A verdadeira vitória não termina com uma derrota
A cidade estava sempre movimentada, com novos produtos vindo dos marinheiros de outras cidades. Aproveitei o tempo livre para conseguir novas roupas e livros de feitiços atualizados para poder praticar. Faltava duas semanas para a lua cheia, eu ainda tinha um pouco de tempo para me preparar para a luta com o filhote de demônio. Era evidente que Vonü achava uma boa ideia essa luta, não somente para testar sua filha, mas para saber do que eu era capaz. Nossa luta nem de longe tinha sido o suficiente para ela ter ideia até onde eu podia ir, mas se ela achava que não ter o elo com um dragão me tornava mais fraca, ela estava enganada. Eu entregaria sua filha em estado mais deplorável que ela me deixou.
Havia notícias das outras cidades, mas até então não havia indícios de guerra ou conflito. Tudo estava estranhamente em uma paz relativa. Ao menos por enquanto, se Vonü acatasse ao pedido de sua amante, então logo os boatos de guerra iriam se espalhar, e a paz teria acabado.
—Sabia que você gostaria do tom azul. — O vendedor me falou num sorriso contente enquanto eu colocava um vestido em frente ao corpo, olhando para o espelho comprido em sua venda. — Combina com seu tom de pele e seus olhos.
—Eu sempre gostei de azul.
—Você vai usá-lo no festival de outono?
—Quando será?
—Em duas semanas, mas dura três dias a festa. Costumamos dar uma grande festa para saudar a chegada da estação e desejar uma boa colheita.
—Parece divertido.
—E é! — Ele sorriu animado quando me virei para ele. — Tem cerveja bem fermentada, música e lindas mulheres que vem de todos os lugares.
—Desse jeito você me convenceu a vir. — Sorrio, devolvendo o vestido e lhe dando uma moeda de ouro. — Pode embrulhar para mim?
—Claro! Você fez uma boa escolha. — Ele pegou o vestido e começou a embrulhar num papel de seda.
—Então... Há quanto tempo você mora aqui? — Pergunto de maneira casual, fingindo puxar assunto enquanto olhava ao redor, para as vendas próximas.
—Desde que era um girino, senhorita. Meu pai me levava para pescar nesse mar, mas eu nunca levei jeito. Acabei seguindo a carreira de minha mãe, com as vendas. Meus irmãos viraram guerreiros e estão todos mortos. Minha irmã está casada, agora mora numa ilha.
—Numa ilha? Ela não gosta de multidões?
—Ah, não! Ela adorava. Por isso foi parar numa ilha, se é que a senhorita me entende. — Ele riu, fazendo um gesto ridículo em frente a barriga para simbolizar que ela tinha engravidado. — Agora mora no norte, e me manda uma carta uma vez por ano, no Natal.
—Ela se casou?
—Sim, sim. Teve que casar. Eu ameacei aquele desgraçado com uma lança. Ele se cagou todinho.
—O senhor sabe usar uma lança?
—Eu? — Ele riu, achando graça. — Não. Só se for para palitar os dentes. Eu duvido que aquela velharia estivesse afiada. Mas eu peguei o desgraçado com as calças em mãos. Acho que não faria diferença se a lança estivesse afiada ou não se eu enfiasse no lugar certo.
—Em que ilha eles foram morar?
—Tieres, é claro. Aqueles desgraçados dos povos do mar adoram vir aqui para desfrutar das nossas mulheres. Esse teve que pagar o preço.
—Mas são cristãos. — Pontuo, mas somente para testá-lo.
—Isso é o que eles dizem. Mas aqueles malditos cultuam os próprios deuses. Minha irmã fala que ninguém lá comemora o Natal. Eles fazem um culto ao que eles chamam de Deus do Mar, fazem máscaras e se aventuram pelas profundezas. São pagãos. Se fingem de cristões para o exército do rei não os incomodar. Eles são lobos em pele de ovelha, se fortificando para nos atacar.
—Então eles planejam atacar nossas terras?
—Oh, não! — Ele sorriu de maneira constrangida, como se tivesse falado demais, então me entregou o embrulho, mas eu somente coloquei outra moeda de ouro sobre a embalagem, erguendo a sobrancelha para ele, que engoliu em seco, mas aceitou a moeda. — Em sua última carta, minha irmã me falou que eles estão produzindo lâminas e fortificando os muros de suas fortalezas.
—Eles não estavam proibidos de produzir armas?
—Estavam. Mas eles pagam as taxas como todos, então ninguém fiscaliza embaixo da cama. — Ele ergueu as sobrancelhas de modo sugestivo.
—E tem algum boato de para onde eles vão levar essas armas? Ou estão esperando um ataque?
—Minha irmã falou sobre armas há dois natais. — Ele ergueu a sobrancelha, e eu revirei os olhos, colocando uma moeda de prata sobre a embalagem, que ele logo pegou. — Eles querem aumentar seu domínio. As ilhas ficaram pequenas para eles. Querem as cidades ao redor. Mas há boatos de que arranjaram inimizades com o povo nas montanhas.
—Nas montanhas? Naquela região não vivem os magos mais antigos?
—Meio longe de Tieres, certo? — Eu sabia o que ele estava sugerindo, mas já tinha gastado tudo o que não devia por essas informações, então peguei meu vestido.
—Eu iria sugerir que enviasse uma carta mais cedo a sua irmã. São tempos perigosos. — Então gesticulo para o embrulho. — Mas garanto que nos veremos em breve.
—Que Deus te abençoe, senhorita.
Espero que abençoe, pensei, porque a ideia que esboçava em minha cabeça iria necessitar muitas benções. Voltei para casa em seguida com minhas compras, sem encontrar ninguém no caminho até o quarto em que estava dormindo. Desde que comecei a dormir nessa casa, tive que me acostumar com o silêncio constante, com os serviçais que além de não escutarem, não falavam. Vonü e sua filha andavam como espectros pela casa, faziam suas refeições em horários diferentes, e constantemente recebiam a visita de Hiver, a amante de Vonü, ainda que nunca a tivesse visto passar a noite no quarto dela, desconfiava de seus desejos de ficar.
Eu permaneci na casa de Vonü mesmo sabendo que não tinha sido devidamente convidada, porque sabia que era a melhor forma de obter informações sobre ela e sua rotina, e quem sabe descobrisse algo útil que ela não estivesse me contando, o que não era difícil. E também porque não tinha para onde ir. Passei todos esses anos tentando encontrá-la, e quando consigo, não era exatamente como eu planejava. Imaginei uma luta e uma vitória, então eu conseguiria seus poderes e seguiria minha vida. Mas e agora? Eu precisaria de mais tempo para descobrir o que devia fazer.
Peguei os trajes novos e fui para o pequeno lago que tinha na propriedade de Vonü, a fim de me lavar, porque o tempo estava quente mesmo nas vésperas do outono. Para a minha surpresa, não tinha sido a única a ter essa ideia. Alinü estava lá, em sua forma verdadeira, nadando despreocupada, quase inofensiva, se não parecesse um daqueles peixes que matavam sua presa sem que ela sequer soubesse de onde veio. Eu pensei em provocá-la, mas antes que saísse detrás da árvore em que estava escondida, percebi que não estava sozinha. Hiver estava com ela. Não precisei esperar muito para demonstrarem que eram amantes, trocando caricias e risos como se o fizessem há muito tempo.
Tive que conter o riso de desprezo. Vonü compartilhava a amante com a própria filha? Aquilo era ridículo. Ambas eram repugnantes. De onde estava não podia ouvir o que falavam, então me esgueirei entre as árvores até estar nas margens do lago, procurando não atrair sua atenção. O que poderiam falar? Estavam flertando, fazendo planos para a noite. Por que eu me preocuparia com isso? Eu estava prestes a ir embora, quando ouvi algo que me interessou.
—Você já falou com os outros graahkinianos? — Alinü questionou a amante. — Eu duvido que Vonü marchará sem um número razoável.
—Mas você iria, não iria? — Ela riu em tom sarcástico.
—Vonü é cuidadosa demais. Ela perde a chance de finalizar assuntos com medo da punição de Graah. Por isso ela me mantém perto. Assim eu finalizo esses assuntos. Então sim, eu marcharia até Tieres, mas não sou idiota. Nunca estive lá. Vonü cresceu lá. Conhece o lugar.
—Exatamente. Precisamos dela e de sua experiência. Mas respondendo sua pergunta inicial, sim, contatei os graahkinianos que são próximos de minha família. Eles espalharão a notícia. Mas ainda vamos ter que trabalhar com aliados.
—Isso o ouro compra. Só tenho que ganhar mais tempo, assim consigo uma quantia que vai garantir um bom equipamento para esses idiotas.
—Vonü não desconfia de seus ataques a famílias inocentes?
—Ela não se intromete no que faço. E você se diverte descobrindo os planos dela.
—Confesso não fazer ideia do que você está falando. Vonü é uma querida, uma amiga que pretendo manter, ao contrário de você, que só serve para diversão.
—Você não encontrou diversão na experiência da cama dela? — Ela riu, mas não obteve nenhuma resposta que eu pudesse ouvir.
Então Alinü estava fazendo planos sem o conhecimento de Vonü, e Hiver era um lobo em pele de cordeiro. Era curioso pensar nisso. Vonü estaria cercada de inimigos sem saber? Afinal, o que sua filha ganharia ao conquistar Tieres?
—Encontrei algo curioso sobre você na experiência de Vonü. — Hiver falou depois de uma longa pausa.
—É? O que ela saberia de mim que eu não sei?
—Sua fraqueza. A fraqueza de sua espécie.
—Eu não tenho fraqueza.
—Todos temos, querida. O seu está nesse belo par de ossos que tem na cabeça, não tão magníficos como os de Vonü, então menos resistentes. Era assim que os jovens voulcans se rebelavam contra os mais velhos, matando o mais forte, você se torna mais resistente e assume seu lugar.
Se isso era verdade, eu tinha ganhado uma boa dica para a minha luta contra Alinü. Mas também significaria que ela poderia ter herdado o desejo selvagem do pai de assumir o posto de mais forte da espécie, mesmo que tivesse de matar a mãe. Mas o que eu faria com essa informação? Não devia ser minha responsabilidade avisar Vonü das ambições da própria filha, eu duvidava que ela não soubesse. Não teria criado a garota sem chamá-la de mãe se não tivesse previsto a semelhança com o pai e sua espécie.
—Como você sabe disso? Vonü nunca me fala sobre os voulcans.
—Vonü não detém todo o conhecimento do mundo. Eu tenho meus métodos. Ou achou que eu não faria minha pesquisa quando vi o reflexo de Vonü naquele espelho?
—Sua pesquisa foi bem detalhada na minha cama.
—Você não tem metade da capacidade de Vonü. Por isso você precisa dela. De qualquer forma, eu tenho que voltar. Não quero atrair atenção para a nossa ausência.
—Está bem. Volte para lamber as migalhas de Vonü. Eu te espero vir choramingar a noite na minha cama.
—Você é ridícula. Até breve.
Então essa era a minha deixa. Recuei alguns passos, então fiz barulho nos passos em direção ao lago. Alinü desapareceu antes que pudesse vê-la, mas Hiver continuou lá, analisando-me em silêncio com um sorriso nos lábios. Eu a ignorei. Sua forma inferior de demônio dentro do lago a fazia parecer um dos contos de sereia que marinheiros inventavam para justificar sua infidelidade. Deixei meus trajes numa pedra grande na beira, então entrei na água gelada com os calções e o top até a água atingir meu umbigo. Mergulhei, sentindo um arrepio com a sensação gelada contra minha pele, mas quando voltei a superfície a sensibilidade tinha diminuído um pouco. Ao menos ajudou a diminuir a adrenalina de ser descoberta espionando as amantes. Hiver ainda me observava com curiosidade.
—Vocês cristãos tem tanto medo de nudez. — Ela comentou, nadando em minha direção. — O demônio ficaria tentado se te visse nua?
—Você está?
Ela riu, nadando ao meu redor como uma serpente, analisando-me como uma fera. O que ela poderia querer? Se sua amante fugiu, então tinham medo que descobrissem seu caso, logo, Vonü não sabia. O que eu ganhava com isso?
—Você é a humana que cobiça o poder de Vonü. O que fará com ele?
—O que você faria?
—Não foi o que perguntei, querida. Você está atrás desse poder como uma cadela no cio. O que fará com ele? Seu Deus vai descer do céu e te abençoar?
—Você pode zombar. Eu não me importo. Logo você vai cair junto de Alinü.
—Oh, então está confiante nessa luta. Isso é bom. A loucura na batalha é sempre bem-vinda.
—O que você entende de batalhas, princesa? — Sorrio, ela revirou os olhos, fingindo não se importar com a provocação. — Você verá o que é uma verdadeira batalha. Agora, se me dá licença, eu tenho mais o que fazer.
E realmente tinha. Voltei para a casa de Vonü e agradeci as empregadas por terem preparado o jantar mais cedo. Comi na mesa principal sozinha, ouvindo movimentos pela casa, mas sem me importar. Minha cabeça estava longe. Se eu contasse a Vonü sobre o caso de sua filha com Hiver, o que mudaria? E por que eu iria me intrometer? Eu já tinha que me concentrar numa luta que não concordei em participar, mas sabia que tinha que aceitar ou nunca saberia o que era lutar contra uma voulcan, sem hesitações, como havia sido minha batalha com Vonü. Sabendo da fraqueza de Alinü, eu tinha vantagem, mas não saber de suas habilidades me tornava vulnerável para planejar meus ataques.
Com Vonü tinha sido mais simples. Bastava observá-la lutar com outros guerreiros, e suas habilidades se revelavam, ainda que eu soubesse que ela nunca lutou com toda a sua capacidade, e mesmo quando lutamos, ela sequer se esforçou para me derrotar. Que delírio o meu, achar que ela não escaparia de um feitiço de contenção.
—Devo me preocupar em sentar ao seu lado ou envenenou a comida? — Vonü parou atrás da cadeira principal, os dedos pressionados na madeira das laterais, os olhos verdes focados em mim. Havia um certo tom de humor em sua voz, eu me recostei na minha cadeira, pensando no assunto.
—Mandei preparar uma porção especial para você. — Resolvo usar ironia, mas ela acabou rindo e se sentando mesmo assim.
—Acho que vou ter que me arriscar ou morrer de fome.
—Bom apetite.
Ela mandou que as empregadas servissem o prato dela, comunicando-se com elas através de sinais e gestos. Uma delas trouxe a comida, e outra a bebida, logo Vonü começou a comer sem reservas, parecendo se deliciar com o que colocava na boca, ou talvez estivesse realmente faminta.
—Está de seu agrado? — Resolvo perguntar, brincando distraída com o garfo na mão.
—Claro. No ponto certo. Você quem fez?
—Não, não. Suas empregadas conhecem seu gosto melhor que ninguém.
—Você acha?
—Diga você.
—Não há muito que eu não coma. — Ela gesticulou para que eu terminasse de comer, colocando um pedaço generoso de carne na boca.
—Nos dias que estive aqui nunca vi nenhuma de vocês comerem. Achei que era algum ritual.
Ela riu ainda com a boca cheia, eu me ocupei em continuar a comer, não demorando para terminar, mas continuei na mesa, servindo-me mais meia taça de vinho.
—Como está sendo morar aqui? — Ela perguntou eventualmente. — Em meio a tantos inimigos.
—Você se provou mais valiosa viva do que morta. — Digo seriamente, girando o liquido dentro da taça. — Você não pode me matar, nem eu a você. Já aquelas outras duas não posso dizer o mesmo.
—Hiver não é um problema se você não a arranjar um problema.
—Talvez eu já tenha visto demais nessa casa para não ser considerada um problema.
—Como o que?
—Você quer mesmo saber?
—Claro, se tiver o que dizer, estou disponível para ouvir.
—Bem, se eu disser agora, você não vai acreditar em mim. Então, depois da luta, eu te conto, terei mais credibilidade.
—Tão misteriosa. Quer me deixar curiosa ou preocupada?
—Por que não os dois?
—Então você conseguiu. Vou me interessar mais pelo que se passa debaixo desse teto.
—Se fosse você eu o faria. Mas... estava pensando. Lutar com sua filha não me faria ganhar nada concreto. Então... se eu ganhar, tenho sua palavra de que acatará um pedido meu?
—E você não vai falar o que é com antecedência, suponho. — Ela ergueu a sobrancelha, parecendo achar divertido.
—E não apreciar sua curiosidade? Não, não. Vai ter que me dar sua palavra, se está confiante de que treinou sua discipula da maneira certa.
—Você está confiante demais para estar me fazendo esse pedido. Não sou idiota. — Isso era questionável, mas não comentei nada. — Você deve ter descoberto algo sobre Alinü.
—Nada a mais do que ela já deve saber sobre mim. Afinal... ela já deve ter previsto como a luta termina, certo?
—Não é assim que as visões funcionam. As imagens vêm em códigos e temos que decifrar como um enigma. Não são simples, e quase sempre elas não se mantêm. Se ela viu algo, não é definitivo.
—E o que você viu?
—Eu não interpreto o que vejo há algum tempo. As visões já não são mais recorrentes. — Ela voltou a comer, ainda que eu percebesse seu desconforto no assunto.
—Por que? O futuro não é brilhante?
—O futuro é instável e cansativo. Alinü ainda está empolgada com as vantagens desse poder.
—Você tem esses poderes há tanto tempo quanto ela, pelo que me disse. Então por que já perdeu o interesse?
—Eu passei um século convivendo com Teniê, não era nenhuma novidade mais quando obtive esses poderes.
—Por que ele demorou todo esse tempo para te passar esses poderes?
—Na maior parte do tempo ele estava desafiando outros voulcans. E eu não era a aprendiz mais dedicada, então tudo demorou a mais.
—Você? — Isso me fez rir, ainda que ela não parecesse se orgulhar do fato, mantendo a atenção no prato. — Diga o motivo, Vonü. O que você fazia além de se rebelar contra seu mestre?
—Quem está curiosa agora? — Ela me provocou com um sutil resquício de humor, erguendo os olhos da comida para me olhar.
—Eu estou, confesso.
—Mas vou te dizer. — Ela limpou os lábios no lenço, pegou a taça de vinho e levou até os lábios, e parou ali, deslizando os olhos até os meus, os cantos da boca se curvando num sorriso. — Eu odiava esses treinos. — Ela pausou para beber o vinho, dando-me tempo para rir. — Lutar me deixava exausta.
—E você não gostava desse esforço. — Defini, e ela moveu a cabeça, concordando. — E o que aconteceu para mudar sua cabeça, Vonü?
—Eu comecei a perder as lutas nos treinos para os filhos de Avoff. — Admitiu, sem qualquer vergonha do fato. — Imagine só, perder para crianças.
—O orgulho te fez lutar com mais afinco? — Perguntei com deboche, mas ela não se deixou afetar.
—Praticamente. Deu certo, não acha?
—Sim, deu certo.
Ela tinha um sorriso bobo no canto dos lábios, provavelmente pela memória, movendo o vinho com ar nostálgico. Então ergueu a taça e tocou a minha, sem dizer nada, produzindo um sutil som agudo, e bebemos em silêncio. Uma estranha oferta de paz, ao menos até a luta com sua filha.
Então o dia chegou. Não vi Alinü durante todo o dia, nem sua amante, o que eu não reclamava, mas por algum motivo, meu caminho cruzou com o de Vonü várias vezes. No desjejum, no almoço e na beira do lago em sua propriedade, onde eu fazia os alongamentos enquanto o sol se punha. Ela sorriu quando me viu, mas não dissemos nada, ela ficou ali, olhando-me alongar os músculos e me preparar para a luta contra sua filha. No primeiro momento achei que ela estivesse tentando me distrair, ou descobrir algo que servisse de vantagem para Alinü, mas o que poderia haver de útil em eu me preparar para a luta?
Quando peguei minha adaga para observar se estava devidamente afiada, pude ouvir seu suspiro. Não sabia se tinha sido proposital, mas eu a olhei mesmo assim, erguendo a sobrancelha, só então ela se levantou e caminhou até onde eu estava, parando perto demais. Nessa altura, a lua já tinha substituído o sol, e seus olhos vermelhos brilhavam intensamente, vagando entre meu rosto e a lâmina. Parecia incomodada, e eu podia decifrar o motivo pela cicatriz em seu braço e em sua bochecha. Ela podia ter curado os ferimentos que a causei, mas o feitiço em minha lâmina a deixava marcada, tal qual sua maldição me marcou, ainda que tenha sido essas marcas que me ajudaram a encontrá-la. Ela estendeu a mão, pedindo pela adaga, eu estreitei os olhos, sem entender suas intenções e desconfiando das piores, mas ela somente suspirou com paciência.
—Eu só quero vê-la em minhas mãos. Tirar uma dúvida.
—Você sabe que se trapacear eu não sou obrigada a lutar contra sua filha e você a estaria desonrando, certo?
—Não farei nada, Seul, não é comigo que precisa se preocupar.
Então girei o cabo e a entreguei minha adaga. Ela analisou as inscrições na lâmina diante dos olhos, talvez tentando decifrar o feitiço, o que me fez sorrir, porque eu duvidava que ela entendesse as runas dos magos.
—A chama queimará os impuros. — Digo depois de um tempo, ela me olha, balançando a cabeça para concordar.
—E revelará sua luz. — Ela virou a lâmina, onde o feitiço continuava nas bordas. — Cortará os laços com a escuridão e transformará em bênçãos. — Ela suspirou. Mas eu estava impressionada que ela pudesse ler. — Vocês magos acham que Deus lhes deu poder.
—E não?
—Se eu lhe der meu poder, mesmo que tenhamos o conhecimento de que não é simples assim, você iria me ver como uma Deusa?
—Não. Claro que não.
—E também não acha que Teniê era um Deus. Todos nascemos com algo que era de nossos ancestrais. E é assim desde que o mundo é mundo. Meu povo acredita que Graah nos concebeu a essência da vida e soprou a poeira nas montanhas para criar nossos corpos. Graah queria soldados para lutar pela sua terra.
—E Deus quer discípulos para ele ensinar.
—No entanto você está aqui para lutar, e eu para aprender. — Ela parecia prever o que eu diria. — Então quero pedir algo em nome de seu Deus e de Graah, mesmo que não acredite nela. — Ela posicionou a lâmina contra a sua mão e me fez segurar o cabo. Eu tentei afastar o braço, mas ela pressionou a sua mão sobre a minha e segurou a lâmina com a outra mão, os olhos fixos nos meus com uma seriedade acentuada. O que poderia ser tão sério para ela chegar nesse ponto? — Não mate Alinü.
—Você viu isso acontecendo? Ou é algum jogo mental? Falar que vou ganhar para me deixar confiante e me fazer perder?
—É só o que estou pedindo. Não a mate e eu pago o preço que você quiser.
—E ela está disposta a não me matar?
—Alinü é inconsequente, mas é a única descendente que terei. Ela pode lidar com a derrota com o passar do tempo, mas eu não posso lidar com a morte dela.
—Você sabe que isso não é justo.
—Não. Mas se ganhar eu te dou minha palavra de que terá o que desejar.
Ergui a sobrancelha, pensando sobre isso. Vonü deveria ter voltado a interpretar suas visões para estar me implorando pela vida de sua filha, ou estava somente querendo ter certeza de que não a perderia, independentemente do resultado. Mas o que aconteceria se eu hesitasse em matar Alinü? A garota estava vindo com o intuito claro de me matar, para se provar à mãe, se eu não fosse até o fim, eu poderia perder minha vida. Então era a única que tinha algo a perder. O sangue já escorria do aperto que Vonü mantinha na lâmina, os dedos trêmulos, a tensão era palpável. Se ela tinha olhado para o futuro, então devia ter me visto negando sua proposta diversas vezes, porque era um absurdo.
—Você está tentando me matar através de sua filha, Vonü Throntier.
—Estou tentando manter minha família viva.
Havia uma angustia nos seus olhos que ela sequer tentava esconder que beirava o pânico. Alguma vez ela me viu aceitando isso? Se não, por que ela insistiria? Eu sabia da fraqueza de Alinü, e talvez lutássemos por igualdade, mas quais eram minhas chances de acabar aquela luta com minha vida? Talvez fosse pela adrenalina que antecede a batalha, mas eu cortei a mão de Vonü, e sua agonia se transformou em dor antes de encontrar um alivio perplexo. Entreguei o cabo da adaga para ela.
—Qualquer coisa, você disse. — Relembro, e ela move a cabeça para concordar, posicionando a lâmina na palma de minha mão.
Seu sangue escorria e manchava o cabo dourado de minha adaga, mas ela segurou firme mesmo assim antes de cortar a palma de minha mão. A arma caiu no chão, então ela juntou nossas mãos cortadas num aperto justo, sem desviar o olhar do meu.
—Você me fará sua aprendiz, Vonü Throntier. — Digo baixo, perto do seu rosto, vendo a perplexidade transformar sua expressão numa careta incrédula, ela tentou soltar minha mão, mas a prendi forte. — E sua filha continuará viva.
—Eu não tenho nada para ensinar a você. — Ela falou entredentes, com raiva.
—Além de tudo que aprendeu com um voulcan? Sim, você tem muito a me ensinar. — Sorrio, soltando sua mão. — Você não vai se livrar de mim.
—Então vou torcer para não te ver de novo, Seul Wittebi.
Eu me abaixei para pegar minha adaga, então caminhei até a beira do lago, limpando minha mão e minha arma na água límpida, sibilando algumas palavras antes de fechar o corte, uma cicatriz se formando no lugar. Viro para Vonü, que tinha os olhos vidrados em mim, como se reconsiderasse a promessa ao meu pai.
—Você me deu sua palavra, Vonü.
—E minha palavra é a única coisa que tenho. — Assumiu, ainda que a contragosto.
Sorrio, aproximando-me, segurando seu punho e sibilando as mesmas palavras, curando seu ferimento e o transformando numa cicatriz. Alinü chegou logo em seguida, olhou entre sua mãe e eu, então me atacou.
Vonü bateu as asas para sair do campo de ataque da filha, que vinha correndo em minha direção com a espada de energia que sua mãe possuía. Havia ódio em seus olhos e determinação em seus movimentos, nada comparado a postura calma e contida de Vonü quando lutamos. Ela avançou sem hesitar, então desapareceu, e eu ouvi um estalo sutil de energia atrás, aviso suficiente, e eu impulsionei minhas pernas para saltar, assistindo o corpo de Alinü passar abaixo com velocidade antes de pousar no chão.
Ela tentou a mesma estratégia uma vez atrás da outra, desaparecendo e reaparecendo de onde eu não pudesse vê-la, sem me dar tempo para pensar que não fosse desviar de seus ataques. Ela tinha velocidade, eu não tentei atacar nos primeiros minutos, deixando que sua fúria inicial revelasse seus movimentos mais primais. Eu não tinha sido afetada por aquela arma na minha luta com Vonü, mas imaginei que não seria nada agradável. A garota queria acabar logo com a luta, sua fome pela vitória estava deixando-a imprudente. Mas também não me dava chance de calcular uma investida. Era uma estratégia arriscada a dela, mas deu certo no começo, cansando-me e me deixando sem espaço para reagir, somente desviando.
Ela conseguiu acertar minha coxa direita, eu perdi o equilíbrio no meio do passo e deslizei no chão. Ela não parou e avançou, a luz intensa da sua lâmina, se é que era uma lâmina, veio certeira em direção ao meu peito, a intensidade era tanta que eu sentia o calor que fluía dela. Segurando o cabo de minha adaga, eu cravei a lâmina no pulso da infeliz, ela gritou e deixou a espada cair, cortou meu rosto na queda, mas ela se afastou e pegou a lâmina com a outra mão, finalmente me dando espaço para respirar enquanto praguejava o ferimento que eu lhe causei.
—Para quem gosta de cantar ameaças, você está com a boca velada hoje, amaldiçoada. — Provoco, ela cospe na minha direção, com raiva. — Suas visões não foram promissoras?
Ela moveu a espada e pressionou no ferimento, queimando a carne com o intuito de conter a hemorragia. Que melhor momento para atacar que não esse? Ergui a arma e disparei, lancei a adaga logo em seguida. Fiz a munição se espalhar para que atingisse todos os lados dela, e a adaga continuou indo da mesma forma. Ela só pode desaparecer e gritar de raiva antes de voltar a me atacar, o braço ferido junto ao corpo enquanto segurava a espada brilhante com a outra mão, atacando-me com fúria e ímpeto, mas sem a mesma credibilidade de antes. Mas eu também já não conseguia me movimentar com agilidade, minha coxa queimava e sangrava, e isso me tornava lenta para a sua selvageria.
Ela não parou, girou a espada para tentar cortar meu pescoço, mas apesar de letal, a espada não era comprida, e eu só precisei recuar um passo para desviar. Girei meu corpo em seguida e fiz um corte com a adaga em seu pulso armado, dessa vez ela não soltou a lâmina, mas desceu o braço num ataque feroz com a intenção de cortar meu crânio. Soquei seu queixo com o punho da adaga, pressionando o cano da arma na sua barriga e atirando. Uma, duas, três vezes. As balas atravessaram seu corpo imediatamente e seu ataque perdeu força, mas cortou meu rosto na diagonal antes de se afastar.
O sangue me cegou por alguns segundos antes de eu me curar, pressionando uma mão sobre a ferida. Alinü estava apoiada num joelho, sangue escorrendo de sua boca e ódio gritando em seus olhos vermelhos. Ela falou alguma coisa, não entendi o idioma, mas os ferimentos redondos na sua barriga se fecharam. Ainda assim ela pareceu enfraquecer e ficar abalada, talvez não soubesse que minhas balas eram enfeitiçadas da mesma forma que minha adaga, e mesmo que se curasse, seria enfraquecida. Assim como eu já me sentia cansada, mesmo tendo curado meus ferimentos, as cicatrizes não amenizavam o impacto.
Eu sabia o que tinha que fazer, e por isso guardei minhas últimas forças para um último golpe. Mas não foi simples. Lancei uma série de feitiços com o intuito de feri-la, ou ao menos cansá-la, mas foi a vez dela de mostrar agilidade para desviar. Então tive uma ideia.
Usei meu poder para atacar por trás, erguendo a mão em sua direção. O estrondo alertou do ataque e ela bateu as asas, desviando do ataque como eu imaginei que faria. Seus olhos estreitaram em minha direção, com um sorriso de reconhecimento. Repeti o ataque mais duas vezes, projetando minha imagem à sua frente enquanto disfarçava minha presença no chão com a fumaça púrpura que saia de minha mão, espalhando-se facilmente com o vento que vinha do oeste. Como previsto, Vonü tinha contado sobre como foi nossa luta, inclusive sobre esse ataque. Quando lancei o feitiço para acertá-la no ar, ouvi o estrondo maior, e por um instante achei que a tivesse acertado, mas o que aconteceu nem mesmo eu acreditei. Gritei de dor quando meu corpo foi acertado pelo meu próprio feitiço, causando uma onda de choque pela minha coluna e se espalhando pelos ossos. Eu estava com as costas no chão quando vi Alinü mergulhando no ar com a lâmina apontada em direção ao meu peito, como um anjo da morte vindo me buscar para o julgamento final.
Ela tinha transferido o impacto do meu feitiço de seu corpo para o meu, deixando-se atingir propositalmente. Eu a esperava me atacar no chão, estava preparada para esse ataque, e sabia que tinha arriscado demais esperando que ela fizesse o que eu queria, mas ela tinha previsto minhas intenções e agora estava certa de que iria me matar.
Eu esperei. Esperei até que ela estivesse a um corpo de distância, juntei a última força que tinha e girei meu corpo ligeiramente, porque não conseguia mais que isso, e ergui o braço que segurava firme a adaga. Com a velocidade que ela vinha, meu único esforço foi manter o braço firme, enquanto o outro o apoiava no aperto do cabo. Gritei de dor quando a espada dela perfurou a lateral de minhas costelas, mas mantive meus olhos abertos, assistindo de perto quando minha adaga cortou seus chifres perto do couro cabeludo.
Eu estava sangrando e gem*ndo quando ela caiu do meu lado, inconsciente, e deixou a espada cravada na minha carne, queimando como o inferno devia queimar os pecadores. Eu tirei a espada do meu ferimento e me forcei a sentar, sentindo meus músculos queimarem em protesto, mas eu segurava a espada de Vonü e ela parecia me dar alguma força. Tinha um incrível poder dentro dela, que pulsava e se revirava como se fosse um vulcão prestes a entrar em erupção, vibrava em meus ossos, mas ao mesmo tempo fazia o efeito do feitiço que me acertou diminuir.
—O que você fez? — A voz irritada de Vonü me trouxe a realidade, eu me virei e a vi ao lado do corpo da filha, tocando o local onde estiveram os chifres da garota.
—Você disse para mantê-la viva. — Digo de maneira óbvia. — E me manter viva no processo.
—Você tem ideia do que fez?
—Sim. Eu a deixei marcada. E agora você sabe o que deve fazer.
Vonü me odiava. Ela viu a filha prestes a ganhar, e agora estava inconsciente, sem o símbolo de seu poder, e, portanto, enfraquecida, destinada a não superar sua progenitora. E, no entanto, Vonü teria que me treinar ao invés da própria filha, e não havia nada que ela pudesse fazer para impedir isso. A menos que me matasse.
Fim do capítulo
Vonü --> o ü é mais fechado, assim como Alinü
Seul Wittebi --> o W tem som de V
Marheeve --> o "ee" tem som de i mesmo, mas se lê mar-ive
Hiver --> h com som de r mesmo
Graah --> como tem h no final, tem o som mais aberto.
Voulcan --> na história dos voulcans, o som é mais diferente, o V tem som de F, fica foucan para pronunciar.
Olá! Olha uma batalha aí :D Seul é uma criatura obstinada afinal hahaha
Estou postando agora porque não terei tempo amanhã, então já deixo adiantado :)
O que acharam? Muita informação para digerir :D
Até sábado ;)
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Andys
Em: 28/04/2021
Olá autora
Estou adorando a história da Vonü.
Parece que a Hiver deixou escapar a fraqueza
da Alinü de propósito ou ela estava muito certa da vitória?
Resposta do autor:
Olha, acho que elas estavam confiantes demais, tanto da vitória de Alinü quanto do caso oculto delas, acabaram perdendo a noção ali de que podiam não estar sozinhas.
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Marta Andrade dos Santos
Em: 26/04/2021
Seul conseguiu kkkk
Resposta do autor:
Conseguiu mais problemas também :D
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