Marcella

Aqueles dias não estavam sendo fáceis. A Duda havia pego uma gripe forte e tinha parado duas vezes no pediatra, precisou fazer inalação e tomar injeção por conta da garganta. A sorte é que ela confiava demais em Bianca que conseguiu tranquiliza-la durante aqueles momentos angustiosos. Além disso minha avó que estava melhorando começou a ter novas recaídas com dores de estomago fortíssimas o que me deixava desesperada, não conseguia imaginar minha vida sem ela. Eu já não tinha mais ninguém, todos haviam ido embora só me restara a avó para partilhar meus momentos. Amanda andava insuportável com suas insinuações e investidas repetitivas me tirando constantemente a paciência. Já havia chego em meu limite, se ela não parasse com aquilo seria obrigada a demiti-la o que causaria mais um problema. E pra melhorar eu continuava a ter os sonhos pesadelos, que me deixavam com o corpo moído todas as manhãs por conta da noite mal dormida. Meu desejo vinha aumentando dia a dia. Sabia que era uma coisa impossível, mas não tinha controle sobre aquilo.

A única circunstancia boa durante esse período foi perceber que Roxanne estava se aproximando cada vez mais de Bi como ela agora a chamava. Com isso estava mais calma, menos agressiva, e não me provocava tanto, o que havia gerado menos brigas. Até o piercing ela tinha tirado. Não que eu fosse contra aquele tipo de adereço ou tatuagens, mas ela era ainda muito nova aquelas coisas, agora quanto ao cabelo não havia o que ser feito, só restava esperar crescer.

Estava na biblioteca resolvendo os assuntos do dia, já que depois da morte de Marina nunca mais havia conseguido ir para a empresa, quando bateram na porta.

- Pode entrar. – Disse sem levantar os olhos do note.

- Senhora Marcella, desculpe incomoda-la, mas há um homem na sala que deseja vê-la. – Aghata falou.

- Que homem é esse? Não estou esperando por ninguém, e não vou recebe-lo. Mande que ele ligue antes de vir me ver. Oras, isso é um absurdo, aparecer na casa das pessoas assim sem avisar. – Respondi com o rosto fechado.

- Eu disse isso a ele, mas insistiu em ser atendido. Disse que o assunto é de seu interesse e que se não recebe-lo será pior para a senhora.

- Como é que é? Mas que disparate!  Quem é essa criatura insolente? Qual o seu nome? – Fiquei de pé em um pulo.

- Disse que se chama Bernardo senhora, e que o conhece há longa data.

Foi como se uma bomba tivesse explodido na sala, não conseguia ouvir mais nada a não ser o rimbombar alto do meu coração no silencio absoluto. Não podia ser verdade. Aquilo não estava acontecendo. Eu havia me levantado para expressar a minha indignação, mas minhas pernas não conseguiram mais sustentar o peso do meu corpo e me deixei cair sentada na cadeira, senti o sangue fugir das minhas faces e uma sensação eminente de desmaio começou a tomar conta de mim.

- Dona Marcella, meu Deus, a senhora está bem? – Ela se aproximou rapidamente de mim - Quer que eu chame um médico? A senhora está branca como papel. Eu já volto, espere só um pouco...

Segurei seu braço com a mão trêmula.

- Não Aghata, eu estou bem. Não foi nada apenas um pequeno mal-estar. Peça para ele entrar por favor.

- Tem certeza senhora?

- Sim. Fique tranquila. Pode trazê-lo.

Ela saiu da sala ainda com uma expressão de medo no olhar, e não era para menos, acredito que durante aqueles últimos dois anos em que trabalhava para mim nunca havia me visto daquele jeito. Nem eu mesma me lembrava quando havia sido a última vez que tinha me sentido tão atordoada e perdida. O que será que ele queria? Me preparei para recebe-lo, jamais deixaria que ele percebesse o quanto havia ficado abalada.

Uma nova batida na porta e ali estava o elemento em minha frente. O mesmo sorriso cafajeste nos lábios, aquele olhar que eu odiava como se o tal fosse o máximo do máximo. Não podia negar que ele era um belo homem, com um metro e noventa de altura, musculoso, moreno e aqueles olhos negros como a noite escura. Era com certeza um conjunto que agradava demais as mulheres, mas elas eram apenas presas nas mãos daquele crápula.

- Olá Marcella. Há quanto tempo não nos víamos. Você continua linda como sempre. – Disse à guisa de cumprimento me olhando de cima a baixo com malicia.

- E você continua o mesmo mal caráter insuportável. O que veio fazer aqui? Não tem vergonha na sua cara? – Disparei em sua direção

Ele gargalhou jogando a cabeça para trás diante do meu desaforo. Minha vontade foi ir até ele enfiar meus dedos naqueles olhos cínicos e arrancá-los, tamanha a minha ira.

- E também mantem o mesmo gênio indomável. Sabe eu até senti falta disso. Ninguém conseguiu me xingar melhor que você até hoje.

- Você está arriscando a sua vida Bernardo brincando assim comigo, então diga logo por que veio e vá embora, só que dessa vez pra nunca mais voltar.

- Lamento decepcioná-la my darling, mas isso não vai acontecer. Estou aqui para te avisar que entrei com uma ação para ter reconhecido os meus direitos.

- Você só pode estar louco! Nunca, ouviu, nunca você vai conseguir. Pode mover a ação que quiser. O único direito que você tem e de sair andando daqui enquanto pode.

Nisso a porta se escancarou e Zanne entrou com os olhos arregalados e uma expressão de assombro estampada na face.

- Pai?

Ele voltou-se abrindo aquele sorriso nojento e caminhou até ela, ao chegar do seu lado tentou abraça-la, mas a menina se esquivou do seu toque e veio em minha direção.

- O que você está fazendo aqui? – Praticamente cuspiu a pergunta em sua direção.

- Nossa minha filha como você cresceu, está linda! Que saudades de você. E sua irmã onde está? Eu quero muito vê-la.

- Responda a minha pergunta. O que você quer?

- Os meus direitos é claro. Quero levar vocês para morar comigo, afinal eu sou seu pai.

- Que direitos você acha que tem? Você sumiu no mundo. Nunca tentou nos ver. Não lembrava da nossa existência. Nem para o enterro da minha mãe você veio.

Ela estava chorando e a raiva estampada em seu rosto.

- Filha, não foi bem assim. Me deixe explicar. – Disse estendendo os braços em sua direção.

O que aconteceu depois foi rápido demais, não deu tempo de eu fazer nada. Roxanne pegou um peso de papel que estava em cima da mesa e atirou contra o homem, que por sorte teve tempo de se desviar, mas ainda assim passou de raspão por sua testa abrindo um pequeno corte. Ela ainda tentou partir pra cima dele, e eu consegui segurá-la.

- Para Zanne. Não fica assim, não vale a pena. Me escute. – Tentei apaziguá-la

- Me larga, eu quero quebrar a cara desse sujeito que diz ser meu pai. – Ela rosnava

- Se acalme, vá para o seu quarto, deixe que eu cuido de tudo por aqui. – Disse olhando em seus olhos

-Você vai deixar esse cara levar a gente embora? – Estava aflita

- Não. Claro que não. Jamais. Vai pra cima, depois vou me encontrar com você.

Eu a soltei e ela foi em direção à porta, mas ao passar por ele ainda falou:

- Eu te odeio com todas as forças do meu ser. Você é nojento. E não o considero meu pai.

Ele fixou seu olhar nela, enquanto secava o sangue da testa com um lenço e sua máscara caiu, por um momento pude ver a verdadeira face daquele calhorda que a observou com desdém. Aquele homem não tinha coração, nem escrúpulos ou sentimentos com certeza não era pelas meninas que estava ali. Tudo que fazia era para seu próprio bem estar.

- Ela só se esqueceu de dizer que você é apenas o rascunho de um ser humano e muito mal-acabado por sinal. – Expressei com repulsa

- Você realmente acha que eu me importo com o que pensa sobre mim, ou mesmo com o que ela pensa? Nada disso me interessa. Eu tenho o pátrio poder e vou lutar por ele quer você goste ou não.

- Você pode tentar, mas não vai conseguir, eu tenho a guarda e a tutela das meninas, Marina deixou pra mim, poucos dias antes de morrer. Você quer guerra, então a terá.

- Marcella você pode ter tudo isso, mas eu sou o pai biológico. O juiz levará isso em conta.

- Veremos. Eu sei muito bem o que você quer. É o dinheiro da herança das meninas, nada mais. Pelo menos minha irmã não foi estupida o bastante e casou-se com você no regime de separação total de bens.

- Não tem como você provar o que está dizendo. Eu quero ficar com minhas filhas porque as amo.

- Ama? Mesmo? Qual o nome da sua filha mais nova? Como é o rosto dela?

- Ela chama-se Maria Eduarda. E é uma linda menina de cabelos encaracolados.

- Com certeza contratou um detetive antes de vir para cá, é lógico. Não podia dar as caras sem saber nada sobre ela, não é mesmo? Como você é vil, ficou sabendo da morte da minha irmã e se preparou para dar o bote.

- Outra coisa da qual você não tem provas. São só palavras, as suas contra as minhas.

- Marina se divorciou de você há um ano atrás Bernardo. À revelia é verdade visto que ninguém sabia o seu paradeiro. Mas pelo menos ela tomou a atitude correta.

- Eu soube. Mas isso não influenciara na decisão do magistrado. Casais vivem se separando. Isso é normal hoje em dia.

- Não me garantiria tanto se fosse você, mesmo porque a Zanne já pode decidir com quem quer ficar.  

- Sim, mas Maria Eduarda não. E duvido que ela não queira ficar com a irmã, se eu ganhar o processo.

- Você me dá engulho. Diga quanto quer pra nos deixar em paz. Porque com certeza o dinheiro que roubou da minha irmã deve ter acabado. Fala logo, eu faço um cheque e você desaparece das nossas vidas.

- Nada disso. Eu quero as meninas. Mas há uma solução em que você pode pensar se quer tanto ficar com elas.

- E qual seria?

- Você pode se casar comigo. Unimos o útil ao agradável – Falou rindo

- O que? Você só pode estar completamente alucinado! Nunca eu faria isso, nem se o futuro da humanidade dependesse disso para continuar a existir. – Retruquei com asco

- Bom você quem sabe. Eu vim aqui só para avisá-la. Você deve receber uma intimação do meu advogado. Entrei com um pedido para poder visitar as crianças enquanto o processo corre.

- Some daqui antes que eu me arrependa de ter segurado minha sobrinha pra não te quebrar a cara e o faça eu mesma.

Outra gargalhada debochada escapou dos seus lábios.

- Tenha uma ótima tarde Marcella e até breve. – Dizendo isso virou as costas e saiu da sala.

Imediatamente após sua saída deixei-me desabar sobre a cadeira. Meu corpo tremia de fúria incontida. E de medo também, pois eu não sabia se ele conseguiria o intento que estava pleiteando. Liguei para a minha advogada e marquei uma reunião para aquela tarde.

Para tentar me acalmar fui dar uma volta no jardim, e vi Bianca brincando com Duda, as duas estava rolando pelo chão às gargalhadas. A cena enterneceu meu coração. Duas crianças puras e inocentes. No mesmo instante a raiva me subiu pela garganta, aquele sujeito não ia tirar minha menina de mim, nem que fosse preciso eu tomar uma atitude extrema. Respirei fundo e me dirigi ao quarto de minha sobrinha mais velha seria preciso tato para conversar com ela, mas era necessário.

Parei em frente a porta e a abri, Roxanne estava encolhida na cama aos prantos. Me aproximei e sentei na borda, instantaneamente ela colocou a cabeça em meu colo e me assustei. Nunca havia tido esse gesto de carinho para comigo, a surpresa me deixou com lágrimas nos olhos. Mansamente comecei a passar as mãos em seus cabelos, não sabia como começar a conversa então me deixei apenas ficar ali fazendo um cafuné nela. Depois de uns quinze minutos o choro dela diminuiu, e Zanne começo a falar.

- Tia minha mãe nunca contou direito por que meu pai foi embora. O que aconteceu de verdade.

- A história não é bonita meu bem.

- Tudo bem, eu aguento, não sou mais uma criança.

Sorri sozinha, aquela era uma afirmação falsa e verdadeira ao mesmo tempo. Ela já estava na fase em que tinha dentro de si sentimentos adultos misturados com ideias ainda infantis. Uma idade perigosa onde acreditamos que podemos tudo e que o mundo é nosso. Eu sabia disso muito bem, pois foi nessa idade... Meu Deus tinha que parar de pensar naquilo.

- Tá bom meu amor, se você quer vou te contar. Infelizmente seu pai nunca foi um homem honrado. Ele iludiu e seduziu sua mãe com palavras e gestos de um amor falso. Nós tentamos abrir os olhos dela, mas apaixonada ela não escutou ninguém, então para não a afastar da família sua avó permitiu o casamento.

- Ele nunca amou minha mãe?

- Lamento querida, mas a resposta é não.

- E por que ela continuou com ele?

- Porque ela sim o amava. E o amor faz a gente ser tola o suficiente para ficar esperando que a pessoa mude.

- Eu quase não me lembro dele em casa.

- Sim eu sei, seu pai sempre traiu Marina, nunca pode ver um rabo de saia como se diz por aí. No começo até que era discreto, mas com o passar do tempo foi ficando mais descarado. Ele se aproveitava do amor que sua mãe sentia. A cada traição descoberta ele jurava que não aconteceria mais.

- E porque ele decidiu ir embora então?

- Um dia minha irmã se cansou, e disse que queria o divórcio. Mas ele jamais aceitaria isso, já que sairia do casamento com uma mão na frente e outra atrás. Pelo jeito a mulher com que estava saindo não era rica, então ele precisava dar um último golpe. Como você sabe a nossa família trabalha com investimentos imobiliários, somos uma das maiores empresas do Brasil, e nessa época ele trabalhava conosco. Uma bela tarde ele sumiu, e levou com ele mais de um milhão e meio de reais dos cofres da empresa.

- Nossa tia!

-É. Foi um baque pra toda a família, menos para mim que esperava qualquer coisa vinda da parte dele. Sua mãe estava gravida de três meses da sua irmã, e você tinha treze anos. Foi muito difícil pra ela. Apesar de tudo Marina nunca deixou de amar Bernardo, mesmo durante esses anos que ele esteve ausente. Jamais conseguiu esquecê-lo.

- Tia posso te fazer outra pergunta?

- Sim Zanne.

- Você acha que ele consegue tirar a gente daqui?

- Eu vou lutar com a minha alma para que isso não aconteça.

- Mas há alguma chance?

- Não. Nenhuma. Pode ficar tranquila. – Respondi com os dentes serrados.

Ela não perguntou mais nada e em pouco tempo estava ressonando. Com a cabeça dela ainda em meu colo fiz uma promessa para mim mesma, nem que fosse preciso agir de uma forma ilegal, eu não deixaria aquele monstro colocar as mãos em um fio sequer dos cabelos das minhas sobrinhas.

Fim do capítulo