São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza chorava copiosamente no colo do pai.

 

--Oh, meu rebentinho empoderado... – ninava a filha nos braços – Não há dor mais pungente para um peito varonil de pai do que ver a única herdeira cromossomial desmanchando-se em prantos tão sofridos! – beijou a cabeça da negra – Oh, Brigadeiro Celestial do Ar, orientai-me quanto ao melhor procedimento! – olhou para cima – Como poderia eu acalantar este coração feminil que lateja ao peso dos grilhões da senda humana?

 

--Ai... – a mulher desvencilhou-se lentamente do abraço e fungou – Não posso e nem devo chorar o dia inteiro! – pegou um lenço de papel para limpar o nariz – Os obstáculos surgem, então a gente redireciona a rota. – olhou para o pai – Não há mal que dure eternamente, né? – perguntou com tristeza

 

--Decerto... – respondeu condoído – Mas... confesso-vos que ainda não compreendi o porquê de tudo isto! – olhava para Elza – Não estava consensado que vós serieis uma das conselheiras do Gabinete do Ministério da Defesa? E portanto, não vos seria necessário o deslocamento para habitar em Brasília? – lembrava-se do que ouviu da filha – Por que tal súbita mudança no inopinado, obrigando-vos a deixar o Instituto, bem como todos os projetos sob a vossa coordenação?

 

Pegou outro lenço e secou o rosto com ele. – Porque isso foi um ataque pessoal que veio de cima, pai! E de fora! – levantou-se e andou um pouco pela sala – Sei muito bem quem está por trás disso e porquê! – parou diante da janela

 

--Explicai-vos, por obséquio! – queria entender

 

--Castrodeza Craig! – respondeu de pronto – Ela queria me atacar e me deu um golpe duríssimo! – pensava na mulher – Usou suas influências pra me tirar do lugar onde amo trabalhar e, consequentemente, me tirar totalmente da pesquisa! – balançou a cabeça contrariada – Conseguiu me reduzir a atividades quase que essencialmente políticas! – cruzou os braços – “Maldita!” – pensou revoltada

 

Estranhou o que ouviu. – Mas, tal senhora não havia se encantado com vossa competência?? Não entendo tal guinada tão brusca!

 

Gastou uns segundos antes de responder. – Pai, a verdade é que ela queria um algo mais que não aconteceu! – olhava para fora da janela – E como se sentiu usada por mim, quis vingança. – deduziu – É a única explicação que eu tenho. – não queria entrar em detalhes

 

--Oh! – surpreendeu-se com o que ouviu – Triste saber que dentre seres femininos que amam suas iguais tais pequenices também se deem! – levantou-se do sofá e foi até a filha – Diante do exposto, qual será vossa decisão? – questionou curioso – Aceitarás tal impositura ou negar-vos-á o trabalho na capital?

 

--Por mais que me doa, vou acatar a decisão sem dar uma queixa sequer! – virou-se de frente para o homem – Tudo tem um preço. Se pra seguir com o que pretendo fazer o preço for esse, então eu pago! – respondeu com decisão – Vou pra Brasília e um dia, se Deus quiser, eu volto!

 

Balançou a cabeça concordando. – Não importa onde estejais, lembrai-vos que o Excelso Brigadeiro Celestial estará sempre convosco! – afirmou emocionado – E vosso pai, unido a vós pelo pensamento e pelo coração!

 

Sorriu com os olhos marejados. – Eu sei, pai! – abraçou-o com carinho – Posso ficar longe, mas estarei sempre perto! – prometeu

 

Pai e filha mais uma vez selaram seu amor e amizade em um abraço apertado.

 

***

 

--Eu fiquei pasma com essa súbita transferência pra Brasília! – Luiza dizia para a colega de trabalho – Fizeram essa festa de despedida pra você aqui e tal, todo mundo agindo como se tudo isso fosse super natural, mas eu sei que a notícia pegou o Instituto de surpresa! – olhava para Elza – Embora a maioria esteja orgulhosíssima que você vai trabalhar pertinho da cúpula daquela... Lenda! – fez um bico discreto e bebeu um gole de suco

 

Acabou achando graça. – E você também deve tá se questionando em como e porque fui parar no meio das Lendas. – afirmou em voz mais baixa – Mas foi uma consequência natural da adidância. – mentiu – Novamente, peço que não me faça perguntas e confie em mim. – olhava para a outra – Eventualmente vou precisar da sua ajuda e espero poder contar com ela sob máxima discrição. – pediu

 

Balançou a cabeça concordando. – Você sempre foi uma patriota. Confio em seu julgamento e no que precisar de mim, estarei aqui. – respondeu com a verdade – Mesmo que certas atitudes suas me deem um nó na cabeça! – bebeu mais um gole de suco – Jamais imaginava que justo você topasse deixar o Instituto. Ainda mais por causa do Montanauro!

 

--Às vezes é necessário renunciar ao que se ama... – respondeu pensativa – Mas, te peço confiança! – mirou nos olhos da outra – Juro que não vou trair nada que consideramos precioso! Sou fiel aos princípios da nossa Força Armada e continuo na defesa intransigente da pátria!

 

--Confio na minha liderança! – referia-se a Elza – Sabe que farei qualquer coisa que me peça! – afirmou convicta – E entendo perfeitamente que... às vezes é necessário renunciar ao que se ama. – pausou por uns instantes – Especialmente se percebemos que é o melhor a fazer. – afirmou com certa tristeza

 

Elza percebeu que Luiza falava sobre elas, mas disfarçou o constrangimento. -- Obrigada. – respondeu simplesmente e bebeu um gole de suco

 

--Minhas caras, com licença? – Goulart aproximou-se cuidadoso – Será que... – olhou para Luiza – Eu poderia ter uma conversa mais particular com a nossa tenente coronel? – perguntou respeitoso

 

--Certamente, brigadeiro. – concordou de pronto e se afastou

 

--Tenho que aproveitar porque daqui a pouco o pessoal do Instituto vai fazer fila pra lhe cumprimentar e saudar. – sorriu para Elza – Quando você se muda pra Brasília? – bebeu um gole de refrigerante

 

--Como o senhor sabe, ganhei duas semanas de licença a partir de amanhã pra me organizar, já que foi tudo muito inesperado. – serviu-se de um salgadinho – Então creio que ao final desse prazo eu esteja lá, mesmo que não tão organizada quanto gostaria. – mordeu o salgado

 

--Eu... queria que você soubesse que fiquei muito feliz por você refletir sobre tudo que eu vinha te dizendo em todo esse tempo e... – pausou brevemente -- Fiquei imensamente orgulhoso em te ver promovida e ainda fazendo parte do novo governo! – sorriu – Você só me dá orgulho, querida! – afirmou com a verdade

 

--Obrigado por se orgulhar. – respondeu com seriedade – Houve uma época em que eu confiava no senhor e por isso dava muito valor ao que dizia. – olhava para o homem – Por isso reconsiderei sobre uma série de coisas... inclusive sobre Montanauro. – mentiu

 

Constrangeu-se. – Eu mereço ouvir isso... – reconheceu – Mas eu vou fazer o meu possível e o impossível pra reconquistar sua confiança e mostrar que muito me arrependi por meus erros inaceitáveis! – falava com sinceridade – Por isso queria te fazer um pedido!

 

--Que seria? – nem desconfiava

 

--Será que... eu poderia ir junto com você pra Brasília? – pediu humildemente

 

--O que?? – engasgou-se

 

--Calma, Elza. – deu um tapinha nas costas dela – Não seria pra morar na sua casa, apenas na mesma cidade. – esclareceu – Machado vai se casar com Malu, Fernandão já tem a vida dela e o que eu sou senão um velho solitário? – olhava para a negra – Posso lhe ser útil e lhe ajudar em tudo que precisar por lá! – ofereceu – A equipe do Montanauro é exigente e você vai precisar de alguém de confiança pra delegar certas coisas.

 

“E que equipe espetaculosa!” – pensou ironizando -- Hum... – limpou os lábios com o guardanapo – Embora eu continue muitíssimo decepcionada com o senhor, reconheço que sua ajuda pode ser importante. – olhava para o homem – Desde que o senhor não fique na minha cola e não esqueça de quem está no comando aqui! – afirmou com firmeza

 

--Eu sei, Elza. – abaixou a cabeça brevemente – Eu sei...

 

Pensou um pouco antes de responder. -- Então estamos combinados. – deu o assunto por encerrado – Agora peço licença pois meus colegas estão me chamando. – sorriu educadamente

 

--Claro, claro. – concordou e a observou se afastar – “Eu vou recuperar a confiança dela!” – pensou resoluto – “Elza verá que nada perdeu em ter aquela Yara longe da vida dela e que não poderia ter feito melhor coisa que se unir ao novo governo!”

 

***

 

Elza chegava em casa e se surpreendeu ao ver Machado na sala com Fernandão e Alessandra.

 

--Nossa, que surpresa maravilhosa! – sorriu – Boa noite! – deixou a bolsa em cima da poltroninha -- Alê, como é que você vem pra São José e nem me avisa antes? – reparou que as expressões estavam fechadas – O que foi? Aconteceu alguma coisa? – olhava para os três ao mesmo tempo

 

--Deixarei que as senhoras travem vossos colóquios em particular. – Machado se levantou e prestou uma continência rápida – Com licença. – saiu da sala

 

--E aí? – cruzou os braços – Vocês vão dizer alguma coisa ou vão ficar aí caladas? – não entendia a atitude – Fernandão, por que não foi na minha festinha de despedida? – questionou – Depois saí pra confraternizar com o pessoal, mas não te vi hora nenhuma hoje.

 

--Você não me disse em momento algum que iria pra posse do Montanauro! – a sargento se levantou do sofá – Tampouco me disse que faria parte do Gabinete do Ministério da Defesa dele! – gesticulou – E desde então eu não tive oportunidade de conversar com você, porque a senhora não para nessa casa, não atende telefone e nem responde as mensagens de QQOV?. – cobrava – Pra completar, sequer me disse que ia deixar o Instituto pra ir pra Brasília fazer sei lá o que! – reclamou – Elza, será possível que você não sabe que Montanauro formou um time cheio de gente questionável? Tem pelo menos uns oito ministros investigados ou réus em ações judiciais!

 

--Eu sou menos paciente e educada do que ela, amiga! – Alessandra se levantou também – Que porr* é essa? – perguntou autoritária – Te conheço desde o tempo em que você era humilde e andava de cabeça baixa, então nem tenta botar banca de tenente coronel pra cima de mim que não rola! – gesticulou desaforada – Pode ir falando que porr* é essa porque eu não tô te entendendo! – colocou as mãos na cintura – Virou do tipo bandida agora, é? Se vendeu, mudou de lado, que merd* é essa?

 

--Também quero muito entender! – Fernandão cobrou – Negra, lésbica e ultradireitista é demais pra mim! – falava de cara feia – Só falta dizer que virou homofóbica!

 

--Ah... – Elza não sabia o que responder – “Puta merd* e agora eu falo o que?” – pensou sentindo-se encurralada – Que tal... tomarmos um chazinho antes? – propôs para ganhar tempo

 

 

Alto Alalaê Canã, estado do Amazonas / Brasília, Distrito Federal

 

Yara discursava diante dos indígenas, membros do Movimento dos Povos Originários do Brasil, do Comuna, da Igreja Católica, das Universidades Federais de Goiás e do Amazonas, além de alguns repórteres que faziam a cobertura do evento.

 

--Hoje, infelizmente, somos forçados a lembrar que há 40 anos atrás um genocídio era friamente executado aqui nessas terras. – olhava para os demais – Genocídio que exterminou a nação Kenko Wiwa, deixando apenas uma sobrevivente, que sou eu! – pausou brevemente para conter as emoções – A missionária Alice Saraíba, a outra única sobrevivente desse massacre, não vive mais entre nós. Porém as lições que sua incansável luta a favor dos povos originários nos deixaram serviram para conscientizar muitas pessoas, especialmente a mim.

 

--E você me conscientizou muito, amor. – Elza falava sozinha enquanto acompanhava ao vivo pela TV – Mais do que possa imaginar...

 

–O direito de ser é inalienável, o direito à posse das terras que são nossas é indiscutível! Esse genocídio não aconteceu por outra razão, senão pela cobiça nos territórios indígenas e nas riquezas que neles existem! – Yara destacou – Esse genocídio foi também um reflexo do profundo e culturalmente enraizado desrespeito por nós, povos indígenas, que somos vistos como atrasados e um peso para o Estado. Somos um entrave aos interesses de mineradoras, de madeireiras, do agronegócio e de exploradores de toda ordem. – denunciava – E os crimes hediondos que aconteceram aqui, poderiam ter passado sob o total desconhecimento da população brasileira, não fosse a obstinação do jovem indígena Paulo Curimatã, -- lembrava do amigo – que dedicou sua vida a denunciar a barbaridade praticada em 1979 e, na sua paixão, me arrebatou pra somar nesse esforço! – vislumbrava o rosto de Paulo em sua mente – Nosso camarada Paulo, no entanto, também não mais se encontra entre nós por ter sido vítima de um crime hediondo, mas sua morte se tornou um verdadeiro símbolo da resistência indígena contra a violência que há séculos é cometida contra nós! Um marco na luta pela retomada de todas as terras que nos pertencem! – falava com paixão

 

Elza se emocionou. – Eu nunca vou esquecer do que fizeram com aquele pobre indígena... – continuava falando sozinha

 

–Depois de muitos esforços e contando com o total apoio da Comissão Nacional dos Religiosos Católicos do Brasil, conseguimos que em 1999 o Tribunal dos Povos, sediado na Holanda, condenasse por unanimidade o nosso país pelo genocídio praticado aqui, entendendo que o governo da época instaurou um plano de nação conscientemente genocida e etnocida contra os povos originários do norte do país! – Yara continuava sua breve retrospectiva – Esse resultado influenciou e apressou o veredito que obtivemos em 2003, no processo movido no Brasil, no qual foi definido que as terras do povo Kenko Wiwa seriam novamente ocupadas pelos indígenas que por muitos anos viveram dispersos na região. – sorriu – E fosse na Holanda, fosse no Brasil, o saudoso padre Camilo, também assassinado covardemente, esteve firme e forte nessa luta em defesa dos povos originários! – lembrava do homem – Ele também deixou sua marca em todos nós!

 

--Padre Camilo... – a negra lembrava com tristeza – Ai, tio Goulart, e pensar que o sangue desse inocente mancha suas mãos... – suspirou desgostosa

 

--Por fim, no ano de 2004, as tribos foram assentadas nestas terras, sempre sob acompanhamento cuidadoso da Universidade Federal do Amazonas, da Comissão Nacional dos Religiosos Católicos do Brasil, do Partido Comuna e de todos aqueles que lutam pela causa indígena! – os olhos marejaram – Não podemos acreditar que estamos tranquilos e com a vida ganha, especialmente diante do governo atual, mas é muito importante resgatar esse histórico e comemorar as vitórias que obtivemos após tanto sofrimento! – reconheceu – Que estejamos sempre unidos sob Deus, firmes na luta pelos nossos direitos e reconhecedores daqueles que deram suas vidas por nós! – ergueu o braço esquerdo – Nação Kenko Wiwa, presente! Alice Saraíba, presente! – derramou uma lágrima – Paulo Curimatã, presente! Padre Camilo Roldó, presente! – encerrou seu discurso sob muitos aplausos e mal contendo as lágrimas

 

--Parabéns, Yara! – Elza aplaudia – Foi a sua força que moveu tudo isso! – estava emocionada – Eu te amo! – derramou uma lágrima

 

--Camarada Yara falou bonito demais! – Jurema secava os olhos com as mãos – Essa história toda é triste e emocionante! – considerou

 

--Foi exatamente por isso que consegui atrair a atenção de vários veículos de imprensa, inclusive da imprensa burguesa. – Natália estava igualmente emocionada – Essencial que o evento tivesse alguma cobertura durante um governo tão tosco quanto esse!

 

--E vocês viram? Depois da desgraça que aconteceu em 2015 na barragem da Samico, agora foi a vez de Brumadinho sofrer as consequências do descaso da mentalidade capitalista! – João dizia para as camaradas -- O rompimento de uma barragem de rejeitos de minérios administrada pela Rio Foice foi o maior acidente de trabalho do país em perda de vidas humanas e o segundo maior desastre industrial do século!

 

--Enquanto isso, tramita no Congresso um Projeto de Lei que flexibiliza o licenciamento ambiental! – Maria destacou – Por essas e outras, especialmente nós, os indígenas, temos que resistir como nunca, porque esse governo vai ser um show de horrores!

 

Yara recebia os cumprimentos de várias pessoas, mas sem que soubesse explicar por que, sua mente mantinha-se presa na lembrança de Elza. “Ela tá em outra, mulher! Esquece!” – aconselhava-se mentalmente – “Ela não deve mais pensar em você...” – respirou fundo e preparou-se para uma entrevista

 

 

Sorocaba, estado de São Paulo

 

Renata lia as notícias pelo celular e reagia falando sozinha.

 

--Puta que pariu, mataram o tal do Tuyago Lama na prisão! – arregalou os olhos – São os Justiceiros na queima de arquivo! – preparou-se para ler com mais atenção – Dias antes de ser encontrado morto em sua cela, Tuyago Lama havia denunciado Hilton Viejo, também um Justiceiro, como o responsável pelo assassinato do padre Camilo Roldó e pelo primeiro atentado contra a professora universitária e presidente do Comuna, Yara Saraíba. – lia em voz alta – Na manhã de hoje, Hilton foi detido em prisão preventiva quando tentava fugir do país pela cidade de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. – continuava lendo – Na delegacia da cidade, Hilton solicitou o recurso da Deduração Sorteada, alegando ter informações valiosas sobre o esquema das “Quebradinhas” no Rio de Janeiro, envolvendo os sete filhos do presidente Montanauro. – parou de ler – Porr*, essa história tá dando o que falar! É uma sujeira atrás da outra! – considerou – Mas eu não tenho que me meter, não tenho nada com isso e minha vida agora é aqui, cuidando da rentabilidade da produção de uva Itália da família! – deixou o celular sobre a mesa e olhou para a tela do notebook – Simbora trabalhar, Renata. Esquece dessas merd*s! – aconselhou a si mesma

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Yara e Jurema arrumavam os materiais de panfletagem que haviam sido recém entregues pela gráfica na sede do Comuna.

 

--Não era nem pra eu estar aqui, sabia? – Yara dizia enquanto separava os pacotes – Tô com uma pregada de trem pra resolver na faculdade, prova de aluno pra corrigir e mais a papelada dos estudantes de iniciação científica, mestrado e doutorado pra mandar pras agências de fomento. – comentava – Aí depois a professora aqui fica trabalhando até de madrugada e não sabe porquê! – riu de si mesma – Eu devo ser masoquista, não tem outra explicação!

 

--Também tenho mil provas pra corrigir, planos de aula pra atualizar, problemas da escola que a prefeitura ainda não resolveu... – Jurema respondeu enquanto separava o material – Somos duas masoquistas apaixonadas pela militância, mas o importante é que no final cumprimos com todas as nossas obrigações, não é? – olhou brevemente para a outra e sorriu

 

--Pelo menos nisso a gente sai vitoriosa! – brincou e elas riram – Nesses quatro de anos que Montanauro e sua trupe ficarão no poder, creio que acumularemos tantas derrotas que vamos precisar lembrar de cada vitória, por mais simples que seja! – considerou – Senão a gente vai pirar e cair em desgosto! – concluiu sua parte do trabalho – Sabia que o Brasil acaba de perder o certificado internacional de país livre do sarampo? – balançou a cabeça desgostosa – É descida acelerada ladeira abaixo!

 

--O que me deixa mais em choque em tudo isso é ver mulheres, negros e LGBTs somando nas fileiras do fascismo brasileiro! – Jurema concluiu sua parte também – Quando camarada Celeste me disse que aquela Elza foi transferida pra Brasília pra ficar pertinho do ninho de Montanauro fiquei em choque!

 

--Elza foi transferida pra Brasília? – não sabia – E como é que camarada Celeste soube disso? – olhava para a outra

 

Arrependeu-se por ter falado. – É que ela lê o periódico que os militares de São José publicam. – explicou – Era a Elza que publicava, hoje em dia não sei. – desviou o olhar e se afastou – Mas o jornalzinho parabenizou ela pelas conquistas e informou sobre a transferência. – desejava mudar de assunto – Vou buscar as caixas vazias lá em cima e daí a gente vai embora. – olhou para o relógio – Daqui a pouco vai dar meia noite. – saiu do almoxarifado

 

“Ela aceitou deixar o Instituto!” – pensou boquiaberta – “E sempre me disse que não faria isso porque era o lugar em que amava trabalhar...” – lembrava-se do que ouvira da ex – “Ela nunca esteve disposta a abrir mão de nada por nós e no entanto...” – constatou decepcionada – Deixa eu ajudar Jurema com essas caixas pra gente ir embora logo! – decidiu ao sair do almoxarifado

 

***

 

--Isso são horas? – Kedima cruzou os braços assim que Yara entrou em casa – Além de tudo dando mau exemplo pros outros e chegando mais tarde que o horário limite! – ralhou de cara feia

 

--Mil perdões, dona Kedma! – abraçou a idosa com carinho e beijou a testa dela – Mas a gente precisava separar um material, os outros já estavam comprometidos com inúmeras tarefas e nisso o tempo voou. – dizia a verdade – Não vai se repetir, eu prometo. Se passar da hora, dormirei na sede como sempre fiz. – olhava para idosa – É que hoje eu realmente precisava dormir em casa. – estava triste por causa do que soube sobre Elza

 

--Hum... – não fez comentários – Vá cuidar da vida e tome tento! – aconselhou de cara feia – Ah, pedi pra Marcelo deixar um pacote na sua cama. – lembrou-se – Chegou hoje cedo. Deixaram na porta do abrigo. – parou para analisar a situação – Ih, pensando bem, abra com cuidado pra ver se é bomba! – arregalou os olhos – E não vá cheirar nada, porque pode ser aqueles bicho biológico que já andaram mandando por aí pra matar o povo!

 

Achou graça do que ouviu. – Pode deixar. – respondeu com carinho – Terei máximo cuidado! -- garantiu

 

***

 

Após tomar banho e comer uma fruta, Yara deu atenção ao pacote que a aguardava. O embrulho não tinha remetente e era nítido que não havia sido despachado via correios. Abriu a caixa com desconfiança e o que encontrou foi uma série de papéis.

 

--Mas o que é isso? – examinava com cuidado – Denúncias sobre funcionárias fantasma a serviço de Montanauro, -- constatava – gastos do governo com publicidade... – arregalou os olhos – Meu Deus, já aumentou em 63%?? E ainda estamos em abril! – falava consigo mesma – Hum, então foi assim que ele tentou desacreditar os dados de desemprego do Instituto Brasileiro de Estatística? – lia rapidamente – Olha só isso, o tal do esquema das Quebradinhas... – observava os documentos – Nossa, que cheque gordo depositado na conta da primeira dama! – sorriu satisfeita – Ah, mas o Comuna vai fazer bom uso disso aqui! – riu brevemente – Com certeza vai! – estava empolgada – Vou juntar tudo isso com nosso material que critica a nova regra de cálculo do salário mínimo, que reduz a renda do povo, e com os folhetos que denunciam a tentativa de tipificar como terrorismo o direito de luta pela terra! – várias ideias povoavam seus pensamentos

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

--Não dá pra ter paciência com aquela mulher! – Goulart reclamava – Yara não trabalha, não faz nada útil na vida? – gesticulava furioso – Não sei como tem tempo pra viver aí, fazendo denúncias contra o governo! – andava de um lado a outro da sala de Elza – Agora a imprensa não para de falar no tal esquema das Quebradinhas e de um cheque polpudo que pretensamente foi depositado na conta da primeira dama! – lembrava do caso – Além das pretensas funcionárias fantasma e mais as outras baboseiras que Yara e o Partido Comuna andaram denunciando por aí! – parou no meio da sala e cruzou os braços – Acredita que até a comunidade árabe do Brasil se juntou com o Comuna por causa da visita que Montanauro fez a Israel? – comentou com desgosto – Aquela mulher é uma indígena terrorista e manipuladora! – acusou – Fico me perguntando como aqueles comunistas conseguiram acesso a tanta informação que ninguém tinha! – comentou desconfiado -- “Será que Elza tá por trás disso?” – pensou intrigado

 

--Ela não teria tido como denunciar se o presidente não fosse tão mal assessorado! – a negra respondeu calmamente ao se levantar do sofá – Sempre achei que tínhamos nomes melhores no meio dos militares, mas decidi apoiar Montanauro porque a Caça Rato me deixou claro que a esquerda acabou com o Brasil! – mentia – E ele era a única solução pra estancar com aquela sangria corrupta! – aproximou-se do homem – Porém, quando se tem apoiadores como os Justiceiros e quando se escolhem ministros do tipo que ele escolheu, fica-se sujeito a isso! – parou diante de Goulart – Quanto falta pro senhor perceber que são os Justiceiros por trás de tudo?

 

--Como assim? – não entendia o raciocínio

 

--Quem praticou os atentados? Quem começou a falar do tal esquema das Quebradinhas? – gesticulou – Os Justiceiros foram expostos e agora trabalham pra destruir a imagem do governo! – acusou

 

Pensava no que ouviu. – Tem sentido... – olhava para Elza – Você acha que os Justiceiros seriam traidores o suficiente pra municiar os comunistas com tudo que eles vêm cuspindo?

 

Achou graça. – Esqueceu do que fizeram com o senhor? – provocou – Ora, tio Goulart! Às vezes fico decepcionada com sua falta de perspicácia. – caminhou em direção a cozinha – Por que não pede àquele seu grupo de patriotas pra investigar isso? – propôs ao abrir a geladeira – Ou aos seus amigos da Inteligência? – tirou um cacho de uvas

 

--Não faço mais parte daquele grupo de patriotas desde que percebi que eles me deixaram na mão. – foi até a cozinha e se encostou no portal – E quanto ao pessoal da Inteligência, após a mudança de governo os colegas foram todos trocados em suas posições. Conheço quase ninguém mais que possa ajudar. – dizia a verdade – Só tenho agora alguns amigos em posições diplomáticas nos Estados Unidos.

 

“Muito bom saber disso!” – pensou disfarçando a satisfação – Então vou aproveitar e lhe pedir um favor. – começou a comer as uvas – Diga a eles que passarei a postar nas minhas redes sociais alguns objetivos visados pelo governo que poderiam requerer algum apoio dos Estados Unidos. – destacou uma parte do cacho e entregou ao homem – E que eles acompanhem e mexam os pauzinhos por lá.

 

Recebeu as frutas estranhando o pedido. – Ora, Elza, você passou dois anos em adidância! Por que não pode por si mesma mexer esses pauzinhos? – perguntou sem entender

 

--Primeiro porque Ronald Rump já mudou quase toda equipe com a qual lidei. – gesticulou – E segundo porque ele e Castrodeza têm trocado algumas farpas, segundo soube por ela. – mentia – Então se ela quiser influenciar e estiver sozinha nesse sentido, não irá conseguir grande coisa. Capaz dos puxa sacos do Rump botarem areia! – comeu algumas uvas

 

--Hum... você tá certa. – concordou – A situação lá anda meio caótica. – considerou – Eu vou acionar meus contatos e eles vão somar com a Castrodeza em prol do nosso governo! – decidiu – Deixe comigo! – comeu duas uvas

 

--É isso aí! – sorriu satisfeita

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

Castrodeza lia atentamente as postagens de Elza com a ajuda de um tradutor automático.

 

“Então ela deseja que um dos filhos do presidente seja indicado pra embaixada do Brasil em Washington?” – pensava – “Não será, meu bem!” – decidiu de imediato – “O que é isso aqui?” – usava o tradutor – “Missão diplomática do presidente nos Estados Unidos e depois uma ida para o Japão?” – sorriu – “Farei esse avião presidencial ser tão inspecionado que se houver um rebite fora do lugar isso será encontrado!” – olhava para a tela do computador – All of you want, all of you won’t get! (Tudo que você quer, tudo que você não terá!) – afirmou vingativa

 

 

Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro

 

Após a cerimônia religiosa, Machado e Malu comemoravam seu casamento em uma casa de festas da cidade.

 

--Tô muito feliz por você, minha irmã! – Maria Carmem segurava as mãos da outra – Fazia tempo que não te via assim, tão radiante! – sorria

 

--Eu tô sim, muito feliz! – respondeu animada – Machado é um homem fabuloso e agora que me aposentei tô pronta pra seguir com ele pra São José e viver uma vida nova! – sorria – Com Alana e Fernandão por lá, nem vou me sentir tão longe da família!

 

--É verdade! – concordou – Mas aproveite pra ensinar ele a falar de um jeito mais normal! – brincou – Enquanto não consegue, use e abuse do dicionário on line! – riram

 

--E aí, dona Aline, pronta pra assumir o salão? – Alana perguntou para a irmã – Por enquanto ainda vai ter a mamãe pra cair dentro contigo, mas quando ela se aposentar em dezembro cê vai ficar sozinha no comando! – afirmou bem humorada

 

--Pronta total! – Aline respondeu – E cheia das ideias! Cês vão se surpreender comigo! – afirmou convicta

 

--É isso aí, maninha, mete os peito! – Alessandra brincou ao beber um gole de coquetel

 

--Alê, à propósito... – Aline olhou para a engenheira – Reparei que você e Elza mal trocaram umas palavrinhas. – olhou na direção da militar também – Que foi? Não me diga que romperam por causa de política? – não acreditava

 

--Quero nem saber dela! – Alessandra respondeu de imediato – Elza se mostrou a maior trairona e eu tô fora! – bebeu mais um gole

 

--Até a Fê mal fala com ela. – Alana comentou – E pela mesma razão: política! – revirou os olhos

 

--Eu hein, gente, que lástima! – Aline criticou – Acho que a única pessoa que gostou dessa segregação política é o tal do Goulart, porque tia Norminha tá dando-lhe um desprezo! – as três acabaram rindo

 

--Depois esse pessoal de esquerda fala que os preconceituosos somos nós! – Goulart reclamava com a sobrinha – Notei que sua amiga Alê mal te cumprimentou e Fernandão não quer nem saber da gente! – bebeu um gole de espumante – A única coisa boa é que aquela maluca saiu do meu pé! – referia-se à Norminha

 

--Coisas da vida, tio Goulart, coisas da vida. – Elza bebeu um gole de espumante – Um dia todos eles verão que estávamos certos o tempo inteiro. – olhava para Machado – Pelo menos meu pai tá do nosso lado, tanto que nos convidou pra ser padrinhos.

 

--Ao menos isso! – Goulart serviu-se de um canapé – Vou esperar Fernandão terminar de conversar com ele pra me aproximar do meu amigo. – mordeu um pedaço – Aquela Malu pode ser uma comunista mas até que é boa pessoa. – considerou

 

“Anos se passaram e até hoje ele acredita que a tia Malu é uma comunista!” – Elza pensou achando graça

 

--Elza, reparei que apesar de tudo você me pareceu um tanto entristecida. – Goulart comentou após limpar os lábios com um guardanapo – Saudades da sua mãe ou... – pensava em como falar – Você pensava naquela índia comunista? – sondou

 

Deu um suspiro profundo. – Sabe quais foram as pessoas que mais me decepcionaram na vida, tio Goulart? – olhou para o homem – O senhor e Yara. – afirmou com seriedade – O senhor por todos os absurdos que fez e ela porque me abandonou. Por sua causa, por sua culpa, mas me abandonou! – carregava mágoa no tom – E isso eu não consigo perdoar!

 

Não esperava ouvir aquela resposta. – E a mim? – perguntou receoso – Você consegue perdoar?

 

--Estamos em um casamento. Não é hora e nem lugar pra esse tipo de conversa. – não respondeu – Agora com licença, porque vou me servir de novo com bobó de camarão, que tá divino! – afastou-se do homem que a observou entristecido

 

--Que maravilha, hein, sub? – Fernandão conversava alegremente com o amigo – Casando no Rio de Janeiro, pronto pruma lua de mel na serra... – deu um tapinha no braço do homem – Enquanto o vento frio vai soprar forte do lado de fora, dentro do quarto vai ser só o fogo pegando debaixo dos lençóis! – piscou para ele

 

--Sargento Fernandão, sentido! – deu voz de comando e a mulher obedeceu – Cuidais do vosso vocabulário posto que a senhora Malu e eu estamos unidos sob os sacrossantos laços do matrimônio! – afirmou com seriedade – Não cabem expressões jocosas para caracterizar o nosso conluio carnal pós cerimônia santa!

 

“Mas ele não dá um refresco!” – Fernandão pensou contrariada

 

 

Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro / Goiânia, estado de Goiás

 

Elza caminhava solitária pela praia da Barra. O vento frio do mês de junho parecia enraivecer as ondas do mar, que arrebentavam na areia espalhando gotículas como finas lágrimas do tempo.

 

“Uma voz no vento,

Uma voz me chama,

Brisa de amor, doce coração...”

 

Embalada pelo clima do casamento do pai no dia anterior, a negra lembrava-se de flashs do seu relacionamento com Yara.

 

“--Quando o coração sente dor, nada melhor que se conectar com a Natureza. – a indígena dizia – No coração da Paulista não haveria um lugar melhor do que esse. – sorriu

 

--Mamãe me trazia aqui de vez quando na minha infância... – Elza comentou saudosa – Fazia muito tempo que eu não voltava a esse lugar. – olhava ao redor – Obrigada! – tornou a mirar o rosto da outra – Por ter me ajudado por duas vezes num só dia! – sorriu também”

 

“Uma voz no tempo,

Carinho na alma,

E as lágrimas fogem de ti...”

 

Yara caminhava pela praça Tamandaré. Chorando contidamente, lembrava-se de momentos vividos com Elza.

 

“--Nunca vivi com ninguém o que experimentei com você! – Yara falava com sentimento – Mas dessa vez, tudo que eu queria era passar a noite com você nos meus braços sem pensar em mais nada! – beijou-a novamente – Eu sei que fora daqui nossas vidas voltam a se separar, voltam a não dar espaço pra nós, mas o dia de hoje ainda não acabou e eu queria aproveitar tudo que me resta dele com você!

 

--Se isso é um pedido, eu aceito! – Elza respondeu antes de beijá-la apaixonadamente”

 

“Se quem chegou, partiu,

Se quem virá, já foi,

Só pra quem fica os dias são todos iguais...”

 

“E ela me deixou...” – Elza pensava entristecida

 

“--E quem sempre esteve aos seus pés e dizendo sim a tudo que você pedia? – Yara devolveu de imediato – Mas na hora que eu te peço uma coisa, UMA ÚNICA, em todos esses anos, o que é que você faz? – balançou a cabeça desgostosa – Tudo bem, Elza Machado, eu já entendi qual foi a sua decisão! – lutava para não chorar mais – Boa viagem pra você! – encaminhou-se até a porta

 

--Você prometeu que nunca me deixaria... – lamentou como uma criança”

 

“Mil sonhos pra enterrar,

Ventos e vendavais,

Corpo e alma afetam,

Se os anos pesam demais,

No coração...”

 

“Parece que ela saiu da minha vida há mil anos...” – Yara pensava entristecida – “Por que eu não consigo tirar ela de mim, meu Deus?” – perguntava-se

 

“E as lágrimas fogem de ti...”

 

“Às vezes penso que ela já me esqueceu...” – Elza lamentava-se em pensamento enquanto chorava

 

“E lágrimas fogem de mim...”

 

“Ela conquistou tudo que desejava!” – Yara pensava magoada – “Duvido que pense em mim!” -- chorava

 

“E um rio se forma de nós.”

Leila Pinheiro – Uma Voz no Vento [1]

 

Sem imaginar, as duas mulheres uniam-se novamente pela saudade.

 

 

Brasília, Distrito Federal / Sorocaba, estado de São Paulo

 

Jurema liderava uma imensa manifestação contra os cortes de verba na educação pública, as queimadas na Amazônia e o derramamento de gosma nas praias do nordeste brasileiro. O protesto contava com membros do Movimento dos Povos Originários e dos Sem Posses, além de diversos professores e estudantes. Yara e demais membros do Comuna acompanhavam, enquanto os droneiros do Partido filmavam tudo.

 

--Esse ano de 2019 vai ficar registrado na história mundial como o ano das convulsões e revoluções sociais! – Jurema bradava ao microfone – Tivemos crises políticas de todos os tipos, como o pedido de impeachment contra Ronald Rump, manifestações populares intensas na Bolívia, no Equador, no Chile, revoltas na Argélia, no Sudão, no Iraque, no Líbano, além da crise Hong Kong versus China e da fase turbulenta que a França atravessa! – olhava para os demais – No Brasil não está sendo diferente, especialmente após quase um ano de governo Montanauro, o qual se mostra marcado por grandes escândalos além de uma série de declarações machistas, racistas, homofóbicas e desinformadas! – gesticulou – Ele não disse que os estudantes e professores éramos idiotas úteis? Vamos mostrar a ele quem é o verdadeiro idiota aqui! – incentivava as pessoas que bradavam em apoio – Vamos defender nossa Amazônia contra os desmandos do agronegócio, das mineradoras e madeireiras! Vamos exigir investigação e solução pro caso da gosma misteriosamente despejada nas praias do nordeste brasileiro!

 

--Camarada Jurema me falou que vai vomitar o mais novo escândalo sobre o esquema das Quebradinhas quando a gente chegar na altura do Congresso do País! – Omar dizia para Yara – E ela também me disse que foi informação que você trouxe. – olhava para a outra – Como tem conseguido descobrir tanta sujeira a respeito desse governo antes de quase todo mundo? – perguntou intrigado

 

--Conheço muitas pessoas, camarada Omar. Tenho meus informantes. – respondeu simplesmente – E não me faça perguntas pelo bem deles. – pediu

 

--Não está mais aqui quem falou! – o homem concordou sorridente

 

--Tá bonito pra caralh*, puta que pariu! – Renata falava sozinha diante da TV – Ah, vontade de tá junto... Que manifestação foda! – suspirou – Mas eu tô bem aqui. – disse para si mesma – Pela primeira vez me sinto como quem tem uma família de verdade, então que eu fique quieta no meu canto! Ainda mais estando em condicional! – pegou o controle e desligou a TV – Hora de cuidar da vida! – levantou-se – A mãe quer ir no cinema, então a gente vai. – pegou as chaves do carro

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Yara entrava de capacete e tudo em uma casa num bairro destacado da cidade. Caminhou até o meio da sala, tirou o capacete e o corta vento que vestia, colocando os dois sobre uma pequena poltrona. Observou que havia uma mesa próxima à parede mais ao fundo e uma cadeira virada de costas para ela. Uma jarra cheia e dois copos aguardavam sobre a mesa.

 

--Após meses de manifestações populares, governo do Chile decide rever Constituição herdada dos tempos da ditadura. – a mulher leu a manchete no jornal e girou a cadeira para ficar de frente para a indígena – Parece que a dinâmica por lá é melhor, não? – perguntou provocadora ao deixar o jornal sobre a mesa

 

--O Brasil precisa de mais tempo. – respondeu prontamente – Também chegaremos no momento da mudança. – acreditava – Cheguei na hora marcada e fui discreta ao máximo. Desliguei o celular e fiz tudo que me orientou no seu bilhetinho anônimo. – foi direto ao ponto – Por que me chamou aqui, Elza Machado? – olhava nos olhos – Aliás, por que tem vazado os escândalos do governo pra mim? – queria entender o plano – Onde pretende chegar com tudo isso?

 

Sorriu e pegou a jarra de água de coco para encher os copos. – Já que agora você quer ouvir, -- levantou-se com os dois copos nas mãos – acho que podemos ter a conversa que não aconteceu naquele janeiro do ano passado, não? – caminhou até a indígena e ofereceu um copo

 

--Desde que recebi a primeira caixa repleta de documentos eu sabia que era você por trás daquilo. – recebeu o copo – E fizemos muito bom uso de tudo, só não entendi qual é a sua afinal. – falava desconfiada

 

--Você vai entender. – bateu levemente no copo da outra – Tintim. – bebeu um gole com os olhos fixos na ex – “Adoro quando ela fica assim, com essa cara de má!” – Elza pensou

 

Bebeu um gole também sem desviar o olhar. “Tudo pra ela é um jogo!” – pensou – “E continua mais cheia de glória do que nunca, ô, minhas sete chagas!” – reparava na negra – “É muita aleluia pra gastar, Deus me defenda!”

 

 

Fim do capítulo