Jordana ainda tinha tentado se manter em pelo menos três empregos. De todos foi desligada por faltar ao trabalho, mas só a última empresa fez questão de colocar em sua carteira o desagradável registro de “justa causa”. Isso a deprimiu e a fez afundar ainda mais no vício.
Na ocasião dessa última internação, Jordana tinha roubado dinheiro, roupas, e alguns pertences eletrônicos e cosméticos de Aline para comprar droga. O bate-boca entre as duas degenerou em um quebra-quebra dentro do apartamento de Aline: a namorada destruiu quase todos os móveis e eletrodomésticos. Vizinhos chamaram a polícia, e Jordana teve uma crise de abstinência horrível horas depois, a ponto de convulsionar, na antessala da delegacia, onde estava algemada. O SAMU levou-a para o “Nise da Silveira” imediatamente.
Aline acompanhou a sogra na primeira visita, três meses depois. Já nessa ocasião, foi desanimada e desiludida: algo em seu coração havia mudado. Daquela paixão avassaladora que tinha antes, só restara um sentimento de pena e desgosto. Os momentos em que Jordana a alegrava com suas piadas e brincadeiras, a intimidade cheia de uma chama toda especial, eram apenas doces lembranças. Os desentendimentos, a desconfiança, o desapontamento e o constante estado de alerta e medo tomaram o lugar de tudo.
Sua decepção chegou ao limite quando, aproveitando uma distração de Fátima, Jordana a chamou em um canto e pediu que a namorada a ajudasse a conseguir uma decisão judicial que a tirasse de lá, alegando maus-tratos e uma infinidade de coisas que Aline não sabia se eram verdadeiras ou não.
Dias depois, refletindo profundamente, cansada, entristecida, foi interpelada por um novo colega de trabalho, chamado Gustavo:
“Aline, tá tudo bem?”
“Tô sim!” – ela sorriu e disfarçou.
Ele hesitou um pouco, antes de continuar:
“Não quero me intrometer em nada, nem ser chato, mas se um dia você precisar de alguma coisa, é só me falar, tá?”
Ela não cedeu de pronto. Tampouco Gustavo ficou insistindo no assunto, embora procurasse ser gentil e atencioso o tempo todo, respeitando os limites dela.
Aline percebeu que gostava de tê-lo em sua companhia. Sua conversa era agradável, seus modos eram discretos, suaves, metódicos. Tão diametralmente opostos à alegria contagiante e ao carisma natural de Jordana, ela comparou inevitavelmente. Certo dia, acabou aceitando um convite dele para um café numa cafeteria aconchegante próxima à empresa, logo depois do almoço.
Pela primeira vez, Aline sentiu uma vontade irresistível de desabafar sobre seus problemas. Chorou muito. Gustavo foi extremamente compreensivo e solícito, sem segundas intenções. Não a julgou pelo relacionamento homoafetivo, embora fosse um frequentador de igreja evangélica. Mas disse algo que calou fundo no coração da colega:
“Será que é bom para você e para o seu filho levar uma vida tão turbulenta, imprevisível, e até perigosa, ainda mais depois do seu primeiro casamento, que também foi difícil? Será que vocês dois não merecem paz, e um lar sereno e amoroso depois de tudo isso?”
Pensando no que o colega disse, e depois dessa última conversa com Fátima, decidiu que deveria ser sincera consigo mesma e com Jordana. Porém, sua iniciativa de comparecer à visita seguinte para terminar tudo com dignidade foi um verdadeiro desastre...
Jordana se levantou do banco de cimento do jardim vociferando ofensas horríveis à ex-namorada. Acusou-a de traição. Chegou a ameaçá-la se não “confessasse” que estava saindo com outras pessoas. Novamente, enfermeiros corpulentos tiveram que lidar com a ira incontrolável daquela paciente, que pela sua altura e força, precisava de pelo menos três ou quatro deles para dominá-la.
Fim do capítulo
Achei que ficaria melhor dividir essa fase da vida da Jordana em duas partes, pois além de esclarecer muitas coisas de capítulos anteriores, também é muito importante para entender a complexidade de fatores que a fez recair tantas vezes.
Estou adorando os comentários de vcs, me inspiram muito! Obrigada do fundo do meu coração! <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3
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thays_
Em: 28/05/2023
Fico triste pela Aline, ela parecia gostar mesmo da Jordana, mas era impossível continuar dessa forma... essas recaídas são muito complicadas... é como se a pessoa voltasse uns 10 passos pra trás, fico pensando que muitos amigos e familiares apenas também devem se afastar para não serem tragados juntos. E ao mesmo tempo, a pessoa também precisa muito da presença deles. Muito difícil. É um mundo muito cruel e triste esse dos viciados.
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Angell
Em: 25/05/2023
Nossa!! Foi bem forte esse capítulo, parabéns pela dedicação em torna-lo tão realista, mesmo sendo desconfortável de ler certas partes, é um tema extremamente importante de ser abordado! Muito bom!! Tô pensando aqui...Se juntasse Jordana na abstinência e Núria no surto, seria um pedaço do inferno na terra...Miséricordia!! rsrsrs
Billie Ramone
Em: 26/05/2023
Autora da história
Menina, tambem to pensando na mesma coisa kakakaka! Uma coisa eu garanto: a história tem que ter, e vai ter um final feliz. como ele vai ser, aí a gente vê :))))))
Muito obrigada pelos elogios. Espero que o capítulo seguinte não seja surtado demais pro gosto de vcs kakakaka!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 25/05/2023
Complicado! Não existe amor que resista ao vício.
Billie Ramone
Em: 26/05/2023
Autora da história
Sim. um deles tem que ceder, pq não dá pra coexistirem :((((((((
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Billie Ramone Em: 30/05/2023 Autora da história
Mais do que vc imagina... eu me senti muito mal de ouvir depoimentos sobre isso. até fiquei deprimida, sem saber como continuar a escrever... mas o principal é exatamente isso: o viciado precisa dessa rede de apoio, de algo para se apegar, enquanto vive e planeja um dia de cada vez. ouvi relatos tristes, mortes, perdas terríveis, mas decidi que vou seguir um caminho de esperança, como disse lááááá no comecinho. se nem tudo são flore, tambem não precisa tudo ser espinhos. Como diz a Gloria Groove: a mim parece certo e libertador que nem tudo tem que ser dor.