Capítulo 2 - Festas e Fantasmas do Passado
O barulho da redação me alegrava, porém a chuva parecia me alegrar ainda mais. Enfim uma festa sem roupa formal ou coisa do tipo. Apenas me divertir era o que eu queria.
Caminhei tranqüila até em casa após descer do ônibus lotado. Subi as escadas do prédio correndo. Errei a chave duas vezes até conseguir abrir a porta. Joguei a minha pasta amassada e carcomida no sofá. Entrei no banho e uma hora depois eu estava devidamente vestida com a roupa mais confortável que eu tinha na porta da minha melhor amiga: Bernadete.
_ Berne! _ bati campainha já sentindo o cheiro de comida, comida de verdade do tipo arroz, feijão e churrasco. O quintal da casa dela estava todo iluminado e acompanhado por uma velha piscina. A chuva tinha dado lugar a um friozinho gostoso e eu conseguia sentir a brisa tocando meu rosto.
_ Berne é o cacete. A porta está destrancada, sua filha de uma mãe.
_ Olha, cuidado com a boca, tá? Não quer dizer que a comida é sua que você pode destratar as visitas.
Bernadete estava de avental e cheirava a cebola. Abraçamo-nos enquanto nos xingávamos.
_ Visitas? Eu mal posso andar pela casa sem trombar em você. Você parece mais presente que o vovô.
A sorte era que o avô dela era surdo e não entendia uma palavra sequer que dizíamos. Ele era o único membro da família de Bene ali, o restante tinha ido para alguma igreja católica em outro estado. Mal sabiam eles que enquanto eles rezavam, nós cozinhávamos e bebíamos muito.
Foi então que Beni fez aquela cara. A cara de quando ela fez merd* e esqueceu-se de me contar. Abracei vovô e quando dei por mim estávamos na cozinha escutando o barulho de pessoas conversando no quintal. Podia ouvir pessoas pulando na piscina. No frio.
_ A Alícia está aí.
_ O que? _Senti meus pés gelarem. _ Você disse o que, Beni?
Alícia era simplesmente a minha maior e pior desilusão amorosa. Ela representava uma parte da minha vida que eu havia enterrado quando entrei na faculdade e não pretendia estragar a minha única noite de sábado sem plantão ali, com a cafajeste que quase me levou para o buraco.
Na época eu tinha apenas dezoito anos, mas tinha uma idade mental de uns dez no máximo. A garota era mais velha e usava coturno, sem falar que já tinha altas tatuagens e dirigia o carro do padrasto. Foi um tombo só. Ficamos e ela me descartou tão logo pode. Eu me senti um lixo e quase me matei por aquela bobagem. Tempos macabros aqueles, onde eu ainda me deixava levar por sentimentos.
Levei séculos para superar aquilo e não pretendia encontrar a minha ex filha da puta na festa da minha melhor amiga tempos depois. Já estava imaginando o climão enquanto Beni me puxava pelo braço até o quintal.
Confesso que cheguei a abrir a porta para ir embora, mas as palavras de Beni soaram como um tapa na minha cara:
_ Vai ficar correndo disso até que dia? Chega de se esconder. Vá até lá e mostra pra você mesma que ainda tem dignidade apesar de todas essas trans*s casuais que você anda tendo.
Alicia era bissexual. A última notícia que eu tive dela (claro, da boca da Beni) era que ela estava firme com um carinha do trabalho. Ela trabalhava num escritório de contabilidade desde a época da escola junto com a Bene.
Afeição das pessoas quando me viram foi notável até para um E.t no espaço. Eu senti meus pés afundarem uns dez metros no gramado molhado. De repente a velha história da escola ressurgiu e eu me esforcei para sorrir e cumprimentar a todos.
Quando cheguei até Alicia podia sentir todos os olhares sobre nós.
_ Oi.
_ Oi.
Apenas isso. Nem chegamos perto uma da outra. Eu dei graças a Deus. Ela continuava linda apesar dos anos.
Cumprimentei as amigas dela que, assim como as minhas, permaneciam as mesmas. Uma delas parecia bem interessada na minha vida e me fez perguntas muito criativas do tipo: você ainda é jornalista? E que dia vai apresentar o Jornal Nacional? Eu mal podia disfarçar o meu olhar de deboche.
Tive que me conter para não chorar das piadas dela. Afinal, bem no íntimo eu sonhava mesmo em ser apresentadora de telejornal quando era mais jovem. Graças a Deus eu acordei a tempo de conseguir um trabalho num bom jornal numa velha redação que era mesmo o meu lugar.
Os olhos de Alicia percorriam meu corpo e aquilo começou a me incomodar. Saí da rodinha delas a tempo de ver Beni beijar uma das amigas de Alicia. Estava tudo explicado. Ela estava ficando com Mary boca de siri, como costumávamos chamá-la na oitava série até s garota ficar muito bonita durante o ensino médio e não dar a mínima para o que dizíamos dela.
_ Eu preciso pegar uma bebida. _ eu disse para alguém que me puxou no meio do caminho para qualquer lugar.
Na piscina uma cinco pessoas me cumprimentaram e convidaram para me juntar a elas. Loucas! Naquele frio a água deveria estar super gelada. Agradeci indo até a cozinha em busca de alguma coisa. Aquele não era um bom dia para eu beber. Beni estava totalmente na da Mary e eu teria que tomar conta de tudo, para que a casa continuasse em pé.
Éramos umas vinte pessoas num quintal maravilhoso com uma música boa tocando numa altura conveniente com o horário. Preparei um coquetel para mim enquanto os olhos de Alicia procuravam os meus.
Conversei com uma menina que eu havia ficado em alguma vida passada e notei que ela pegava em mim demais. O que eu notei também era que Beni estava apenas de calcinha e sutiã na piscina beijando a menina.
Passamos a noite toda assim. Bebendo e conversando em volta da piscina. Alguns se resfriando, outros enchendo a cara e eu com medo de quebrar alguma coisa enquanto andava pela casa. Eu não estava bêbada, mas o olhar incessante de Alicia em minha direção parecia me desequilibrar.
Algumas meninas também conversavam com Alicia, ela ainda continuava a rainha do pedaço, porém eu aparecia no páreo pela primeira vez. Ela não contava com a minha mudança repentina de estilo, classe social e ainda humor.
Tempos atrás ela ainda estaria me olhando com desdém e rindo de minhas trapalhadas. Agora ela estava na festa da minha amiga me observando ser paquerada por cada garota num raio de cem metros quadrados.
Eu tinha acabado a faculdade, tinha um emprego legal, ganhava razoavelmente bem, usava roupas caras e tinha ficado mais bonita. Unhas arrumadas, sobrancelha perfeita, pele lisinha, nem parecia a espinhenta que escrevia cartas de amor para ela.
Já era madrugada quando eu me vi sentada ao lado dela. A maioria das pessoas já tinham ido embora exceto Beni e Mary que agora rolavam no gramado enquanto cantavam uma velha canção de ninar.
Alicia se aproximou e se sentou ao meu lado. Eu podia sentir o perfume dela àquela distância e percebi que ainda era o mesmo. Lembro de quando Beni foi comigo comprar um vidro daquele perfume caro com todas as minhas economias de meses.
_ Você acha que elas estão bem? _Ela me perguntava, mas parecia mais uma pergunta retórica. Ela acendeu um cigarro. O copo de vodka descansava ao meu lado.
_ Acho que sim.
Beni e Mary agora cantavam alguma música do Latino num ritmo bem lento.
Ela riu.
O quintal estava uma parte escuro e outra parte iluminado e estávamos sentadas na parte escura. Dali podíamos enxergar bem nossas amigas para caso precisássemos intervir naquela brincadeira.
_ A noite não parece ter sido boa só para aquelas duas loucas. _ ela apontou com o cigarro para nossas amigas. _ Vi umas vinte meninas te cantando nas últimas duas horas.
Sorri da observação dela. O que ela queria de mim?
_ Nada que você já não tenha conseguido em nossas festas escolares.
_ Com a diferença que _ ela tragou o cigarro. _ você agora é uma mulher bem sucedida e linda.
Pronto. Lá estávamos nós. Eu sentia as merd*s das borboletas azuis no meu sistema digestório.
_ Isso não foi uma cantada.
Ela era boa demais para um elogio. Ainda orgulhosa, a velha Alicia.
_ Sim, eu entendi. _ podia sentir os olhos dela na minha boca. _ Você acha que só pego mulheres hoje porque tenho dinheiro. Afinal, de que vale o meu humor incrível se tenho grana, não é mesmo?
Ela se levantou ficando em pé na minha frente. Pude perceber que ela usava uma calça jeans bem apertada e uma blusa vermelha escrita No Stress.
_ Eu não quis te ofender. Você mudou muito, é isso que eu quero dizer. Nem parece a menina educada e bem intencionada que eu conheci tempos atrás.
Podia sentir a raiva no tom de sua voz, mas a sua face parecia mais tranqüila que a de Madre Teresa de Calcutá.
_ Você está bêbada?
Ela pareceu surpresa com a pergunta. Riu alto antes de responder:
_ Claro que não, você sabe muito bem que estou limpa, ok? Qual a relevância disso no nosso assunto?
Ela já estava acendendo outro cigarro na bituca do anterior.
_ Simplesmente não quero discutir com pessoas bêbadas.
Não era uma boa resposta, mas era honesta. Ela sabia disso e deu continuidade como se não tivéssemos falado sobre aquilo.
_ Você parecia bem animadinha com a Kaila. Nem sabia que ela era lésbica.
_ Pois ela é ou pelo menos é o que diz.
Meu telefone tocou naquela hora. Apenas olhei a ligação e guardei novamente o aparelho na bolsa. Ela parecia curiosa para saber quem era. Ri em pensamento daquilo. Vivian não tinha limites. Deveria estar em Lua- de – Mel, não me ligando. Eu me sentia em cemitério cercada por fantasmas.
_ Acho melhor colocarmos as duas na cama. _ ela apontou para nossas amigas que cambaleavam pelo quintal se beijando.
_ Elas estão indo sozinha. Olha lá! _ eu respondi entre risos.
Dito e certo. Entraram em casa e logo a porta do quarto de Beni bateu. Todas as outras luzes da casa estavam acesas.
Ficamos as duas sentadas ali, lado a lado, sentindo o vento gelado da madrugada cortar as nossas peles.
_ O que você tem feito, Alicia?
Ela demorou um pouco para responder. Ela olhava para o meu copo quase vazio de vodka e eu podia sentir a sua sede pelo proibido. Ela era muito corajosa de estar numa festa rodeada por bebidas após ter passado um ano numa clínica para dependentes.
_ Eu estou trabalhando numa loja de roupas no bairro Prado Ribeiro. Moro na casa de uma tia, mas acho que logo terei que sair de lá. O marido dela parece mais ocupado em dar em cima de mim do que fazer o papel de bom marido.
Eu joguei o resto do meu copo na grama e pude sentir o alívio em Alicia.
_ Que babaca! Logo você consegue um lugar legal para ficar, tenho certeza.
Ela acendeu mais um cigarro. Foi quando eu segurei seu pulso.
_ Esse é o terceiro em cinco minutos. Que tal esperar um pouco? Eu preciso respirar aqui.
Ela pareceu sem graça. Pisou no cigarro aceso.
_ Me desculpe.
_ Tudo bem.
Ficamos em silêncio um longo tempo. Eu olhava para a casa de Beni e pensava em Alicia ali ao meu lado. Tempos atrás eu pagaria para estar ali e agora eu estava e não sabia o que fazer. Eu precisava voltar para casa, mas não queria. E ela, o que pensaria?
Senti uma mão fria no meu braço. Senti um arrepio na nuca na mesma hora. Fechei os olhos. A voz dela estava tão perto agora que eu podia sentir seu hálito no meu rosto.
_ Laura, eu...
Ela virou meu rosto para encará-la. Arrepiei-me de novo e ela me perguntou se aquilo era frio ou era simplesmente algo adormecido dentro de mim ressurgindo. Era uma merd* de qualquer jeito.
Porque quando essas coisas acontecem você quer fugir, mas te faltam pernas, te faltam asas, te falta a coragem para levantar, entrar no carro e ir embora. E você permanece sozinho dentro de você lutando com pensamentos que não passam de uma ilusão boba em torno da realidade.
_ Eu sinto muito por tudo que te fiz passar. Na época eu não fazia ideia do que eu estava fazendo. Estava preocupada em ser engraçada e popular e não me preocupava com as conseqüências dos meus atos. Na verdade eu estava dominada demais pelo meu ego para conseguir enxergar alguém além de eu mesma.
Aquilo soou tão honesto que eu quase não acreditei que saía da boca dela. Seria a mesma Alicia de tempos atrás? Eu receava ainda amar um fantasma.
_ Eu entendo, Alicia. Não precisa se desculpar. O que passou, passou. Você fez o que tinha que fazer.
Mais silêncio. A mão dela ainda estava no meu pulso.
_ É mesmo verdade o que falam?
Ela parecia uma criança perguntando a mãe se poderia comer chocolate no café da manhã.
_ O que falam? _ eu perguntei olhando-a nos olhos. Ela piscava rapidamente.
_ Que eu fui a sua primeira... o seu primeiro beijo?
Gargalhei alto da pergunta dela. Quer dizer que ela agora se preocupava com os detalhes? Para quê? Ela queria rir mais de mim?
_ Olha, eu não sei qual a relevância disso, sinceramente se você está querendo tirar sarro da minha cara, acho bom pararmos por aqui.
Eu tinha sido ríspida e ela tirou a mão do meu braço.
_ Agora você me ofende. Eu fiz apenas uma pergunta. Apenas isso! Acho que tenho direito de saber isso já que todo mundo parece saber também.
_ Não consigo imaginar ninguém perdendo tempo com isso, mas já que você se interessa tanto em saber, pode anotar lá no seu caderninho de pegações que você foi o meu primeiro beijo sim.
Ela parecia feliz. Eu a olhei com desdém.
_ Talvez você queira que eu dê o meu depoimento completo para o jornal em que trabalho para ressaltar o seu alto poder de sedução ou coisa do tipo. Tenho certeza que a sua porta vai encher de menininhas novinhas querendo as suas próprias histórias.
Ela já não me ouvia. Parecia perdida em mil pensamentos.
_ Então... é mesmo verdade.
Eu estava cansada, com sono e aquele papo estava me enchendo. Começava a sentir fome e saudade da minha cama quentinha que me esperava a alguns quilômetros dali.
_ Olha, eu não sei o que você quer com tudo isso, não precisávamos falar sobre o passado afinal de contas. Acho melhor você dormir no quarto do irmão da Beni e eu me arranjo no sofá.
Eu havia me levantado e Alicia me olhava atenta. Seus olhos pareciam mais acesos do que o sol e eu poderia senti-los queimando meu corpo.
Ela se levantou e me puxou pela cintura. Retraí o corpo o quanto pude, mas ela apenas me abraçou bem forte. Passava as mãos pelas minhas costas. Beijou o meu pescoço, a minha orelha e antes de me beijar, ela olhou dentro dos meus olhos e disse:
_ Eu ainda amo você.
Fim do capítulo
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Van Rodrigues
Em: 29/12/2018
Olá,
A história está ficando muito interessante.
Mais uma vez, parabéns!
Estou adorando a forma como você escreve.
Continua, por favor!^^
Resposta do autor:
Haha. Obrigada! Pode deixar que tentarei postar mais capitulos!
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