• Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Cadastro
  • Publicar história
Logo
Login
Cadastrar
  • Home
  • Histórias
    • Recentes
    • Finalizadas
    • Top Listas - Rankings
    • Desafios
    • Degustações
  • Comunidade
    • Autores
    • Membros
  • Promoções
  • Sobre o Lettera
    • Regras do site
    • Ajuda
    • Quem Somos
    • Revista Léssica
    • Wallpapers
    • Notícias
  • Como doar
  • Loja
  • Livros
  • Finalizadas
  • Contato
  • Home
  • Histórias
  • Sem limites
  • Capitulo 11 - Tudo bem não ser normal

Info

Membros ativos: 9525
Membros inativos: 1634
Histórias: 1969
Capítulos: 20,492
Palavras: 51,967,639
Autores: 780
Comentários: 106,291
Comentaristas: 2559
Membro recente: Azra

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Notícias

  • 10 anos de Lettera
    Em 15/09/2025
  • Livro 2121 já à venda
    Em 30/07/2025

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Recentes

  • Legado de Metal e Sangue
    Legado de Metal e Sangue
    Por mtttm
  • Entre nos - Sussurros de magia
    Entre nos - Sussurros de magia
    Por anifahell

Redes Sociais

  • Página do Lettera

  • Grupo do Lettera

  • Site Schwinden

Finalizadas

  • O que um encontro pode causar...
    O que um encontro pode causar...
    Por adoravelpsi
  • Dia dos Namorados em Tempos de Quarentena -  Se Reinventando
    Dia dos Namorados em Tempos de Quarentena - Se Reinventando
    Por Rosa Maria

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Sem limites por Billie Ramone

Ver comentários: 2

Ver lista de capítulos

Palavras: 4055
Acessos: 394   |  Postado em: 09/05/2023

Notas iniciais:

AVISO DE GATILHO: menção a uso de drogas ilícitas e overdose, racismo e violência.

 

Capitulo 11 - Tudo bem não ser normal

 

Falar com a Dra. Rebeca, minha psicóloga, era ótimo. Com o Dr. Dirceu, meu psiquiatra, era útil. Com a Assistente Social, Djanira, era animador. E com os terapeutas ocupacionais, era divertido.

Mas falar com ela ali dentro definitivamente era o que eu mais amava no mundo!

Anos atrás, eu tinha muita pena daquela garota sofrida e maltratada pela família. Deve ter sido horrível ser filha daquela coordenadora sonsa pra quem minha mãe trabalhou, que teve cara pra ir falar besteira sobre mim em minha casa. Veja só como a vida dá voltas: naquele momento, quem era digna da pena dela era eu...

 

“Qual o seu nome?”

“Jordana.”

“Certo. É sua primeira vez aqui, Jordana?”

“Sim. Quer dizer, que eu resolvo ir adiante com o tratamento, sim.”

“Então você ainda não tem um prontuário, ou tem?”

“Acho que não. Da primeira vez que estive aqui, não tinha nem noção de onde estava... Sei que tentaram falar comigo, mas não tenho muita ideia do que aconteceu” – Jordana teve um sorriso nervoso. Ainda assim, estranhamente, se sentia muito à vontade para falar de coisas tão embaraçosas diante daquela moça de voz mansa, modos delicados, olhos negros gentis por trás dos óculos. “A idade fez bem a ela”, concluiu em pensamento.

“Entendi. Então, vamos ter que fazer alguns procedimentos para o seu acolhimento aqui, preencher os formulários e realizar alguns exames. Tudo bem para você?”

Jordana meneou a cabeça em silêncio, com um sorriso.

“A propósito, meu nome é Núria, eu sou enfermeira” – ela sorriu de leve também.

“Eu sei.”

“Ah, você deve ter visto aqui, né?” – Núria mexeu no crachá.

“Será possível mesmo que ela não se lembra de mim?”, Jordana se chateou um pouco. Depois, pensou melhor: “Acho que aquela mãe racista dela nunca deixou que ela me visse muito bem, é verdade... Era só eu ‘apontar’ no portão delas e a mulherzinha falava: ‘Já pra dentro, Núria! Pegue todas as suas coisas!’, e acho que ela obedecia de medo...”

“Eu te conheço de algum lugar...” – Núria interrompeu os pensamentos da paciente, surpreendendo-a.

Jordana sorriu.

“Você se lembra da Fátima?”

“Fátima... Fátima... Tinha uma mulher com esse nome que ia em casa fazer diárias de vez em quando... Olha só! Você se parece muito com ela, pensando bem!” – os olhos de Núria esquadrinharam o rosto de Jordana com mais minúcia.

“Eu sou filha dela” – o sorriso de Jordana foi natural, descontraído, como há muito tempo não era.

“Estranho... Eu sei que a Fátima tinha uma filha, mas não me lembrava dela... Você também tem um irmão, não é? Pelo menos foi o que a Fátima me disse, um dia. Minha memória dessa época não é das melhores, me perdoe!” – Núria se desculpou com um sorriso tímido.

“Imagine! Tenho um irmão sim” – Jordana resolveu não tocar no motivo espinhoso pelo qual Núria era apartada de sua presença.

“E sua mãe, como está?”

O sorriso de Jordana murchou.

“Acho que, pelo fato de eu ter que vir aqui, ela não está muito bem não, né...”

“Entendo... Desculpe, até me esqueci de perguntar o motivo pelo qual você veio!”

“Preciso parar com a cocaína” – a voz de Jordana saiu num fiozinho desta vez.

“Hmn.” – Núria retomou seu ar profissional, enquanto começava a anotar os dados de sua antiga vizinha pelos documentos que esta apresentou – “E quando foi a última vez que você usou?”

Um longo silêncio. Em seguida, um suspiro sofrido.

Mesmo fragilizada, pálida, com aquele ar confuso, triste e culpado, ainda era uma mulher jovem tão linda... “Foco, Núria, você não está aqui pra pensar nessas coisas! Respeite a paciente!” recriminou-se.

“Pra falar a verdade... Esta madrugada. Não quero mentir, mas o efeito tá passando, e eu tô sentindo vontade de cheirar de novo...”

Os olhos de pupilas dilatadas e íris cor de mogno de Jordana se encheram de água.

 

Jordana estava em uma maca, no ambulatório da UPA. Uma ampola de soro com sedativo gotejava, o líquido entrando lentamente em seu braço. Sentia vontade de fechar os olhos e dormir.

Ainda guardava a impressão da mãozinha fria de Núria segurando a sua (ela se desculpou toda fofinha, dizendo que era friorenta no inverno), enquanto esperavam, junto com o psiquiatra, pela ambulância. Aquela mesma mãozinha de fada colheu seu sangue com tanta delicadeza, que desta vez Jordana não teve ímpetos de gritar e sair correndo ao ver a agulha entrando em sua veia.

A conversa com o Dr. Dirceu também foi animadora. Era um senhor alto, grisalho, de óculos, cuja voz grave e veludosa passava confiança. Tratou-a quase com o carinho paternal de um pediatra. Diferente de outros médicos psiquiatras que Jordana conheceu ao longo desses anos tentando se desintoxicar, ele parecia muito mais humano.

Trouxe em sua bolsa o endereço do NA da cidade, escrito com a letra caprichosa de Núria em um papelzinho cor de rosa. E deixou a ela e ao Doutor a promessa de que retornaria para iniciar de verdade seu tratamento desta vez.

Estava tão serena e feliz consigo mesma por não ser necessário que a mandassem para uma internação em hospital psiquiátrico, segundo o Dr. Dirceu e a médica plantonista da UPA, que finalmente cedeu e cerrou as pálpebras. “Só é preciso que você venha aqui todos os dias, pra eu te avaliar, e para você começar sua terapia. Além disso, têm várias atividades que você pode fazer, que vão ocupar sua mente, e mandar essas ‘minhocas’ todas da sua cabeça pra horta daqui do CAPS, onde é o lugar delas, você vai ver!”, completou ele bem-humorado, fazendo alusão a uma fala de Jordana, que se referia a suas paranoias como “minhocas na cabeça”. Ela e Núria sorriram.

Seus pensamentos, antes de cair em um sono bom, rodeavam a figura angelical de Núria, meiga e confiante, dizendo para Jordana não ter medo, que tudo daria certo, e que ela estava a seu lado a partir de agora.

 

“Oi, meu nome é Jordana.”

“Oi Jordana!”

“Tenho quase vinte e seis anos, vou completar daqui dois meses. Espero que ninguém se aborreça se eu começar lá da minha infância. Não usava droga não, mas acho que foi lá que a merd* toda começou, tá ligado? As primeiras lembranças de vida que eu tenho, eu vivia numa casa miserável na periferia. Vila Y, quem aqui conhece? Pois é irmão, o baguio é foda lá. Cê sabe. Vi minha mãe apanhar muito. Cabo de vassoura, fio de rádio velho, que meu pai arrebentou na parede antes de descer o cacete nela, muito tapão na cara, soco chute, essas coisas. Eu nem gosto de lembrar. Eu me escondia onde dava, irmão, porque muitas vezes sobrava pra mim. Ia na casa de uma vizinha, ou ficava lá no fundo do quintal de casa quando a vizinha não estava. Lugar escuro, sem luz nenhuma. Só ia pra casa quando sabia que meu pai não estava ou já tinha ido dormir.”

“Eu tenho umas cicatrizes aqui no braço direito e um monte nas costas: só lanhada de um pedaço de pau, e uma cinta que meu pai deu em mim na única vez que fui tentar tirar ele de cima de minha mãe. Ela apanhou grávida até. Não sei se quando tava grávida de mim, porque ela nunca falou nada, mas do meu irmão, eu mesma vi.”

“E meu pai não era dos que pediam desculpa, dizendo que ia mudar, porr* nenhuma. Ele é preto também, mas tem a pele bem clara, então dizia quase todo dia pra minha mãe: ‘Não sei por que fui casar com essa nega feia aí, e tive essa neguinha! Tivesse casado com a fulana, ciclana, loira, de olho azul, teria filhos muito mais bonitos.’ Essa foi a primeira ‘lição’ que tive em casa que gente da minha cor não é vista como gente. Quanto mais escura, como minha mãe é, pior, tá ligado? Então...”

“Um dia, graças a Deus, minha mãe conseguiu fugir comigo. Ela tava com a barriga enorme, não faltava muito pro meu irmão nascer. Fomos pra casa da minha vó e do meu avô, os pais dela. Minha vó Lindalva, que eu amo pra sempre, que tá com Deus agora” – seus olhos marejaram, sua voz falhou um pouco – “recebeu a gente, tava muito feliz. Acho que fazia anos que não via minha mãe. Meu vô nem ligou pra gente. Eu soube depois que ele era que nem meu pai, sabe. Tanto que nenhum filho dele ficou pra cuidar dele depois que minha vó morreu. Faz uns anos que morreu de câncer sozinho, num asilo.”

“Quando meu irmão nasceu, fomos morar com a Paula, uma prima de minha mãe. Meu pai eu nem sei, nem quero saber onde e como tá. Ele nunca quis saber da gente também, então é bom. Mas, no começo, ele era obrigado a ficar comigo, fim de semana sim, fim de semana não. Era um inferno! Ele saía de casa quando eu tava, pra beber ou com alguma mulher aí que ele arranjava às vezes. Minha avó, mãe dele, não gostava de mim, tava sempre de cara fechada quando eu ia lá. Uma vez, quando foi pentear meu cabelo, falou: ‘Manda aquela macaca vagabunda da sua mãe alisar esse bombril, que eu não sou obrigada a ficar desembaraçando não!’ Aí meu pai foi desistindo de vir me buscar, minha mãe desistindo de insistir, e a partir daí, eu fiquei um tempo em paz.”

“Entrei tarde no primeiro ano. Estava atrasada. A molecada ficava me zoando, porque eu não aprendia rápido como eles, e também porque todo mundo ali que era negro tinha que ouvir piada racista quase todo dia. Tinham alguns colegas pretos que até entravam na ‘brincadeira’, acho que pra tentar sofrer menos. Pra parecer que aquela agressão racial não doía tanto, né” – outras pessoas negras presentes na roda concordaram com a cabeça ou monossílabos – “Mas eu não era dessas. Já levei muita advertência desde o começo porque, às vezes, pegava de pau uns moleques e umas meninas que ficavam falando do meu cabelo, da minha cor, zoavam até minha mãe. Isso eu não admitia. Como eu era maior, descia a porr*da mesmo, em quem quer que fosse.”

“Eu fui crescendo, me juntando com outras meninas pretas da escola, a gente não deixava quieto quando mexiam com a gente. Mas, na maioria das vezes, quem ia pra cima era eu. Já aconteceu de uns moleques marcarem pra me pegar em grupo fora da escola, só que eu fui mais esperta, e fugi deles. Mas já apanhei muito de moleque folgado dentro da escola também. Só que eu nunca baixei a cabeça, sempre dava um jeito de foder com a vida dele depois. Teve um que levou suspensão porque eu esperei o intervalo, fui na classe sem ninguém me ver, peguei um monte de dinheiro da carteira de uma menina e coloquei na mochila dele; fiz uma denúncia anônima pra ela, escrevi um bilhete disfarçando a letra. Ele se deu mal porque, apesar de estudar em escola pública, a mina era filhinha de papai, então já viu...”

“A vida às vezes te faz de vítima, mas na minha mente, o único jeito de não virar caça era ser a caçadora. Eu acabei sendo expulsa dessa escola, mas pra onde eu fui, aprendi isso na prática. Era escola de periferia, só tinha os crias, não tinha playboy, eu tava entre os meus. Aí, pra não ficar caro pegar busão direto, porque não tinha passe de estudante naquela época na cidade, minha mãe pegou eu e meu irmão e fomos morar no outro lado da cidade.”

“Foi foda me afastar de meu primo, o filho da Paula, que hoje tá bem de vida e me ajudou muito financeiramente Mas naquele tempo eles eram fodidos de grana como nós. Esse primo sempre foi meu exemplo. Com ele eu tive ainda mais coragem de ser quem eu era. Ele foi o primeiro a saber da minha sexualidade, nunca me julgou, me apoiou desde o primeiro momento. Geral gostava dele lá, não tinha inimigos.

“A parte ruim é que acabei experimentando um baseado que ele me ofereceu. Até que eu não fumava tanto assim, mas se soubesse o rumo que minha vida ia tomar, tinha falado na hora pra ele, quando ele me estendeu o beck: ‘Não, tô de boa, cara’. Não é que todo mundo que fuma maconha vai cair em drogas mais pesadas um dia, vai virar viciado, porr* nenhuma! Cada caso é um caso, depende muito da vida que você teve, onde cê foi criado, e se seu cérebro, seu corpo gosta daquilo. Por exemplo, já experimentei pedra, balinha, selo, cogumelo, gostei, mas não continuei. Descobri que meu negócio era a sensação de poder e de que tava tudo sob controle quando eu dava tiro. E, no meu caso, com certeza tudo começou ali, nas rodas de skatistas amigos do meu primo, fumando com os caras.”

“Pra onde eu me mudei rolava droga ainda mais abertamente que no bairro do meu primo. Minha história com o pó começou quando minha mãe descobriu sobre mim, sobre eu gostar de mulher. Vixe, foi foda, mano! Ela nunca ergueu a mão pra mim, mas naquele dia, eu quase apanhei. Fazia tempo que não apanhava de ninguém.”

“Ela virou a cara, não falava mais comigo. A última frase que eu ouvi, depois do esporro dela, foi: ‘se quer ser mulher-macho e ficar de putaria por aí, não vai mais ser com meu dinheiro não! Sai da minha casa!’ larguei os estudos, fiquei uns meses na casa da prima Paula, né, que era na frente da edícula onde a gente morava antes. Meu primo já tinha ido pra Sampa, tava trampando lá, tinha um quarto vago na casa dela.”

“Arrumei um serviço de estoquista no supermercado do bairro, depois fui pro caixa. Trabalhava todo dia, folgava na terça, e nesses dias ia beber, até que um chegado meu falou pra eu experimentar a vodca que ele batizou com cocaína. Daí pra frente, foi só ladeira abaixo. Comecei a cheirar também.”

“Eu não culpo meu primo, porque quando ele tava aqui, ele me protegia de tudo e de todos. A gente só torrava um mato bem de vez em quando, ele nunca me apresentou nada além disso. Eu entrei nessa sozinha. Tava machucada pelo que minha mãe disse, e pá, mas não foi culpa dela também não.”

“Depois de um tempo, ela e eu voltamos a ‘se’ falar. A Paula me ajudou muito, conversou pra caralh* com ela, e aos poucos, minha mãe foi amolecendo. Não aceitou logo de cara: depois que eu voltei pra casa, eu não podia aparecer com uma mina na frente dela de jeito nenhum, levar lá em casa, nada. Mas fui ganhando o respeito dela; ela viu que, apesar de eu ter deixado o ensino médio, tava dando duro sozinha. Fiz o supletivo aos dezenove anos, pra terminar o segundo e o terceiro ano do ensino médio, comecei a trampar em umas lojas de roupa no centro, e aí entrei numa empresa que fazia financiamentos, empréstimos e consórcio.”

“Eu tinha diminuído um pouco o uso de pó, mas o estresse de ter que atingir metas naquele trabalho começou a mexer comigo. Foi lá que eu encontrei minha primeira namorada também. Nunca tinha tido uma relação séria com ninguém até então.”

“Aí, minha mãe até gostou de conhecê-la: ela era uma moça séria, já tinha sido casada, tinha um filho, era responsável e pé no chão. Minha mãe é assim também, as duas se deram bem logo de cara” – Jordana sorriu.

“Eu segurava a onda, pensava: ‘Porr*, tá tudo bem agora, cê tá vendendo bem, não precisa se drogar’. Eu pensava até em me juntar com ela, criar o menino como se fosse meu também, mas ela não queria assumir nada. A família do ex dela, me perdoe se houver algum cristão aqui, era um bando de crente filho da puta. O ex colocou todos os bens dele no nome da mãe e de uma irmã só pra pagar uma mixaria de pensão. Se soubesse que ela tava namorando comigo, ia querer tirar o menino dela, e provavelmente deixar pra mãe dele criar, sabe como é esse negócio, tá ligado? Então...”

“A merd* começou quando meu primo veio de Sampa e eu fui com ele pra uma festinha particular no hotel onde ele tava hospedado. Minha namorada não quis ir, eu respeitei, e fui. Só que, nesse dia, eu tava tão feliz, que cheirei no meio do show, escondida. Nem sei como ela não percebeu. É que meu primo tinha uns parceiros de trabalho que tinham um monte de pinos disponíveis. Imagine eu ter toda aquela farinha de graça, irmão! Cheirei algumas, e até botei uns quinze pinos ou mais na bolsa pra ter disponível depois. Meu primo tava preocupado comigo, ele não gostou muito, a gente até discutiu um pouco.”

“Cheguei em casa, fui dormir, acordei durante a tarde de um domingo. Um colega meu me convidou pra casa dele, já era de noitinha, e eu levei tudo pra gente se acabar. Aquilo foi noite adentro. Devo ter cheirado sozinha uns cinco ou seis pinos. Tive um começo de overdose.”

“Nem sei quem, nem como me largaram no hospital municipal. Xinguei muito quando acordei, porque descobri que os caras tinham roubado todo o meu estoque. Dei trabalho pros enfermeiros que foram me conter, até que um médico veio me ver e falou bravo: ‘se você não calar a boca, chamo a polícia agora, e você sai daqui algemada, em abstinência mesmo!’ Minha mãe e minha namorada viram tudo.”

“Faz dois nos que eu tô tentando ficar limpa de vez. Hoje é minha terceira semana limpa. Antes, eu entrava e saía da reabilitação, lá no Nise da Silveira. Era entrar, ficar limpa, me alimentar bem, tomar os remédios certinho, sair, e ir pra biqueira de novo. Minha namorada, óbvio, não aguentou o tranco e meteu o pé, de tanto me ver recair. Também não culpo ela não, tinha um menino pra criar e uma vida muito melhor pela frente sem mim.”

“Quem permaneceu do meu lado foi minha mãe, a Paula, e meu irmão, o Rafael. Ele é um moleque responsa, tenho muito orgulho dele. Tá trabalhando e fazendo curso técnico em informática, mas quer prestar vestibular pra TI. Ele tá dando certo na vida. Acho que, de tanto me ver fazendo merd*, quis fazer tudo ao contrário” – ela teve um sorriso triste.

 

“E foi mais ou menos isso que eu falei esta semana lá no NA” – Jordana contou para Núria, enquanto esperava a chegada da professora de artesanatos para a Terapia Ocupacional do dia.

Jordana amava fazer aquelas bijuterias de pedras de acrílico ou naturais, aqueles macramês elaborados. Encontrou nisso uma possibilidade de voltar a ganhar dinheiro e não sobrecarregar mais a pobre mãe, que agora ralava o dobro pra sustentá-la, e o Rafa, que não merecia ter que bancar a irmã dependente química.

“Você é incrível, Jordana. Sabia disso?”

“É o que você diz pra todos os pacientes que vêm aqui” – desconversou, sorrindo sem graça, os olhos no chão.

“Eu não sou uma pessoa de fazer elogios fáceis assim não. Veja só: é meu trabalho atender bem aos pacientes, ser gentil com eles e encorajá-los quando estão indo bem. Mas dizer a eles que são incríveis... Isso não é coisa que se diga para qualquer um. Quando eu falo, é porque eu acho isso mesmo.”

Jordana a observou, meio desanimada:

“E por que você acha que uma pessoa comum feito eu, que nunca fez nada de especial na vida, é incrível?”

“E por que você acha que não é?”

“Eu só fiz besteira! Tem gente que passa coisa pior por aí, todo dia, toda hora, e nem por isso cai no vício como eu...”

“Essa gente, que você diz ter por aí, é que sabe o que elas estão passando. Realmente, já vi casos piores que o seu, outros nem tanto, mas a verdade é que você é muito mais do que acha que é. Eu consigo te ver além dessa persona que você criou por trás do vício” – Núria tomou coragem, e continuou – “Tem uma espécie de dito comum, que eu acho um absurdo: pessoas que têm problemas com cocaína e seus derivados são as mais egoístas e difíceis de lidar. Por tudo o que você me relatou, eu não enxergo nada disso: eu vejo uma mulher doce, alegre, carismática, amorosa e grata com os seus. Você até mesmo ajuda com os pacientes mais deprimidos, os faz rir, quando nem mesmo nós, nem a equipe da TO, jamais conseguimos!”

“Acho eu criei essa persona, como você disse, de ser muito ‘palhaça’, fazer zoeira e ganhar a amizade das pessoas, para esconder minhas inseguranças.”

“É também porque você é assim, na realidade. Olha só: com sua história, você poderia ter se tornado uma pessoa extremamente violenta, má, sem empatia, nem sentimentos pelos outros, e você está longe de ser assim.”

“Você parece a Dra. Rebeca falando” – Jordana arrancou um pequeno riso da enfermeira. Provocou, também sorrindo: – “Será que vocês não decoram algumas dúzias de frases entre vocês pra repetir aos pacientes não?”

“Ops, não era pra você descobrir!” – foi a vez da paciente rir de Núria – “Olha, isso tudo que eu tô falando pode até soar clichê, você pode ter ouvido mil vezes na terapia, em qualquer outro lugar, mas é porque todo nós estamos empenhados que vocês, as pessoas de quem cuidamos com tanto carinho, vejam a si mesmos como são. Não é bajulação barata não, pode acreditar!”

Jordana ficou um tempo observando as folhagens roxas do jardim bem cuidado dos fundos. Mordeu o lábio inferior, deliberando se deveria dizer o que estava pensando naquele momento, ou não.

“Sabe que eu acho que você é até mais incrível que eu, em todos os sentidos?”

“Nossa, obrigada!” – Núria sorriu brincalhona, mas seu coração pulou várias batidas, mais acelerado – “Mas a quê devo essa honra?”

Depois de um breve silêncio, Jordana optou por não expor o que sabia sobre Núria e sua complicada vida familiar.

“Não deve ser fácil lidar com tantos problemas tão graves aqui, e continuar tão firme, incansável, dedicando todo esse afeto e atenção a tantos casos perdidos...”

“Se você soubesse...”, Núria lembrou-se de que ela mesma poderia ser mais uma entre aqueles pacientes, se algo de muito ruim lhe acontecesse, ou ela parasse seu tratamento. Preferiu dizer parte da verdade:

“Eu também faço acompanhamento terapêutico. Para nós, da área de saúde mental, é obrigatório que estejamos com nossa mente e nosso emocional em dia” – “Nem que seja à base de antidepressivos e benzodiazepínicos fortes...”, completou para si mesma. Depois de pensar um pouco, continuou: – “Aliás, se todas as pessoas no mundo, até as que pensam que são saudáveis mentalmente, se dedicassem um tempinho para fazer uma autoanálise, o mundo não estaria tão cheio de clínicas psiquiátricas e de desintoxicação. Muita gente vai para a terapia ou para a internação justamente por culpa de pessoas que deveriam ter se tratado, e não o fizeram.”

“Quem se acha ‘normal’ não vai pisar nem por decreto num consultório de psicólogo ou psiquiatra. Eu acho que esses são os piores, os ‘normais’: negam tudo, dizem que tá tudo bem, e fodem com a vida dos outros, às vezes sem perceber...”

“Eu já penso que o ‘normal’ não existe. Neste mundo onde tanta coisa ruim acontece, tanta gente sem caráter ocupa posições de liderança, até de nações, inclusive, o que é ser normal? Se for para ser como eles, então eu acho que então tá tudo bem não ser normal” – Núria concluiu, também observando o jardim.

Jordana concordou, meneando a cabeça. Sob aquela luz vespertina, que entrava obliquamente pela porta envidraçada, Núria tinha um aspecto etéreo, meio sonhador.

Percebendo que era observada, a enfermeira ergueu as sobrancelhas e olhou de soslaio para Jordana.

“A Vera chegou já faz quase dez minutos, e você ainda não foi para a aula dela.”

“Putz, é verdade! Foi mal! Mas não me arrependo. Falar com você sempre me faz muito bem” – Jordana se afastou com seu belo sorriso simétrico, que fez Núria se esquecer de respirar por alguns segundos.

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Acredito que é a partir de agora que algo muito lindo vai começar a florescer. Me digam o que vocês acham!  <3<3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 


Comentar este capítulo:
[Faça o login para poder comentar]
  • Capítulo anterior
  • Próximo capítulo

Comentários para 11 - Capitulo 11 - Tudo bem não ser normal:
Marta Andrade dos Santos
Marta Andrade dos Santos

Em: 09/05/2023

Complicado...


Billie Ramone

Billie Ramone Em: 13/05/2023 Autora da história
Complicado, imperfeitinho, mas cheio de amor :)))))))))))))

E aí o que tá achando?


Responder

[Faça o login para poder comentar]

thays_
thays_

Em: 09/05/2023

As pessoas podem falar o que for, mas esses grupos dos Anônimos são ótimos, funcionam muito bem qdo a pessoa consegue levar a sério. Espero do fundo do coração que a Jordana fique bem, gosto mto da personagem dela. E a Núria venceu muito na vida por ter chegado aonde chegou! Achei muito foda o nome do lugar ser Nise da Silveira, ela fez uma super revolução na saúde mental e na forma de lidar com os pacientes e isso casa muitíssimo bem com o que você está propondo em sua narrativa. Eu simplesmente AMEI a forma como você uniu essas duas. Não vejo a hora de ler o próximo capítulo! Por último, o título desse capítulo me lembrou uma música que tô ouvindo quase todo dia da Jessie J chamada Who You Are. Espero uma outra atualização em breve. Na minha história estou tendo uns bloqueios criativos, junto com uma fusão de coisas que estão acontecendo por aqui, mas em breve atualizo kkk


Billie Ramone

Billie Ramone Em: 13/05/2023 Autora da história
Nise da Silveira é nossa Deusa mais injustiçada e subestimada da Ciência brasileira! Merecia mais!
Estou tendo até certas desavenças com minhas fontes sobre como continuar abordando os problemas da Jordana, acredite se quiser! Por isso andei meio sumida ksksksks
Sobre a Núria, border é foda... ela pode ter vencido na vida de certa forma, mas lamento dizer que isso não é suficiente. esse transtorno deixa a pessoa numa montanha russa constante até conseguir estabilizar, SE estabilizar em alguns casos :(((((((
Ainda vai ter uma questão ética profissional aí, que vc vai ver no capítulo seguinte. Sobre o nome do capítulo, sugiro vc ver um drama coreano que tem esse título, mas reserve muitos lencinhos ksksksks
Fica tranquila, bloqueios são normais, e como eu contei antes, os meus nem estão sendo criativos, mas de opiniões diferentes sobre como tratar esses assuntos com verossimilhança. Estou amando a fofolice da Amanda e da Duda! Leve seu tempo!


Responder

[Faça o login para poder comentar]

Informar violação das regras

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:

Logo

Lettera é um projeto de Cristiane Schwinden

E-mail: contato@projetolettera.com.br

Todas as histórias deste site e os comentários dos leitores sao de inteira responsabilidade de seus autores.

Sua conta

  • Login
  • Esqueci a senha
  • Cadastre-se
  • Logout

Navegue

  • Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Ranking
  • Autores
  • Membros
  • Promoções
  • Regras
  • Ajuda
  • Quem Somos
  • Como doar
  • Loja / Livros
  • Notícias
  • Fale Conosco
© Desenvolvido por Cristiane Schwinden - Porttal Web