Acordei de madrugada com Luna deitada em cima da minha barriga fazendo oncinha para alguém imaginário, tirei delicadamente a gatinha de cima de mim acendendo a luz do abajur como minha mãe fazia quando era criança.

.

- Tá vendo Luna, pode dormir tranquila não tem nada aqui...do mesmo jeito que o quarto está quando claro, permanece o mesmo quando escuro. Bom, ao menos era isso que minha mãe dizia.

.

         Mas a gatinha continuava fazendo o mesmo barulho, só então achei que podia ser de fome, levantei, esquentei um pouco de leite e fiz um mingau bem fraquinho, ela cheirou, bebeu tudo, depois esticou o corpinho esfregando a cabecinha na minha mão em agradecimento.

.

- Luninha, sei que não é o ideal, mas amanhã prometo comprar tudo o que um gatinho precisa para ser feliz.

.

         Assim o fiz, mal amanheceu tomamos café da manhã ladeadas, e enquanto comi o resto da pizza com refrigerante, ela tomou uma tigelinha de leite, por fim sai com a filhote dentro da caixa da minha bota de cano alto, cheio de pequenos furos que havia feito para ela respirar, o que não adiantou muito, pois Luna parecia uma maluca arranhando tudo por dentro e miando o mais alto que conseguia, já ia amarrar a caixa na garupa da moto, quando lembrei que tinha esquecido de pôr a máscara, voltei buscando uma tie dye rosa com azul, combinando com a camiseta, pelo visto as insuportáveis máscaras viraram um acessório, e já que tinha que usar, que ao menos fossem bonitinhas.

      A gatinha continuava fazendo barulho quando a coloquei novamente dentro da caixa que levei até a altura dos meus olhos e boca para falar.

.

- Luna, pare, prometo te comprar uma casinha, uma boa ração, brinquedinhos, mas, se continuar gritando e destruindo a caixa não vou conseguir chegar até a veterinária com ela inteira.

.

         Mas o show continuava a minha revelia, Luna gritava chamando atenção da vizinhança e eu tentando acalma-la, até que desisti de amarrar a caixinha no bagageiro da moto e chamei um táxi, levando Luna relaxada em meu colo.

.

- Moço, o senhor me leva a melhor clínica veterinária de Ilha Verde, essa gatinha apareceu na minha casa ontem e até encontrar sua dona ela fica comigo.

- Ah, a senhora não se preocupe com certeza essa gatinha deve ter sido abandonada a própria sorte, não tem dono não.

- Se é assim, agora ela tem, não é mesmo Luna?.

.

         A gatinha dormia tranquila em meu colo, assim que paguei o táxi desci com ela achando que era a mais linda e delicada de todas as gatinhas do mundo. Parei em frente à clínica com ela já acordada e observando tudo.

.

- Filha, chegamos a clínica "Quatro Patas" da Dra....Anna Clethra Rosado, nome exótico, não?, por favor se comporte.

.

         Ela miou parecendo sorrir, e na minha cabeça inexperiente, a gatinha já tinha entendido o meu recado. Sentei com ela no colo depois de ter passado pela atendente.

.

- Bom dia, a senhora não vai querer uma caixa de transporte?.

- Ah, pode separar uma pra mim?, vou levar, mas, agora não vai precisar, ela é uma gatinha muito boazinha, não é verdade Luna?.

- Melhor a senhora não se fiar nessa ideia, gatos são imprevisíveis...

- Aliás, queria te pedir um grande favor, você pode me arrumar tudo o que essa gatinha linda precisa para ficar bem?.

- Ela tem ração?, pela dentição estou vendo que já pode comer.

- E como sabe disso?.

- Ela está me mostrando os dentes veja...

.

         Sem fazer o menor barulho Luna fazia disfarçadamente oncinha para atendente que sorriu e voltou com ração, caixa de areia, duas cumbuquinhas de inox para ração e água, uma bolinha, além de uma cama confortável e a caixa de transporte. Estava no paraíso das mães dos felinos, tudo calmo e tranquilo como um mar sem ondas, quando uma moça entrou trazendo um filhote de bulldog francês pela coleira.

.

- Bom dia, trouxe o Zeus para tomar banho e cortar as unhas.

.

         Não sei o que deu na gata, seus pelos cor de caramelo ficaram eriçados e ela pulou em cima do bulldog que só latia agoniado.

.

- Luna, pare agora... - A dona do cachorro chorava, a atendente tentava separar os dois sem êxito, e quando por fim consegui capturar Luna, ela conheceu pela primeira vez a caixa de transporte, minha gatinha não miava enlouquecida como das outras vezes, apenas soltava um suave lamento dentro de sua prisão de luxo.

- Vou te dizer, espero que se comporte, pois vou deixar um rim para pagar essa conta toda.

.

         Respirei aliviada pois logo fomos chamadas para a primeira consulta de Luna, entrei no consultório como mãe de primeira viagem e sorri por baixo da máscara ao olhar Dra. Anna Clethra, seu sorriso iluminava a sala, assim como seus cabelos platinados e sua pele morena, mas, logo ela puxou uma máscara descartável escondendo o nariz e a boca.

.

- Bom dia, em que posso ajudar?.

- Essa gatinha apareceu na minha porta ontem, e bom...cuidaria dela até os donos aparecerem, mas, o motorista de táxi acha que ela foi abandonada, então...agora ela é minha.

.

         A veterinária como eu deve ter sorrido por baixo da máscara pois seus olhos se iluminaram, com carinho ela tirou Luna da caixa com todo cuidado e vi minha gatinha se aninhar em seus braços, eita gata de sorte, ao pensar assim senti um calorzinho gostoso que subiu generoso com um arrepio em minha coluna, depois pensei "Que é isso Kayra", então, puxei assunto tentando desviar minha atenção.

.

- Ela está bem doutora?.

- Sim, ele está ótimo...vou só passar um vermífugo e vacinar.

- É um menino?.

- Sim, como deseja chama-lo?, ele está bem...é saudável, na próxima vez não esqueça de traze-lo na caixinha de transportes, vou aproveitar e dar um banho nele, quer me ajudar?.

- Claro, vamos banhar o Salem...

- Salem?.

- Sim, ontem estava assistindo "O mundo sombrio de Sabrina", e foi o primeiro nome que veio em minha cabeça.

- Adorei, agora venha...vamos dar um banho nesse rapazinho, antes de sair não esqueça de marcar a castração para daqui dois meses.

.

         Só pensei na conta, mas, quando me aproximei para ajudá-la senti um cheiro gostoso que vinha de sua pele mesmo com a máscara que esqueci até minhas dívidas, percebi que ela não usava perfume, mas, um cheiro de creme exalava de seus poros, o que me deixou um pouquinho zonza.

.

- Está tudo bem?.

- Claro, tive uma pequena vertigem...seu nome é tão...incomum não é?.

- Aprendi a gostar, Clethra é um tipo de rosa, como na verdade me chamo Anna Clethra, se preferir o Anna, fique à vontade.

.

         Ela falou e piscou um dos olhos negros arredondados, e senti novamente um arrepio na coluna, o banho foi tranquilo, Salem estava amando a água quentinha caindo em seu corpo, só não gostou muito quando sentiu o ar do secador em seus pelos brancos, foi assim que entrei com uma gatinha de pelo curto cor de caramelo, e sai com um macho que era uma pequena bolinha de pelos brancos.

.

- Obrigada Anna, foi um prazer conhece-la...

- De nada, aqui está o meu cartão, se precisar de qualquer coisa me ligue, sei que é nova na cidade.

- Sabe?.

- Sim, vai perceber que aqui todo mundo se conhece...cidade pequena, sabe como é...as notícias voam...espero que aos poucos vá conhecendo Ilha Verde e se encante com suas lendas e mistérios...

.

         Estávamos conversando sobre outras coisas quando a atendente entrou na sala sem bater na porta, trazendo uma gatinha tigrada da mão.

.

- Dra. Clethra, acabaram de colocar essa filhote na porta, o que faço?.

.

         Anna me olhou com seus olhos negros penetrantes e sem pensar falei.

.

- Eu fico com ela...vai ser a minha Luna.

.

         E foi assim que cheguei com uma gatinha e voltei para casa com um casal. Depois de brincar um pouco com os gatos sentei em frente ao computador e veio a inspiração, meus olhos brilhavam e as ideias fluíam como nunca, quando parei era noite, fiz um sanduiche rápido e fui ao supermercado, percebi que todos me cumprimentavam com os olhos brilhando, de certo sorrindo por baixo das máscaras...é, como disse Anna, as notícias realmente correm rápido por aqui, na volta arrumei tudo em cima do balcão, enquanto guardava tudo dentro dos armários, olhei de longe Luna e Salem brincando divertidos, correndo um atrás do outro, sorri...

        A chuva batia suave quando encostei a testa no vidro, observando de longe a luz do farol iluminando o verdes mares de Ilha Verde, que lugar lindo, olhei novamente para os gatos pensando, o que seriam deles se partisse desse mundo, queria que Anna cuidasse deles para mim, anotei a ideia em um lugar aleatório em minha agenda e tentei não pensar mais nisso. Após mandar o capítulo para o meu agente deitei um pouco para descansar.

.

- Kayra...Kayra...Kayra - Acordei com uma voz suave como o vento me chamando, espreguicei o corpo respondendo irritada com a insistência.

- Ora mais, quem é?.

.

         Foi quando lembrei que estava sozinha em casa, acendi as luzes do abajur, busquei o celular e vi que estava cedo, não eram nem 20h e parecia que tinha dormido uma noite toda, já ia dar vazão ao medo quando vi que um nome piscava na tela, era a veterinária.

.

- Boa noite Kayra, desculpe incomodar, estou ligando para saber como estão Luna e Salem.

- Já comeram, brincaram, agora estão dormindo feito anjos, cada qual em sua caminha.

- Que bom...desculpe parecer invasiva, mas, o que vai fazer no Natal?.

- Nada, estava pensando em comprar uma ceia já pronta e ficar quietinha aqui com minhas crianças felinas, e você?.

- Ia visitar meus pais, mas, com essa pandemia acho que vou ficar em casa mesmo.

- Ah, se não se importar de fazer companhia para nós, podemos cear todos juntos...você tem algum bichinho?, se tiver pode trazer, viu?.

- Tenho duas cadelas, elas fazem companhia uma para a outra, Diana e Perséfone são dálmatas, enormes e bagunceiras, então, não tenho como leva-las, infelizmente.

- Que pena, mas, está combinado, amanhã saio para comprar as coisas para ceia...gosta de frutos do mar?.

- Sim, amo, então vou levar a sobremesa e o vinho, gosta de chocolate?.

- Demais, aliás, quem na vida pode não gostar?.

- Acredite, há que não goste...

- Então deve ser ruim da cabeça ou doente do estômago.

.

         Rimos e logo após desligamos, no dia seguinte meu agente ligou animado, com o primeiro capítulo havia fechado um contrato com uma grande editora e receberia um bom dinheiro, conseguiria não apenas pagar as minhas dívidas, como levar uma vida de forma tranquila por muito tempo.

        Troquei de roupa, colocando um biquini floral com um vestidinho solto e fui caminhar, não podia tomar banho de mar, mas, só em olhar o mar a distância já era muita coisa, sentei em um quiosque, pedi uma água de coco, abrindo os braços ao sentir a brisa do mar batendo em meu corpo, tirei o vestido para sentir melhor os raios de sol.

.

- Senhora, sua água de coco, deseja comer alguma coisa?.

- Claro, pode trazer uma porção de camarão?.

- É pra já...

.

         Depois que comi, guardei a bolsa com a atendente e fui andando até a areia da praia, estava colhendo búzios quando ela apareceu, os cabelos amarelos ao vento, os olhos brilhando e um sorriso franco, aberto.

- Você não devia estar sem máscara...

.

         Foi quanto ouvi o atendente gritando por mim ao mesmo tempo em que balançava os braços, mas, não a tempo de evitar o encontro com os patrulheiros.

.

- Bom dia moça, a senhora não pode entrar no mar, sabia?, quem entra leva multa, e quem tira máscara também, é proibido...a não ser que seja para comer ou beber alguma coisa.

- Claro, não ia entrar, também estou de máscara como pode ver.

- Sim, desculpe o incômodo estamos apenas trabalhando...e como a senhora é nova na cidade, resolvemos por bem avisa-la. Passe bem, espero que esteja gostando da companhia dos gatinhos...e parabéns por adota-los.

- Tudo bem. - Falei e ao mesmo tempo pensei "povo estranho".

.

         Voltei para barraca chateada, me senti uma infratora, mas, não estava fazendo nada errado, estava de máscara e mantendo o distanciamento, só ai lembrei da moça loira. Bom, ela deve ter fugido, se aproveitando da distração dos patrulheiros.

.

- Danadinha, teve mais sorte do que eu...

Fim do capítulo