Uma mudança na rotina
Tirar férias, viajar, conhecer novas pessoas. Claro que era essa a ideia que eu devia passar aos meus fãs. A verdade é que eu não sabia como fazer isso quando eu seguia minha vida normalmente. Eu não queria viajar, não queria conhecer novas pessoas. A simples menção de estar perto de várias pessoas me fazia entrar em pânico, não importava saber se era ridículo; eu continuava me sentindo apavorada com essas mudanças abruptas.
Minha vida era monótona há muito tempo. Eu fiz faculdade com o dinheiro da herança dos meus pais, que morreram num acidente de carro pouco tempo depois de eu me graduar na escola. Isso fez minha vida mudar de maneira abrupta. Eu saí de uma certeza de que meus pais estariam lá na minha vida adulta para uma independência forçada. Então eu me mudei de Figueira Vermelha porque havia um sistema a seguir. Quem morava sozinho tinha que escolher entre estudar ou trabalhar depois do ensino comum.
Para estudar você precisava de dinheiro, então a maioria escolhia trabalhar primeiro, para só mais tarde continuar os estudos. Meus pais tinham guardado dinheiro para os meus estudos, eu só tive que escolher a universidade. Eu escolhi a mais longe de casa, porque o condomínio em que morávamos pertencia à Bandeira Azul, e eles tinham um sistema rígido para permitir somente famílias das quais eu não me encaixava mais.
Nesse período de mudanças extremas, eu tive que participar do programa de apoio da Bandeira Azul para jovens que perderam os pais. Isso consistia em participar da terapia durante todo o período da minha graduação, até ter minha própria casa e meu próprio trabalho. Era assim que eles garantiam que eu não me tornaria uma rebelde sem destino na sociedade.
Eu continuei não gostando de mudanças, porque isso significava tragédias. Desde então minha vida continuou monótona. Quando eu me cansava de escrever, eu fazia uma caminhada até a Helena, onde Samuel me encontrava após suas aulas. Nós conversávamos sobre o dia, íamos embora, eu cozinhava ou pedia comida, e voltava a escrever ou assistia a algo na TV. Era difícil algo mudar.
Talvez eu devesse voltar a dar aulas. Era a minha profissão antes de me lançar como Isa Miranda. Samuel tinha contatos, ele me ajudaria a encontrar algo. Eu me ocuparia com isso enquanto não pudesse voltar a publicar algo. Ao menos, eu esperava que pudesse voltar.
— Me dá um autógrafo, Isa Miranda?
— Samuel, eu já falei que-
— Vão acabar descobrindo se eu falar em público, eu sei. — Ele riu, sentando do meu lado no sofá de canto, passando um braço sobre meus ombros e sorrindo para mim. — Você não ajuda com esse disfarce. Por que está toda coberta? Vão começar a achar que você vai explodir o lugar.
— Nem brinque com isso. Eu já tenho problemas demais, explodir uma lanchonete só vai me trazer mais problemas.
— Então por que está vestida assim?
Eu ainda estava com o chapéu cinza que escondia meus cabelos ruivos, os óculos escuros que ocultavam meus olhos alaranjados, e a máscara, que cobria minhas sardas e minha boca, pintada de rosa. Meus trajes eram escuros, os tecidos eram sutis, mas cobriam toda a minha pele. Samuel estava certo, eu atrairia mais atenção daquela forma. Tirei o casaco e pendurei na cadeira, o chapéu abrigou a máscara e os óculos. Meus cabelos caíram lisos sobre os ombros, e eu passei os dedos entre as mechas para tirar a aparência amassada.
— Bem melhor. Agora sim você é a Ana outra vez.
— Muito engraçado. — Reviro os olhos. — Você está atrasado. Alguma criança chutou sua canela?
— Aquelas crianças me amam. Mas eu tive que falar com os pais de Ben na saída, então acabei pegando um trânsito a mais.
— Ben não é o garoto que chora por tudo?
— Sim. Hoje ele chorou quando eu estava falando da cadeia alimentar.
— Você não falou que as aves comem minhocas, falou? Ele deve ter ficado traumatizado.
— Você é tão má. Ele está passando por uma fase difícil, tudo que lembra animais o faz chorar porque o cachorro dele morreu.
— Pobre cachorro, sendo lembrado com tanta amargura pelos humanos em terra.
— Você é incorrigível!
Somente dou de ombros, sinalizando para a atendente para que pudéssemos realizar nossos pedidos. Eu estava com o meu capuccino com uma dose a mais de café e canela e um cookie com bolinhas coloridas em questão de minutos. Resolvi que merecia um doce para amenizar o estresse que sentia pelo afastamento da editora.
— Oh, você está sendo paquerada. — Samuel falou com animação, eu suprimi o xingamento com a nova sensação de queimado no meu lábio, ao invés disso o olhei com fúria enquanto tocava a sutil queimadura com as pontas dos dedos. — Mas é verdade dessa vez!
— O quê?
— Aquela morena ali. — Ele gesticulou com os olhos.
Do outro lado da lanchonete havia um quarteto de mulheres. A que estava na ponta olhava em nossa direção. Ela tinha cabelos castanhos claros presos numa trança sobre o ombro, com uma franja repicada na testa e o rosto angelical. Os olhos eram da mesma tonalidade dos cabelos, e ela me olhou diretamente, abrindo um sorriso tímido enquanto deslizava a mão pela trança, a palma virada em nossa direção, como se acenasse para mim. Eu não lembrava de a conhecer, e não sabia o que fazer, automaticamente deslizei pelo assento até estar de frente para Samuel e de costas para a desconhecida.
— Qual o seu problema? — Ele me indagou com uma sobrancelha erguida, incrédulo.
— Qual o seu? — Retruco. — Ela é nova demais.
— E você leu os pensamentos dela para definir isso? Qual é! Você não é nenhuma vovó.
— E quem garante que ela não estava olhando para você?
— Querida, se o olhar dela tivesse feito essa curva, eu saberia.
— Você está delirando. — Suspiro, dando o assunto como encerrado e me voltando ao capuccino, que me acalmou o suficiente. — Mas e o garoto, afinal? Você devia encaminhar para a conselheira da escola.
— Eu fiz isso, o pobre coitado morre de medo da srta. Catherine.
— O que há demais nela?
— É uma mulher alta no meio de criancinhas de até 10 anos. Além de que rola boatos de que ela tira os miolos estragados das cabeças das crianças que vão lá.
— Quem é o idiota que espalha essas histórias para crianças?
— Não faço ideia. Mas a cada ano que passa e a cada turma que entra, todos ficam sabendo dessa mesma história. A pobre mulher não sabe mais o que fazer.
— Ela devia passar menos tempo na sala dela e mais pela escola, criando vínculo com os alunos. Assim as crianças vão ver que ela não é nada demais.
— É uma boa ideia afinal. Eu falarei com ela amanhã. — Ele sorriu, parecia agradecido, apoiou o queixo sobre as mãos enquanto me olhava. — Você devia tentar.
— Eu? Com crianças? Nunca!
— Olha lá, ein? Vai que sua futura esposa ali na frente queira filhos?
— Então gentilmente direi: nunca, querida.
— Você é feita de gelo aí dentro? — Ele ria.
— Nunca saberemos, colega.
Ele moveu a cabeça de maneira negativa, mas não insistiu, ao invés disso se voltou à sua torta de frango. Eu queria pedir uma ocupação para Samuel, ele sabia que eu estava de férias, mas não tinha o conhecimento das ameaças por detrás desse afastamento, então pedir um trabalho seria levantar as suspeitas dele. Afinal, ele achava que tinha sido ideia minha e aprovava, ter um trabalho nesse período o faria questionar minha sanidade.
Durante o resto da semana eu busquei ocupar meu tempo entre entreter meus fãs e colocar as séries em dia. Era o que pessoas normais faziam com o tempo livre, não é mesmo? Meus dedos coçavam para escrever, mas eu buscava resistir. O que vinha ocupando realmente minhas conversas com Samuel na lanchonete era a frequência diária que aquela mulher passou a ter na Helena, sempre junto de uma das amigas. Confesso que trocávamos olhares e ela sempre sorria nesses momentos, mas ela sempre estava sorrindo nas conversas com as amigas dela, então julguei que fosse natural.
— Você vai lá falar com ela. — Samuel pontuou, como se pudesse me dar ordens. — Ou eu vou lá.
— Isso, vá lá. Vão formar um belo casal. — E formariam mesmo.
— Não, vou lá chamá-la para falar com você.
— Não se faz isso desde a escola, não seja infantil. E eu mato você se fizer.
— E quem virá tomar café contigo todo dia?
— Alguém que dê valor a vida, é claro.
— Essa pessoa podia derreter o gelo do seu coração. Não sei de onde vem aquelas histórias românticas que escreve.
— Eu suborno uma pessoa para escrever, e publico como Isa.
— Olha só! Senso de humor! Quando foi a última vez que você o usou?
— Não sei, mas posso usar no seu enterro se não ficar quieto.
Ele riu dessa vez e eu revirei os olhos.
— Olha só, estou vendo a senhorita do sobretudo ir até o balcão. — Ele diz — Isso é novidade.
— Novidade é ela tirar esse sobretudo. Está a semana toda com ele. E estamos na primavera.
— Estou vendo errado ou ela está escrevendo num guardanapo?
Levanto o olhar para ela, sentada junto ao balcão e escrevendo num pedaço de papel, parecendo concentrada na tarefa.
— Pode ser qualquer coisa. — Digo.
Ela chama uma das garçonetes de lado e começa uma conversa sigilosa com a mesma, que discretamente pousa o olhar em nossa mesa, olhando para Samuel e eu, e responde à alguma pergunta da morena. Então o guardanapo é entregue e ela volta para a sua mesa, com um sorrisinho cúmplice para a sua amiga. Após alguns instantes, a garçonete veio em nossa direção, com aquele olhar malicioso.
— Qualquer coisa, é? — Samuel retrucou.
— Com licença, senhores. Desculpa interromper, mas tem um bilhete para o senhor, Samuel.
— Sim, qualquer coisa. — Sussurro, desanimada.
— Obrigado senhorita. — Ele respondeu num sorriso para a garçonete, que por sua vez entregou o guardanapo e se retirou.
Ele abriu e eu dei uma mordida no pão de queijo, mastigando e engolindo, bebendo outro gole do cappuccino para tentar engolir junto a sensação amarga que subia pela minha garganta.
— Não vai ficar com ciúmes, não é? — Ele perguntou depois de ler, colocando o bilhete à minha frente.
— De você? Pelo amor de Deus, não se ache tanto.
— Estou me referindo à sua paquera. Eu sei que não vive sem mim.
— Melhor você cair na real, Samuel.
Passei os olhos pelas letras no papel, uma bela caligrafia por sinal, que dizia: “Que tal um drink para nos conhecermos melhor?” Abaixo disso um endereço e um número de telefone, que obviamente era dela.
— Você ao menos podia demonstrar algo. Sei que gostou dela. — Ele disse.
— Gostei? Eu nem conheço ela, Samuel. Você que vai conhecer, então me diz você se gostou.
— Qual é. Não te vejo gostando de alguém desde a faculdade.
— E olha só no que deu. Ela me traiu, eu a chutei e agora ela está casada e rica.
— Andou investigando a vida dela? – Indaga, e eu só o olho para que ele entenda qual seria minha resposta. – Só estou dizendo que não precisa ser o fim, Ana. Sou seu amigo, seu único amigo, e odeio te ver sempre sozinha.
— Se isso for parar em um pedido de namoro...
— Nunca! — E então sorriu. — Eu só quero que você pare com esse negativismo, porque assim vai parar de achar que todos só querem te derrubar.
— Eu não acho isso. Só acho que ninguém merece o luxo de ficar perto de meu coração.
— Pare com isso, mulher. Prometa que vai ao menos tentar sorrir quando alguém chegar perto de você.
— Falando em sorrir, por que não se concentra em jogar seu charme para cima do seu amor ali?
— Que não teve a gentileza de colocar o nome.
Revirei os olhos e girei o papel, mostrando a ele o nome.
— Amy. — Diz ele, e eu faço uma expressão óbvia.
— Aproveita o encontro e descobre o que há por debaixo do sobretudo. — Provoquei num pequeno sorriso.
— Engraçadinha. Mas não pense que desisti de você.
Eu o vi olhar a garota e sorrir quando ela o olhou, então gesticulou positivamente com a cabeça, indicando o bilhete. O sorriso dela se abriu e ela me olhou; eu tive um vislumbre de algo a mais naquele olhar que me deixou curiosa, que por alguma razão me vi sorrindo de volta. Seus olhos pareceram brilhar e por um segundo me perguntei o porquê ela não me convidou para sair?
— Céus! O que é isso? Um sorriso? — Indagou Samuel, trazendo-me a realidade outra vez.
— Não é nada. Não começa. — Desconversei.
— Se eu aceitei o encontro, é para saber o que ela quer com essas paqueras com você.
— Samuel, pelo amor dos deuses, não viaje! Se ela quisesse algo comigo, não teria convidado você.
— E se convidasse você? Aceitaria?
— Eu... — Pensei por um instante, mas simplesmente bufei. — Isso é ridículo, Samuel. Só estou constatando que ela quer a você, não a mim.
Voltei a fitar a mesa, concentrando-me em engolir o cappuccino, tarefa que era ainda mais difícil dado o clima intenso que pesava em meus ombros.
— Isso é ciúmes? — Ele indagou outra vez, e eu o encarei, dessa vez nervosa.
— Se não parar com as provocações, vou embora.
— Está com raiva porque ela me convidou?
— Cresce Samuel.
Abro minha bolsa e saco a carteira, pegando algumas notas e jogando na mesa. Em seguida o encaro uma última vez, vendo sua expressão surpresa e perplexa ao mesmo tempo, mas lhe virei as costas antes que ele fizesse alguma outra pergunta idiota. Peguei meu carro e dirigi para longe, para a minha casa, xingando e socando o volante enquanto ficava parada no trânsito.
Como ele podia achar que eu estava com ciúmes? Aquela semana toda ouvindo suas paranoias sobre a garota estar de olho em mim, e eu dei ouvidos. Afinal, ela sorria sempre que nossos olhares se cruzavam, e disfarçava um cumprimento ao passar a mão pelo cabelo. Acabei achando que significasse algo tudo isso, mas não era nada. Então fim de história. Mas Samuel gostava de criar alarde por qualquer coisa, e isso me irritava.
Tomei um banho gelado quando cheguei em casa, deixando uma música intensa tocar no ambiente. Pedi comida e bebi uma cerveja gelada, buscando relaxar, mas acima de tudo, tentava espantar a frustração de ter sido uma idiota a semana inteira. Assisti à um filme enquanto bebia outra cerveja, distraindo meus pensamentos até dormir no sofá sem perceber.
Acordei no meio da noite com o som do toque do meu celular e sua vibração no bolso da minha calça. Quem ligaria tão tarde? Praguejei o nome de Samuel no visor, sentindo meu coração acelerado pelo susto. Devia ser urgente, ele não ligaria por nada depois das duas da madrugada.
— O que é? — Pergunto em meio ao sono, fechando os olhos com o aparelho na orelha.
— Que humor! Vai falar que te acordei? — Indagou animado e num tom alto demais. Havia som de outras pessoas ao redor.
— Cala a boca, Samuel.
Faço que ia desligar, mas como sempre ele parece prever minhas intenções, porque estava gritando do outro lado para eu não o fazer.
— Não desligue! Eu tenho uma novidade!
— Que novidade, Samuel? Não esbarrou com nenhum soldado na rua e tropeçou nos punhos dele, não é?
— Oh, senso de humor? E eu achando que só o tinha de dia, de noite é ainda melhor.
— Se me ligou para me tirar do sério, já aviso que está perdendo seu tempo. — Suspiro, dobrando o braço sobre os olhos. — O que você quer Samuel?
— É sobre a Amy.
De olhos fechados era fácil lembrar do sorriso fácil dela e do seu rosto angelical à distância.
— O que você fez com a garota? Espero que a tenha tratado bem.
— Não fiz nada, mas você devia conhecê-la; ela é incrível!
— Não curto à três, não perca seu tempo.
— Muito engraçado. Ela quer te conhecer, então decidi que seria ótimo se fôssemos num cinema e jantássemos os três juntos amanhã.
— O que? — Eu rio, mas porque aquilo parecia bizarro. — Vai ver se estou no inferno, Samuel, então aproveita e tira selfie com Lúcifer. Terei prazer em usar como capa do meu próximo livro.
Eu desliguei. Ele só podia estar brincando comigo. O que a garota que ele saiu naquela noite queria comigo agora? Eles só podiam me achar uma idiota para aceitar algo assim. O que mais poderia ser? Meu coração continuava acelerado, eu abri os olhos e olhei para o teto, tentando absorver todos aqueles acontecimentos de repente. Mas não tive tempo. Samuel voltou a ligar insistentemente e eu contive a vontade de lançar o celular para longe. Ele não ia desistir, ia?
— O que foi Samuel? Não estou com paciência para as suas brincadeiras.
— Só me escute, está bem? — Ele falou menos exasperado, agora não havia conversas ao seu redor. — Eu só quero que a conheça, sem compromisso. Conhecer alguém novo não é ruim.
— Por que eu? — Indago sem entender.
— Você tem outro compromisso?
— Eu estou pensando em arranjar outro.
— Não seja dramática. Esteja pronta às 18 horas amanhã e eu te busco para irmos juntos e eu ter certeza de que não vai fugir.
— Samuel...!
— Boa noite!
E ele simplesmente desligou. Inacreditável. O que ele estava tramando? Destravei a tela do celular, recebendo uma foto. Samuel estava com Amy nela, ambos brindando com garrafinhas de cerveja enquanto olhavam para a tela. Pareciam estar numa boate, o ambiente era escuro e havia luzes coloridas que os deixavam com outras cores. Mas o sorriso dela continuava ali, imutável, e isso me fez suspirar. O que estava acontecendo afinal?
Eu esperei para descobrir, porque não havia mais nada a fazer. O que mais me restava? Perto da hora que Samuel estipulou, no entanto, eu estava enrolada no meu roupão, sentada na minha cama e olhando as roupas do meu armário, sem realmente saber qual escolher. Para o que exatamente eu me vestiria?
— Ana, estou entrando, a porta estava destrancada!
Era Samuel, no andar debaixo. Não iria demorar para me descobrir ali em cima e reclamar por eu não estar pronta. Não havia grande distrativos na minha casa, confesso que nunca me incomodei em só possuir o essencial. Não havia enfeites nas paredes, no andar debaixo elas seguiam uma tonalidade entre o vermelho e o vinho, dando um aspecto mais íntimo.
Não era uma casa espaçosa, então logo que entrava tinha a sala de estar, com um sofá de couro de três lugares e uma poltrona ao lado da mesinha com o telefone. Tinha outra mesinha à frente, mas essa abrigava meu videogame e ficava mais perto da TV, que estava suspensa na parede. Seguindo adiante tinha uma porta à esquerda ao lado da escada que ficava o banheiro. Então tinha a cozinha e a sala de jantar lado a lado.
A sala de jantar ficava num piso rebaixado, com uma mesa quadrada para seis lugares, e um lustre mais moderno. Tinha quatro argolas negras, duas grandes, que se cruzavam dentro, e duas menores, mais abaixo, que faziam o mesmo movimento. A cozinha tinha um balcão de um lado, com duas banquetas, e do outro lado já era a pia, com uma torneira monocomando. Os armários eram vermelhos, a geladeira era preta assim como o fogão e a minha cafeteira, e ali era bem iluminado, com bastante acessórios, porque eu gostava de cozinhar.
Logo adiante estaria uma área destinada a lavanderia e um pequeno espaço para jardim que ligava a garagem e onde eu pendurava as roupas.
Ouvi Samuel subindo as escadas, ele passou pelo corredor que dava a outro banheiro e à um quarto de hóspedes, até o final do corredor, onde estava meu quarto.
Meu quarto era um pouco mais espaçoso. A cama era grande, com uma calçadeira na frente, lençóis e fronhas púrpuras, com o desenho dourado de um dragão no centro. O armário era de madeira maciça, as portas possuíam molduras de flores num arco ao redor dos espelhos em cada porta, com duas gavetas. Ao lado tinha uma caixa organizadora onde eu guardava meus sapatos, suspensos na parede. E mais à frente tinha minha mesa com o computador e uma cadeira moderna que me deixava confortável para escrever.
A janela ao lado da minha cama estava aberta, uma brisa do fim de tarde entrava junto dos últimos raios de sol. Samuel entrou no quarto e me encarou com uma sobrancelha erguida, acusando-me sem dizer nada. Eu deitei na cama de maneira dramática.
— Eu não quero ir! — Aleguei, quem sabe ele mudava de ideia?
— Ah, mas você vai, mesmo que seja desse jeito.
— Nunca!
— É o que veremos.
Ele foi até meu armário, analisando minhas roupas. Confesso que ele sempre se vestia bem e tinha senso de moda. Hoje ele vestia uma calça jogger de sarja bege, com camisa estampada e fundo escuro, o tênis combinando com a calça. Seus cabelos estavam úmidos, os cachos organizados, a barba feita. Usava uma corrente no pescoço e relógio, as mangas da camisa dobradas nos pulsos. Ele tinha mesmo se produzido para encontrar com a nova namorada.
— Agora se vista. — Ele me falou, jogando uma muda de roupas e se ocupando nos meus sapatos.
Bufei, desistindo de resistir. Deixei o roupão sobre a calçadeira e vesti as peças íntimas primeiro, ambas um conjunto rendado. Então coloquei a calça slim colcci preta, uma camisa simples vermelha e um colete preto por cima.
— Você sabe que é amizade quando a garota se troca na sua frente. — Samuel falou em tom dramático, eu reviro os olhos.
— Quantas vezes isso já aconteceu?
— Muitas. Mas você emagreceu desde a última vez, o que andou fazendo?
— Tempo livre de sobra, você descobre o que fazer. — Caminho até meu criado mudo, onde guardava meus acessórios e meu perfume. — E eu estive fazendo caminhadas mais longas.
— E ninguém pode reclamar dos seus pratos.
Realmente, ninguém poderia, ainda que eu não tivesse o costume de convidar pessoas a virem em minha casa. Borrifei o perfume e coloquei anéis somente no indicador e dedo médio, com uma corrente simples no pescoço, deixando meu chapéu cinza de enfeite na parte superior da cabeça. Samuel me deu meu tênis preto que tinha um sutil salto, sorrindo com o resultado.
— Ótimo. Continue assim, Amy vai adorar!
Reviro os olhos, peguei minha bolsa e o segui para o seu carro na rua. Ele ligou uma música para preencher o ambiente, cantarolando, ele tinha boa afinação, mas eu preferia provocá-lo ainda assim.
— Você vai causar um acidente cantando desse jeito.
Ele me lançou um olhar mortal, sorrio quando ele não estava mais olhando, tentando relaxar. Como me deixei levar nos planos de Samuel? Como estava em seu carro em pleno sábado, indo encontrar a garota que ele conheceu na Helena? Algo parecia errado naquilo, mas eu estava sendo carregada pela curiosidade, porque eu tinha que saber aonde aquilo iria dar.
Quando chegamos no cinema, encontramos com Amy lá dentro. Ela tinha um visual simples, jeans escuro com camisa branca, sapato juvenil e o sobretudo preto. Os cabelos castanhos estavam soltos sobre os ombros e os olhos brilhavam. Ela abraçou Samuel de maneira carinhosa, então parou à minha frente e beijou minha bochecha.
— É muito bom conhecer você. — É a primeira coisa que ela fala, voz suave. — Sou Amy.
— Sou... — Pigarreio. — Ana.
Ela sorriu mais. Samuel passou o braço sobre meus ombros, parecendo animado também.
— Agora chega de formalidades. Amy, que filme escolheu?
— Do outro lado. — Respondeu, olhando entre nós a espera de reconhecimento, e eu rio automaticamente, recebendo o olhar confuso dela. — O que foi? Você não gostou? Podemos ver outra coisa.
— Não, não é isso. — Afirmo, ainda que incapaz de dizer o motivo.
— Você já assistiu? Saiu faz pouco tempo, mas estive sem tempo para ver.
— É o filme baseado no livro, não é? — Desconverso.
— Sim, de Isa Miranda. Tem sido bem avaliado. Achei que fosse ser legal. O que você acha?
— Claro, ela vai adorar. — Samuel responde antes de mim, talvez prevendo que eu faria alguma piada que a garota não entenderia. — Ana acompanha bem de perto o trabalho da Isa.
— Oh, que bom, então acertei na mosca. — Falou aliviada.
— Vão na frente, eu vou pegar as pipocas. — Digo a olhá-los, afastando-me um passo. — Querem algo para beber?
— Você me conhece. — Samuel me disse, piscando-me o olho.
— Pipoca grande com manteiga e refrigerante grande. — Reviro os olhos. — E chocolate, claro. Previsível.
— Vocês realmente se conhecem. — Amy comentou, olhando entre nós.
— Eu aturo esse chato desde a faculdade. Não aguento mais.
— Ela não vive sem mim. — Samuel sorria, inabalado. — Vá pegar minha pipoca antes que o filme comece.
— Claro, claro. Você quer mais alguma coisa, Amy?
— Eu não sei, não consigo comer até o fim. Se você não se incomodar em dividir um balde. — Ela sorriu timidamente, eu inclinei a cabeça, achando fofo.
— Sem problemas. Algo para beber?
— O mesmo que você.
— Cuidado, eu posso ser alcoólatra e você vai sair carregada daquela sala.
— Eu vou me arriscar ainda assim. — Ela sorriu para mim.
Olhei entre ela e Samuel, tentando entender o que estava acontecendo ali. Eles não estavam juntos? Por que não estavam agindo como um casal? Ao invés disso, a garota estava flertando comigo e eu estava deixando isso acontecer. Eu devia ter cautela, no mínimo. Ela era fã de Isa Miranda e isso bastava para me manter distante e não atrair suspeitas. Que droga, Samuel, ele tinha que me fazer conhecer uma fã?
Tentei manter desinteresse em tudo aquilo, tentei ignorar toda a situação enquanto assistia de novo ao filme do meu livro. Mas parecia impossível. Eu estava vivendo uma comédia e o destino estava rindo de mim. Amy parecia fazer de propósito, tocava minha mão toda vez que pegávamos a pipoca juntas, e ela ficava me olhando no escuro, como se eu não fosse reparar. Algo estava errado ali.
Depois do filme caminhamos lentamente para fora em meio às demais pessoas, e eu agradeci que já não havia tantas pessoas assistindo ao filme naquele dia e naquele lugar. Odiava multidões.
— Eu só não entendi uma coisa. — Amy falou, olhando à frente.
— O que? — Samuel perguntou.
— O garoto, Peter. — Ela pausou, parecia pensar antes de continuar, como se buscasse palavras para formular sua pergunta, atraindo minha atenção. — Eu achei que a missão dele era lutar contra o sistema em que ele vivia.
— Ele parecia querer isso no começo mesmo.
— Então depois que encontrou a garota, ele pareceu ter esquecido isso. A história só girou em torno das tentativas de a conquistar. No começo ele ia protestar, forçava reuniões com representantes do governo em busca de melhorias na educação e reivindicava transparência nas contas públicas.
— Então ele sofreu o “acidente”. — Comento, fazendo aspas no ar.
— Mas foi um acidente. — Amy me olhou, confusa. — Ele foi atropelado.
— Na faixa de pedestre, no meio de um protesto. — Eu não devia apontar esse pequeno detalhe. Foram detalhes assim que me fizeram ser afastada da editora.
— Vendo assim, realmente parece suspeito. — Ela baixou o olhar, parando de andar quando chegamos no carro de Samuel, que me ergueu uma sobrancelha indagadora, somente dei de ombros. — Você acha que os governantes fariam isso para usá-lo como exemplo?
— É só uma suposição! — Samuel interveio, buscando manter o clima descontraído.
— Os governantes não seriam governantes com pessoas questionando seus atos tão arduamente, não é? — Questiono, colocando as mãos nos bolsos do colete.
— Então Peter ficou limitado. — Falou devagar, olhos intensos em mim. — E depois disso ele só focou em conquistar a garota. Ele nunca mais foi atrás dos próprios direitos, ele simplesmente aceitou a própria condição depois que perdeu uma das pernas.
— Se você olhar pelo lado romântico da história, sim. — Sorrio.
— Mas foi só o que o filme mostra, foi só o que o livro disse.
— Ah, qual é, você leu o livro, assistiu ao filme. Você só gostou da parte romântica? — Inclino a cabeça, desafiando-a. — Não viu mais nada?
— O que veria mais? Vocês estão procurando pelo em ovo. — Samuel falou, recostando na lataria do carro enquanto olhava entre nós.
— Eu fiquei em dúvida quando li pela primeira vez, achei que fosse um romance comum, realmente. — Amy ponderou lentamente. — Então li uma segunda vez. Meu amigo falou que havia algo a mais, para eu ler com maior atenção e comparar com a nossa própria vida.
— E a que conclusão chegou? — Incentivo.
— Bem... Havia esses pequenos detalhes que me incomodavam. O acidente, como você falou. Até então ele lutou para corrigir os erros dos corruptos no poder. No dia anterior ele tinha levado uma surra daquele soldado, Marcos, que estuprou e matou a mãe dele. — Ela me olhava seriamente. — Ele era corrupto. Cheguei a pensar que ele podia ser pai de Peter, as datas batem. Então faria sentido que ele quisesse se livrar do filho bastardo para não atrair atenção das pessoas para os seus crimes. E pareceu dar certo, porque Peter não enfrentou mais protestos nem compareceu às reuniões depois de perder a perna.
— Então o que ele fez?
— Essa é a minha dúvida. O que ele fez? Sinto que perdi algum detalhe.
— Ora. — Troquei de apoio na perna. — Se ele estava incapacitado de enfrentar tudo por causa da sua limitação física, ele encontrou quem o fizesse por ele. Lembra o que mais ele fazia antes do acidente? Ele ajudava ativamente em causas sociais. E com isso ele dava esperança às pessoas de dias melhores.
— Esperança... — Ela ponderou.
— Com esperança as pessoas encontram forças para lutar, não acha?
— Então ele inspirou as pessoas a continuarem a luta dele. — Constatou, e eu sorrio, sem concordar ou negar. — Não mostraram no filme, mas no fim do livro eles ficaram juntos, diferente do filme que mostra eles num parque, no livro fala de um canto de vozes como músicas de guerra. E eles estavam num beco, com pessoas passando correndo. Fiquei com a impressão de que realmente acontecia uma luta contra os governantes para tirá-los do poder.
— Bem... esses são os detalhes. — Pontuo, porque não podia dizer mais sem me comprometer. Era como ver Arthur ao lado, falando preocupado no meu ouvido que eu estava mobilizando as pessoas. Agora eu via um perfeito exemplo à minha frente e não tinha vergonha nenhuma em me sentir bem com isso.
— Que enigmática essa escritora, mas eu simplesmente amei. Iria adorar sentar e debater esses detalhes com ela.
— Seria difícil, já que ela faz o tipo misterioso. — Samuel voltou a falar, eu quase me esqueci dele ali.
— Eu fiquei sabendo que ela não mostra o rosto nem diz o verdadeiro nome. Me deixa agoniada! — Ela riu, cruzando os braços como uma criança inconformada. — Eu queria poder conhecê-la.
— Ah, qual é. — Digo. — Ela nem deve ser essas coisas. Só quer atrair atenção.
— Se fosse assim ela aproveitaria o triunfo e mostraria a cara. Mas ela continua oculta nas sombras só contemplando tudo isso. — Ela estendeu os braços para os lados, eu somente me fiz de desentendida.
— Nunca saberemos então. — Limito-me a falar.
— Então... vamos comer! — Samuel mante o ar descontraído, destravando o próprio carro.
— Eu deixei meu carro mais à frente. — Amy falou. — Mas eu já alcanço vocês. Vocês vão ao Massas Gourmet, certo? Assim não me perco.
— Isso. — Samuel concordou. — É aqui perto.
— Está bem, então nos reencontramos em breve. — Ela acenou para nós antes de se afastar.
Eu esperei até que entrássemos no carro e Samuel começasse a dirigir, guiando o carro em direção ao restaurante que nunca fui, meus olhos atentos em sua expressão.
— O que está acontecendo aqui, Samuel?
— O que foi? Não está gostando? — Ele sorriu de maneira cretina sem tirar os olhos da rua.
— Por que sua garota está flertando comigo tão abertamente? Ver o filme de Isa? Sério? É ridículo! E não venha me dizer que estou maluca, porque eu sei que você está aprontando alguma coisa.
— Relaxa, okay? Só relaxe e aproveite a noite.
— Ela é a sua garota, Samuel. Vocês tiveram um encontro. — Pontuei minha única argumentação.
— Ela não é minha garota. Somos apenas amigos. Então relaxe, nunca te vi sorrir tanto num dia só, sem usar seu humor sombrio para atacar alguém.
— Eu só... — Respiro fundo, mordendo o lábio inferior. Havia um carro atrás, mas eu não sabia se era o de Amy. Eu não tinha parado para pensar no que Samuel tinha dito, mas era verdade. — Eu não vi motivos para usar.
— Gostou dela?
— Não abuse da sorte.
— Tudo bem. Então se concentre em aproveitar a noite e nada mais.
Não digo nada, e o resto do caminho até o restaurante é silencioso.
Reencontramos Amy no Massas Gourmet, fomos à uma mesa reservada no nome de Samuel e fizemos nossos pedidos. O lugar era bonito, eu admitia. O valor dos pratos justificava o ambiente. As mesas eram bem separadas, de forma que mesmo cheio, tínhamos paz e privacidade. A comida também se provou bastante saborosa, e a massa, suave.
— Então, Ana, eu sei que Samuel é professor de crianças. — Amy buscou puxar assunto comigo. — O que você faz? Tem alguma ocupação no momento?
— Ah, eu não trabalho. Eu sou escritora. E você?
Ela acabou rindo de minha resposta.
— Eu sou veterinária. Sou formada há três anos.
— Que legal. Deve gostar de animais então. — Ou de dinheiro, porque veterinários eram caros e difíceis de conseguir, mas educadamente controlei a minha língua.
— Eu amo! — Ela sorriu empolgada, quase achei que ela escutasse meus pensamentos. — Tenho um cachorro em casa, a melhor companhia de todas.
— Eu já volto garotas. — Samuel falou para nós, indicando o próprio celular, que recebia uma ligação.
Ele se levantou e saiu da mesa, eu o encarei pelas costas, desejando que não estivesse planejando nada.
— Espero que não seja nada grave. — Amy comentou, atraindo minha atenção de volta a ela.
— Eu também. Odiaria perder minha carona para casa.
— Que sistemática você. — Ela sorriu. — Mas então, escritora, hm? Sobre o que costuma escrever?
— Atualmente nada, estou de férias. Resolvi me afastar das páginas e respirar um pouco. — Finalizei meu prato, recostando na cadeira, relaxada.
— E o que escreveu antes de estar de férias?
— Você deve gostar de ler bastante. — Comento, isso a fez rir, concordando.
— Realmente. No tempo livre que tenho eu costumo ler bastante, mesmo. Desculpa se pareço intrometida. Mas não é todo dia que conheço uma escritora. Isso explica como conseguiu ver além nos livros de Isa. — Ela pausou, ou somente tenha esperado que eu dissesse algo, mas eu não digo. — Você pareceu saber bastante sobre as histórias dela.
— Você também. É fã há bastante tempo?
— Eu não sei se diria fã, mas eu realmente gosto dos livros dela. É uma pena que ela tenha decidido tirar férias. Vocês têm isso em comum.
— Oh. Isso é verdade. — Eu me xinguei em pensamento. Devia ter dito que sou professora, mas era tarde. Agora eu sabia que Amy seguia Isa nas redes sociais. Eu tinha que tomar mais cuidado.
— Sua namorada deve adorar ler antes de você publicar, não é mesmo?
Sorrio com a pergunta, sabendo onde aquilo levaria, a ficha finalmente caindo de toda aquela situação criada por Samuel.
— Se ela existir algum dia, aposto que sim.
— Sério? — Ela se fingiu de surpresa de uma maneira muito teatral. — Não acredito que alguém como você não tenha alguém.
— Corta o papo furado. Eu sei que não sou das mais agradáveis aqui. — Digo de uma vez, o que a faz sorrir.
— Você é, você só não quer que eu perceba isso. Mas não está se esforçando o suficiente.
— O que Samuel disse a você afinal? Ou de veterinária foi à psicóloga?
— Ele não precisou me falar muita coisa, e eu não precisei me formar em comportamentos humanos para perceber. Você deixa isso na cara de qualquer forma.
— Ah, que ótimo. — Viro o rosto, suspirando. — Você não ganha nada me conhecendo.
— Então não perco nada também.
— A paciência, talvez.
Eu a vi se reclinar sobre a mesa e então tocar gentilmente minha mão, atraindo de volta minha atenção. Sua mão era quente, as unhas bem aparadas, mas o esmalte lilás descascado nas bordas.
— Posso perder a paciência, mas continuarei adorando te conhecer.
— Não há nada que queira conhecer aqui.
Retirei minha mão da sua e deixei em meu colo, olhando ao redor e estranhando a demora de Samuel. Vejo uma garçonete se aproximar da nossa mesa e me estender um papel.
— Seu companheiro pediu para entregar isso a vocês.
— Obrigada.
Pego o papel, lendo em seguida.
“Tive que ir embora rápido, minha irmã chegou e tenho que pegá-la no aeroporto. Desculpe! Mas continue aproveitando a noite!”
Revirei os olhos e suspirei, jogando o papel sobre a mesa. De todos os momentos que ele poderia arranjar um imprevista, essa era a noite escolhida. Parecia muita coincidência para acreditar. Ele não inventaria a volta da irmã para me deixar sozinha com Amy, era no que eu queria me concentrar para não ligar para ele e o xingar.
— Era só o que me faltava. — Digo. — Fiquei sem minha carona.
Amy pegou o papel e o leu. Suas sobrancelhas ergueram em surpresa antes de soltar a folha. Respirou fundo e recostou na própria cadeira, absorvendo a notícia da própria maneira.
— Samuel tem irmã é? — Perguntou devagar. — Eu não sabia.
— Tem, e uma que fica no meu pé que nem carrapato. — Respondo, fitando a mesa com pesar.
— Estou vendo que não curte a ideia.
— Se você a conhecer, vai entender do que estou falando.
— Mas, bem... quanto a carona, eu posso te levar em casa, se quiser.
— Eu pego um táxi.
— Ah, qual é, não sou nenhuma maníaca psicopata. Pode confiar em mim.
Quase ri com o seu senso de humor, mas me limitei a sorrir. Não era uma ideia agradável em deixar uma desconhecida ter o conhecimento de onde eu morava, mas algo naquele sorriso cheio de expectativas e naqueles olhos quase despretensiosos eu me vi querendo aceitar a sua carona.
— Tudo bem. Mas só hoje.
Ela concordou, não menos contente com a minha decisão. Pedimos uma sobremesa porque concordamos que valia o investimento; pagamos a conta e fomos para o seu carro, onde a ensinei o caminho até minha casa. Seu carro era branco e de um modelo mais caro que o meu, mas mais sujo do que nunca deixei meu carro. Eu não tinha um amor por máquinas, mas gostava de cuidar das minhas posses. O caminho foi silencioso e rápido, sem espaço para diálogo entre as orientações para chegar no lugar certo. Dessa forma me senti mais confortável para ignorar a sensação incômoda de estar enfrentando toda aquela situação inusitada.
Odiava mudanças, volto a ressaltar. Mudar minha rotina por causa de quê? Um encontro tramado por Samuel e essa mulher? Que benefício isso me traria? Já fazia algum tempo que publicar como Isa Miranda tinha sido meu único ocupador em tempo integral, confesso que isso tinha me deixado acomodada, mas que mal há manter as coisas dessa mesma maneira?
— Olha... — Ela começou a dizer quando paramos em frente à minha casa. — Só quero dizer que gostei mesmo de te conhecer.
— Você é uma pessoa adorável. — Digo lentamente, com cautela.
— Obrigada. E também... — E ela novamente tocou minha mão, fazendo-me fitá-la com a sobrancelha erguida. Quanto atrevimento! — Eu não chamei o Samuel para sair, eu chamei você, mas parece que a garçonete queria me pregar uma peça. Eu queria ter saído com você ontem à noite.
Quase ri com isso, incrédula. Como isso era possível? Eu tomava capuccino naquela lanchonete há anos! Por que a garçonete iria querer atrapalhar as coisas desse jeito? Ao mesmo tempo, uma sensação de alívio me invadiu ao constatar que não passei a semana inteira enxergando pelo em ovo. Amy realmente trocava olhares e sinais comigo. Mas o que isso mudava agora?
— Você queria sair comigo? — Senti a necessidade de repetir para tentar absorver a informação. — E o que aconteceu quando chegou lá e encontrou Samuel?
— Primeiro achei que você estivesse brincando comigo. — Ela sorriu, corando um pouco, mais por constrangimento, mas ela ficava fofa dessa maneira. — Mas então ele me contou o que aconteceu e fiquei aliviada que não levei um fora direto.
— Vou imaginar que Samuel te deu minha ficha. — Ponderei, porque o conhecia muito bem para constatar as coisas.
— Sim, foi mais ou menos isso. Ele não quis falar muito, mas... — Ela fez uma careta, deixando-me finalizar seu raciocínio.
— Já avisou que não sou um rio de flores. — Defini.
— Pelo contrário. — Falou rapidamente, como que para se justificar, mas continuou com o mesmo sorriso. — Ele disse que você é uma rosa.
— Com mais espinhos do que pétalas. — Falo com ironia.
— Ainda uma rosa. — Insistiu. — Que ele me ajudou a conhecer uma pequena parte hoje.
— Certo. Então já conheceu.
Tento sair do carro, mas ela me segura e eu a olho impaciente com a insistência em me tocar. Eu não gostava de tantos contatos físicos, sentia sua ansiedade como algo sufocante dentro de um veículo que parecia querer me engolir a cada segundo mais.
— Por favor, eu só quero te conhecer melhor, me dê uma chance.
— O que ganha com isso?
— Ficar perto de você.
— Conta outra Amy. Eu sei exatamente que não sou agradável com ninguém. E você é adorável, consegue companhia melhor.
— Melhor? Artificiais, você quis dizer. Eu gostei de você, tem seu próprio jeito. É espontânea da sua própria forma, não tenta ser outra para agradar.
— Isso tende a piorar.
Ela riu outra vez, tão suavemente, que apenas fiquei ouvindo o som. Ela realmente parecia uma pessoa adorável agindo daquele jeito, com reações tão livres e leves. Fazia-me sentir um resquício de esperança de algo bom.
— Viu só? Eu adoro isso! — Ela sorria de maneira mais ampla, verdadeiramente contente.
— Não vou me acostumar com isso.
— Com o quê?
— Sua adoração.
Abro a porta do carro e por fim saio, mas a vejo fazer o mesmo. Ela contornou o veículo e parou à minha frente, tão rápida que me encurralou entre seu corpo e o carro. Quase constatei que ela fosse um personagem dos filmes de espião e tivesse passado sobre o carro numa manobra digna de premiação.
— Não se esquiva assim de mim, Ana. — Ela pediu com alguma urgência.
— Por que? Acabamos de nos conhecer, não insista dessa forma, garota.
— Eu sei que estou sendo maluca por agir assim, eu não sou dessa forma normalmente.
— Isso me conforta.
— Então me deixa mostrar mais coisas a você. Quero te conhecer melhor.
Solto um longo suspiro, deixando os ombros caírem. De certa forma me sentia um pouco encurralada, literalmente também. Eu não achava que ela representava algum perigo real, mas deixar aquilo ir adianta e a ver mais de uma vez seria abrir caminho para algum tipo de relação. Eu estava preparada para isso? Era algo que cabia na minha vida naquele momento?
Várias vozes argumentaram dentro da minha cabeça. Metade delas ressaltando que Amy era uma fã de Isa, que a possível descoberta de minha identidade secreta acarretaria em problemas não só com a editora, mas com os demais fãs. E isso por si só geraria um caos enorme. Por outro lado... Qual era o lado bom naquilo? O que havia de mal em prosseguir com a minha rotina da maneira que estava?
— Olha, Samuel e eu sempre vamos a aquela lanchonete no fim do dia. — São as palavras que saem da minha boca sem que eu conseguisse conter, sem que pudesse parar. — Aparece por lá segunda e sente com a gente. É o que posso te oferecer agora.
— Claro! Eu irei! — Respondeu animada.
— Já aviso que não sou a pessoa mais animada e simpática do mundo, ok? Samuel sofre nas minhas mãos.
— Mas ele adora você. Ele me apoiou muito quando falei do meu interesse por você. E também... — Ela levou a mão em meu rosto e eu me surpreendi com o gesto repentino.
— Ei, eu acabei de saber o seu nome. Você está ultrapassando uns bons quarteirões de distância para isso. — Logo digo, afastando sua mão e então me afastando dela, indo em direção à casa.
— Desculpa. Eu não queria avançar o sinal. — Tinha uma nota de humor em sua voz, e eu girei para olhá-la, andando de costas.
— Então fique aí, do jeitinho que está. E depois nos encontramos.
— Não posso nem te dar um beijo de boa noite?
— Nem está tão tarde assim. Boa noite!
Ela nem teve tempo de dizer nada, eu apenas entrei em casa o mais depressa que consegui. Ligo a luz e fico ali, encostada na porta, tentando controlar os batimentos do meu coração, tão acelerados. Foi a pressa, penso, foi a pressa que o fez acelerar, só isso.
Fim do capítulo
Suas palavras são bem-vindas ;)
insta: @alex.escritora
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May Poetisa
Em: 18/08/2022
Alex, comecei a ler e já estou adorando. Beijinhos!
Resposta do autor:
Que felicidade em te encontrar por aqui May! Seja muito bem-vinda!
Beijos!
kasvattaja Forty-Nine
Em: 19/02/2022
Olá! Tudo bem?
Dúvidas, dúvidas, dúvidas, um monte de receios e segredos.
Combinações explosivas.
E só estamos no segundo capítulo, Autora. Vamos lá, não apronte muito, ok?
Post Scriptum:
''A alma não tem segredo que o comportamento não revele. ''
Lao-Tsé,
Filósofo.
Resposta do autor:
Ola Kas! Um prazer te ver por aqui novamente! :)
Quaaais as dúvidas? ahahah
Magina, aprontar ei nada com os meus bebês, são os meus xodós :)
Adorei a menção :)
Beijos!
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