Amaralina aguardava na sala de visitas do Presídio Feminino do Estado de Alagoas. Depois de alguns minutos, uma jovem loura surge acompanhada por uma carcereira.

 

--Tá aqui, doutora. – a funcionária anunciou com seriedade

 

--Obrigada, querida. – levantou-se – Não iremos demorar muito. – reparava na jovem

 

--À vontade. – a carcereira cumprimentou com um gesto e se afastou

 

--Vamos sentar? – a autora convidou – Fica melhor para conversar.

 

Teodásila se sentou desconfiada. – O que viesse ver aqui? – perguntou mal humorada – Viesse rir das minhas fuça? – reparava na outra

 

--Longe disso. – sentou-se também – Esperei o tempo passar, tuas ilusões despedaçarem e aí poder conversar contigo. – falava com brandura – Mas se não quiseres, pode ir. Eu não vou insistir.

 

A loura nada respondeu.

 

--Minha obrigação é garantir a lei e a segurança das pessoas e pelas leis terrenas isso envolve, eventualmente, prender alguém. – cruzou as pernas – Coisa que nem gosto de fazer, daí, mas é o rito. – colocou dois livros sobre a mesa – Deves ter passado por momentos tri pesados aqui dentro e quando saires daqui não será fácil ganhar a vida de forma honesta, porque o sistema não puxa pela correção mas pela reincidência no mal. – empurrou os livros para perto da outra – Tenho orado por ti, como faço por todos aqueles que preciso punir, e trouxe estes livros pra tua leitura.

 

Teodásila achava tudo aquilo muito estranho. – E tudo isso é por que? Porque tá de olho de me comer? – estava arredia

 

Achou graça e balançou a cabeça negativamente. – Nunca comi mulheres, meu bem, apenas faço amor com elas e meu objetivo contigo é nada sexual. – garantiu – Dê-se a chance de ler e permita que Deus te ajude a mudar de vida. – levantou-se – Melhor se corrigir ainda encarnada nessa Terra do que ficar padecendo no Além Túmulo. – aconselhou – Mas se não quiseres ler, dê os livros para alguma detenta ou os deixe aí na mesa mesmo. – soprou um beijinho e se despediu – Fique com Deus!

 

A jovem observou a outra partir e então pegou os livros para ver. – O Evangelho Segundo o Espiritismo. – leu um títudo em voz alta – Recomeçar, de Amaralina Luz. – observou o segundo livro – Hum... – pensava no que ouviu – Pode ser bom pra distrair... – decidiu aceitar os volumes

 

***

 

Abigail chegava no centro de estética onde Moema fazia um tratamento completo. Por ter passado muito tempo no trânsito foi direto para o banheiro.

 

“Ave Maria, por pouco não mijava nas calça!” – pensou aperreada ao se limpar – “Agora deixe procurar minha cabrocha!” – deu a descarga – “E endireitar essas roupa!” – ajeitava a saia

 

--Hahahahaha! – duas mulheres entraram rindo no banheiro – Mundo pequeno, Su! – Moema falava animada – Te encontrar justamente aqui? – admirava-se no espelho

 

--Pequeno mesmo! – Suellen reparava na amiga – Olha, cê tá linda!

 

“Quem é essa com minha noiva?” – pensou desconfiada – “Ficar quietinha aqui modos de ouvir!” – decidiu

 

--Obrigada, amore! – a loura soprou um beijinho para Suellen – Deixa eu usar logo o banheiro que daqui a pouco Bigs chega aí! – ocupou uma cabine

 

--Essa Bigs, -- Suellen encostou-se na pia e virou-se de frente para as cabines – é aquela com quem já te vi em fotos nas colunas sociais? – queria saber

 

--A própria. Minha noiva! – respondeu de imediato – Vamos casar no mês que vem e você tá convidada a partir de agora!

 

Abigail ficou toda prosa ao ouvir.

 

--Eu ouvi falar e fiquei passada! – Suellen respondeu afetadamente – Nunca imaginei te ver com alguém tão... – pensava em como falar – Diferente!

 

“Sujeitinha invejosa!” – Abigail pensou

 

--Ela tem o diferencial que me interessa, meu bem! – deu descarga e saiu da cabine – Dinheiro!

 

“O que??” – a potiguar chocou ao ouvir

 

--Mas não tinha uma outra melhorzinha não? – Suellen insistiu no assunto – Moema, você é linda! – reparava na outra – Com essa cara e esse corpo você arruma mulher rica, homem rico, o que você quiser!

 

--Amiga, trabalho com o que está mais factível. – lavou as mãos – Bigs faz tudo que eu peço, paga todas as minhas contas, já me deu um carro e depois do casamento faço que ela me passe os imóveis. – contava seu plano – Por fim as ações e daí me livro dela. – secou as mãos no papel toalha – Ou você acreditou que eu quero viver com aquela baranga até que a morte nos separe? Nem pensar! – riu

 

--Agora tá explicado! – Suellen riu também e as duas saíram do banheiro

 

“Então...” – sentia-se sem chão – “O tempo todo era tudo mentira?” – os olhos marejaram – “Ela nunca me amou? Era só o meu dinheiro?” – derramou algumas lágrimas – “Ela me acha uma baranga?” – a desilusão machucava seu coração – “Tenho que sair daqui agora mesmo!” – Abigail saiu da cabine, lavou as mãos apressadamente e foi embora quase correndo

 

***

 

Patrícia tocava a campainha da casa dos pais. Vestia uma de suas melhores roupas e segurava dois embrulhos de presente.

 

Segundos depois um homem abre a porta e choca ao vê-la. – Você?!

 

--Oi, pai. – sorria – Vim ver vocês. – estava nervosa – Trouxe um presente de aniversário e uma lembrancinha pra mamãe.

 

--Quem é, Luiz? – uma mulher se aproximou para olhar – Meu Deus! – surpreendeu-se

 

--Oi, mãe! – deu tchauzinho – Não me convidam pra entrar? – aguardava ansiosa

 

--Você acha que porque aparece na internet e na televisão falando um monte de asneiras isso muda alguma coisa? – o homem perguntou à queima roupa – Quando mandei você sair dessa casa, deixei muito claro que não queria filha sapatão!

 

--Nem eu! – a mãe concordou pesarosa – Rezei tanto pra Deus te consertar mas parece que você só piora!

 

--Não queremos você aqui e nem os seus presentes! – Luiz exclamou decidido – Vá embora! – fechou a porta na cara da filha – E não volte mais! -- gritou

 

Patrícia ficou arrasada. Jogou os embrulhos no chão e partiu controlando-se para não chorar.

 

***

 

Khadija chegava na empresa em seu carro. Estacionou e caminhou pela garagem em direção ao elevador. Ao chegar no andar da diretoria foi logo abordada pelo segurança.

 

--Perdoe, mas, seu pai me deu ordens para não lhe deixar entrar! – o homem informou constrangido

 

--O que?? – não entendeu – Isso é absurdo, gentem! – ficou revoltada – Você trate de falar com ele agora ou eu faço um escândalo aqui! – ameaçou

 

--Por favor, calma! – pediu – Eu vou ligar para a secretária dele mas não me faça perder meu emprego, por favor. – pediu nervosamente

 

Cruzou os braços fazendo cara feia. – Então por favor, seja rápido!

 

O homem correu para o telefone. Depois de alguns minutos aproximou-se da mulher.

 

--Por favor, dirija-se à sala de reunião do andar daqui de baixo. – orientou – Seu pai aguarda lá.

 

--Inferno! – revirou os olhos e fez como solicitado

 

Rachid aguardava pela filha olhando pela janela com os braços cruzados.

 

--Que significa isso, hein, papys? – entrou na sala e fechou a porta – Me fazer passar um constrangimento desses dentro da nossa empresa? – queria entender

 

--Em primeiro lugar, não me chame de papys! – virou-se de frente para a jovem – Tenho horror a essas idiotices! – falava com rispidez – E em segundo lugar pare de falar como uma mulherzinha, pois você é um homem!

 

Ficou triste com o que ouviu. – Por que isso agora? – passou a mão nos cabelos – Assumi os negócios desde que voltei dos Estados Unidos, dei um up total nessa empresa e agora não posso nem entrar na minha sala por ordem sua?

 

--Não é mais sua sala! – informou – Estou reassumindo os negócios no seu lugar!

 

--Ah! – chocou-se

 

--Eu não admito mais ver você esfregando o nome dos Nahim na lama desse jeito! – falava com mágoa – Fazendo tratamento pra virar mulher, querendo ser um clone de Latifah! – olhou para a jovem de cima a baixo com desprezo – Você é um homem e se chama Ihab Nahim! Goste ou não, isso NUNCA vai mudar! – gesticulou – Mas enquanto você continuar nessa luta vã contra a natureza, fazendo sua mãe passar mal todos os dias e me envergonhando diante de todos, não é mais meu filho! Não é mais um Nahim! – os olhos marejaram – Saia daqui e tire seus trapinhos da nossa casa, pois de hoje em diante você não mora mais lá! – ordenou – Cansei de tudo isso!

 

--Pai... – sentia-se arrasada – Você deixou de me amar simplesmente porque decidi ser eu mesma? – perguntou com olhos marejados

 

--Você é uma aberração e ninguém pode amar isso! – derramou uma lágrima – Agora vá embora daqui e faça o que eu lhe disse! – ordenou

 

--Mas... – tentava argumentar

 

--AGORA! – gritou

 

Khadija cobriu a boca com as mãos e se retirou chorando.

 

***

 

Abigail se remexia na cama sem conseguir dormir. Pensava em Moema dia e noite sendo impossível se concentrar em qualquer coisa.

 

Já é madrugada,

E a vida tá parada,

Só penso em como posso te fazer minha mulher...

 

Lembrava dos momentos vividos ao lado da loura. “Ave Maria, aquela bicha já sabia me dar prazer!” -- pensou

 

Teu beijo me enlouquece,

Não sei o que parece,

Esse amor é tão profundo que precisa florecer...

 

--Mas ela não me ama! – disse para si mesma e decidiu se levantar

 

São 5 da manhã,

Não consigo dormir,

E rolo nessa cama sem te sentir,

E é inútil insistir,

Não sei o que fazer se não está aqui, baby...

 

Caminhou até a janela e olhou para fora. – Tira essa mulher do meu pensamento, Jesus amado! Pelas caridade... – pediu ao derramar uma lágrima

 

Amor,

Não é amor, (isso não é amor)...

 

Encostou-se na parede e se abraçou consigo mesma.

 

É uma ilusão que me traz tanta dor...

 

--Por que tinha que ser assim? – chorava

 

Amor,

Não é amor, (isso não é amor)...

 

--POR QUE VOCÊ NÃO ME AMA?? – gritou com o rosto banhado em lágrimas – Eu te dei tudo... – chorava como criança

 

É obsessão,

Dentro do coração...

KLB - Obsessão [1]

 

***

 

Patrícia olhava um álbum de fotografias antigas e lembrava-se da época em que não era assumida.

 

--Almoço na casa da tia Odália! – sorriu – Ai, como eu adorava... – passou a mão carinhosamente sobre a fotografia – Que pena que a senhora já se foi, tia. – passou para a próxima página – Olha eu cantando no coral da igreja! Mamãe tinha o maior orgulho! – olhava as imagens – Papai e eu de bicicleta em Paquetá! – achou graça e avançou mais uma página – Casa de veraneio da vó Nalva! – mirou um ponto no infinito – Todo carnaval era de lei... – lembrava do passado

 

“Emergiram com falta de ar. – Maluca! – Viviane exclamou ao jogar um pouco de água na outra – Quase que a onda leva a gente! – achava graça

 

--E tem outro jeito de te beijar, se não for debaixo d’água? – Patrícia perguntou divertida – É que as vezes o mar prega peças. – riu também

 

--Eu vou sair. – preparava-se para voltar para a areia – Tô molhada demais pro meu gosto! – sentia-se excitada

 

Patrícia decidiu sair também. – Não só você. – caminhavam juntas – Olha só. Cê acha que... – esbarrou propositadamente no ombro da outra – Se a gente assumisse que namora há dois anos e espera ardemente o carnaval chegar pra se pegar no mar e em todo lugar que dá... – conjecturava – Mudaria muita coisa?

 

Olhou indignada para a outra. – Bebeu? – fez cara feia – Acorda, Paty, nossas famílias são super religiosas! Se eles sonharem em saber de nós, tudo vai mudar! – afirmou convicta – E daí seria só esquecer que tem família. – olhou para a frente

 

--Que exagero! – não queria acreditar

 

--Pague pra ver! – respondeu mal humorada -- Mas não me inclua nessa, até porque vou ficar noiva amanhã! – anunciou sem rodeios – Fábio vem aqui me pedir em noivado, meu pai tá sabendo e a essa hora deve tá com tudo no ponto pra churrascada que vai ser.

 

--Noiva?? – parou de andar – E você não me diz nada?? – estava em choque – Eu nem sabia que você e Fábio ainda tavam juntos! – não aceitava

 

--A gente reatou. E o noivado vai ser uma surpresa, nem minha mãe sabe, só o papai. – parou de andar também e olhou para a amiga – E eu não quero ser a sapatão da família. Se você quer, vai fundo, mas me esquece! – deu as costas e caminhou em direção à cadeira de praia

 

Patrícia ficou parada sentindo o mar lambendo seus pés.”

 

--Numa coisa ela tava com a razão... – Patrícia falava sozinha – Depois que me assumi, tudo mudou e perdi a família... – sentia-se triste – Pra sempre...

 

***

 

Khadija e Latifah conversavam em um barzinho.

 

--Aí eu pesquisei e descobri que quando o homem ou a mulher da capa preta não tão conectados com a real em relação a uma parada sob julgamento, rola de ter alguém ou uma pessoa jurídica como amici curiae; -- caprichou na pronúncia – sentiu o latim, honey? – deu um tapinha na mão da outra e riram brevemente – Isso tudo é pra clarear o assunto e dar um help pro capa preta num julgamento onde geral tem interesse no babado. – explicava

 

--E no caso de uma pessoa trans quem poderia fazer esse papel de amici curiae? – Khadija perguntou interessada

 

--Um médico ou um psicólogo de cabeça aberta e super fodástico na argumentação. – respondeu afetada – Claro que também super bem assistido por um advogado igualmente foda! – bebeu um gole de seu drinque

 

--Interessante. – bebeu um gole também – E tô super orgulhosa de você! Super conectada no Direito! – sorriu

 

--Aqui não tem quem durma no ponto, meu bem! – piscou para a outra – Eu vou ser uma advogada de abalar os alicerces e você já é uma gestora super power mega fodástica!

 

--E desempregada, né? – comentou desanimada – Desde que baba me jogou no vento não houve quem me desse emprego nem de balconista de loja! – abaixou a cabeça e ficou olhando para o copo – Nunca fui de ter muito dinheiro em conta, a gente aplicava tudo junto, em família... até nisso me ferrei! – fez beicinho – Quando o saldo em conta zerar, tô fudida!

 

--Sem pessimismo, pode ser? – perguntou brincalhona para desanuviar – Essa merd* não vai durar pra sempre! – Latifah destacou – Seu currículo é foda! Não conheço quem tenha um melhor!

 

--E de que adianta, se sou doente, né? – bebeu mais um gole – Pelo menos na cabeça de muita gente, eu sou!

 

--Ih, Khadija, tira essa nuvem black de cima, viu? – fingiu que abanava – Já sei! – teve uma ideia -- Vamos sair daqui e dançar até se acabar! – propôs – Tô sabendo de uma boate louca que inaugurou na semana passada e a gente ainda não foi lá abrilhantar! – sorriu – E aí, diva, topa ou dá pra trás?

 

--Eu adoro dar pra trás! – respondeu brincalhona

 

--Ai, que bandida! – fez um gesto afetado

 

--Vamos na tal boate! – decidiu mudar o astral – Mas antes, parada técnica no pipi room, tá? – falou mais baixo

 

--Demorou! – terminou de beber o drinque e se levantou

 

Khadija se levantou também e as duas se dirigiram ao banheiro feminino. Ao se aproximarem da porta um segurança as abordou.

 

--É... desculpe! – segurou o braço de Khadija – Mas nesse banheiro não! – advertiu

 

--Ih, mas o que é isso, hein? – Latifah perguntou desaforada – Agora é assim? Esse barzinho paga um capataz pra ficar cagando regra sobre quem pode ir no banheiro e quem não pode? – colocou as mãos na cintura

 

--Quer me soltar? – Khadija se desvencilhou

 

Os clientes do bar começaram a prestar atenção.

 

--A senhora pode ir. – o homem olhou para Latifah – Mas a senhora, -- olhou para Khadija – é no masculino! – respondeu de cara feia

 

A mulher trans morreu de vergonha com a observação.

 

--Ih, é veado! – alguém comentou

 

--Olhando ninguém diz! – outra pessoa respondeu

 

--What?? Masculino?? – Latifah estava revoltada – Quem é o gerente dessa birosca old fashion, hein? – perguntou em voz mais alta -- Olha só, você fique sabendo que... -- gesticulava

 

--Habibem? – Khadija segurou delicadamente uma das mãos da outra – Por favor... – os olhos estavam marejados – Vamos embora? A gente usa o banheiro de outro lugar. – pediu constrangida

 

--Jura?? – não acreditou – Eu tô baixando um Jiraia aqui pra destruir esse lugar! – afirmou afetada

 

--Vamos embora, deixa ele pra lá. – referia-se ao segurança

 

Deu um suspiro profundo. – Tá bom. – concordou contrariada – E você fica esperto, -- virou-se para o homem -- porque depois que eu me formar, essas merd*s vão acabar nessa cidade! – gesticulou com fé – Não queira me ver rodando uma baiana trabalhada no Direito! – ameaçou

 

--Por favor, amore! – Khadija insistiu entristecida

 

--Só porque você pediu! – segurou a mão da amiga e foram embora

 

--Eu hein! – o segurança resmungou e acabou achando graça – Tão gata e perdendo tempo circulando com traveco! – reparou nas duas enquanto se distanciavam – Se bem que eu comia as duas... – sorriu malicioso

 

***

 

Vera estava no Rio de Janeiro à serviço. Havia sido demandada a trabalhar em uma aquisição de dados para fazer uma reconstrução tridimensional do Museu do Futuro, na Praça Mauá. Encontrava-se em um barzinho com dois homens.

 

--A gente tomou uma multa porque a reconstrução não ficou legal. – um dos homens dizia – O modelo derreteu e o fiscal do contrato detonou a gente!

 

--O piloto usou uma trajetória automatizada pro drone mas sei lá o que deu errado! – o outro complementou – Quando joguei as imagens no software tive que ralar pra conseguir gerar um sólido consistente, mas mesmo assim não deu! – reclamou

 

--Do que vocês já me explicaram, achei que faltou fazer a devida especificação de câmera e lente pra resolução que se quer, além de programar a aquisição das imagens pra sobreposição correta. – explicava – Não adianta usar uma grande angular e sair tirando foto sem garantir cobertura. Também tem que cuidar do número ISO e da exposição. – pausou brevemente – Vocês conseguiram o que eu pedi? – olhou para ambos

 

--A lente extra! – um dos homens garantiu ao colocar uma pequena bolsa sobre a mesa – A previsão do tempo pra amanhã é de dia ensolarado e céu aberto, ou seja, tudo pra dar certo.

 

--Tamos botando fé em você! – o outro destacou – Vê se faz valer o que me cobrou e as passagens aéreas e a hospedagem que tô bancando pra ti!

 

--Confia na caipira, sô! – respondeu bem humorada – A reconstrução dessa vez vai ficar do agrado de todo mundo. – balançou a cabeça

 

--Tamos contando com isso! – um dos homens falou – Bem, amanhã a gente se vê! – levantou-se da mesa – Esteja às 6h no ponto de encontro. – estendeu a mão

 

Levantou-se também. -- Então tá então! – apertou a mão do cliente e pegou a bolsa da lente

 

--Você vai precisar de algum apoio pra hoje? – o outro homem apertou a mão da caipira também

 

--Agradecida, mas não preciso. – soltou a mão dele – Vou me encontrar com uma amiga. – pensava em Patrícia – Saindo daqui, já vou pro Arpoador.

 

***

 

Sayruci arrumava a casa aproveitando seu único dia de folga semanal.

 

--Tomara que tudo dê certo pra minha caipirinha lá no Rio. – falava sozinha enquanto guardava as roupas no armário – Ih, meu Deus. – encontrou uma caixa de óculos entre seus pertences – Isso aqui é da Abigail! – pegou a caixa e colocou em cima do móvel próximo à cama – Aquela vez que dei aula pra ela e trouxe por engano pensando que fossem os meus óculos. – lembrava – Quando acabar aqui ligo pra ela e aviso que tá comigo. – continuou trabalhando e depois de uns instantes mudou de ideia – Pensando bem... vou lá levar pra ela. – decidiu subitamente

 

A morena terminou com as roupas e foi até a cozinha beber um pouco de água. – Latifah disse que hoje ia fazer uma sessão de fotos de moda primavera-verão junto com Khadija. – continuava falando sozinha – Como será que foi?

 

Bem longe dali, Latifah, uma estilista e três fotógrafos aguardavam apreensivos.

 

--Eu acho que a gente devia começar logo! – um dos fotógrafos sugeriu – Essa Khadija tá deixando claro que não vem! – estava revoltado – “Não sei pra que tinha que meter viado no meio!” -- pensou

 

--Impossible! – Latifah tentava contato telefônico em vão – Duvido que ela ia perder a primeira sessão de fotos daquela vida transformada! – achava estranho – Alguma coisa deve ter acontecido com ela, gentem! – olhou para os demais

 

--Mas aí faz o que? – outro fotógrafo perguntou – Remarca pra outro dia, faz hoje sem ela mesmo...?

 

--Remarcar nada! Vamos fazer só com Latifah e acabou! – a estilista decidiu mau humorada

 

--Por mais que eu ame seu estilo de paixão, honey, não tem como trair uma amiga desse jeito, daí! – a jovem gesticulou afetada – Nem que vocês desistam de nós e convidem outras pro nosso lugar! – caminhou até a bolsa que repousava sobre um sofá e a pegou – Vou encontrar essa criatura ou não me chamo Latifah Ajami Hafeez! – olhou para os demais – Kisses! Dou notícias! – anunciou ao se despedir

 

--Latifah! – a estilista chamou em vão – Que merd*! – cruzou os braços contrariada

 

***

 

Abigail caminhava por seu apartamento no Itaim Bibi sentindo-se deslocada dentro dele. Pensava na vida que levava desde que se percebeu rica e constatou o quanto se desviou de si mesma.

 

“Rita, Jailson... como andarão aquelas criaturas? Como andará o Morada?” – lembrou-se dos amigos e colegas de trabalho – “Tia Quitéria... de onde estiver, deve tá morta de desgostosa por causa de mim...” – lembrava-se da idosa e das palavras que um dia ouviu dela

 

“--Você é filha de puta! É neta de puta! Sobrinha neta de puta! – afirmou enfática – Não esconda isso, por favor! – pediu – Porque tem uma monte de Abigail por aí, mas elas ainda não têm a sua força, nem a sua coragem! Elas precisam do seu exemplo! – continuava falando – Porque se tivesse uma Abigail quando eu era moça, tenho certeza que eu teria o que nunca tive: uma voz! – pausou brevemente – Você não é escritora? Então seja nossa voz! O Egito que você nem conhece, não precisa de você, mas as mulher daqui, sim! As puta, sim! – acreditava que era sua última chance de dizer aquelas palavras – Você vai poder fazer muita coisa daqui pra frente! – pensava na herança da sobrinha – Então faça, minha filha, mude vidas! E assim você vai sentir tudo que achou que aquela fantasia de Gail fosse lhe dar.”

 

--E eu escondi... Eu neguei... – Abigail começou a chorar – Eu tive vergonha... – confessava para si em voz alta – Ah, tia... – continuava lembrando das palavras da mulher

 

“--Agora quero que me faça uma segunda promessa, pois no hospital eu disse que te pediria duas! – lembrava – Uma, foi a de me trazer pra terminar meus dias aqui nessa cidade. E a outra é que nunca mais você tenha vergonha de quem você é! – segurou uma das mãos da outra – É só isso que eu quero... – despedia-se do seu jeito – Aprenda a ver o valor além das aparências, minha filha! Não é a capa que faz o livro!”

 

--Eu me deixei levar pelas aparências... – a potiguar chorava entristecida – Tive uma ruma de mulher, mas tudo por causa do que eu podia ver e do tanto que podia gastar pra agradar... – lembrou-se das advertências das amigas

 

“--Mas sou sua amiga e tenho que falar o que você não vê! – Vera dizia – Essa gente que anda contigo, as ricaça, essas namorada aí, só tão de olho no que você tem e não em quem você é! Seus amigo são os que te gostava mesmo você sendo pobre; não é esse povo aí não, sô!”

 

--E eu não quis ver... – caminhou até a janela e olhou para o exterior – Até a caipira pôde ver, menos eu! – Abigail continuava lembrando

 

“–Tudo bem eu vou pensar. Mas você devia pensar também. – Sayruci aconselhou educadamente – Você quer essa Moema apenas pelo que os olhos veem e ela te deu brecha apenas pelo que você tem. Não é assim que se constrói um amor, querida!”

 

--E não é mesmo... – chorava – E eu gastei tanto com tratamento de beleza, estética, enchendo o rabo dessa mulherada de dinheiro pra que? – revoltava-se consigo mesma – Até a advogada veio me passar carão! – lembrava-se das palavras dela

 

“--Ocorre que ontem a contadora me procurou pedindo pra eu buscar conversar com você. – Érica dizia – Em menos de um ano você gastou quase todo o dinheiro que tinha em conta. – pausou brevemente – Se continuar nesse ritmo, seus ganhos com os rendimentos das ações e os aluguéis dos imóveis não serão suficientes pra te manter. – advertiu – E você vai ficar muito mal!”

 

--E tudo isso pra que? – sentia muita dor – Praquela galega desgraçada só querer me depenar e mais nada! – lembrava-se do que ouviu sem querer

 

“--Amiga, trabalho com o que está mais factível. – Moema lavou as mãos – Bigs faz tudo que eu peço, paga todas as minhas contas, já me deu um carro e depois do casamento faço que ela me passe os imóveis. – contava seu plano – Por fim as ações e daí me livro dela. Ou você acreditou que eu quero viver com aquela baranga até que a morte nos separe? Nem pensar! – riu

 

--Agora tá explicado! – Suellen riu também e as duas saíram do banheiro”

 

--Ela não me ama... – encostou a cabeça na parede – Nem ela e nem ninguém... – chorava pesarosamente

 

Abigail deslizou o corpo pela parede até sentar-se no chão. Abraçou-se consigo mesma e reviu inúmeras cenas de sua vida. Dentro da mente, parecia-lhe que estranhas vozes falavam muitas coisas ao mesmo tempo.

 

--Você é uma fracassada, gorda, feia e burra! Pode ter feito aulas de etiqueta mas nunca vai deixar de ser uma sujeitinha sem classe! – a mulher ouvia nitidamente – Ninguém te ama e as poucas pessoas que um dia te amaram estão todas mortas!

 

--Da Casa de Tonha sobrou ninguém, lembra? – outra voz lhe atormentava – Das putas sobrou nenhuma e a própria Tonha morreu do coração. Só sobrou você. E pra que? Fracassada! Você é uma farsa!

 

--Tudo seu é uma mentira, uma ilusão! Até o sucesso como escritora! – mais uma voz a infernizava – Não fossem os seus truques, ninguém nem saberia quem um dia existiu um fake ridículo chamado Gail Nasser!

 

--Dê um fim em tudo isso! – Abigail tampava os ouvidos tentando fugir daquelas palavras duras – Pule da janela e acabe com essa vida miserável que você sempre teve!

 

--Não... – a potiguar chorava em desespero – NÃOOO!!!!!! – gritou

 

***

 

Patrícia caminhava pelo Arpoador. Olhava para as pedras pensando em se jogar no mar que se chocava contra elas. Dentro da mente parecia-lhe que vozes a instigavam a fazer isso.

 

--Quem é Paty Golezzo? – som de risadas – Uma idiota que faz uma militância de merd*, escreve meia dúzia de abobrinhas e que no Brasil da superficialidade conquistou seguidores nas redes sociais. Ora, você tem utilidade pra que? Acrescenta o que? Nem uma namorada você tem competência pra arrumar!

 

--Sua família não te quer! Suas amigas não se importam com você! – outra voz repercutia dentro de si – Você não passa de uma baixinha sem graça, cadeiruda e espevitada que um dia pensou ser celebridade!

 

--Você é um fracasso! Vai morrer como esparro da Joelma e isso se ela não te demitir e colocar outra em seu lugar! – mais uma voz a feria por dentro

 

--Eu sou mesmo uma idiota... – Patrícia dizia para si mesma – Uma dispensável e solitária idiota... – olhava para o mar – Nem mesmo as autoras gostam mais de mim... – lembrava da carta que as Dez Mais escreveram e Amaralina postou – Ninguém gosta... – subiu em uma pedra e ficou olhando para baixo – Se eu me jogar daqui, o mar furioso vai acabar comigo... – pensava em voz alta – Tem que chegar mais perto. – buscava passar para outra pedra mais projetada para o mar

 

***

 

Khadija estava no Parque Nacional Iguazú, lado Argentino, debruçada sobre o bloqueio de segurança. Havia escrito uma carta de despedida, a qual guardou em sua bolsa que fora deixada no chão. Olhava para as águas correntes e pensava em sua vida.

 

Sentia-se solitária, rejeitada, pertencendo a lugar algum. Lembrava das palavras do pai, das reações exageradas da mãe, dos olhares de reprovação de vários conhecidos, dos constrangimentos pelos quais passou e de alguns rapazes que tentaram agredi-la ao descobrir que se tratava de uma mulher trans.

 

Dentro da mente, parecia ouvir pessoas que lhe acusavam de muitas coisas.

 

--Enquanto você foi o filho modelo, melhor aluno e jovem exemplar, todos gostavam de você! Agora que desejou provar o gostinho da liberdade, o que eles fazem? Expulsam você de casa, cospem sobre seu nome e te tratam como um lixo! – a jovem ouvia nitidamente – E nada disso é em vão porque você é uma aberração! Homem que quer ser mulher? Isso não existe! É doença! Contra as leis de Deus e da Medicina!

 

--Acha que Latifah gosta de você? Que ela sente qualquer coisa por você? – risadas -- Ela tem pena e se satisfaz com uma amiga que a trata como deusa! Mas por trás, ela ri da tua cara! Latifah te acha ridícula!

 

--Você virou chacota na cidade inteira! – outra voz a castigava – Quer ser livre? Saia desse corpo e venha ser mulher no Além! Pula esse bloqueio e se joga no rio. Será uma morte rápida!

 

Olhando para baixo, Khadija estava decidida a se matar.

 

***

 

Sayruci estava parada em frente à porta de Abigail. O porteiro não anunciou sua chegada porque há meses atrás a potiguar havia lhe orientado a deixa-la entrar sem restrições.

 

--Está demorando! – tocou a campainha – E o porteiro disse que ela não saiu. – estranhava – Será que tá dormindo? – olhou para o relógio – Não é possível!

 

Abigail estava em pé na janela do quarto tentando passar para o lado de fora e por isso não ouvia o som da campainha. Firmava-se na estrutura de alumínio preparando-se para saltar. “É muito alto!” – pensou – “Não tem como sobreviver à queda!” – olhou para baixo rapidamente – “Mas eu tenho que passar toda pro lado de fora pra não ficar pendurada ou enganchada de alguma forma!” -- planejava

 

A porta do apartamento da potiguar contava com uma fechadura eletrônica ativada por senha, o que dispensava chaves.

 

--Ela me deu a senha uma vez, será muito abuso se eu simplesmente entrar? – a morena se perguntava – Pode ser que tenha acontecido alguma coisa e ela precise de ajuda! – decidiu que valia a pena arriscar – Ah, qualquer coisa ela briga comigo. – digitou a senha e recebeu mensagem de erro – Calma, Sayruci, pensa! Qual é o número certo mesmo? – fechou os olhos

 

No litoral, Vera caminhava pelo Arpoador procurando por Patrícia. – Uai, ela me disse que ia tá por aqui! – estranhava não ver a jovem – Será que esqueceu de mim? Tava tão interessada em conversar sobre a participação da Khaalii no Congresso e de repente... – a visão de uma mulher em cima de uma pedra chama sua atenção – Mas o que...? – preocupou-se – Eita boi, isso não tá me cheirando bem! – correu em direção à outra

 

Em Foz do Iguaçu, Latifah atravessava a ponte Tancredo Neves o mais rápido que podia.

 

--Depois de todos os lugares que fui e telefonemas que dei, se essa cachorra não tiver no Parque, não sei nem o que pensar! – a jovem falava sozinha enquanto dirigia – Khadija disse que gostava de espairecer no lado argentino quando ficava down. – lembrava-se do que ouvira da amiga – Então ela tem que tá por aqui, não é possível! – estava tensa – O foda é que o parque é imenso! Tem que confiar na intuição! – olhou rapidamente para o relógio – Ai, Minha Nossa Senhora das Divas, ajuda a gente, please! Não desampara uma das Suas, pelamor! – lembrou-se de um detalhe importante – O chefe da segurança me dá o maior mole, gentem! Pedir pra ele passar um rádio pra todo mundo naquele parque pra ver se alguém sabe onde Khadija se meteu! – teve uma ideia – Chegando no parque, vou logo atrás do bofe!

 

--Essa é minha terceira e última chance de acertar essa senha! – Sayruci fechou os olhos e postou as mãos em oração – Meu Deus, Pai Amado, eu não sei porque desde que pensei em Abigail hoje meu coração se apertou! Por favor, me permita acertar a senha e entrar nesse apartamento porque algo me diz que alguma coisa muito ruim pode ter acontecido ou está para acontecer! Não sei explicar, apenas sinto. – concentrava-se para lembrar do número certo

 

Vera subiu em uma pedra o mais rápido que pôde. Estava a uns 300m de Patrícia mas o vento forte que soprava abafou seus gritos chamando pela amiga. -- Ô, diacho, que ela quer pular! – a caipira tentava se aproximar com ligeireza porém as pedras estavam escorregadias – Eita, que só dá pedra quiabo! – reclamou

 

--Localizaram alguém de acordo com a descrição da tal Khadija na passarela de acesso pro Salto San Martin. – o chefe da segurança informou à jovem – Só pode ser ela!

 

--Ai, bonitão, me leva pra lá agora mesmo! – Latifah pediu sedutora ao segurar o homem pela gola do uniforme – Minha forma de mostrar gratidão é um arraso! – prometeu o que não cumpriria – Bota fé!

 

--Ah! – engoliu em seco – Agora! Vem comigo! – segurou a mão dela e partiram

 

--Graças a Deus! – em São Paulo, Sayruci finalmente conseguia abrir a porta do apartamento da potiguar – Que silêncio! – pensou no pior – Abigail! – chamou e correu em direção ao quarto da mulher – Minha Nossa, criatura! – arregalou os olhos ao vê-la pendurada na janela – Pelo amor de Deus, não pula! – estendeu as mãos apavorada – Não se joga, por favor, não faz isso!

 

--Fique aí na sua e não venha me infernizar também! – Abigail respondeu com o rosto banhado em lágrimas – Eu vou me matar e é decisão tomada, não sabe?

 

--Patrícia! – no Rio, Vera conseguiu parar em uma pedra a 50 m da jovem – Não pula daí, que isso vai ser a maior bestagem da sua vida! – pediu nervosamente

 

--O que? – olhou para trás reconhecendo a caipira – Tá fazendo aqui o que? – chorava – Você não sabe nada de mim, nada! – virou-se de frente para o mar mais uma vez – Eu vou dar um fim a tudo e nem ouse tentar me impedir! – gritou

 

--KHADIJA!! – Latifah berrou ao pular do carrinho da segurança do parque – Desce daí agora mesmo, amiga! – aproximava-se lentamente – Diva nenhuma comete suicídio e quando morre é por um descuido! – gesticulou afetadamente

 

--Eu não sou diva, não tente me fazer de idiota! – respondeu amargamente – Vou pular daqui de cima e acabar com esse inferno que é a minha vida! – chorava – Volta pros seus followers e me esqueça! – estava sentada em cima do bloqueio de segurança

 

Luto contra vozes que me dizem,

Que eu não sou capaz,

Contra enganos que me dizem,

Que eu não vou chegar lá...

 

--Você não tem ideia do quanto te entendo! – Sayruci aproximava-se bem devagar – Fui uma prisioneira dentro de mim na maior parte da minha vida e também tentei me matar. – confessou – Desisti apenas depois que fui mãe. – olhava para Abigail – E se tivesse conseguido matar meu corpo, não teria vivido as coisas maravilhosas que vieram depois, quando eu nem acreditava mais.

 

Meus altos e baixos,

Nunca vão medir o meu valor...

 

--Sei muito bem como você se sente, Paty! – Vera respondeu emocionada – Fui como um traste, uma coisa jogada fora por muitos anos! – tentava se aproximar – Acha que eu nunca pensei em me matar também?

 

A Tua voz me lembra,

E me diz quem realmente sou...

 

--Você é o que você quiser, amiga! – Latifah argumentava com suavidade – Não são os outros que dizem quem é Khadija! É você quem diz! – emocionou-se

 

Diz que amada sou,

Sem que eu me sinta assim...

 

--Você é amada, Abigail! – Sayruci continuava se aproximando – Por mim, por Vera e por outras pessoas que conseguimos ver você além das aparências! Sem truques e sem fantasias!

 

Diz que forte sou,

Quando há fraqueza em mim...

 

--Você é forte, Paty! – Vera continuava em sua trajetória – Se chegou até aqui, consegue ir muito mais longe! Você ajuda os outros! É uma pessoa boa...

 

E que segura estou,

Se frágil eu me sentir...

 

--Todo mundo fraqueja em algum momento, amiga! – Latifah dizia – Todo mundo chora, sente medo, fica down! – argumentava – Você não se torna pior por causa disso!

 

Que não estou só,

Pois eu pertenço a Ti...

 

--Você é valiosa! – Sayruci falava com carinho – Uma filha de Deus, não merece menos que a felicidade!

 

Eu creio sim, eu creio sim,

No que diz sobre mim...

 

--Acredita no que te digo, Paty! – Vera secou os olhos com uma das mãos – Hoje eu sei que ninguém é uma peça sobrando nesse mundo véio sem porteira!

 

Tudo o que me importa agora,

É o que Tua voz me diz...

 

--Ninguém nasce à toa, honey! – Latifah continuava argumentando – Muito menos uma diva como você!

 

A minha identidade e o valor,

Só encontro em Ti...

 

Sayruci estendeu a mão. – Vem comigo, por favor! – estava chorando

 

--Por que você se importa? – Abigail perguntou transtornada

 

--Porque sem você o mundo ficará pior! – deu um sorriso triste

 

Diz que amado sou,

Sem que eu me sinta assim,

Diz que forte sou,

Quando há fraqueza em mim...

 

Vera finalmente conseguiu alcançar a influencer e a puxou em um abraço forte. – Não desiste de viver, por favor! – sussurrou no ouvido dela – Por favor! – sentaram-se sobre as pedras

 

--Ah... – Patrícia chorava nos braços da amiga – Ah...

 

E que segura estou,

Se frágil eu me sentir,

Que não estou só,

Pois eu pertenço a Ti...

 

--Se você se matar, vai ser como se uma parte de mim morresse também! – Latifah declarou ao derramar algumas lágrimas – E eu não tava preparada pra isso! Sacanagem, viu? – começou a chorar – Uma diva nunca trai a outra, tá? – gesticulou desaforada – Fique sabendo!

 

--Ai, gentem! – Khadija pulou para dentro da passarela de volta – Não, amiga, eu não sou traidora! – correu até a outra e a abraçou emocionada – Chora não! - chorava

 

Eu creio sim, eu creio sim,

No que diz sobre mim...

 

--Vem? – Sayruci abraçou a outra pela cintura – Ou então vamos morrer as duas! – fechou os olhos

 

--Ave Maria! – Abigail passou para dentro com o apoio da morena – Tu é uma amiga da porr*, visse? – abraçou-a com força – Da porr*! -- chorava

 

Diz que amada sou,

Sem que eu me sinta assim...

 

Em três cidades distintas, seis amigas selavam abaixo de Deus sua força de vontade em continuar lutando, mesmo quando tudo parecesse perdido.

 

Diz que forte sou,

Quando há fraqueza em mim...

 

Elas entendiam que o sofrimento fazia parte da vida e que o despedaçar das ilusões não necessariamente tinha que ser um fim.

 

E que segura estou,

Se frágil eu me sentir...

 

Mas podia se tornar um novo começo.

 

Que não estou só,

Pois eu pertenço a Ti...

 

Tudo era apenas uma questão de escolha.

 

Eu creio sim, eu creio sim,

No que diz sobre mim...

 

E elas escolheram viver e recomeçar.

 

Eu creio sim, eu creio sim,

No que diz sobre mim.

Gabriela Rocha – Diz (You Say) [2]

(https://www.youtube.com/watch?v=LF1UnPP4MvY)

 

(NOTA DA AUTORA: Eu mudei esse capítulo recentemente para dar muita ênfase na descrição dessas três tentativas de suicídio por saber que no nosso meio LGBT é algo muito frequente, diante de todos os preconceitos e agressões que sofremos. Há poucos dias, do lado de cá perdemos alguém muito especial que se foi dessa forma e foi um impacto muito grande. Ainda sinto.

Eu mesma confesso que já pensei em me matar há uns anos atrás, quando a dor da rejeição me pareceu insuportável. Não cheguei nem perto de tentar concretizar, mas pensei em fazê-lo, ouvi o “apelo” dentro de mim, porém, ao final, posso dizer que o Amor venceu. O Amor de Deus que aprendi a sentir com o tempo e que me dá forças diante das batalhas deste trem tão doido, forte, lindo e maravilhoso que se chama vida. O Amor das pessoas ao redor.

Então se um dia você pensar nessa hipótese, não tenha vergonha de procurar ajuda, seja das pessoas amadas, seja ajuda profissional. Independente de sua fé, ore e entre em comunhão com Deus. Se não crê nEle, busque cultivar pensamentos bons e otimistas. Entenda-se como uma pessoa valiosa e que se está nesta Terra não é sem razão.

Essa é minha humilde tentativa de plantar a semente da esperança em quem sofre e também, não nego, uma forma pálida de aplacar aquele sentimento de que se poderia ter feito algo por quem se foi por decisão pessoal)

 

***

 

Samir pensava na vida contemplando o jardim de sua casa. Constatava que apesar de toda sua riqueza não passava de um homem antipatizado e solitário.

 

“Minha filha me acha um ogro de terno, Sazii me deixou pela primeira sapatão que apareceu, meus pais se afastaram bastante de mim depois de todo escândalo que aconteceu no ano passado, meus funcionários me temem e me detestam...” – refletia sobre si mesmo – “Será possível que errei em tudo que fiz?” – os olhos marejaram – “Até minha ex sogra, minha única amiga em todo esse tempo, acabou me largando de mão...” – derramou uma lágrima – “Queria tanto dar uma reviravolta na vida... mas não sei nem por onde começar!” – secou os olhos com as costas da mão – “E essa audiência de conciliação pro divórcio, hein?” – inquietou-se ao lembrar – “Como vai ser isso? E se Sazii mudar de ideia e justo agora que aceitei o divórcio, requerer partilha dos bens? Eu não aceito sustentar uma sapatão de lambuja!” – não queria pensar nessa hipótese – Quer saber? – levantou-se da cadeira – Deixa eu voltar pra empresa que tem muito trabalho me esperando! -- decidiu

 

Em outra parte da cidade, Zorayde caminhava pelas ruas pensando na vida. Desde o acidente que sofrera andava muito abalada.

 

“Que vida é essa que eu levo?” – refletia sobre si mesma – “Desde o casamento me transformei em outra pessoa! Uma mulher ultrapassada, preconceituosa, dura! E a cada traição de Amin, pior eu ficava!” – admitia para si mesma – “Fui péssima mãe! Pra todos os meus filhos, especialmente Sayruci. E tudo pra que?” – os olhos marejaram – “Pra que eles fossem irrepreensíveis e perfeitos como eu e meu marido nunca fomos! Como prêmio, o que recebi? A solidão!” – derramou uma lágrima – “Todos partiram, fiquei sozinha e se tivesse morrido ninguém sentiria a menor falta, pelo contrário!” – sentia-se triste – “Meus netos sequer têm contato comigo e Latifah, a única que vive na cidade e que ainda lembra que tem vó, me acha uma vergonha!” – a frustração tomava conta de si -- “Acho que vou fazer uma viagem por aí e espairecer!” – decidiu – “Tenho que dar uma guinada na minha vida, tenho que me reencontrar...”

 

***

 

Abigail conversava com Érica no escritório da advogada. Falavam sobre as providências para o cancelamento do casamento da potiguar.

 

--Eu consegui cancelar o aluguel do Beach Club, do buffet e da danceteria sem multa de rescisão depois de muito trabalho! – declarou enfaticamente – As cerimonialistas concordaram em reduzir a multa pra 5% do valor total dos serviços e os DJs, músicos e tal não darão problemas. – olhava para a potiguar – O costureiro também deu trabalho mas aceitou que você pagasse apenas pelos tecidos que ele comprou. Porém, no caso dos convites não tem jeito! Você vai ter que pagar o valor integral.

 

--Dos males o menor! – concordou com o que ouviu – E o carro que dei praquela uma? Consigo tomar? – queria saber

 

--Você pagou à vista e o veículo está no nome dela. – abriu os braços brevemente – Já era!

 

--Humpf! Bicha bandida! – cruzou os braços revoltada – Tem problema não! – desistiu de insistir – Mais tem Deus pra dar que o diabo pra tirar, não sabe? – afirmou conformada

 

--Verdade... – pausou brevemente – Agora que tudo isso aconteceu, perdoe minha indiscrição, mas tenha mais cuidado com quem você se envolve e segura os gastos porque já te avisei!

 

--Eu abri os olhos, fique tranquila. Vi que tinha me transformado numa bicha fútil e superficial. – admitiu com humildade – Não podia atrair pra mim nada diferente disso, não sabe?

 

--O importante é aprender com os erros. – a advogada respondeu gentilmente

 

--Posso demorar a aprender, mas quando aprendo é de verdade! – levantou-se da cadeira – Agora tenho que correr atrás do prejuízo. – pensava em procurar por Rita e Jailson

 

--Vai dar tudo certo. – apertou a mão da outra – E lembre-se: estarei sempre aqui! – sorriu

 

--Sorte a minha! – soltou a mão de Érica – Obrigada por tudo! – soprou um beijo e partiu

 

--É, dona Quitéria... – a advogada olhou para cima – Depois de um ano, agora eu acho que vai! – sorriu

 

***

 

Sayruci e Vera voltavam do restaurante onde a morena trabalhava. A caipira vinha dirigindo.

 

--Amor, eu tava pensando hoje mais cedo que setembro começou muito tenso! – passou a mão nos cabelos – O casamento de Abigail foi cancelado, -- enumerava nos dedos -- ela, Paty e Khadija tentaram o suicídio no mesmo dia, maama sumiu no mundo viajando por sabe-se lá onde e minha última audiência de conciliação tá batendo na porta... – olhou para a amada – Como será que vai ser isso, hein? Será que na hora H, depois de tudo, Samir desiste de me dar o divórcio de novo?

 

--Deus nos livre, uai! – olhou rapidamente para a morena – Aconteceu muito trem pesado mas o lado bom é que tá tudo se engrenando, minha linda! – prestava atenção ao trânsito – Abigail caiu em si, Paty voltou cheia de disposição e Khadija tá organizando a vida com a ajuda de sua filha. – considerou – Acho que até que, quando é fé, essa viagem de sua mãe pode ser uma boa pra ela cair em si também. – balançou a cabeça – E esse teu ex marido aí, deixe ele comigo! – fez cara feia – Já botei tudo que é alma nos encalço dele pra amansar e se vier de graça meto-lhe um soco no meio das fuça! – afirmou com raça

 

--Hum, que caipira brava, meu Deus! – segurou a outra pelo rosto e a beijou nos lábios

 

--Sayzinha! – achou graça – Olha o trânsito! – voltou a prestar atenção na direção

 

--Eu vi que o farol ia fechar! – passava uma das mãos na coxa da outra – Também tenho orado muito pra Samir não criar problemas, que ele encontre alguém que o ame, que ele também ame e que refaça a vida com essa pessoa. – desejou – Como também oro pra que se torne amigo de Latifah!

 

--E vai se tornar, tenha fé! – acreditava

 

--Amor... – acariciava a coxa da outra – Também estive pensando em como você me ajudou e ajuda a enfrentar meus demônios internos... – olhava para a caipira – Em como me dá forças pra superar as lembranças ruins quando elas vêm... – sorriu – Eu oro a Deus pra que ele me ajude bloqueando todas elas na minha mente, mas essas coisas não acontecem da noite pro dia e... você tem sido uma amiga e uma companheira maravilhosa! – declarou com sentimento – Também oro muito por você e pra que seu pai abra os olhos!

 

--Own, Sayzinha... – olhou rapidamente para a morena e cobriu a mão dela com a sua própria – Você também tem sido o que de melhor aconteceu pra mim! – declarou da mesma forma – E eu também tenho um tanto de demônios interiores, como diz você. – confessou – Quero te dar tudo de bom que puder! – falou com intensidade – Sobre meu pai, deixe quieto.

 

--Hum, amorzinho! – beijou o rosto da outra repetidas vezes

 

--Não desconcentra a caipira! – brincou toda prosa – Olha a segurança no trânsito! – sorria

 

--Tá bom! Parei! – ajeitou-se no assento e segurou uma das mãos da amada

 

--Outra coisa também é que eu bem tenho recebido um bom dinheirinho com foto e filmagem! – exclamou empolgada – E nem preciso pagar taxa pra ninguém!

 

--Taxas das quais você praticamente se livrou, né? – considerou – Só sobrou a dos chocolates da sua prima Socorro.

 

--E quando eu não precisar mais vender esse trem, nem isso! – desejou – Também tô doida pra deixar de correr pela Iuba e ficar só nos trabalho com drone!

 

--Também queria poder sair daquele restaurante árabe. – desabafou – Mas o negócio é ter paciência. Quem sabe chegará o dia em que poderei ter meu próprio restaurante de comida vegana? – pensava na hipótese – E aí eu também promoveria eventos, daria cursos, faria trabalhos sociais...

 

--Eu levo a maior fé! – concordou – Por que você não usa suas joia pra investir nisso? – propôs

 

--Não sei explicar, mas ainda não é o momento! – acariciava a coxa da outra – Quando sentir que é, vou apostar. – olhou para a caipira – Assim como quero ver você dona do seu próprio negócio bem estabelecido, com suas câmeras, seus drones... Não seria um sonho?

 

--Com você do meu lado, isso pode até demorar a acontecer, mas eu nem ligo! – sorriu para a morena – Tudo vivido com você é a realização de um sonho, Sayzinha! – parou no sinal e a beijou

 

“Ai...” – suspirou embevecida – Presta atenção... no... farol... – falava entre beijos

 

--O povo espera! – segurou o rosto da outra com as duas mãos e beijou-a com mais paixão

 

“Essa caipira me pira...” – Sayruci pensou apaixonada

 

***

 

Latifah aguardava na sala dos Nahim. Salma e Rachid desciam as escadas desconfiados.

 

--Saiba que só aceitei recebe-la porque minha esposa pediu. – o homem foi logo dizendo – Mas não é com prazer que a recebo aqui, sua desvirtuadora de jovens promissores!

 

--E eu só aceitei por curiosidade! – Salma complementou – “Até porque, morro mas não perco uma fofoca!” – pensou

 

--Boa tarde pra vocês também, casal simpatia! – cumprimentou irônica – Não vou demorar, só vim falar umas coisinhas pra ver se vocês se conectam com a real! – estalou os dedos

 

--Humpf! – o homem fez um bico – E o que seria? – cruzou os braços

 

--Fiquem sabendo que a filha de vocês tentou o suicídio no Parque Iguazú e só não foi bem sucedida porque euzinha, -- apontou para si mesma – auxiliada por Nossa Senhora das Divas e meu imenso poder de sedução não deixei acontecer! – gesticulou afetada – Não fosse isso, os dois estariam em algum necrotério baixíssimo astral ou numa delegacia cafonérrima em busca do corpitho da filha de vocês! – jogou os cabelinhos – E que corpitho, by the way! -- destacou

 

--Meu Deus! – Salma exclamou apavorada

 

--Oh... – Rachid buscava fingir que a notícia não o abalou – Pra início de conversa, eu não tive filha, tive um filho e...

 

--E ele descobriu que não era tão ele assim! – Latifah cortou a fala do homem – Passou anos a fio tentando se ajustar numa realidade que era conveniente pra vocês, mas não pra ele, que na verdade é ela! – frisou o detalhe – Vocês não entendem, mas quem nasceu pra ser diva é isso aí, gentem! – jogou os cabelinhos – Eu bem sei!

 

--Nasceu pra ser diva, pois sim! – Rachid fez um gesto de contrariedade

 

--E como ele tá agora? – Salma perguntou preocupada

 

--Tá se recuperando. – olhou para a mulher -- Quando vocês expulsaram sua filha daqui, ela reservou um quarto no nosso hotel e depois alugou um apezinho bem básico no Centro. – informou – A coitada batalhou emprego, mas ninguém deu oportunidade nessa cidade, mesmo com o currículo assombroso que ela tem. Tudo por preconceito! – contava a história – Aí no dia de uma sessão de fotos poderosérrima que consegui pra nós duas, ela tentou se matar. E tudo por culpa de vocês, daí!

 

O casal se entreolhou e não respondeu.

 

--Olha só, gentem, deixa eu contar que quando descobri que mamys é lésbica, reagi muito mal! – confessou – Fui rude, grossa, escrota e depois me arrependi tanto como nem sei dizer! – gesticulou – Não é possível que vocês que tiveram uma única filha, tenham esquecido de todas as alegrias, dos babados fortíssimos, das paradas sólidas da vida... – olhava para os dois – Depois que morre, sobra só chorar no enterro e ficar com a cara cheia de rugas igual a um Shar-pei!

 

--Eu sinto falta dele... – Salma confessou com a cabeça baixa – Mas é tão difícil... – lutava para não chorar

 

--Eu também sinto... – Rachid admitiu pesaroso – Mas não queria que ele fosse assim, como é...

 

--Aos trancos e barrancos aprendi que a gente tem que amar as pessoas como são e não como a gente queria que fossem. – respondeu de imediato – E transexualidade nem é doença, by the way! Tava lendo um dia desses que tá prevista pra sair do Catálogo Internacional de Doenças não demora muito. – informou – E antes que vocês me acusem de ter feito a cabeça da Khadija, informo que foi ela que me procurou tão logo chegou dos States e me pediu ajuda pra viver a barra que seria se transformar! – dizia a verdade – Eu aceitei, porque nunca digo não a fã. – gesticulou afetada – Também conheço uma diva de longe e a gente nunca deixa uma igual desamparada!

 

O casal sentia-se transtornado.

 

--Dito isso, fiquem aí pensando e acordem pra vida! Conectem! – estalou os dedos – Antes que seja tarde demais! – soprou um beijinho – Kisses! – despediu-se e foi embora

 

--E agora, querido? – Salma perguntou ao marido sob lágrimas – O que a gente faz?

 

--Não sei, meu bem... – suspirou entristecido – Não sei...

 

***

 

Sayruci, Samir e seus respectivos advogados estavam reunidos na audiência final de conciliação para o divórcio do casal. A juíza e os advogados já haviam feito considerações iniciais, quando a palavra fora aberta ao casal.

 

--Senhor Samir, o senhor confirma então que concorda e não se opõe de qualquer forma a conceder o divórcio à senhora Sayruci? – a juíza perguntou

 

--Sim, meretíssima! – respondeu de imediato – E se me permite, gostaria de dizer algumas palavras, por sua gentileza.

 

Sayruci e a advogada se entreolharam desconfiadas.

 

--Pois não. – a juíza concordou

 

--Eu... – olhou para a ex mulher – Eu queria e preciso muito te dizer algumas coisas, Sazii! E com todo respeito. – mexia as mãos nervosamente por debaixo da mesa – Ao longo dos anos eu não soube te conquistar, te cativar e dar o tratamento que você merecia. – confessou envergonhado – Acho que por machismo, arrogância, não sei, acabei encarando você como mais um patrimônio que eu podia dispor como bem entendesse. E por insegurança, já que percebia que não conseguia te fazer me amar, eu busquei te controlar pela violência... – abaixou a cabeça brevemente – Primeiro psicológica e depois física... E até mesmo patrimonial. – assumiu – Você nunca me denunciou mas fui exposto por nossa filha, no que ela teve toda razão, e a rejeição que experimentei desde então me fez refletir. – pausou brevemente – Queria que soubesse que estou fazendo parte de um programa de reabilitação para homens covardes e inseguros como eu.

 

Todos os presentes ficaram surpresos com o que ouviam.

 

--Então por fim eu queria muito te pedir perdão por tudo! – estava sendo sincero – Por favor, me perdoe, me perdoe! – olhou para a juíza – Meretíssima, eu quero conceder qualquer coisa que ela pleitear, bem ou pensão, seja lá o que for!

 

--Samir! – o advogado ficou pasmo – “Ele enlouqueceu?” – pensou

 

--Senhora Sayruci, -- a juíza olhou para a mulher – isso posto, o que a senhora nos diz?

 

--Aproveite e peça o que desejar! – a advogada da morena cochichou com ela

 

--Eu também gostaria de dizer algumas palavras, meretíssima. – a juíza fez um gesto positivo – Samir, -- olhou para o homem – por várias vezes te odiei, por várias vezes você fez com que eu me sentisse um lixo. – afirmou com serenidade – Por outras tentei te amar, especialmente pelo bem de Latifah, mas eu não consegui. – assumiu – Eu tentava de todas as formas agradar, pra ver se minimamente ficava livre das suas reclamações, mas nunca era o suficiente e isso me corroía por dentro! Isso acabava comigo! – Samir derramou algumas lágrimas – Quando finalmente tive forças pra me libertar de tudo e sentir o gosto da liberdade, ainda assim não foi fácil. Fosse por razões financeiras, fosse pelos demônios interiores a me maltratar de quando em vez... mas eu tenho superado com a ajuda de Deus e da mulher que ele colocou no meu caminho. – controlava as emoções – E sei que um dia tudo isso estará superado dentro de mim! Tenho muita fé! – pausou brevemente – Eu te perdoo, porque decidi não guardar mágoas em meu coração, fosse contra quem fosse, inclusive você, pra quem não desejo mal algum! – estava sendo muito sincera – E obrigado, mas eu não quero patrimônio algum ou qualquer pensão! Faz parte do meu processo de libertação poder caminhar por minhas próprias pernas, sob todos os aspectos!

 

--Sayruci! – a advogada não acreditava – “Como deixa passar uma oportunidade dessas?” – pensou

 

--A senhora alguma vez já viu isso acontecer? – a escrivã cochichou para a juíza

 

--Não, mas confesso que me emocionei. – respondeu em voz baixa

 

***

 

--Eu achei tão lindo o que você fez! – Khadija olhava embevecida para a amiga – Uma verdadeira operação de guerra naquele parque pra me salvar e ainda foi dar um puxão de orelha nos meus pais! – sorriu – Cê é muito diva, muito musa, muito... TUDO! – elogiou

 

--Olha só, fofinha, dei o melhor de mim pra fazer desabrochar a diva que habitava no teu espírito, então cê acha que eu ia aceitar te perder pra Morte assim? – respondeu afetada – Uma mulher que usa eternamente o mesmo modelito preto sem corte nenhum e se apresenta com uma cara de caveira pálida sem uma corzinha sequer? No way! – jogou os cabelinhos – E o casal Nahim tinha que ouvir umas verdades! – cruzou as pernas – Quando eu paguei de bocó, teve quem me situasse! – lembrava do que ouvira de Vera no passado

 

As duas jovens conversavam em um café no Centro da cidade.

 

Achou graça. – Você foi a melhor coisa que me aconteceu! – suspirou – “Disfarça, mulher, que coisa melosa!” – pensou ao se recompor – Mas e a facul? Trabalhos em dia, como estamos? – perguntou interessada

 

--Ah... – pegou uma mecha de cabelo e ficou enrolando nos dedos – Tem uma matéria lá que tá me enchendo? – fez uma cara de contrariedade – Não tem mais tempo de trancar, então vou meter o pé.

 

--NEVER! – Khadija respondeu enfática – A senhora não tá nem louca de fazer isso! – gesticulou com fé – Quero saber direitinho que matéria é e a gente estuda junta!

 

Fez um bico. – Khadija, please?

 

--Amore, não! – negou com o dedo – E vamos começar agora! – decidiu – Levanta daí que a hora é essa! Right now! – levantou-se e aproximou o rosto da outra – Você não só não vai desistir – olhava nos olhos -- como vai passar divando nessa matéria! – sorriu – Vem! – beijou-a no rosto e ficou ereta – Come on! Conecta! – estalou os dedos e foi para o balcão pagar a conta

 

Latifah sentiu uma estranha sensação com aquele beijo e com a breve proximidade que tiveram. “Eu hein, que é isso?” – pensou se repreendendo – “Acho que as fortes emoções desses dias me abalaram a little!” -- concluiu

 

Fim do capítulo