São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Machado e Fernandão confraternizavam com demais colegas de trabalho na despedida do brigadeiro Goulart.

 

--Prestimoso, é com pesar que me despeço da vossa companhia nas Organizações Militares da Aeronáutica! – Machado dizia para o amigo – Vossa retirada para a reserva tão de chofre deixou-nos deveras consternados, conforme as sábias palavras de despedida proferidas pelo brigadeiro Lima. – olhava para o outro – Tenho para convosco uma dívida infinita, pois fora pela vossa orientação que iniciei minha senda pelos céus da Força!

 

--Também fiquei muito surpresa com seu pedido pra ir pra reserva assim tão repentinamente. – Fernandão complementou – E concordo com tudo que foi dito na cerimônia: o senhor vai fazer muita falta!

 

--Ora, meus amigos, não há o que se lamentar! – afirmou sorridente – Eu já havia dado a minha modesta contribuição ao longo de todos esses anos e estava na hora de sair. Faz parte da vida que os mais antigos vão cedendo lugar aos mais modernos. – olhava para os dois – De agora em diante investirei meus esforços em campanha pela candidatura do deputado Montanauro à presidência! Temos apenas 3 meses até as eleições e o tempo urge! – afirmou enfático – Espero finalmente poder contar com o apoio de vocês dois. Elza está em adidância e isso a impede de se manifestar politicamente.

 

Machado e Fernandão se entreolharam antes de responder.

 

--Perdoe, mas não conte comigo. – a mulher afirmou sem rodeios – Se eu já não votaria nele depois de tudo que ouvi da própria boca do sujeito não será agora quando ele manifesta total apoio à ideia absurda de invadir a Venezuela! – revirou os olhos

 

--Eu tampouco me afino com a ideologia do cidadão em tela. – Machado opinou

 

Goulart não gostou do que ouviu, embora não tenha se surpreendido. – Pelo amor de Deus, meus amigos! Em quem pretendem votar? Em Luiz Horácio? – riu brevemente – Ele já foi até preso e condenado a 13 anos! Em breve será impedido de se candidatar! – gesticulou – E o caso da Venezuela, sejamos razoáveis: Roraima se transformou num caos por causa dos imigrantes que vêm daquele país! As tensões estão insuportáveis!

 

--Perdoai-me, oh, prestimoso, mas divergimos em política. – Machado respondeu simplesmente – Meu voto não será destinado ao vosso candidato, mesmo que precise anular-me diante do pleito eleitoral.

 

--E meu voto ele nunca terá! – Fernandão salientou enfática

 

Goulart decidiu não insistir. – Vejo que alguns outros colegas requerem minha atenção. – percebeu que outros militares se aproximavam – Depois conversamos. Com licença. – fez um gesto de cabeça e se afastou

 

--E ele embarcou mesmo na vibe do Montanauro! – a sargento comentou abismada – Fico besta!

 

--Decerto. – concordou – Vejamos as cenas dos capítulos vindouros. – o suboficial reparava no amigo – Ditosa seja minha empoderada Elzinha, a qual livrara-se do infortúnio destas importunações eleitoreiras! – considerou

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos / São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza assistia ao jornal da TV brasileira enquanto fazia um lanche na sala do apartamento em que vivia.

 

--Preso na madrugada de hoje, em Brasília, o Justiceiro Tuyago Lama, -- mostravam-se imagens do homem sendo conduzido pela polícia -- o qual foi apontado como o mentor intelectual do atentado sofrido pela ex deputada pelo Partido dos Labutadores, Renata Vilani, em 28 de abril do ano passado. – imagens da reportagem exibida na ocasião apareceram na TV – A detenta Alda Maria Duarte atacou a ex deputada sem razão aparente e cometeu suicídio logo em seguida. – a foto de Alda foi brevemente apresentada -- As investigações sobre o caso revelaram que Alda contou com a ajuda de outra detenta, Eliana Luiz, que acusou Tuyago Lama de influenciar a colega a cometer o assassinato.

 

--Olha só isso! – Elza falava sozinha – E mais uma vez um Justiceiro por trás de tudo! – prestava atenção

 

--Ela me disse que quando o boyzinho começou a vir aqui, falava do falecido marido dela. -- Eliana contava para o repórter – Depois me disse que ele falou um monte sobre a deputada e que o certo era matar ela. Eu até comentei: Mulher, tu não vê esse homem há tanto tempo e por que agora ele vem te visitar com essas conversa? – gesticulou – Ela não me deu nem tchum, mas um dia me ofereceu uns bagulho pra eu ajudar... sabe como é, eu tava limpa há um tempão e, sei lá, o diabo atentou... – tentava se justificar -- Então arrumei o vidro em troca do bagulho e foi isso. – concluiu a história -- Mas não esperava que ela se matasse depois!

 

--Que coisa! – a militar deu uma mordida no sanduíche

 

--Tuyago Lama foi reconhecido como um integrante do grupo de extrema direita, os Justiceiros, pela detenta Eliana Luiz. – o repórter continuava narrando – Temendo os impactos da pressão em torno dos casos de atentados cometidos contra importantes lideranças populares, o acusado confessou sua participação no crime, alegando ter recebido ordens para possibilitar a execução da ex deputada. – mostravam-se imagens do homem sendo interrogado -- Segundo ele, os Justiceiros foram demandados por um influente militar da Aeronáutica a executar todas as pessoas indicadas em uma lista escrita de próprio punho. – uma folha de papel manuscrita foi exibida na tela – A professora universitária e presidente do Partido Comuna, Yara Saraíba, a ex deputada Renata Vilani e o estudante de Direito e militante comunista, Marcio Kleber Araújo, morto em um suspeito acidente de trânsito em São Paulo no dia 20 de junho do ano passado, encabeçam a lista. – destacaram-se os três nomes com um grifo amarelo

 

--O QUE?? – Elza levantou-se do sofá em estado de choque

 

--Em nota conjunta, os Comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha destacaram que as Forças Armadas repudiam a conduta criminosa, respeitam a liberdade de expressão democrática e não coadunam com ordens de execução de quem quer que seja. – o repórter encerrava a matéria – Foi aberto hoje um processo de investigação interna pelo Comandante da Aeronáutica para apurar a veracidade da denúncia de Tuyago Lama.

 

--Alô, Machado? – Goulart assistia o final da reportagem com o coração disparado – Por favor, meu amigo, me ajude. – ajoelhou-se no chão falando com dificuldade – Preciso de... um médico porque... me sinto mal... – suava exageradamente – Eu acho que... – não conseguiu completar a frase

 

--Prestimoso, o que vos ocorre? – perguntou alarmado – Singrarei para vossa residência de imediato! – ouviu um estranho barulho do outro lado e deduziu que o homem havia desmaiado – Prestimoso? – chamou em vão e decidiu desligar – Convocar-te-ei no inopinado, garbosa sargento Fernandão! – discava para a mulher – Temos importante missão a cumprir!

 

--Eu não acredito! – Elza continuava pasma – Meu Deus! – levantou a cabeça e fechou os olhos – Meu Deus... – sentia vontade de chorar

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

--Camarada Jurema, que intuição! – Yara exclamou impressionada – Sua ideia de envolver o primo de camarada Sérgio pra tentar descobrir quem colaborou pro atentado contra Renata acontecer teve consequências muito maiores do que sonhei imaginar! – olhava para a outra

 

--Tampouco eu sonhei! – confessou – E o cagaço do tal do Tuyago fez aparecer a lista dos condenados da extrema direita, assim, de bandeja! – gesticulou – Não estranhei do nome de padre Camilo não constar lá, mas me surpreendi de não aparecer o nome da deputada carioca assassinada em março desse ano.

 

--Porque o caso dela certamente é outro! – Yara respondeu de pronto – O trabalho e a militância dela incomodavam a outra pessoa, ou outras pessoas, não sei quantos estão envolvidos no assassinato. – considerou – Já aqueles que constamos na listinha do mal, certamente incomodamos a alguém diferente e confesso que tenho minhas suspeitas... – pensava em Goulart – O bom também é que com a divulgação da lista os outros que nada sofreram ainda podem se prevenir.

 

--Você tem suspeitas? – perguntou em choque – E quem seria?? – desejava saber

 

--Quando não se tem provas ou evidências suficientes torna-se um falso falar qualquer coisa. – cruzou os braços pensativa – E prefiro acreditar que a pessoa que tá na minha suspeita não seria tão psicótica a ponto de ordenar o assassinato de mais de 20 militantes e lideranças políticas!

 

--Alguém da parte da Elza? – Jurema arriscou – O Justiceiro falou que o mandante era um militar, da Aeronáutica... é a Força que ela serve, né? – considerou

 

--Camarada, como eu disse: -- repetiu de cara feia – sem evidências, não se deve falar! – olhava para a amiga – E Elza não tem nada a ver com isso! – garantiu – Agora vamos trabalhar que o tempo urge! – afastou-se da outra andando rapidamente

 

--Com certeza é alguém da parte dessa Elza... – Jurema falava consigo mesmo – Se bobear, até mesmo um parente dela...

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

--Eu fiquei tão feliz em saber que a sua condicional finalmente vai sair! – Jaqueline dizia sorridente – Tudo bem que é em novembro, mas o que significa esperar dois meses pra quem esperou tanto tempo a mais? – olhava para a filha – Não importa que você vai ter que usar a tal da gargantilha eletrônica, o importante é ficar livre! – estava animada – Já conversei com nossos parentes e você vai ser muito bem recebida na fazendinha! Seu advogado disse que não tem problema de você viver lá, uma vez que Sorocaba conta com delegacia e toda uma estrutura de segurança! – segurou as duas mãos da loura – Pronta pra contribuir na produção familiar de uva Itália? – perguntou esperançosa

 

--Confesso que tô com medo de como os parentes vão reagir, até porque nem conheço eles ainda, mas juro que nunca estive tão disposta a fazer uma coisa como tô a fim de ajudar a modesta produção da família a crescer! – dizia a verdade – E acho que o dinheiro da venda do meu imóvel, mais o que tenho no banco por conta do meu salário de deputada vai dar um belo empurrãozinho! – sorriu – Embora eu tenha torrado grana com mulheres, viagens, farras e futilidades, garanto que ainda me sobrou uma soma de responsa! E esse dinheiro não era de roubo, eu juro! – beijou as mãos da mãe

 

--Eu sei, querida, era o seu salário! – entendeu – E tenha certeza que eles te receberão tão bem quanto me receberam quando cheguei lá, tão perdida e desorientada há anos atrás! – lembrou-se do passado – Vou rezar todo dia pro tempo passar voando! – riram

 

--Viu o jornal de ontem? – a ex deputada soltou gentilmente as mãos da mãe – Luiz Horácio foi impedido de se candidatar. – olhava para a outra – Aí o partido lançou o nome do Andrade. – passou a mão nos cabelos – Não tô levando fé, sabe? A esquerda se preparou muito mal e Montanauro já vem se construindo há anos! – destacou – Depois do atentado que ele sofreu, acho que as intenções de voto pra ele só vão aumentar! – cruzou os braços – Mãe, tá muito foda! – reclamou desgostosa – Esse cara vai ganhar, meu!

 

--É verdade, também acho que ele vai levar a melhor... – concordou – Mas não vamos pensar em política agora! Nosso foco deve ser a sua condicional e a vida nova que vamos ter em Sorocaba! – pediu animada

 

Renata ficou calada pensando. Apesar dos receios que alimentava, sentia o peito cheio de esperança em uma vida nova e na oportunidade de um recomeço.

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

Elza aguardava pelo tio no aeroporto. Sua expressão era séria.

 

--Minha querida! – o homem se encaminhava para junto da sobrinha com um sorriso nos lábios – Não pude vir antes e nem deveria estar aqui em pleno mês das eleições! – abraçou-a com força – Mas você disse que era urgente, não? – estranhou que ela não retribuiu o abraço – O que foi? – afastou-se receoso – Você parece... – reparava na mulher – Zangada? – olhava para ela – “O que será que aconteceu?” – pensou desconfiado

 

--Vamos indo, tio Goulart. – pediu simplesmente – Temos muito o que conversar!

 

***

 

--Até agora você não me disse por que precisávamos conversar presencialmente e com tanta urgência. – sentou-se no sofá – Já estamos em casa, tomei banho, almoçamos... – olhava para a negra – E o tempo todo você aí, fria como gelo... – continuava estranhando – O que tá acontecendo, Elza?

 

--Eu que lhe pergunto, tio Goulart! – sentou-se ao lado dele – O que está acontecendo? – falava com educada firmeza – Primeiro a TV mostra que um Justiceiro acusa um influente militar da Aeronáutica de ordenar o assassinato de mais de 20 lideranças e militantes de esquerda, -- percebeu que o homem congelou -- depois meu pai me fala que o senhor teve um mal súbito que o fez ficar internado por dois dias! – olhava nos olhos – E justo no dia da reportagem sobre o caso. – prestava atenção nas reações – Vai me confessar por que fez isso ou prefere inventar uma historinha pra tentar me engabelar?

 

--Elza?! – perguntou escandalizado – Que é isso? – levantou-se de cara feia – Você me chama pra vir de tão longe pra me acusar irresponsavelmente por causa de uma denúncia mentirosa? – gesticulou furioso – Há coisa de três dias saiu o relatório da investigação interna da Aeronáutica e nada pôde ser provado contra qualquer militar!

 

--Da ativa! – levantou-se calmamente – Eu li o relatório, tio Goulart. Tive acesso a ele. – revelou – E vi que a investigação focou nos militares da ativa, porque o tal do Tuyago garantiu que o mandante era da ativa. – aproximou-se do homem – Como o senhor era, quando a lista foi feita. – sorriu ironicamente – Agora, por sorte, não é mais.

 

--Ora, Elza, eu não estou entendendo você! – afastou-se falando nervosamente – Tudo isso por que o nome da sua ex namoradinha era logo o primeiro da tal lista? – parou diante da janela de costas para a militar – Eu não tenho culpa que a mulher é cheia de inimigos! – olhava para fora

 

Riu brevemente. -- O senhor lembra de quando tia Gracinha me colocava pra treinar a caligrafia? – parou ao lado dele – Lembra que ela costumava a lhe chamar pra treinar também e o senhor aceitava pra me estimular? – olhava pela janela – Aí ela achava engraçado e dizia: “Ninguém escreve a letra Y igual a você, amor!” – repetiu a fala da mulher – Como o nome da Yara se escreve com Y, vi sua marca registrada sendo esfregada na minha cara assim que a reportagem mostrou a imagem da lista! – virou o rosto em direção a ele – Fernandão me disse que o senhor andava tenso há tempos, todos ficaram surpresos com sua decisão de ir pra reserva quase correndo e o seu mal súbito no dia em que a lista apareceu na TV... – juntava as peças – Não me diga que se meteu a ser cabo eleitoral do Montanauro pra buscar se defender quando a verdade viesse à tona? – deduziu – Afinal de contas a pressão popular em cima dos atentados tá pesada! Até o Vaticano se manifesta vez por outra!

 

--Elza... – sentia-se encurralado e nervoso

 

--Eu vou perguntar pela última vez, brigadeiro Goulart, -- virou-o de frente para si – por que fez aquilo? – insistia com firmeza – Tudo pra separar Yara e eu, foi isso? -- os olhos marejaram – Pode confessar, já que o senhor conseguiu! – derramou uma lágrima – Ela não me quer mais e nem eu quero procurar por ela pra tentar de novo! – afirmou contendo o pesar – Mas o mínimo que o senhor pode e deve fazer é me dizer a verdade! – cobrou – Pelo menos em honra ao nome da tia Gracinha!

 

--Não coloque Graça no meio disso! – desvencilhou-se novamente e andou a ermo pela sala – Elza, ouça... – sentia-se mal – Eu... – os olhos marejaram – Deu tudo errado, não era pra ter acontecido nada dessa coisa toda de atentados e mortes... – falava nervosamente

 

--Eu quero TODA a verdade agora! – a mulher ordenou imperiosa – Ou o senhor me fala tudo ou nunca mais vai me dizer nada porque sequer vou olhar na sua cara! – ameaçou

 

Teve medo que ela estivesse disposta a fazer como falava. – Calma, Elza, eu conto a verdade toda! – gastou uns segundos calado tentando se controlar – Tudo começou quando o governo esquerdopata inventou aquela maldita Comissão da Mentira! – não conseguia olhar para a negra – Fui convocado por um grupo de patriotas para atuar contra isso e você sabe minha opinião sobre aquela Comissão! – andava de um lado a outro – No governo dos militares eu... eu exerci atividades contra o terrorismo comunista e por isso fui um dos convocados. – justificou-se – Aí, um dia, eu cometi a burrada de fazer uma lista com os nomes das lideranças de esquerda que eu achava que tinham que ser anuladas politicamente e... – lutava para não chorar – Essa lista vazou, foi parar nas mãos dos Justiceiros e deu no que deu! – passou as mãos nos olhos – Como a pressão em torno dos atentados tá muito forte, me pegaram pra bode expiatório! Dou minha palavra de honra que nunca desejei a morte de ninguém! – dizia a verdade

 

Elza derramou uma lágrima muito sentida. – O senhor só fez isso porque desejava me separar de Yara, não é? – sentia-se imensamente decepcionada – Por isso ainda a colocou em primeiro lugar na lista...

 

--Não é bem assim, eu... – não tinha coragem de admitir

 

--E quando viu a merd* que tinha feito, pensou que eu também corria risco de vida e mexeu os pauzinhos pra me dar essa adidância, não foi isso? – insistiu

 

--A adidância tava sendo trabalhada porque se considerou necessário. Afinal de contas, era um novo governo e bem diferente do anterior. O que eu fiz foi aproveitar a oportunidade e influenciar fortemente pelo seu nome, no que obtive apoio dos demais com facilidade por conta do seu histórico e currículo. – explicou a situação -- Eu nunca me perdoaria se algo de mal te acontecesse... Por isso te indiquei. – confessou de cabeça baixa – Preferiria a morte a vê-la em perigo!

 

A negra andou um pouco pela sala também enquanto digeria tudo aquilo que ouvira. Sentia-se ainda mais triste e arrasada. Chorava contidamente.

 

--Por favor, Elza! – correu até ela e a segurou pelos braços – Por favor, me perdoe! Sou capaz de implorar e te juro que eu nunca desejei que Yara ou ninguém mais fosse assassinado! – dizia a verdade – Hoje vivo num inferno por causa disso!

 

--E pelo medo de ser descoberto! – desvencilhou-se dele e continuou pensando – Eu me sinto como se o senhor tivesse morrido... – derramou outra lágrima – Nunca imaginei que uma pessoa que amo como pai me daria tanto desgosto! – andava lentamente pela sala

 

--Não, Elza, por favor, não diz isso! – desesperou-se – Você é como uma filha pra mim! – ajoelhou-se diante dela – Por favor, me perdoe! – abraçou-a pelas pernas – Eu faço o que você quiser, mas não me tire da sua vida, porque eu não iria suportar tamanha dor! – chorava – Já me basta ter perdido a Graça prum câncer que acabou com ela e comigo! – sentia-se arrasado

 

--Levante-se e pare com isso! – fez com que o homem a libertasse e se levantasse devagar – Eu não tenho condições emocionais de processar o impacto de tudo isso agora, eu não quero pensar nisso agora! – secou os olhos com as mãos – Querendo ou não, o senhor tem as mãos sujas de sangue por ter sido irresponsável e por absolutamente não respeitar as escolhas de quem diz amar! – buscava não chorar – Dois inocentes morreram, Yara podia ter morrido também e eu perdi o amor da minha vida por sua causa! – acusou – Não sabe o quanto isso me dói!

 

--Eu sinto muito, querida, eu... – chorava como um menino – Se eu pudesse voltar no tempo eu...

 

--Mas acontece que não pode! – afastou-se do homem e respirou fundo por três vezes – Vamos parar e pensar com frieza agora. Temos que ser inteligentes. – recomendou – A única coisa que concordamos em tudo isso é que desejam alguém pra ser apresentado e linchado em praça pública! A pressão popular cobra com toda razão pela punição dos mandantes e executores dos atentados. – raciocinava em voz alta – Os executores estão aparecendo, o mandante ainda não. – olhou para o tio – Controle suas emoções e siga vivendo normalmente. Não acredito que cheguem até o senhor, porque muito provavelmente a versão que vai vingar é a de que os Justiceiros elaboraram a lista e na hora H quiseram levar mais alguém pro buraco. – gesticulou – Não caia na asneira de tocar nesse assunto com Montanauro! – advertiu – Se ele tiver que se manifestar, claro que vai defender as Forças Armadas porque elas não têm a menor culpa pelas suas atitudes absurdas! – pausou brevemente – Além dos mais, os Justiceiros são apoiadores dele e não irão bater de frente quando ele se posicionar contra as acusações do Tuyago, que foi burro e precipitado em garantir que o mandante continuava na ativa. – cruzou os braços – O senhor naturalmente vai escapar da exposição.

 

Goulart abaixou a cabeça e tirou um lenço do bolso da calça. Tentava parar de chorar.

 

--O senhor tá firme e forte na campanha presidencial e com certeza deve ser respeitado pelos correligionários do Montanauro. – considerou – Então preste bastante atenção ao que vou lhe dizer, porque quero que faça o impossível pra conseguir me colocar em alguma posição no Ministério da Defesa ou na Casa Civil! – orientou – Deixe claro pra eles que conto com as influências de ninguém menos que Castrodeza Craig, que chegou a solicitar o aumento do meu período de adidância aqui nos Estados Unidos!

 

--Você quer compor o governo do Montanauro?! – surpreendeu-se – Mas sempre foi tão contrária! – não entendia – Mudou de lado, o que aconteceu? – perguntou esperançoso

 

--Não me faça perguntas, tio, apenas faça o que eu lhe digo! – não desejava se explicar – De hoje em diante, quem dá as ordens aqui sou eu! – afirmou resoluta – E espero que nunca mais se esqueça disso! – olhava nos olhos

 

Goulart concordou balançando a cabeça positivamente.

 

--Também quero que faça o seu impossível pra que nada de mal aconteça com quaisquer uma das pessoas que constam da sua maldita lista! Especialmente com Yara! – continuava ordenando – Porque se acontecer, esqueça que eu existo!

 

--Eu juro, pode acreditar! – respondeu de pronto – Eu juro!

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

--LENDA!!! – o povo gritava nas ruas – É LENDA, PORRAA!!!

 

--MORTE AOS COMUNALHAS!!! – outros bradavam – FORA PARTIDO DOS LABUTADORES!!!!

 

--SE FUDER ESQUERDOPATA!!!! – mais gritos vinham das ruas

 

--Ave Maria, até a comemoração de vitória desse homem é uma baixaria! – Kedima desligava a TV – Agora haja de ter paciência pra aturar essa gritaria do povo! – fez cara feia

 

--Gritaria é o de menos, dona Kedima! – Marcio afirmou pesaroso – Triste é ver o povo brasileiro democraticamente elegendo um projeto de ditadura! – suspirou – A vida de quem é LGBT como nós vai virar um inferno! – considerou – Mulheres, negros e pobres também não esperem coisa boa!

 

--Lá no hospital disseram que Cuba vai ordenar que todos os médicos deles saiam daqui. – Cintia comentou – Parece que o programa de medicina em parceria vai dançar! – lamentou

 

--Gente, e eu rezei tanto! – Ítala dizia – Mesmo com essa abstenção recorde que tivemos nesse ano, o miserento ganhou! – olhou para a idosa – Dona Kedima, Damiana e eu podemos dormir aqui? Tô com medo de voltar pra casa por conta desse fuzuê que tá acontecendo nas ruas! – pediu timidamente

 

--Também tô com medo... – Damiana confessou

 

--Claro que podem, meninas! – respondeu de pronto – Seria até perigoso as duas circulando a essa hora por aí. – gesticulou – Parece que o diabo se apossou do corpo da maioria! – benzeu-se desgostosa

 

--Que resultado péssimo! – Yara esfregou o rosto com as mãos – Elegeu-se o parlamento mais conservador dos últimos tempos! – passou a mão nos cabelos -- E além de tudo isso, Montanauro já sinalizou que vai levar adiante todas as Reformas iniciadas pelo governo Brener e que vai avançar no plano de privatizações. – balançou a cabeça negativamente – Petrobraza, Eletrobraza, Correios&Telégrafos e várias outras empresas na lista... – olhava para os demais – Como a intervenção federal no Rio de Janeiro impediu a votação da Reforma da Previdência por razões constitucionais, com certeza acabarão com ela ainda nesse ano pra no ano que vem Montanauro poder detonar! – considerou – E não que eu fosse a favor da tal intervenção, longe disso!

 

--Se eu pudesse ia embora do Brasil! – Sandro desabafou – Ai, que deprê! – gesticulou afetado

 

--A gente tem é que rezar muito! – Kedima aconselhou – Botar o nome desses político tudo no congelador pra amansar!

 

--Eu vou me deitar. – Yara levantou desanimada – E rezar bastante antes de dormir. – deu um beijo na testa da idosa e tchauzinho para os demais – Boa noite, pessoal!

 

--Boa noite... – todos responderam entristecidos

 

***

 

Yara adormecera orando aos pés da imagem de Maria Mãe Santíssima que havia em seu quarto. Segurava o terço que pertencera a filha de dona Kedima.

 

“A indígena abriu os olhos e levantou a cabeça devagar. Reparando no ambiente, percebeu-se dentro da igreja onde trabalhava com padre Ignácio em Olinda. Estava ajoelhada e, diante de si, o altar onde a imagem de Maria Mãe Sagrada se destacava. “Estarei sonhando?” – pensou

 

--Você pediu humilde e fervorosamente ajuda à Divina Mãe, -- a voz de uma mulher se fez ouvir – e Ela nos permitiu vir ter contigo.

 

--Mãe?? – vislumbrou o rosto de Alice e se lançou aos pés dela – Mãe! – abraçou-a pelas pernas – Perdoa, mãe! – pediu emocionada – Não fui com a senhora fazer compras e aconteceu aquele acidente horrível... -- chorava

 

--Você não teve culpa de nada... – Alice abaixou-se e a abraçou com carinho – Era o meu tempo de ir e assim seria de um jeito ou de outro! – beijou a testa da indígena

 

--Cada um segue seu próprio caminho, mesmo que estejamos todos juntos. – um homem afirmou benevolente – Cada um carrega sua cruz.

 

--Padre Ignácio?! – reconheceu a voz e mais se emocionou

 

--Viemos aqui por você. – o padre abaixou-se ao lado das mulheres – Porque você tem pensamentos de dor e muita desilusão e isso não pode continuar! – aconselhou – Não pode se deixar destruir por causa de desditas políticas ou de amores que lhe ferem o coração! – falava com jeito

 

Ficou envergonhada com o que ouviu. -- Eu... – a indígena não podia conter as lágrimas – Eu me sinto sempre como alguém que faz tudo errado... – confessou – Uma perdedora, uma coisa vergonhosa... – abaixou a cabeça – Só não abreviei minha vida por causa de tudo que a Igreja me ensinou... e dos apelos de dona Kedima... – confessou – Eu me sinto muito mal...

 

--Sabemos disso, meu bem, conseguimos captar como se sente. – Alice segurou o rosto da filha com as duas mãos – Mas na vida, neste mundo, sempre teremos tribulações e nossas vitórias serão precedidas por várias derrotas. Esse é o processo natural da evolução! – falava com mansidão – Não se entregue à desilusão!

 

--Você não é vergonhosa, seja pelo motivo que for! – Ignácio acariciava os cabelos da indígena – A luta que você se propôs a encampar quando ainda estava do lado de cá é muito grande, demanda muito esforço, coragem e fé! – sorria – Você tem ido muito bem até aqui. As derrotas que experimenta são muito mais danosas aos pretensos vencedores! Eles cavam a cova onde serão enterrados e de lá não sairão até pagar a conta das dívidas contraídas com a Vida.

 

--Jesus prometeu que os que têm fome e sede de Justiça serão saciados! – Alice lembrou – Confia na promessa!

 

--E Ele, junto com Maria Santíssima e outros excelsos espíritos que obram na governança da Terra, estarão sempre cuidando de todos os que vivem neste planeta! – Ignácio destacou – Nunca estaremos sozinhos!

 

--Confia sempre, meu bem! – Alice pediu – Ainda virão muitas dores, a seara é espinhosa, mas faz a sua parte com retidão, seja prudente, justa e cuide para não se perder em radicalismos ou preconceitos. – aconselhou -- Acredite que tudo se resolverá! O caminho da Terra é o da regeneração!

 

--Lembre-se que também são nossos irmãos aqueles que defendem ideias contrárias ao que acreditamos! – Ignácio destacou – A luta jamais deve ser pela eliminação das pessoas, mas pela reformulação do pensamento! Importante que se tenha perseverança e paciência!

 

--Alimente a chama viva da fé e tudo dará certo! – Alice colocou uma das mãos sofre a fronte da filha

 

--Mesmo que demore pelo tempo da Terra! – Ignácio postou uma das mãos na altura do coração da indígena

 

--Amamos você, minha querida. – ouvia a voz de Alice dentro da mente – Exatamente como é!

 

Recebendo fluídos revigorantes de Alice e Ignácio, Yara sentia-se gradualmente melhor.”

 

 

Boston, Massachusetts, Estados Unidos

 

--Naquela época havia uma ponte de madeira que se estendia do quintal até uns 5 metros adentrando o mar. -- Castrodeza lembrava -- Então nós corríamos todos juntos por ela e nos jogávamos sem pensar em nada! – bebeu um gole de vinho – Até um dado verão no qual o nível das águas havia baixado tanto que quando nosso primo pulou, acabou se ferindo gravemente nas pedras. – olhava para Elza – Ele se recuperou depois de um longo tratamento, mas desde o ocorrido papai manteve essa casa fechada. Depois que ele e mamãe se foram, eu decidi reformá-la e voltei a frequentar esse lugar nos últimos anos. – fazia um charme – Tem sido meu refúgio ante o estresse do trabalho. – sorriu – E você é a primeira pessoa que trago aqui. – deu uma leve batida na taça da outra com a dela própria

 

--Fico honrada. – bebeu um gole de vinho – Também muito agrada que você sempre escolha os melhores rótulos para acompanhar nossas conversas. – sorriu – Essa vinho da África do Sul é maravilhoso! – elogiou

 

--Meu tributo a nossa negritude! – piscou para a militar

 

As duas mulheres conversavam sentadas no tapete da sala. Fazia frio e a lareira crepitava sob uma chama controlada.

 

--Gostei muito daqui. – Elza dizia a verdade – Mas confesso que esse clima de final de semana encoberto me deixa nostálgica. Assim como percebo que você está.

 

--It’s true. (É verdade.) – concordou – But, tell me... (Mas, diga-me...) – continuava fazendo um charme – What kind of memories are coming up on your mind right now? Maybe, your secret love in Brazil? (Que tipo de lembranças estão surgindo em sua mente agora? Talvez, seu amor secreto no Brasil?) -- arriscou

 

Sorriu. – Maybe... (Talvez...) – respondeu deixando um ar de mistério

 

--E... será que me diria algo sobre esse amor? – perguntou mantendo os olhos fixos na outra – Tenho interesse em saber mais sobre a mulher que não te deixa ceder aos meus incansáveis esforços de conquistá-la. – falava sedutoramente – Que sabor é este que ela deve ter, hum? – bebeu um gole de vinho

 

Cruzou as pernas esticadas sobre o tapete e se encostou nas pernas do sofá. – Ela é uma alma de artista. – girava a bebida na taça bem devagar – Aquele tipo de pessoa que sonha e faz você querer sonhar junto... – vislumbrava o rosto de Yara em sua mente – Profundamente humana, inteligente, passional, radical, simples, -- sorriu – incapaz de fazer qualquer planejamento de longo prazo! – riu brevemente – Marcante sob todos os aspectos. – pausou brevemente – Bem diferente das outras pessoas com quem me relacionei e, sob vários pontos de vista, bem diferente de mim. – bebeu um gole de vinho

 

--Parece uma combinação interessante. – prestava atenção – E essa artista também mexia tanto com você... na cama? – mordeu a borda do copo

 

Abaixou a cabeça brevemente. – Nós combinávamos muito bem nisso. – olhou para a outra – Eu adoro um toque vigoroso, intenso e ao mesmo tempo delicado. – confessou – O jeito... um tanto quanto bruto, mas cuidadoso que ela tem na hora de amar me deixava... louca! – riram brevemente

 

--Eu também não gosto de mulheres que amam como atrizes de filmes adultos. – Castrodeza confessou – Delicadeza demais, charme demais e ação de menos. – bebeu mais um gole – Da mesma forma adoro mulheres que me deixem possuí-las com ardor. – lambeu os lábios – Creia que sou bem... – tocou uma das coxas de Elza – Quente!

 

Arrepiou-se sob aquele toque. – Tenho certeza que sim. – deslizou uma das mãos na própria perna até alcançar a mão da outra – Mas... não minto quando digo que ainda não consigo. – gentilmente removeu a mão da mulher

 

Ficou excitada. – Sabe que esse jogo de gato e rato que você faz me tira do sério... – aproximou-se da outra sentando-se bem perto – Você me deixa me aproximar e depois se afasta... – sorria – E se eu fosse uma menina má, hein? – perguntou insinuante

 

--Você é... – deslizou um dedo sobre o lábio inferior da mulher mais velha – Mas também é gentil o suficiente para entender que não é não. – soprou um beijo e recolheu a mão

 

Castrodeza riu brevemente e se levantou. – Mais vinho? – caminhou até a adega para escolher outra garrafa – Que tal provarmos um envelhecido por 30 anos em uma respeitável vinícola do Porto? – sugeriu – Os brasileiros apreciam, não? – mostrou a garrafa

 

--Eu adoraria mas terá que ficar para uma próxima vez. – levantou-se e colocou a taça sobre a mesa – Pedi um carro para às oito em ponto e daqui a pouco ele chegará. – anunciou

 

Mudou o semblante e mostrou-se decepcionada. – Não irá dormir aqui comigo? – colocou a garrafa de volta no lugar e caminhou até a militar – Foi tão difícil convencê-la a vir! Eu contava em tê-la comigo até amanhã. – fez beicinho – Por que não aproveitar o final de semana?

 

Afastou-se um pouco. – É difícil lhe dizer não. – confessou – Por isso eu vim. – ajeitou os cabelos – Mas não pensava em passar o final de semana aqui. – caminhou até a janela – A adidância me faz ter o prazer da sua companhia, mas... não é muito ético misturar as coisas. – olhava para a noite do lado de fora

 

--Ora, meu bem... – aproximou novamente e parou atrás de Elza – O que me propôs também não foi nada ético... – sussurrava no ouvido – Aquele seu pedido foi uma proposta indecente...

 

Virou-se de frente. – Foi uma proposta profissional. – discordou gentilmente – Eu quero jogar no Brasil como você joga aqui! E com sua ajuda eu consigo. – garantiu – Assim como poderei lhe ser muito útil. Já conversamos sobre isso.

 

Sorriu. – Eu ainda não me sinto convencida o suficiente... – fez um charme – Você me pede tanto e só me dará o prazer na guerra. – falava com voz hipnótica – E no amor? – seus olhos se alternavam entre lábios e olhos da militar – Ganho nada?

 

--Castrodeza... – sussurrou em voz bem baixa

 

--Deixe de negar o que seu corpo implora! – segurou-a pela cintura e a beijou com paixão

 

Um sinal sonoro se fez ouvir do lado de fora e Elza rapidamente se desvencilhou da mulher. – Meu carro! – correu até a bolsa que estava sobre o sofá – Tenho que ir. – falava nervosamente

 

--Ora, mas... – não se conformava – E tudo isso por causa de um relacionamento que não deu certo? – insistiu – Você não pode garantir que sua artista continue solteira no Brasil!

 

--Ela me deixou por ciúmes de você! – admitiu – Agora eu tenho que ir! – abriu a porta da sala rapidamente – Vejo você na semana que vem! – saiu e fechou a porta

 

--Ciúmes de mim? – sorriu vitoriosa – Então o casal conversava sobre mim? – falava consigo mesma – Elza, Elza, Elza... – foi até a janela e viu o carro que partia – Você acha que pode me fazer dar o que deseja sem me dar o que não sai do meu pensamento... – cruzou os braços – Apesar de tudo, age como uma menina tola querendo jogar com uma mulher experiente... – mordeu o lábio inferior – Mas eu terei você exatamente como desejo! – garantiu – Esteja certa!

 

“Essa foi por um triz!” – Elza pensava enquanto seguia no carro – “Não posso ir tão longe sempre. Não sei até que ponto ela vai continuar sendo uma dama.” – considerou – Ai! – suspirou – “Como diria Yara: ô, glória!” – abanou-se mesmo sentindo frio

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

Renata ganhava a rua saindo da penitenciária sem olhar para trás. Coração batendo forte e olhos marejados, desejava aproveitar com sabedoria a chance que estava recebendo para recomeçar. Ao ver que a mãe a aguardava encostada em um Fusca, não conteve as lágrimas e se lançou nos braços dela chorando de emoção.

 

--Deu certo, mãe! – chorava com os olhos fechados – Nós conseguimos! – abraçava-a com força – Conseguimos!

 

--Own, meu amor! – abraçava-a igualmente emocionada – Depois de tanto sofrimento, finalmente poderemos recomeçar! – desvencilhou-se com gentileza e beijou-lhe a testa repetidas vezes – Uma vida nova nos aguarda! – sorria com os olhos úmidos – Mas eu não vim recebê-la sozinha. – olhou rapidamente para o lado – Outra pessoa também veio vê-la.

 

--Jurema? – surpreendeu-se – Porr*, eu também te devo um mundo! – foi até ela e a abraçou – Graças a você conseguimos finalmente virar o jogo! – interrompeu o abraço e sorriu – Te devo eternamente!

 

--Não me deve. – respondeu gentilmente – E eu não fiz outra coisa senão intermediar com pessoas que nos deram as informações valiosas. – mostrou um embrulho – Isso é pra você. – ofereceu – Meu desejo sincero de que possa recomeçar e nunca mais tropeçar nas mesmas pedras. – sorriu

 

--Pra mim? – recebeu o embrulho e o abriu – Olha, mãe! – mostrou – Que colar da hora! – ficou toda prosa

 

--Artesanato indígena de irmãos da tribo de onde vim. – esclareceu – É o colar feminino da luta. – passou a mão nos cabelos – Que você tenha sucesso na sua luta!

 

--Não vai mais sair do meu pescoço! – colocou o colar – Só quando o tempo naturalmente o tirar de mim. – sentia-se grata – Muito obrigada, Jurema! Por tudo!

 

--Faço minhas as palavras da minha filha! – Jaqueline concordou – Você, os camaradas do Comuna e o primo do seu amigo foram essenciais pra que tudo desse certo e finalmente essa condicional fosse concedida! – sorria

 

--Estamos nessa Terra pra nos cuidar. – a indígena afirmou com sinceridade – Bem, agora preciso ir porque o pessoal me aguarda. – preparava-se para partir – Estamos em atividade com o Movimento dos Povos Originários aqui na capital e o tempo voa! – sorriu

 

--Quer uma carona, querida? – Jaqueline ofereceu

 

--Não, obrigada. – agradeceu – Os camaradas Maria e João me aguardam ali. – apontou para um Corsa

 

--Então... Yara deve ter vindo também, né? – Renata perguntou receosa – Ela ainda... me odeia?

 

--Digamos que ela não seja sua fã, mas não te odeia. – respondeu com cuidado – Não poderia esperar outra coisa, concorda?

 

--Tá certo... – passou a mão nos cabelos – Mas eu prometo que um dia ainda vou mostrar pra todos vocês no Comuna que mudei e que posso ser uma pessoa confiável! – garantiu – Eu juro!

 

--Tomara! – afastou-se lentamente – Felicidades pra vocês! – soprou beijos para as duas mulheres e seguiu seu rumo

 

--Vamos embora, querida! – Jaqueline pediu – Daqui pra Sorocaba é chão! – comentou animada

 

--Eu sei... – passou a mão no pescoço e sentiu a gargantilha eletrônica e o colar ao mesmo tempo – Curioso que no pescoço vou levando os símbolos da minha prisão e da minha liberdade... – pensava em voz alta – Mas vamos lá! – sorriu – Temos muita coisa pra fazer!

 

 

São Paulo, estado de São Paulo

 

Elza cumprimentava e abraçava animadamente o pai e Fernandão ao mesmo tempo, enquanto Goulart timidamente aguardava o momento de se aproximar.

 

Mais ao longe, Yara observava sua amada com os olhos marejados. Sabia que ela voltaria naquele dia e aproveitou uma viagem de serviço para ir vê-la, mesmo que a militar sequer desconfiasse. Quase escondida atrás de uma pilastra do aeroporto, gastou ainda uns segundos de observação silenciosa, até que decidiu partir sem ser notada.

 

“Feliz natal, Elza!” – desejava mentalmente – “Feliz 2019!” – derramou uma lágrima – “Graças a Deus você chegou bem, agora vamos às obrigações do dia.” – olhou para o relógio – “Ainda temos uma tese para assistir!” – andava rapidamente

 

 

Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro

 

--Amor... – Jonas chegava na sala desconfiado – Eu tô louco ou dia desses você conversou com Elza ao telefone por duas horas? – sentou-se no sofá ao lado da esposa

 

Estranhou a pergunta. – Louco, por que? – não entendeu – Não lembra que ela me ligou no dia do aniversário da Nicinha? Toda preocupada porque não sabia que eu tinha perdido nosso bebê? – olhava para o homem – Lembra que a gente tinha acabado de chegar da casa da sua tia?

 

--E ela te disse que ia voltar no dia 20, mas que infelizmente não ia dar pra passar as festas com a gente, não foi? – continuava perguntando

 

–Isso. – respondeu desconfiada -- Aí tia Malu foi pra São José no réveillon. – cruzou as pernas – Aconteceu alguma coisa?

 

--Ela... te falou que tudo isso era por causa da posse do Montanauro? – insistia – Alana também não falou nada? Nem tia Malu? – olhava para a esposa

 

--Oi? – não entendeu – Como assim, amor? – acabou achando graça – Que é que tem a ver? Elza não suporta ele!

 

--Então me diz o que ela tá fazendo aqui? – pegou o celular e mostrou-lhe uma foto

 

--O que?? – pegou o celular e ficou olhando abismada – Que porr* é essa?? – não entendeu o que via

 

--É o que eu tô querendo entender... – o homem respondeu intrigado

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Celeste se aproximava de Yara furiosa com o jornal nas mãos. -- Eu não dizia, camarada, sempre não lhe adverti? – falava de cara feia – Mas não, você nunca me ouviu!

 

--Oi, camarada Celeste, tudo bem? – a indígena respondeu com ironia – Acabei de chegar, como vão as coisas?

 

--Sem essa! – parou diante da outra – Por enquanto estamos só nós aqui e podemos conversar abertamente! – entregou o jornal nas mãos da indígena – Olha onde a sua milica foi parar!

 

Yara atentou para uma foto na primeira página e arregalou os olhos. – O que?? – surpreendeu-se – “O que ela faz na posse do Montanauro??” – não entendia – “Não é possível que ela tenha se pegado com esse pessoal!”

 

--E agora, camarada? O que é que você me diz? – cruzou os braços – Vai continuar dormindo com o inimigo? – cobrou

 

--Elza e eu já não somos um casal há um ano! – devolveu o jornal a outra – Eu não sei o que ela faz aí, mas com certeza, não estamos do mesmo lado! – afirmou com firmeza

 

--Ela é contra nós, camarada! – afirmou enfática – Será que agora a ficha caiu?

 

--Caiu! – a professora balançou a cabeça confirmando – Elza faz parte do grupo dos nossos inimigos!

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

Castrodeza entrava em sua sala de cara feia. Ignorando os demais colegas de trabalho fechou a porta sem dar uma palavra.

 

“Maldita vadia!” – andava de um lado a outro na sala – “Eu não movi um dedo e ainda assim ela conseguiu o que desejava!” – pensava em Elza – “Ela aceitava os meus convites não porque acreditasse que eu fosse ajudá-la, mas para ser vista comigo!” – concluiu – “Acabou me usando para conseguir visibilidade a ponto de conquistar por si só a oportunidade que buscava dentro do novo governo!” – parou diante da janela – “E eu acreditando que ela era um tola que estava nas minhas mãos!” – riu brevemente – “Eu a subestimei...” – considerou – “Até a promoção para tenente coronel ela ganhou...” – cruzou os braços – “Não vou agir para tirá-la de onde está, pois pode acabar me sendo útil, mas você também vai provar um gosto de derrota, Elza Machado!” – prometeu – “Espere que em breve você terá uma bela surpresa!” – prometeu – “Vadia!”

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--Diante das vossas atitudes, até mesmo os mais observadores confundir-se-ão. – Machado olhava para a filha – A garbosa, minha doce Beleza Negra e seus familiares, vossa amiga Alê... – pensava nas pessoas queridas – Creio que vossa ex consorte quiçá a julgue por traidora atroz da palavra dita! -- considerou -- Julgar-te-ão oportunisticamente desviada pelos fortes ventos de boreste!

 

--Não quero saber do que vão pensar, pai. – respondeu com firmeza – Se cheguei até aqui, não é hora de voltar atrás! – olhava para o homem – O que me importa saber é apenas uma coisa: o senhor está do meu lado?

 

Prestou uma continência respeitosa. – Sempre, minha empoderada tenente coronel!

 

Fim do capítulo