A semente da vingança é plantada
—Acorda, querida. — Hiver toca meu rosto, acariciando de maneira gentil, então abro os olhos e sorrio, permanecendo deitada.
—Eu não estava dormindo. — Alerto, segurando sua mão entre as minhas sobre a barriga. — Não enquanto aquela garota continuar dormindo debaixo desse teto.
—Eu reparei que ela continua aqui. Você sabe o motivo?
—Bem... ela estava fraca. Talvez queira se fortalecer, e então me desafiar para uma luta.
—E você lutará?
—Que escolha eu tenho? Acha que ela vai desistir? Ela pode querer me matar ao invés de conseguir algum poder.
—Ela só vai parar se você finalizar com esse assunto de uma vez.
—Eu não posso. A única coisa que tenho é minha palavra, se eu não mantiver isso, o que vai sobrar?
—Sua reputação, para que ninguém tente pegar seus poderes outra vez.
Sorrio, movendo-me até deitar a cabeça no seu colo, ouvindo seu riso suave enquanto acariciava meus cabelos.
—Se eu quisesse manter essa reputação, eu teria ficado à beira do Rio dos Ossos, na costa leste. Mas estou cansada. Essa garota está arruinando a paz que tinha.
—Você não gostava de lutar?
—Claro que gostava. Era maravilhoso testar cada soldado que vinha e ouvir suas histórias para quererem me matar. Havia pessoas que me adoravam. — Sorrio com a memória, soltando um suspiro logo em seguida. — Traziam relíquias ou o que podiam, pedindo proteção, como se eu fosse a própria Deusa Graah.
—Bem, não me surpreenderia se você fosse descendente de Graah. — Isso me fez rir, inclinando a cabeça para poder olhá-la.
—Eu aprecio suas tentativas de me deixar lisonjeada, Srta. Tuhnden, mas elas não vão dar certo. Até porque... pelas descrições que faziam de Graah, você seria a melhor candidata de ser sua descendente.
—Eu? Ah, por favor. — Ainda assim ela havia corado, e isso me fez rir mais, erguendo as mãos para pressionar os dedos em suas bochechas.
—Eu te deixo lisonjeada, Srta. Tuhnden? — Provoco, observando sua pele escura enrubescer mais.
—Ora, sua criatura diabólica.
Ela começou a cutucar minhas costelas, e de seus dedos saía uma sutil luz escura, dando-me pequenos choques que me fizeram rir, buscando segurar seus pulsos, mas ela desviava com agilidade e continuava suas investidas. Recuei no colchão, tentando me afastar dela, mas seu corpo se projetou sobre o meu, imobilizando-me no lugar enquanto intensificava os toques, fazendo-me rir alto.
Então ela parou gradativamente, e eu não via somente sua aparência humana, mas a sua verdadeira forma, com os símbolos na pele exposta e os olhos ainda mais claros. Os símbolos desciam pelos seus pulsos, seus dedos, além dos que estavam em suas bochechas e na sua testa. Eu duvidava que ela tivesse mais porque ela mesma disse que sua linhagem era misturada, e isso fazia os símbolos enfraquecerem com as gerações.
Suas mãos ainda estavam pressionadas nas minhas costelas, os olhos fixos nos meus com intensidade, um sorriso brincando em seus lábios pintados de vermelho. Havia desejo no seu olhar, e talvez sequer tivesse reparado que tinha voltado a sua aparência inicial, mas não iria reclamar, queria vê-la assim desde que soube que ela era como eu já fui.
—Você é linda. — Digo num sorriso, deixando os braços caírem sobre o colchão. — Eu gostaria de te ver nessa forma todos os dias.
—Você pode, se quiser. — Sua voz estava mais baixa, mais íntima, como nunca a tinha escutado antes. — Você vai me mostrar sua outra forma também?
—Então você quer ver?
—Desde do primeiro dia.
Então me levanto devagar, ficando em pé ao lado da cama, observando seus olhos curiosos em meu corpo à medida que eu deixava as asas saírem de minhas costas, sentindo um leve formigamento na pele quando as escamas saíram. Hiver levantou da cama e se aproximou, deslizando os dedos pelos meus braços, os olhos acompanhando o gesto, parecendo entretida. Ela levou o próprio tempo, analisando as escamas, minhas asas, meus chifres. Confesso que gostava da atenção, não me lembrava da última vez que alguém tinha me olhado da mesma forma que ela olhava, com admiração, com cobiça.
—Eu posso sentir tanto poder vindo de você, Vonü. — Ela falou baixo, em minhas costas. — Você podia conquistar cidades e as pessoas se ajoelhariam aos seus pés. — Ela continuou andando e voltou a parar a minha frente, segurando meu rosto em mãos. — Você pode fazer tantas coisas.
—Posso, mas eu não quero nenhuma dessas coisas. — Digo num suspiro, afastando suas mãos lentamente.
—Você poderia tomar Tieres do povo do mar e devolver a dignidade do nosso povo, Vonü. Poderíamos finalmente andar orgulhosos nas ruas. E não com medo de mostrar nossa verdadeira forma.
—Conquistar Tieres? — Estreito os olhos, considerando a ideia por um momento, mas balanço a cabeça. — Nem mesmo eu tenho forças para conquistar aquele lugar sozinha. E Alinü nunca lutou. Tem muito o que aprender.
—Quem disse que iria sozinha? Tenho certeza de que se minha família começar a espalhar a ideia entre nossa espécie, muitos se juntarão a você.
—Muitos podem não ser o suficiente.
—Podemos ao menos tentar. Você não está cansada de viver escondida?
—Eu quero paz, Hiver. — Falo com calma, colocando uma mão no seu ombro para apaziguá-la. — Eu passei a vida lutando.
—Só vamos ter paz quando deixarmos de nos esconder, Vonü. — Falou impaciente, afastando minha mão. — Eu posso contar nos dedos os demônios que são tão velhos quanto você, que viram a destruição do nosso povo. E garanto que você foi a única quem ganhou ainda mais poderes que todos eles juntos. Mas é a única que não quer fazer nada sobre isso, que não quer vingar nosso povo e retomar nossa ilha.
—Vocês precisam mesmo fazer tanto barulho de manhã? — Alinü apareceu na porta do quarto, olhos curiosos que vagavam entre nós. Suspiro. — Oh. Não sabia que tinha passado a noite aqui, Hiver. Decidiu finalmente fazer um movimento em relação a Vonü?
—Eu não passei a noite aqui. — Hiver falou rispidamente. — Mesmo que tivesse, o que você tem com isso?
—Estou vendo que a investida não saiu como esperado. — Falou com um sorriso de lado, sem se deixar abalar. — Deve doer.
—Ali, pare. — Peço sem muita paciência, movendo a mão no rosto com alguma selvageria. — Você precisa de algo?
—Da cabeça daquela humana esfolada e longe daqui.
—É o que suas visões te mostram agora?
—Se for o que eu decidir.
—Você a subestima. Mas se é uma luta que você deseja, eu te arranjo.
—Eu quero lutar com ela. Você fez a promessa ao pai dela. Não eu. Eu vou acabar com isso de uma vez.
—O que suas visões estão mostrando para você estar preocupada com Seul?
—Veja suas próprias visões, se quiser saber. Só achei que fosse querer saber. Avise a humana se quiser.
—Espere até o auge da lua. Então terá sua luta.
Ela pareceu concordar, então saiu do quarto, só então suspirei, aliviada pela iniciativa que ela teve. Talvez fosse o certo afinal, e fosse ela quem finalizaria a situação com Seul, uma vez que eu não podia fazê-lo. Era o que tinha que acontecer.
—Bem... Avisarei a Seul que terá uma luta. — Digo sem olhar para Hiver, sentindo o clima desconfortável que ela tinha se colocado.
—Vonü... — Ela quase sussurrou. — Pense no que eu falei. Você pode ajudar muitas pessoas de nossa espécie a voltar a ter uma vida digna. E você teria sua paz na ilha que seus pais viveram.
—Eu só peço que não comente sobre sua ideia com Alinü. Ela é jovem e inconsequente, aceitaria algo assim sem pensar duas vezes. — Viro o rosto sobre o ombro, olhando-a com o canto do olho. — Eu não preciso te dar uma resposta. A ideia é absurda. Há centenas de habitantes na Ilha Tieres. Eles têm o mar a favor de suas habilidades. Não temos sequer uma centena de demônios que saibam lutar.
—Podemos conseguir aliados.
—Assim como tivemos na primeira batalha? — Pergunto com ironia, então caminho até a porta. — Esqueça. Vamos perder mais que ganhar.
Ao invés de procurar por Seul, voei até o topo do telhado, querendo ficar sozinha. Não era um bom modo de começar o dia, sendo lembrada das lutas e de responsabilidades que achavam que eu tinha.
Nunca me nomearam uma líder dos graahkinianos, embora eu soubesse que seria a candidata menos provável depois de meu pai, quando crescesse. Na época do desastre que exterminou os graahkinianos, eu era uma criança na primeira década de vida. Meus pais ficaram para lutar enquanto meus tios me levaram para uma terra distante entre as montanhas, onde passei a juventude numa pequena vila. Foi onde aprendi a me disfarçar de humana, uma vez que minha espécie começou a ser cada vez mais odiada, e não era seguro andar por algum lugar em minha forma de Graahk.
De certa forma, Hiver estava certa. Nosso povo merecia liberdade como qualquer outra. Mas uma guerra sem bons guerreiros do nosso lado não era a melhor opção. Ninguém iria querer se aliar agora mais do que quiseram há dois séculos.
—Oh, você está... aqui. — Era a voz de Seul, na beira do telhado, claramente confusa entre continuar subindo ou voltar de onde veio.
—No meu próprio telhado. — Digo com ironia. — O que você faz aqui?
—Talvez o mesmo que você. Ficar sozinha, aproveitar a vista... Eu posso voltar em outra hora.
Ela começou a descer, desconfiei de que estivesse levitando, uma vez que não havia escada até o telhado. Então ela estava boa o suficiente para usar seus poderes, parecia mais saudável, mais ainda de quando a conheci, o que poderia ser um bom sinal. Ela estava se fortalecendo.
—Fique. — Digo por fim, e ela para, somente a cabeça visível acima das telhas. — O telhado é espaçoso.
Ela não hesitou, voltou a subir e levitar sobre as telhas, sentando do meu lado, para a minha surpresa. Ela tentaria me atacar? Não parecia estar munida com sua espada enfeitiçada, mas isso não a tornava menos letal. Não iria subestimá-la, foi assim que ela me atacou de surpresa pela primeira vez.
O sol ainda estava em suas primeiras horas, e o céu estava claro, sem nuvens, aberto até onde os olhos alcançavam. Minha casa era alta, então nossa vista era privilegiada, mostrando a cidade descendo a trilha, as outras casas longe a oeste, com fazendas e gado. Provavelmente eu compraria terras para plantio, faria render e construiria raízes aqui junto das plantações. Era uma ideia boa.
—Manhã agitada, a sua. — Ela comentou em tom casual, olhando para frente. Eu me perguntava o quanto ela tinha ouvido da discussão pela manhã. — Sua... amiga tem uma grande ambição.
—Então vocês têm algo em comum. — Digo, olhando-a de lado. — Ela quer que eu lute, e você quer meus poderes.
Ela ficou em silêncio, focada como se houvesse algo a frente, mas só havia o sol, e mesmo ela não era capaz de olhá-lo diretamente. Sua pele tinha ganhado um tom bronzeado nos últimos dias, os cabelos loiros foram presos num rabo frouxo. O sol dava um tom esverdeado nos olhos azuis, o cabelo um brilho maior. Seul era linda. E queria me matar.
—Como você conseguiu seus poderes, Vonü? — Ela ainda não me olhava, o tom era sério, sem humor.
—Eu conheci Teniê Rouchoff, ele era um voulcan puro. — Vi seu cenho franzir com o termo, então esclareci melhor. — A forma que eu tenho agora é semelhante à de um voulcan. Era uma espécie que vivia nas montanhas, mas estava extinta. Teniê era um dos últimos de sua espécie e me encontrou jovem, na idade de Alinü, dizendo que procurava um discípulo para passar seus poderes.
—E você aceitou. — Não havia julgamento em seu tom, então prossegui.
—Sim, era jovem e estava sozinha depois da batalha em Tieres. Meus irmãos tinham se separado desde antes do extermínio. Então por que não?
—Então você nunca encontrou seus irmãos?
—Nunca procurei.
—E como foi a experiência com um voulcan? Eu nunca ouvi falar.
—É compreensível. Eles eram uma raça selvagem que tinha traços humanos. Gostavam de viver isolados. Ninguém tinha contato com eles a menos que quisessem. Mas eram perigosos. — Solto um suspiro, olhando o horizonte outra vez, mastigando as palavras em minha boca, digerindo-as para saber como dizê-las. — Eles viviam em tribos, estavam sempre em guerra, querendo ganhar o domínio entre eles. Provavelmente foi como foram quase todos extintos.
—Então ele te ensinou sobre a história deles.
—Nós conversávamos as vezes, mas quem me contou sobre a história, foi Avoff, a irmã de Teniê. Eu passei a morar na casa dela e seus filhos. O parceiro foi morto pelo irmão, para impedir que ele buscasse a liderança.
—Isso parece horrível. — Ela estava chocada.
—Mesmo que os machos da espécie não queiram lutar pela liderança, eles são mortos para não representarem perigo no futuro.
—E as fêmeas?
—Às vezes lutavam pela liderança ao matar o companheiro. Mas elas se dedicavam a questões práticas de sobrevivência ao invés da guerra entre a própria espécie.
—E quanto tempo você foi discipula de Teniê?
—Décadas. Eu passei minha juventude aprendendo suas habilidades e sua história. Até vinte anos atrás, quando ele decidiu executar o “ritual” sem avisos.
—O que aconteceu nesse dia? — Ela virou o rosto na minha direção, mas dessa vez não a olhei, temendo que ela visse as memórias através de meus olhos.
—Ele disse que iria me testar, para saber se eu era digna dos poderes dele. Então lutamos. Mas foi diferente dessa vez. Ele tentava me dominar de todas as formas para tentar me fazer desistir, para dizer que ele era o mais forte. Era um jogo de poder, eu sabia disso, mas sabia que não podia ceder. — Suspiro, sentindo o ar se prender no nó que se instalou na minha garganta, mas eu o forcei a desaparecer, incapaz de demonstrar fraqueza na frente da pessoa que queria me matar. — Mas ele tinha mais poder, e quando percebi o que ele queria fazer, ele já estava dentro de mim, e eu já não tinha mais forças.
—Então o tal ritual tem basicamente a ver com sex*?
—Não, mas eu só fui saber depois. Tem a ver com dominância, mas isso pode significar diversas situações.
—Dominância? Por isso você disse que eu teria que me submeter a você?
—Sim, de certa forma. Isso pode ser forçado ou dado. Teniê preferia o modo forçado, porque era da natureza dele. — Viro o rosto em sua direção, enfrentando a seriedade dentro dos olhos azuis dela. — Então sim, eu quis os poderes dele, mas não, eu não escolhi o método. Você entende agora que não é possível você receber esses poderes? Se eu quisesse você submetida a mim, eu o teria feito uma década atrás.
Ela não respondeu de imediato, então eu deitei as costas nas telhas, esticando as asas nas laterais, apoiando a cabeça em minhas mãos. Ela podia tentar me matar a qualquer momento, mas eu não estava me importando, porque agora ela sabia o quão impossível era ela possuir meus poderes sem pagar um preço.
—A garota é sua filha com Teniê. — Ela definiu, eu suspirei, inclinando a cabeça e encarando suas costas. — Por isso ela não te chama de mãe. Ela é fruto da sua derrota.
—Derrota? É o que você acha? — Balanço a cabeça, incrédula. — Eu fui enganada e usada. Não era uma luta justa.
—Ela nasceu do seu ventre mesmo assim. E te chama de mestre.
—Eu cuido e a treino. A forma como ela me chama não muda nada.
—Mas você não a vê como filha.
—Como eu disse, esse poder tem um preço.
—E seu preço foi criar uma voulcan com os traços do pai.
—E ela quer lutar com você. Na lua cheia.
—E o que eu ganho com isso?
—Então você acha que ganha dela. — Sorrio com o altruísmo dela. — O que você quer ganhar, se sair viva dessa luta?
—Eu sei que seu plano é se livrar de mim nessa luta, mas eu sou mais difícil de matar do que você pensa. — Ela se levantou, flutuando no telhado enquanto se afastava pelo caminho que veio. — Quando eu ganhar, você ficará sabendo.
Fim do capítulo
Vonü --> o ü é mais fechado, assim como Alinü
Seul Wittebi --> o W tem som de V
Marheeve --> o "ee" tem som de i mesmo, mas se lê mar-ive
Hiver --> h com som de r mesmo
Graah --> como tem h no final, tem o som mais aberto.
Voulcan --> na história dos voulcans, o som é mais diferente, o V tem som de F, fica foucan para pronunciar.
Ah, eu esqueci de mencionar, mas os simbolos que aparecem no corpo para identificar graahkinianos são runas, literalmente, e como na história nórdica (que eu me baseei para fazer) cada runa tem mais de um significado, então depende da interpretação :D mas é só um detalhe :) mais para frente terá histórias para explicar isso.
E todos os títulos eu me baseei em ensinamentos, em coisas que a deusa Graah falou durante seu período de vida, e que se encaixam nos capítulos. ;)
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Lea
Em: 12/08/2021
Hiver pode vir a ser um problema para a Vonü,com essa ideia de lutar pelas suas terras.
A história de como a Vonü adquiriu os poderes é muito chocante ,dolorida e o "mestre" foi um tremendo fdp. Mesmo que a Alinü tenha vindo desta maneira,ela ama a filha,do jeito dela, mas ama.
Seul não consegue se ouvir,ela é desprezível.
Resposta do autor:
Hiver já é um probleminha mesmo ahahah
Chocante, não é? Mostra um pouco que nem sempre ter poder significa não sentir dor para conseguir. Tudo tem um preço, não é mesmo? Até onde Seul vai para pagá-lo?
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