Entrava na rua de casa, um pouco distraída, cantando e me sentindo contente quando avistei o carro de Giovanna entrar no condomínio. Ela havia mesmo saído e estava chegando a casa agora. Encostei o carro em uma calçada qualquer e dei um tempo. Respirei fundo e olhei o relógio em meu pulso. 4hs da tarde. Será que ela estava na rua desde a hora que Marcela a tinha visto?

            Exatamente meia hora depois eu voltava a dar partida no carro. Abri o portão automático da entrada sentindo minha cabeça começar a fervilhar. Tudo tinha uma explicação, não podia me deixar levar por aquelas dúvidas infundadas. Estava tudo tão bem, Giovanna havia voltado a ser a mesma comigo. Isso era coisa de minha cabeça.           

            Estacionei meu carro ao lado do dela e vi que o seu ainda tinha pequenas gotículas de água no pára-brisa e na lataria. Sim, não tinha visto errado, o carro que entrara a pouco era mesmo o dela.

            Peguei o elevador do subsolo, decidida a fingir que não visto a sua chegada e perguntaria se por um acaso ela havia saído de casa.

            Percebi que inconscientemente eu apertava a embalagem que trazia nas mãos com os sonhos que ela me pedira hoje cedo. A porta abriu em meu andar e a coragem para sair daquele cubículo me faltou, de maneira inconsciente era como se eu evitasse e protelasse minha chegada.

            Respirei fundo mais uma vez, retirei as chaves do bolso e me encaminhei para a porta de número 808. Fiz o maior barulho que pude ao abrir a porta, queria avisar que estava chegando. Bati a porta.

            Deixei o pacote na cozinha e subi as escadas, sentindo meu corpo pender para trás. As pernas pesavam e a respiração dava indícios de falha. Minhas mãos estavam levemente trêmulas e minha cabeça fervilhava. Tinha que perguntar, ouví-la antes de pensar asneiras.

            Do lado de fora do quarto pude ouvir o barulho do chuveiro.

-- Giovanna? – chamei entrando no cômodo.

-- Amor?! – perguntou após o chuveiro silenciar.

-- Cheguei.

-- Você não me disse que estava na escola? – perguntou aparecendo na porta.

-- Encerrei as atividades da escola mais cedo, tive medo de o tempo piorar.

-- Devia ter me avisado.

-- Queria fazer surpresa.

-- Só um minuto. – disse voltando para o banheiro. Ela escovava os dentes.

            Fui até o guarda roupa e comecei a me livrar de toda aquela roupa que me protegia do frio.

-- Como foi o seu dia hoje amor? – perguntou enquanto abraçava minha cintura.

-- Foi bom. Marcela me levou o contrato assinado e avisou que o marido já havia transferido a quantia para a conta da Andrade Lemos. E o seu dia, como foi?

-- Ah amor, foi cheio de saudades. Passei o dia revirando nessa cama desejando que você estivesse aqui comigo.

            Virei-me em seus braços e olhei em seus olhos.

-- Não deu nem uma saidinha?

-- Com essa chuva? Nem pensar... – disse e me soltou.

            Notei que ela desviou os olhos antes de responder. Senti um pequeno nó se formando em minha garganta. Por que Giovanna estava mentindo pra mim? Ela havia saído sim, Marcela viu e eu a vi chegar a casa. Por que ela não me contava sobre a sua saída?

-- Vou tomar um banho.

-- Pena que já tomei o meu amor, senão te acompanhava.

            Sorri fraco para ela e entrei no banheiro começando a me despir.

            Sempre tive certas manias, e uma delas era sempre dobrar as peças de roupa antes de colocá-las no cesto de roupa suja. Coisa que Giovanna não fazia, ela argumentava que as roupas iriam para a máquina de lavar, portanto não precisavam estar dobradas. Era quase um toque pra mim, e quando vi que tinham roupas simplesmente jogadas ali, as retirei, sacudi e dobrei colocando de volta.

Coloquei as minhas em cima das de Giovanna que já estavam alí e me encaminhei para o Box. Senti que havia algo grudado em meu pé, era um pequeno papel. O retirei para jogar no lixo, não ia nem olhar, mas reconheci a logomarca do Restaurante Avec Amour. Um restaurante francês, localizado no Centro, bastante conhecido por ser um ambiente romântico.

Centro. Coincidentemente foi lá que Marcela viu Giovanna. Procurei a data naquele ticket de estacionamento, Giovanna e eu costumávamos ir lá, podia ser um ticket antigo. Mas, para minha infelicidade não era. A data era de hoje e de duas horas atrás. Peguei a calça que tinha guardado a pouco e enfiei minhas mãos procurando algo. Não sei o que queria encontrar, mas queria. Não havia nada.

Rasguei aquele papel em pequenos pedaços e atirei na lixeira. Senti lágrimas escorrerem e deslizarem por meu rosto lentamente. Entrei no Box praticamente no automático, liguei o chuveiro e deixei minhas lágrimas se misturarem a água que escorria por meu corpo.

“Giovanna estava me traindo.” – pensei para logo deixar escapar um soluço doloroso.

Pus as mãos diante da boca tentando sufocar o choro, os soluços e a dor que estava sentindo. Isso não podia ser verdade, eu não queria acreditar nisso, mas alguns detalhes me levavam a crer. O que eu faria agora?

Fiquei incontáveis minutos debaixo da água, imóvel, apenas sentindo o choque da água com minhas costas. Chorei, senti raiva, tristeza, decepção, mágoa, descrença...dor, uma imensurável dor. Dúvidas e mais dúvidas surgirem em minha mente, feito milho de pipoca que pulavam ao estourar dentro da panela.

-- Amor? Tá tudo bem?

            Aquela voz que tanto me acalmou, que tanto me fez bem agora teve o efeito contrário em mim. Precisei de alguns segundos para tentar disfarçar a voz embargada com indícios de choro.

-- Está. – disse apenas.           

            Como não podia ficar trancada naquele banheiro, sai. De cabeça baixa para não avistar o olhar dela, não agora, do contrário eu desabaria ali na frente dela. Sai completamente vestida, preparada para apenas deitar na cama. Sentia meu corpo cansado. Queria dormir, queria apagar e depois ver que tudo não passou de um pesadelo.

-- Está tudo bem mesmo amor? – perguntou quando me viu dar as costas para onde ela estava, e me enrolar com o lençol.

-- Sim.

-- Você pegou chuva?

-- Não.

-- Tem certeza? Você está molinha. Acho que vai ficar doente.

-- Talvez tenha pegado um pouquinho de chuva sim.

            Tinha que dizer algo que talvez justificasse meu estado de espírito. Eu sempre ficava de ombros caídos quando estava doente.

            Senti o toque de sua mão e meu corpo estremeceu, mas dessa vez não foi de tesão, de prazer. Imaginei aquelas mãos delicadas tocando outro corpo que não fosse o meu. Inevitavelmente imaginei outras mãos tocando aquele corpo que era tão meu, que eu tinha decorado em minha mente.

-- Está com frio?

-- Sim.

-- Vou fazer um chazinho pra você.

-- Tá.

            Ela desceu e me deixou ali pensando. Remoendo minhas dúvidas e desconfianças.

            Logo ela retornou ao quarto me entregando uma xícara com um chá que ainda fumegava. Tomei todo o líquido e voltei a deitar. Giovanna deitou na cama e aproximou seu corpo do meu, me abraçando por trás, dividindo o calor de seu corpo comigo.

Me permiti ficar ali, no entanto ela tinha nos braços apenas meu corpo, pois minha mente vagava por ai. Sem rumo e sem direção.

Senti seu corpo relaxar e sua respiração ficar ainda mais suave. Ela dormia. Acabei me deixando levar pelo cansaço que se apossou de meu corpo e também adormeci.

Acordei sentindo uma leve dor de cabeça. Olhei para a janela e vi que a lua agora enfeitava o céu. A chuva tinha dado uma trégua. As estrelas brilhavam intensamente.

-- Você acordou. – Giovanna disse ao entrar no quarto com uma bandeja nas mãos. – Está sentindo alguma coisa? – perguntou pousando sua mão em minha testa e verificando minha temperatura.

-- Um pouco de dor de cabeça.

-- Está um pouco febril. Senta um pouquinho, eu trouxe uma sopinha pra você. Do jeito que você gosta. 

            Sentei sentindo aquele cheirinho de sopa de frango.

            Giovanna fez questão de me fazer comer dando a sopa em minha boca. Eu a olhava e não conseguia acreditar que havia me enganado com ela. Difícil acreditar que aquela mulher, que me tratava com carinho e amor me fazendo sentir a pessoa mais importante do mundo pra ela, me traia.

            Encarava, olhava em seus olhos buscando algo.

-- Wilson me ligou agora à noite. – disse levando outra colherada até minha boca – Não vou mesmo poder ir com você amor, ele faz questão de que eu esteja presente nessas palestras. – fez uma pequena careta.

            Não consegui evitar, olhei para ela desconfiada.

-- Você ira depois?

-- Claro que sim, irei ficar com você.

            Rapidamente algo veio em minha cabeça.

-- O Henrique vai também? Ele vai com você?

-- Wilson me disse que ele não poderia ir e ficaria pelo hospital. Preferi que fosse assim mesmo, depois do que aconteceu aquele dia no restaurante tenho evitado até mesmo falar com ele.

-- Você o vê muito?

-- Infelizmente tenho que acompanhar o estágio dele, então não tem como não vê-lo. Já até conversei com o Wilson e perguntei se outra pessoa não poderia acompanhar o Henrique, mas ele foi categórico ao dizer que essa tarefa era minha e de mais ninguém.

-- Ele não tentou nada com você depois daquele dia?

-- Ele tentou puxar assunto comigo algumas vezes, mas o cortei, deixando bem claro que o único assunto que ele poderia tratar comigo seria algo sobre o trabalho.

-- Tem certeza?

-- Claro amor.

-- Comprei seus sonhos. Estão na cozinha. – falei tentando desanuviar meus pensamentos que agora me torturavam.

-- Eu vi. – beijou meus lábios – Já comi alguns. Obrigada.

-- Por nada.

            Giovanna limpou meus lábios ao terminar de me alimentar. Seus olhos brilhavam, e ela me olhava de uma maneira diferente. Depois de muito tempo não consegui ler o que eles me diziam. 

            Minha cabeça era uma enorme confusão, não enxergava nada com clareza, não conseguia afastar as dúvidas.

-- Não quer descer um pouquinho e assistir TV comigo? Vai passar um filme muito bom, um que sei que você gosta. Ou prefere ficar deitadinha aqui no quarto.

-- Quero descer.

-- Então vamos.

            Quando chegamos à sala, me sentei no outro sofá, longe dela. Sei que ela estranhou, já que normalmente quando assistíamos filme juntas eu sempre ficava com a cabeça deitada em seu colo enquanto recebia cafuné. Adorava aquele carinho, adorava o cheirinho que emanava do colo dela, amava aquela mulher...

            Suspirei.

-- Deita aqui comigo amor.

-- Estou ficando doente, não quero passar nada pra você. Fico aqui mesmo.

-- Você não vai viajar se ainda estiver doentinha assim, não é?

-- Tenho que ir. Doente ou não a escola precisa de mim. Me cuidarei direitinho, não haverá problemas.

-- Quando você diz que vai se cuidar é o mesmo que uma criança de três anos dizer que vai se cuidar. Você é teimosa, te conheço como ninguém Maria Luíza.

            “E eu, será que te conheço como sempre achei que conhecia?!” – me perguntei.

            Tudo o que eu via naquela maldita TV eram imagens que por nada nesse mundo eu conseguia identificar. Para mim eram apenas borrões que passavam ali, não estava prestando a mínima atenção. Não conseguia me concentrar. Olhava para Giovanna e ela olhava para a tela com toda a atenção. Sorria e seus olhos se fechavam involuntariamente.

            Em uma dessas olhadas que dei, ela acabou me flagrando, olhou para mim no mesmo instante que eu a olhei. Ela ficou séria.

-- O que foi amor?

-- Você me ama?

            Giovanna piscou os olhos parecendo não acreditar na pergunta. Ou até tentando encontrar as palavras certas para me convencer.

-- Luíza você é amor da minha vida. Eu te amo do mesmo jeito ou até de uma forma mais intensa do que no dia em que me declarei pra você. Eu te amo tanto que às vezes penso que meu coração vai explodir aqui dentro. – falou colocando a mão sobre o peito.

            Abri a boca para falar, mas me calei quando a vi levantar e caminhar em minha direção. Ela sentou sobre o meu corpo deixando uma perna de cada lado do meu tronco.

-- Fecha os olhos.

-- Por quê?

-- Fecha amor, por favor.

            Hesitei, mas acabei fazendo como ela me pedia.                      Giovanna pegou minha mão e levou até o próprio peito.

-- Como ele está batendo?

-- Um pouco acelerado.

            Giovanna beijou minha boca de forma terna, calmamente, provando meus lábios com doçura. Um beijo cálido que me fez suspirar contra seus lábios.

-- Sente agora. Como ele está batendo?

-- Mais acelerado do que antes.

-- Você me ama?

-- Não tem idéia do quanto te amo Giovanna, eu te amo muito.

            Novamente ela levou minha mão até seu peito.

-- E agora? Como ele está? Ensandecido não é?        

-- Está batendo mais acelerado do que das outras duas vezes, está batendo forte. – falei em voz alta o que sentira debaixo de minha mão.

-- Cada batida, cada pulsação tem como razão você. Quando te escuto falar que me ama ele bate do mesmo jeito que bateu quando provei teus lábios pela primeira vez, ele se enche de alegria. Só de te ter perto de mim ele desregula, fica feliz. É só você. Consegue entender que ele não teria mais motivos para bater assim se estivesse longe de você?

-- O meu também não teria.   

-- Nunca, jamais duvide do meu amor por você Maria Luíza. Você é tudo pra mim.

            Giovanna voltou a me beijar e eu correspondi com todo amor que eu tinha em meu peito, deixando de lado minhas dúvidas e me amolecendo inteira por aquela mulher. Deixaria as perguntas para depois, para outra ocasião, uma em que eu tivesse mesmo coragem de duvidar do amor que ela dizia sentir por mim.

            Passamos a noite ali mesmo. Entregamo-nos de corpo e alma até sentirmos a exaustão nos deixar sem forças. Quase desfalecidas procuramos o corpo uma da outra e ali mesmo dormimos, abraçadas, formando um único corpo.

 

            Durante o restante daquela semana minhas noites foram povoadas e aterrorizadas por pesadelos. Sempre sonhava com Henrique e Giovanna juntos. Beijos, abraços, carícias e declarações. Via aquelas cenas como mera espectadora, sem poder fazer nada para impedir ou para parar. A pior noite foi quando os vi trans*ndo, bem ali, na nossa cama.

            Às vezes acordava no meio da noite soando frio. Quando minha esposa me inquiria eu falava qualquer coisa, menos o objeto real de meus pesadelos. Aquilo estava me perturbando de uma maneira ímpar. Sem falar no grande esforço que eu fazia para tirar aquelas cenas da minha cabeça.

            Dividida entre a dúvida e o amor que sentia por ela, a semana passou lentamente. Ora me fazendo ter momentos de alegria e ora me fazendo ter momentos de total tristeza. Não sabia se devia conversar com Giovanna, não sabia nem mesmo como começar aquela conversa. E se ela me confessasse ter se apaixonado por outra pessoa? O que seria de mim?

            Tentei falar com Alice, precisava desabafar com alguém, mas esta estava em lua de mel antecipada com Elisa em algum lugar do Nordeste. Desse modo fui levando até o dia de minha viagem. Havia decidido viajar de mente e coração tranqüilos, não pensando nos terríveis pesadelos e em minhas desconfianças. Porém, quando retornasse, conversaria com Giovanna de uma vez por todas. Seria o melhor a se fazer, não seria?

-- Você promete ligar pra mim quando chegar a Porto Alegre? – Giovanna estava abraçada a mim. Estávamos próximas ao portão de embarque.

-- Claro que sim meu amor. Te ligarei todos os dias e todas as horas. Vou morrer de saudade de você.

-- Essa é a primeira vez que ficaremos tanto tempo separadas.

-- Desde o dia em que começamos a morar juntas. – completei com certo pesar.

-- Mas logo estaremos juntas não é mesmo? E não nos separaremos mais!

-- Nunca mais. – disse encostando minha testa na dela.

-- Queria tanto te beijar mais uma vez.

-- Eu também queria amor, mas meus alunos estão todos aqui.

-- Eu sei.

            Meu vôo foi anunciado e Giovanna me apertou mais uma vez em seus braços. Sorri abraçando-a de volta.

-- Se cuide por mim. – falei me afastando e beijando demoradamente sua bochecha.

-- Você também amor. Não abuse da saúde do seu joelho, e para o seu próprio bem se mantenha o mais distante daquela mulher. – apontou para Marcela que estava junto ao filho.

-- Sim senhora. Estarei te esperando ta?

-- Logo estarei com você.       

            Segurei em sua mão e soltei lentamente até a ponta de nossos dedos se tocarem, deixando uma saudade do toque. Olhei-a intensamente e comecei a dar pequenos e lentos passos para trás até ficar ao lado dos alunos e professores. Acenei para ela sentindo um pequeno aperto no peito. Morreria de saudades.

            De longe ela sussurrou “Eu te amo”. Sorri sem condições e sem intenção de disfarçar o que aquela linda mulher de cabelos vermelhos e olhos lidamente azuis me despertava. Amor! O melhor de mim! Ela era a razão de tudo.

Fim do capítulo