Bianca

 

Quando Marcella me levou de volta para o orfanato, a primeira providência que tomei foi ir até o quarto de Milli para ver se estava tudo bem. Ela devia ter almoçado e agora estava cochilando tranquila e serena. Então me dirigi até a sala da Madre Superiora, minhas mãos estavam suadas, mas eu queria muito ir viajar com Cella. Bati à porta e ao seu comando entrei.

- Boa tarde madre. – Cumprimentei.

- Minha filha, soube que passará uns dias conosco. Será sempre bem vinda. Mas aconteceu alguma coisa? Emília está bem? – Perguntou com um sorriso bondoso na face.

- Está ótima. Tirando a soneca da tarde. - Respondi. – Eu quero conversar com a senhora, se tiver um tempo agora.

- Claro. Sente-se, vamos ver se posso ajudá-la. – Disse apontando a cadeira a sua frente.

Estava muito nervosa, pois sabia que o que ia lhe pedir era uma coisa errada, porém ela era uma pessoa afável e que conhecia meus planos em relação à Milli. Aliás era uma das minhas maiores incentivadoras quanto a ele. Por este motivo eu acreditava que poderia conseguir o que desejava.

- Irmã o pedido que vou lhe fazer agora não é muito comum e sei também que não é uma coisa fácil, na verdade é bem diferente de tudo o que já pedi até hoje. Se a senhora o recusar não poderei ficar chateada, por que sei de suas implicações. Mas quero que pense com carinho no que vou lhe dizer. – Falei praticamente sem respirar.

- Nossa agora me deixou curiosa. Continue, minha querida. – Tornou me olhando intrigada.

- A minha patroa, dona Marcella, esteve comigo no hospital, ficou compadecida da situação de Maria Emilia e nos fez um convite. A família dela vai para o litoral este fim de semana e ela nos chamou para ir junto. Eu sei que é muita responsabilidade e que legalmente não é correto. Como a senhora bem sabe, sempre foi o sonho da menina conhecer o mar.  Ela iria adorar, fico imaginando a alegria que sentiria, por isso quero levá-la. – Expliquei.

- Bianca você tem ciência que este pedido é muito complicado, não é mesmo? Esta instituição é responsável pelo bem-estar da menor. E se algo acontecer com a garota? E se alguma coisa sair do controle? Eu terei que responder na justiça por isso. Além do que ela está com o braço quebrado, não vai poder aproveitar nada. Não seria melhor deixar isso para outra oportunidade? – Sua testa estava enrugada.

- Eu sei que juridicamente falando não é apropriado madre, mas posso lhe garantir que jamais faria um pedido deste se não tivesse a certeza absoluta de que posso cuidar dela e que nada de mal vai acontecer. Ninguém no mundo ama mais essa criança do que eu. E se por um acaso algo vir a ocorrer, o que não vai, eu assumo a total responsabilidade, digo que sai daqui com ela sem que a senhora soubesse. Quanto ao braço, não haverá problema, é só colocar um saco plástico para cobrir o gesso que ela vai até poder entrar na água, e depois pode ficar brincando na areia. E tem ainda a Dudinha, que é o bebê de quem tomo conta, e também Roxanne. Tenho plena convicção que ela vai amar conhecê-las. Por favor, madre. – Praticamente implorei.

- Tenho inteira confiança em você Bianca, mas esse é um pedido muito grande. Tantas coisas podem advir disto trazendo consequências nada agradáveis. – Ela estava indecisa.

- Eu tenho plena consciência disso irmã. Sei que eu passei um pouco do limite nesse caso. Mas estou pensando em Milli e em como seria bom para ela se distrair um pouco, conhecer um novo lugar, respirar outros ares, fazer novas amizades. Depois ela gostou tanto de Marcella, quer dizer dona Marcella, e esse gostar foi totalmente correspondido. Minha patroa está encantada pela menina. Esse acidente fará com que ela fique um bom tempo sem poder fazer muitas das coisas que gosta. Seria um mimo, um carinho que estaríamos concedendo. - Tentei ser persuasiva.

- Meu Deus, isso está me parecendo uma chantagem emocional. Você sabe que tenho o coração mole em relação a esses pequeninos. Não deveria nem pensar nessa proposta, mas como você mesma disse, essa garotinha é tudo pra você. Por isso entendo o que está sentindo ao vê-la nesse estado. Tá bom eu concordo com esse passeio. Mas me prometa que ela estará aqui segunda feira de manhã. Sem falta. – Tentou fazer cara de brava, mas não conseguiu.

Dei um pulo da cadeira no mesmo instante e parando ao seu lado a abracei e beijei seu rosto, estava radiante, não sabia se mais por mim mesma ou por dar aquele presente para Milli.

- Obrigada Madre. Não tenho como expressar o quanto estou feliz. A senhora como sempre foi muito gentil.  Pode deixar segunda de manhã ela estará aqui. E pode acreditar que ela ficará extasiada com a notícia. – Falei sorrindo de orelha a orelha.

- Estamos acertadas então mocinha. Agora pode ir fazer as malas, antes que eu volte a me tornar uma pessoa sã e mude de ideia. – Ela disse rindo.

- Malas, é verdade. Eu não tenho nada aqui. Tudo o que é meu está na casa onde trabalho. E Milli não tem roupas de banho. – Me lembrei.

- Então é melhor sair para comprar não é mesmo? Corre senão não vai dar tempo pra deixar tudo pronto para amanhã cedo. – Riu ela.

Assim que deixei a sala fui conversar com irmã Cecilia para explicar que precisava sair para fazer algumas compras. Queria que ela cuidasse de Milli na minha ausência. Iria demorar, pois além da mala, roupas de banho para mim e para Emilia havia outras coisas que também queria que comprar, ao pensar nisso senti meu rosto aquecer. Lembrei-me da conversa no restaurante, Marcella fora muito direta em relação ao que gostaria que acontecesse. Nunca tinha pensando nessas coisas antes e nem sabia como escolher esse tipo de traje, sempre comprara coisas de uso diário, mas com certeza isso não serviria. O que agradaria uma mulher como ela e que caberia no meu orçamento? Cella era tão sofisticada, elegante, charmosa e já tinha visto o que ela vestia. Não podia mentir pra mim mesma estava com medo, pra quem nunca tinha se envolvido com ninguém as coisas estavam indo rápido demais. Mas o amor que sentia por ela também não tinha sido assim? Repentino e imediato. Entretanto será que estava pronta para o próximo passo? Sabia que nada seria forçado, e que se eu não estivesse preparada nada aconteceria. Mas pelo que estava sentindo no momento tinha certeza que não seria preciso muito para me entregar. Só de lembrar dos beijos que havíamos trocado meu corpo já dava sinais de que desejava aquilo. Um dos livros que tinha lido, e que me deixara bem encabulada na verdade, falava sobre os jogos de sedução e também sobre as praticas do sex* entre mulheres. Só aquilo não tinha como preparar ninguém para o ato sem si. Ou tinha?

Balancei a cabeça para afastar esses pensamentos, o que tinha que ser seria e pronto. Peguei minha bolsa e fui ao shopping, comprei tudo o que achei que seria necessário para aquela aventura, inclusive roupas novas para mim e para Milli. Isso me tomou quase o dia todo. Quando voltei eram quase sete horas da noite. Fui direto para o quarto de Emília, queria contar a novidade para ela. Quando entrei a encontrei recostada nos travesseiros emburrada.

- Oi minha linda! Tudo bem? – Disse lhe dando um beijo.

- Você disse que ficaria comigo e sumiu. Fique te esperando. – Falou com um bico enorme.

- Tudo por um bom motivo. – Fiz suspense.

- Qual? – Perguntou curiosa

- Sabe aquele desejo que você tem de conhecer o mar?

- Sei, eu até sonho com isso. Deve ser tão bom, ouvir o barulho das ondas, sentir o cheiro da maresia. – Suspirou.

- Pois muito bem. Não sou o gênio do Aladim, mas seu desejo será realizado. Amanhã de manhã iremos para a praia com Marcella e as sobrinhas dela. – Fiquei prestando atenção em seu rosto.

- Não acredito! Jura Bi! Você não está brincando né? – Seu rostinho encheu-se de felicidade.

- Não estou não, é a mais pura verdade. Tinha certeza que você ia gostar da notícia. – Respondi rindo.

- Gostar? Eu adorei! Não dá nem pra acreditar!!! – Ela batia palmas de alegria incontida.

- Muito bem. Eu estava comprando as coisas necessárias para a nossa viagem. Estou desculpada pela minha ausência senhorita emburradinha? – Brinquei.

- Claro. Eu ainda acho que estou sonhando! Muito obrigada. – Emocionou-se.

- Você tem que agradecer a outra pessoa e não a mim. – Falei.

- E onde Cella está? Quero dar um beijo enorme nela!

- Só amanhã de manhã. Ela virá nos buscar. Mas para que esteja bem disposta para viajar terá que descansar bastante. – Avisei.

- Acho que não vou conseguir dormir, estou muito eufórica.

- Você me surpreende todos os dias com essas palavras que usa. – Balancei a cabeça.

- A culpa é sua que compra livros para eu ler. – Respondeu

- Eu às vezes me esqueço que você tem só seis anos sabia? – Ela realmente me surpreendia.

- Vou fazer sete daqui dois meses. – Tornou toda orgulhosa.

- Nossa!! Quanta diferença! – Exclamei divertida.

- Bi você acha que Marcella vai fazer mesmo o que disse? – Falou de repente ficando séria.

- O que? Nos levar para viajar? – Questionei confusa.

- Não. Ver como faz para me adotar. – Explicou.

- Milli, pelo que eu conheço de Cella, ela fará pois nunca mente. Mas e quanto ao nosso plano? Você sabe que eu sempre quis ter você como filha.

- Ué e terá. Afinal vocês vão se casar. Se ela me adotar serei filha das duas. – Falou calmamente

- Sério? E como pode ter tanta certeza que vamos nos casar?

- Bianca eu posso ter apenas seis anos como você mesma disse, e com certeza nada sei da vida, ou do amor entre duas pessoas adultas, porém eu percebo as coisas. Ela te ama. É tão simples e fácil de sentir. Dá pra perceber pelo carinho em sua voz. Pela maneira que te trata. – Um sorriso se formou em seus pequenos lábios.

- Você sente isso mesmo? É tão perceptível assim? – Perguntei encabulada.

- E você não? Ah fala sério...

- Às vezes eu me pergunto o que ela viu em mim. Uma mulher tão linda, inteligente...

- Ela viu o que todos podem ver Bi, sua alma, sua bondade. O quanto você é especial.  Você é tão linda quanto ela. Por que não consegue perceber isso? – Disse docemente.

- Own minha menina. Quando você fala eu até acredito. – Comecei a rir.

- Acredite quando ela te falar também, porque é exatamente o que ela sente. Como você mesma disse, ela não mente.

- Tá bom pequena. Agora vou comer alguma coisa, arrumar a nossa mochila e ligar para avisá-la que a madre nos liberou para o passeio. E a madame aí vai se ajeitar pra dormir.

- Ok você venceu vou tentar dormir. Vai ligar pra ela. E não esquece de mandar meu beijo do tamanho do mundo. – E abriu os braços para dar sentido de imensidão.

- Não esqueço não, pode deixar. – Dei um beijo em sua testa e sai.

Já tinha tudo arrumado quando por fim peguei o telefone para fazer a chamada. Eram dez horas da noite e eu não tinha o número do celular de Marcella, por isso teria que ligar em sua casa. Meu peito se apertou, e se fosse Amanda a atender? Com certeza ela não chamaria a patroa. Iria me destratar, me xingar, me colocar abaixo de zero e depois desligaria na minha cara. Porém não tinha outra alternativa para avisá-la então rezei e fiz a ligação. O telefone foi atendido no segundo toque.

- Alô. – Ouvir o som de sua voz encheu meu coração de alegria instantaneamente.

- Oi. – Falei tímida.

-Oi meu anjo. – Senti que ela sorriu do outro lado da linha.

- Tudo bem? – Tão bom falar com ela.

- Estava louca de ansiedade aqui esperando a sua ligação. Acho que furei o tapete da sala de tanto andar pra lá e pra cá. – Disse a guisa de resposta.

- Desculpe eu só consegui ligar agora. Tinha tantas coisas para fazer. - Respondi

- Não faz mal, só de ouvir sua voz, já valeu a pena a espera.

- Não queria ligar na sua casa, mas não tenho o seu número particular. – Falei sem graça.

- Então anote agora. E também me passe o seu pois quero poder falar com você várias vezes, sem ter que esperar a sua ligação. -Respondeu.

Peguei um papel e caneta, anotei o número que me passou e dei o meu para ela.

- Como foi o seu dia Cella? – Precisava saber dela.

- Foi triste sem você aqui. Sinta tanto a sua falta. Parece que algo não está no lugar sabe? Não poder te ver, nem te ouvir...Me deixa perdida.

- Também senti saudade. Pensei em você o dia todo. Mas eu tenho duas coisas pra te falar.

- Boas?

- Não sei, você me dirá.

- Então fale.

- Milli te mandou um beijo do tamanho do mundo como disse ela. – Falei rindo

- Que linda! Retribua por favor e diga que o meu é maior ainda.

- Eu digo sim. Agora o mais importante, eu preciso saber exatamente que horas você vai passar aqui pra nos buscar. Já está tudo pronto para a viagem.

- Verdade? Você não está brincando? A madre deixou? Mesmo?  Que notícia maravilhosa! – Era perceptível a alegria em sua voz.

- Você anda tão boba ultimamente. – Brinquei

- É? E quem é a culpada disso? Quem? Fala. – Ela continuou com a brincadeira

- Não sei, porém amanhã você pode me contar. Mas olha, eu tô gostando dessa nova Marcella. - Tornei

- Pode deixar que eu te conto. Conto tudo o que você quiser bem baixinho no seu ouvido. E é muito bom saber que essa nova Marcella está do seu agrado. – Falou maliciosa.

- Cuidado com o que promete. Posso querer saber muitas coisas. Descobrir seus segredos. – Nem eu sabia de onde estava tirando tanto atrevimento.

- Nunca vou te esconder nada. Todos os meus segredos te pertencerão. Aliás, eu te pertencerei por inteiro é só você querer.

- Então que horas virá? – Desconversei com o coração aos pulos.

- Hoje você está mestra em mudar de assunto, mas tudo nem. Pode ser as sete? – Perguntou rindo.

- Perfeito. Estarei te esperando.

-Ótimo por que eu não vejo a hora de te encontrar. Te dar um beijo e te abraçar. Matar essa saudade.

- Marcella também quero tudo isso. Mas lembre-se do que combinamos.

- Ok. Nada de demonstrar o que eu sinto. Mas e quanto Emília? Ela sabe disso? Que não é para falar pra ninguém? – Me questionou

- Eu vou explicar para ela. Sei que compreenderá. – Tinha me esquecido daquilo

- Ah! Contei para minha avó. – Ela disse

- E o que ela falou?

- Queria sair dançando pelo quarto. Nossa! Ela fez uma festa. – Estava gargalhando.

Comecei a rir imaginando acena. Algo me dizia que dona Maria Thereza realmente iria gostar da notícia, e eu não tive receio que Cella contasse a ela.

- Nossa nunca tinha visto minha avó tão feliz. Me beijou umas mil vezes. Disse que eu finalmente tinha tomado juízo. Vê se pode? Logo eu que sempre fui a mais ajuizada da família. Foi muito engraçado. Queria que eu a levasse até o orfanato para que ela pudesse te dar um abraço. Precisei ameaçar interna-la pra ela se aquietar. Foi um pandemônio. Eu acho que ela é tão apaixonada por você como eu. – Completou divertida

- Será? - Provoquei

- Pensando bem, não. Ninguém pode ser mais apaixonada que eu.

- Acho que você está errada.

- Tenho certeza que não.

- Algo me diz que eu sou mais apaixonada por você.

- Você não sabe o que faz comigo quando diz essas coisas, sabe? Me deixa flutuando. Ah seu eu pudesse passar por esse fio de telefone, nem te conto do que seria capaz...

- Para Cella. Você me deixou sem graça agora. Acho melhor a gente desligar. Tenho certeza que vai precisar arrumar as coisas e avisar sua avó e as meninas e já está tarde.

- Verdade. Ainda vou ligar pra faxineira pra que ela vá logo cedo tirar o pó do apartamento.

- Dê um beijo no pessoal aí por mim.

- Falando em meninas se prepare pois Roxanne está insuportável. Começou tudo de novo. – Sua voz ficou fria

- O que houve? – Falei preocupada

- E eu vou lá saber. Acho que ela é bipolar. Voltou a me agredir gratuitamente. Esta gritando, brigando. Ela estava tão melhor. Não gosto de pensar certas coisas, mas as vezes acho que .... Ah deixa isso pra lá.

- Alguma coisa aconteceu Cella. Precisamos descobrir o que. – Algo me incomodava.

- Juro que eu não fiz nada. Ela simplesmente acordou assim. Veio tirar satisfações. Parece outra pessoa. Foi piorando durante o dia.

- Bom, eu converso com ela amanhã. Não se preocupe. Vai descansar.

- Boa sorte. Quem sabe ela te escuta. Por que tá parecendo o capeta!

- Não fala assim. Zanne é uma boa garota. Só está em uma fase difícil. Mas tem um coração enorme.

- Se você diz...

- Amanhã nós resolvemos isso. Bom vou dormir.

- Ok. Sonha comigo?

- Já faço isso há muito tempo.

- Eu também. Poderia ficar conversando com você a noite inteira.

- Sei disso, pois eu também poderia. Teremos muito tempo pela frente pra conversarmos sobre tudo.

- Teremos. Boa noite meu anjo.

- Boa noite. Um beijo.

- Isso eu quero pessoalmente mesmo.

- Vou pensar no seu caso.

- Ei. Nada disso garota. Se não me der, eu roubo. – E caiu na gargalhada, aquele som que me enchia de alegria.

Ri junto com ela e depois me despedi e deliguei com a alma leve.

 

No dia seguinte quanto Cella chegou já estávamos esperando, ela entrou pra me ajudar a pegar as coisas e levar Milli, que se agarrou ao seu pescoço dando muitos beijos em sua face que foram docemente retribuídos. E depois eu ganhei o meu beijo apaixonado. Cada vez que esse encontro de lábios acontecia, uma sensação de formigamento percorria minha pele. Era tão bom poder estar em seus braços. Eu a empurrei de leve, pois senão não conseguiríamos sair daquele quarto já que não dava vontade de me separar dela nem por um segundo.

- Malvada. – Ela falou baixinho em meu ouvido.

- Não sou não. Só quero ir embora logo. Você não quer? – Perguntei sorrindo.

- Se for pra ficar com você sem precisar me preocupar com nada, eu quero muito. – Disse me olhando de um jeito que fez meu sangue bombar mais rápido.

No momento que chegamos ao carro pude perceber exatamente o que Marcella quis dizer com o mau humor de Roxanne. A garota sequer olhou pra mim quando eu a cumprimentei e quando Milli tentou falar com ela, simplesmente bufou, fez cara de pouco caso e não respondeu, virando para o lado de cara fechada. Pus-me a imaginar o que tinha acontecido, afinal ela nunca havia me tratado com tanta frieza e não consegui atinar porque ela havia tratada mal Emilia. Já Duda, bem diferente da irmã, se agarrou ao meu pescoço num abraço apertado e me deu vários beijos, fazendo meu coração se expandir de ternura. Depois de tudo guardado, coloquei a bebê de volta na cadeirinha e me sentei ao lado de Cella para seguimos viagem.

Ela me contou que sua avó havia ido com o motorista, pois tinha feito questão que ela levasse a enfermeira junto. Desde que ela havia contratado a enfermeira Dona Maria Thereza nunca mais passara mal. O percurso não foi muito longo, mas foi bem pesado. Os modos de Zanne estavam afetando a todos no carro, ela se recusava a falar quando era questionada, quando Emília começou a cantar mandou que ela calasse a boca o que gerou uma briga feia entre ela e a tia. Fiquei muito nervosa, pois percebi que Cella estava muito exaltada. Eduarda começou a chorar com a gritaria. Foi preciso parar o carro para que eu descesse e a acalmasse, isso gerou outro bate boca, ainda mais intenso, com acusações da parte de Marcella. O resto da viagem foi muito tenso, ninguém falou mais nada.

Assim que chegamos ao nosso destino, a adolescente saiu do carro no instante em que ele parou e subiu sem esperar por ninguém, não aguardando nem que descarregássemos as malas. A sorte foi que Carlos ainda estava por lá e nos ajudou, pois eu estava com Duda no colo e não seria de muita valia. Milli estava abatida e chateada, pois achou que faria uma amiga e Duda chorosa. Imaginei o que seria passar aqueles dois dias na companhia da garota se ela continuasse daquele jeito. Tinha que arranjar um jeito de conversar com ela o mais rápido possível.

Subi primeiro que Cella com as coisas do bebê, e no momento em que coloquei os pés  no apartamento fui acolhida por dona Maria Thereza que me deu um abraço tão apertado que quase me fez esquecer tudo o que tinha acontecido no caminho.

- Minha querida. Que felicidade! Você não pode nem imaginar a minha alegria quando Marcella me deu a notícia. Agora eu já posso partir em paz. Sei que você vai cuidar com todo amor da minha neta e das minhas bisnetas como nenhuma outra poderia fazer. – Seus olhos estavam úmidos.

Coloquei as coisas no sofá e Duda no chão, então peguei suas mãos entre as minhas e as beijei. Aquela senhora era uma alma evoluída.

- Não diga isso dona Maria Thereza. Quero que fique do meu lado por muito tempo pra me ajudar nessa tarefa. – Falei sinceramente

- Nada de dona, de hoje em diante eu sou sua avó, e quero que me trate assim. Eu gosto demais de você menina. Desde o primeiro momento em que te vi meu coração se encantou. Por favor não negue o meu pedido. – Pediu carinhosa

- Como eu poderia lhe negar algo? E ainda mais um pedido tão lindo como esse? Porém Marcella te falou que eu gostaria de manter isso em segredo por enquanto? - Perguntei

- Sim e eu concordo plenamente com você. Tudo dever ser feito devagar. Consigo entender seus receios. E sei que muita coisa não será fácil, mas pode contar comigo.  Só me chame assim quando estivermos sozinhas, ou com minha neta é claro. – Ela piscou.

- Obrigada vó. – Falei sorrindo e beijando seu rosto.

- Ah que emoção. – Me abraçou novamente e uma lágrima caiu.

Nisso Cella entrou na sala de mãos dadas com Milli, a nossa mochila, uma pequena mala de rodinhas e a sua bolsa a tiracolo. E olhou intrigada para a cena.

- O que está acontecendo aqui? Você está se sentindo bem vó? Por que está chorando? – Largou as coisas no chão, soltou a mão de Milli e se aproximou preocupada.

- Estou sim meu amor, mas é de alegria. Então pode ficar tranquila. – Respondeu indo ao seu encontro

Os olhos de Marcella procuraram os meus, e a ruga que havia em sua testa sumiu imediatamente. Ela compreendeu o que havia acontecido então um sorriso se abriu em sua linda face e ela me piscou. Aquele gesto dela mexia demais comigo. Depois se voltando para sua avó falou:

- Vovó, quero que conheça uma pessoinha muito especial para mim. Eu a conheço há apenas dois dias, mas é como se fosse há anos. Essa é Maria Emilia. – Apresentou.

A senhora olhou para a menina que estava encabulada ao lado de Cella.  

- Como ela é linda! Bem que você me falou. Olha os cachos e as sardas. É um anjinho. – e pegou a mão da criança entre as suas.

- Prazer senhora, pode me chamar de Milli. Todo mundo me chama assim. – Deu um sorriso tímido.

- E você pode me chamar de vovó docinho. Pra ir praticando. – Tornou a senhora.

- Praticando? - Perguntou

- Sim, pra quando estiver morando conosco. – Respondeu.

- Morando com vocês? –Ela ainda estava confusa.

- Claro minha linda, afinal que mãe eu seria se te adotasse e te deixasse no orfanato depois disso? - Marcella falou tocando seu rosto que se iluminou com um sorriso sincero.

Meus olhos umedeceram. Ver a felicidade de Emília era pra mim o presente mais lindo. Pra não chorar eu comecei a falar:

- Bom onde vou colocar as coisas de Milli? Ela vai dormir onde?

- Infelizmente no mesmo quarto da terrorista, que é onde ficam os beliches. – O semblante de Cella mudou na hora ficando carregado.

- Não fala assim minha filha! – A avó falou brava.

- Você a está defendendo porque não viu o que ela fez! Jesus!  Essa menina parece estar com o diabo no corpo. – Ela retrucou ácida.

- Marcella, por favor. Não diga isso de Zanne.  – Falei incomodada.

- Que Engraçado! A garota apronta, briga, xinga  e eu que estou errada? Cacete! – Exasperou-se

- Palavrão na minha frente agora? Cadê o respeito? – A senhora ralhou com ela.

- Desculpe vó. Mas ela me tira do eixo. – Justificou passando as mãos pelos cabelos.

- Eu vou conversar com ela. Acalme-se. – Eu disse tentando tranquilizá-la.

- Ok. Faça o que achar melhor. Mas deixa eu te mostrar os quartos pra vocês poderem guardar as coisas. – Retrucou. – Vó você fica um pouco com as meninas? – Perguntou virando-se para a senhora.

- Claro. Pode deixar. – E pegando a mão de Milli a levou até o sofá.

O apartamento tinha um nível diferente do outro, então descemos uma escada que levava aos quartos. Abrimos a porta do primeiro, onde havia dois beliches. Roxanne já estava de biquíni, e assim que nos viu fechou a cara e já foi brigando:

- Ei, este é o meu quarto! O que vocês querem aqui? Não posso mais ter minha privacidade?

- Quer saber garota é melhor eu me manter calada pra não dar a resposta que está entalada na minha garganta. Deixe as coisas de Milli ai na cama Bi e venha comigo. – Cella falou.

- As nossas coisas estão nessa mochila, melhor ficarem no meu quarto. – Respondi ao notar o desagrado da garota ao ouvir aquilo.

- Como assim? Você não está achando que vou dividir meu quarto com aquela pirralha não é mesmo? – Zanne esbracejou.

- Pra mim chega! Escuta o que eu vou te falar agora mocinha, pois é bem sério. Se você se atrever a maltratar seja de que forma for a Emilia, eu vou fazer uma coisa que nunca fiz. – Ameaçou apontando o dedo pra ela

- E o que seria? – Perguntou a adolescente com desdém.

- Te dar umas boas palmadas. Coisa que você está merecendo há muito tempo. – Respondeu Marcella com raiva.

- Você não pode encostar as mãos em mim. Não é minha mãe. Eu te denuncio. – Afrontou a menina de queixo erguido.

- Foda-se! – Soltou Cella

- Marcella! Não fale assim! – Me assustei.

-Desculpe Bianca, mas isso é entre mim e ela. Sei que quer ajudar, mas acho que na vida tudo tem um limite e ela já extrapolou há muito tempo. Está na hora dessa garota mimada aprender a respeitar as pessoas. Ficar passando a mão na cabeça dela não vai ajudar em nada. – Depois olhando para a sobrinha continuou -  Eu não estou brincando. Espero que tenha entendido por que não vou falar de novo.

Olhei para Zanne e pela primeira vez percebi medo em seu olhar e também um pouco de tristeza, uma mistura muito estranha.

- Feche a porta, por favor, quero terminar de me trocar. – Seu tom já era bem mais baixo.

Saímos e entramos no quarto ao lado onde havia uma cama de casal comum e um berço desses que parecem um chiqueirinho, todo de pano e com rodinhas.

- Esse é o quarto que você ocupará. Duda ficará com você. Tudo bem? – Ainda estava com o cenho franzido.

- Claro. Não poderia ser de outra forma. -  Disse e coloque a mochila em cima da cama. - Cella você não acha que foi dura demais com Roxanne?

- Não acho não. Detesto ameaças, não é o meu jeito de ser. Mas se não agisse dessa maneira ela com certeza iria infernizar a Milli. E depois, eu cheguei ao meu limiar de paciência. Eu faço tudo por ela. Você sabe que a amo como uma filha. Nós estávamos nos acertando. E agora tudo de novo? O que foi que aconteceu? Eu não fiz nada! – Ela desesperou-se.

- Eu sei. Desculpe me intrometer. Não gosto de te ver assim. Você está certa é claro. Entretanto algo deve ter ocorrido. – Ponderei.

- Como o que, por exemplo?

- Será que foi por causa do que ela viu na biblioteca? Ela pode não ter gostado, afinal eu sou a babá da irmã dela. - Comentei

-Ah sinceramente Bi. O que ela tem com isso? È da minha vida que estamos falando aqui. Eu sou adulta. Posso ficar com quem eu quiser. – Retrucou aborrecida.

- Não sabemos o que se passa na cabeça dela. È apenas uma criança confusa. Temos que tentar entender. – Argumentei.

- Senhor me dê paciência, pois a minha está no finalzinho. .– Então olhou para mim, e seu rosto se transformou. – Sabe do que eu preciso pra ficar mais calma? De um beijo bem gostoso. – E me enlaçou pela cintura.

- Não se atreva. Temos que pegar a Duda, pois sua avó não consegue tomar conta dela muito tempo. – Coloquei as mãos em seus ombros tentando empurrá-la.

- Só um beijinho. Deixa de ser má. – E começou a me encher a boca de pequenos beijos.

Soltei-me rindo. Era delicioso brincar com ela daquele jeito.

- Não. Pode ficar quietinha. Depois eu te dou o que você quiser.

Ela soltou uma gargalhada alta e piscando pra mim disse:

- Eu vou cobrar, e olha, não estou falando só de um beijo não.

Só então percebi que minha frase deveria ter um duplo sentido e corei absurdamente. Rapidamente sai do quarto e ela veio atrás de mim.

- O quarto que fica aqui em frente no fim do corredor é a suíte da minha avó. E este é o meu. – Disse abrindo a porta que estava em nossa frente.

Havia uma cama de casal imensa no centro do quarto. Eu fiquei olhando pra ela como que hipnotizada. Será que eu estaria nela no final daquela noite? Meu coração disparou. Sua voz me tirou do transe em que estava.

- Gostou? – O tom estava diferente, mas quente.

- Muito bonito. – Respondi baixinho.

Eu olhei para ela engolindo em seco e o que vi em seus olhos me fez ficar vermelha na hora. O desejo estava estampado em seu rosto. Era uma coisa que pulsava como se tivesse vida própria. Então sua boca desceu e encontrou a minha. O beijo foi intenso e tinha uma eletricidade diferente nos rodeando. Suas mãos nos meus cabelos me prendendo. Precisei usar todo o meu autocontrole para me afastar dela.

  – Para Cella, por favor. Não é o momento. – Falei tentando respirar.

- Desculpe, eu não pretendia ... Foi mais forte do que eu... Não consigo ficar perto de você, sem querer te beijar. Ainda mais assim, quando estamos sozinhas.  – Disse tentando se explicar.

- É melhor irmos buscar as crianças. Quero trocar Eduarda e Milli para aproveitarmos a praia. – Estava encabulada pelo que estava sentindo.

- Claro, você está certa.

 

E sem dizer mais nada saímos do quarto, mas o desejo estava pairando no ar.

Fim do capítulo