Bianca

Sai do quarto de Marcella ainda encabulada. Durante um momento ela me olhou de um jeito tão intenso que parecia estar desnudando minha alma, e eu fiquei com muito medo, não dela, mas de mim, do que eu senti com aquele olhar. Das reações em meu corpo. Minha cabeça estava completamente desnorteada. Essa coisa dentro de mim estava me martirizando. Aquele era o tipo de sentimento que um dia um homem deveria despertar em mim e não uma mulher. Como podia ser? Logo eu?

Fui direto para o quarto da bebê e me sentei na cadeira de balanço esperando que acordasse. Por mais que eu tentasse me acalmar aquela sensação estranha martelava em meu peito e anuviava os meus pensamentos. As imagens dela presas em minha memória, seus olhos penetrantes invadindo minha mente, aquele meio sorriso misterioso estampado nos lábios vermelhos. Nunca havia sentido a necessidade de saber como seria o sabor de um beijo, mas agora eu me pegava imaginando como seria o beijo dela. Não, eu não podia pensar nisso. Era pecado. Era errado. Era...tão bom. Distraída passei as mãos em meus lábios.

Onde tudo isso me levaria? “Meu Deus me ajude! O Senhor se esqueceu de mim? Por que isso esta acontecendo comigo? Eu estou com tanto medo.” – Disse olhando para o alto.

Desviei os olhos para a caminha e percebi que Dudinha estava acordada, sentada me observando com seu rostinho angelical. Então mudei os rumos do meu pensamento.

- Oi meu amorzinho. Dormiu bem? – Perguntei pegando-a no colo.

- Bi, eu acordei. – Respondeu com um sorriso me abraçando.

- Eu sei linda. Vamos tomar um banhinho?

- Bom. Eu quero.

- Isso mesmo! Meu anjinho!

Eu a levei até o banheiro, depois lhe dei um banho, a troquei e sai com ela nos braços em direção ao quarto de Roxanne. Tinha um plano para tentar amolecer seu coração. Bati a porta do quarto e entrei.

A menina estava deitada na cama olhando para o teto, quando notou minha presença sentou-se.

- Oi moça, vim trazer uma pessoinha que esta com muitas saudades de você, não é Duda?

- Zanne, Duda gosta. – E estendeu os braços para a irmã.

Imediatamente os olhos da adolescente se encheram de ternura.

- Vem aqui pequenina! A Zane também gosta muito de você, viu? – E então uma lágrima caiu.

Levei a bebê até a garota, a coloquei em seus braços e me sentei na cama ao seu lado. Deixei que brincassem um pouco antes de começar a falar com ela.

- Roxanne, posso te fazer uma pergunta?

Ela me olhou desconfiada, mas balançou a cabeça em sinal de sim.

- Você realmente esta feliz com esse novo cabelo?

- Que é vai me encher o saco também? – Tornou agressiva

- De jeito nenhum. Acho que você já tem idade o suficiente para escolher pelo menos o seu corte de cabelo. Foi só uma pergunta.

- Eu gostei. – Disse meio receosa. – Na verdade não ficou bem como eu queria. Mas tudo certo. Cabelo cresce, não é uma coisa irreversível.

- Entendi. – Sorri. – E esse piercing? Deve estar doendo muito não é mesmo?

- Um pouco. Está me incomodando.

- Quer que te ajude e limpar e colocar o antisséptico? Você comprou um não é mesmo?

- Não. Esqueci.

- Imaginei. Você pode ficar um pouco com a sua irmã? Eu tenho um na caixinha de primeiros socorros da Duda. Vou pegar e já volto.

- Tá bom. – Respondeu já mais afável.

As deixei e fui buscar o remédio. Estava fechando a caixa quando Amanda entrou no quarto e fechou a porta atrás de sí.

- O que você quer aqui? – Falei receosa

- O que estava fazendo no quarto de Marcella agora à pouco? – Seu rosto era uma máscara de fúria.

Enquanto falava foi se aproximando perigosamente de mim. Entrei em estado de desespero.

- Nada de mais. Fui falar sobre Roxanne. Apenas isso.

Ela me imprensou contra a parede.

- E o que você acha que tem a ver com a vida das pessoas dessa casa, seu ser insignificante?

- Olha aqui Amanda, você não pode falar comigo desse jeito.

Ela agarrou meus ombros e começou a me sacudir.

- Eu falo com você como eu quiser entendeu? Você não é nada. Ou acha que conseguirá lutar contra mim?

- Me solte!

- Solto quando eu terminar o que eu vim fazer. Você vai aprender quem é quem aqui dentro. Eu avisei uma vez, essa é a segunda, na terceira você vai se arrepender amargamente. Tire os olhos de cima da Marcella. Eu não estou brincando. E faço o que for preciso, sem medir consequências para conseguir o que quero, pode acreditar. Então se afaste antes que eu faça com que isso aconteça! Vadia!

Quando terminou de dizer a última palavra ela me soltou, virou as costas e saiu. Eu estava tremendo. Passei as mãos por meus braços, com certeza ficaria marcada por sua brutalidade. O som da sua voz misturado ao seu rosto retorcido de ódio me causaram agonia e pavor. Ficou bem evidente para mim que ela estava dizendo a verdade. Que passaria por cima de qualquer coisa e qualquer um para conseguir seu objetivo. Então era isso que as pessoas chamavam de amor? Agir como uma lunática? Um arrepio frio me subiu pela espinha. Afastei aquele pensamento medonho e me dirigi ao quarto de Roxanne.

Quando cheguei vi uma cena tão comovente que meu coração se aliviou, as duas irmãs abraçadas e a adolescente estava falando para a menininha:

- Aconteça o que acontecer eu nunca vou abandonar você. Eu te amo minha irmã. Sempre estarei ao seu lado. Nada nem ninguém te fará mal nenhum, porque eu não deixarei. Você é a minha princesinha. Não esquece nunca viu? – Chorava copiosamente

- Não chola Zanne. Duda gosta você. – E passava as mãozinhas gorduchas no rosto da irmã.

- Roxanne.

Rapidamente ela secou as lágrimas.

- Conseguiu o remédio? – Perguntou tentando fingir que nada havia acontecido.

- Sim. Coloque a Dudinha um pouco na cama. Deixe eu cuidar dos seu lábios.

Ela fez o que eu pedi. Delicadamente eu passei o spray onde estava inchado e sequei um pouco com um algodão. Ela fez uma careta de dor, mas não tentou me afastar. Isso foi bom, pois demonstrou que estava conseguindo sua confiança.

- Pronto. Terá que fazer isso todas as vezes que comer. E também quando sentir dor.

- Obrigada. – E sorriu discretamente.

- De nada querida. É muito bonito o seu amor por sua irmã. Achei linda a promessa que fez a ela de nunca abandoná-la.

- E nunca vou mesmo.

- Abandono é uma coisa muito triste. Eu senti isso na pele. Machuca.

- Você foi abandonada por alguém?

- Sim pelo me pai, quando tinha seis anos, na porta do orfanato. Fui criada pelas freiras.

- Nossa! Você deve odiá-lo.

- Não. Não odeio. Eu o perdoei faz muito tempo.

- Como pôde? O que ele fez não tem perdão!

- Tem sim. Tudo nessa vida pode ser perdoado. Basta a gente querer.

- Eu não penso assim!

- Eu sei. Você é muito jovem ainda, tem toda vida pela frente, tanta coisa para aprender. Mas um dia, acredite, vai conseguir olhar as pessoas de forma diferente, e entenderá que todo mundo erra, inclusive você. Então será mais fácil.

- Pode até ser, mas não acredito nisso.

- E quem você odeia tanto que não pode perdoar?

- Eu não perdoo meu pai, ele largou a gente sabia? Por conta de uma vagabunda.

- Realmente não foi bonito o que ele fez.

- Ele nunca nos amou. Nem a mim, nem a Maria Eduarda, nem a minha mãe. Jamais veio nos ver. Sequer conhece o rostinho da Duda.

- Eu entendo o que você esta sentindo, mas precisa descontar toda essa raiva em si mesma? Ou na sua tia?

- Não desconto nada em ninguém. – Disse erguendo o rosto em desafio

- Não mesmo? Então por que a ataca?

- Ela me ataca primeiro. Eu só retribuo.

- Ro, posso te chamar assim? Ou prefere Zanne?

- Zanne é melhor.

- Então muito bem, Zanne você sabe que não é bem assim não é mesmo? Eu vejo as brigas. Sinto uma coisa que vem de você, eu não sei explicar, mas realmente tem raiva dela. O que foi que ela te fez pra te deixar tão chateada?

- Não quero falar sobre isso. – Imediatamente ela se retesou

- Tudo bem. Não vou te forçar a nada. Mas se um dia você quiser conversar com alguém estou aqui. Veja em mim uma amiga. Ok?

-Ok.

- Agora vou levar essa criança linda para brincar lá fora. Quer vir conosco? A tarde esta maravilhosa.

- Hoje não. Estou com um pouco de dor de cabeça. Mas obrigada por me chamar e também por ter cuidado de mim. – E abriu um sorriso encantador

- Que é isso. Já te falei, sempre que precisar.

Peguei a menina e sai, deixando uma adolescente mais tranquila.

Naquela noite estava arrumando a minha cama depois de fazer Duda dormir quando bateram à porta. Estranhando fui abrir. Imediatamente meus olhos se fixaram nos dela e aquele desejo pungente tomou conta de mim.

- Boa noite Bianca. Posso entrar?

- Claro dona Marcella. – Respondi dando passagem.

O quarto pareceu encolher, a sua presença tomava conta de cada pedaço do espaço. Ela caminhou e eu fui atrás colada a ela, praticamente uma sombra e então ela virou-se abruptamente, como estava a suas costas seu corpo bateu em mim e quase cai. Sem esperar Marcella estendeu os braços e me segurou de encontro a ela. Nossos corpos ficaram colados. Minhas mãos em seus ombros e as suas em minha cintura. Todo o ar saiu dos meus pulmões.Tudo ficou escuro. Lentamente levantei o rosto e o dela estava a milímetros do meu, sem reparar passei a língua por meus lábios que estavam secos. Imediatamente seus olhos escureceram, um tremor me percorreu, não sei se de medo ou vontade. Minha respiração voltou em espasmos e pude sentir que a dela também estava acelerada.

Não sei por quanto tempo ficamos assim, presas uma a outra como se grilhões de fogo nos envolvesse. Até que finalmente, ela se afastou. E eu me senti perdida sem o seu calor. Pra tentar disfarçar, coloquei uma mecha do cabelo atrás da orelha e abaixei a cabeça.

- Me desculpe senhora.

- Não Bianca. O erro foi meu.  – Ela também estava agitada

- Mas a senhora está precisando de alguma coisa? – Perguntei enquanto apertava nervosamente as mãos.

- Eu vim perguntar se você conseguiu conversar com minha sobrinha.

- Sim. Consegui. Mas ainda não foi o suficiente. Ela precisa confiar mais em mim. Porém o que posso falar é que ela tem uma revolta muito grande contra o pai.

- Aquele calhorda! Desprezível. - O nojo era evidente em suas palavras.

- Sim. Quer dizer não o conheço, mas o que ele fez não foi honroso.

- Honroso! Como se aquele sujeitinho soubesse o significado dessa palavra. Nunca valeu nada! Tentei abrir os olhos de Marina, mas infelizmente estava apaixonada por ele. Um ser asqueroso, só queria saber do dinheiro da minha irmã, nada mais.

- Sério?

- É Bianca. Ele nunca prestou. Era evidente. Mas seres apaixonados são burros! O amor cega mesmo, mas o pior é que acaba com as células cinzentas também. Então as pessoas fazem loucuras. Idiotices em nome do tal nobre sentimento. E depois têm que carregar as consequências para o resto da vida. O amor não é bom. Tudo ilusão e mentiras! – Havia muita amargura em sua voz. - Quando se ama a gente finge que os defeitos não existem. A pessoa se torna perfeita perante nosso olhos.

Ela dizia aquilo tudo meneando a cabeça, e percebi que não era mais sobre o a irmã que estava falando, mas de si própria. Meu coração se enterneceu. O que alguém tinha feito de tão ruim para ela? Queria estender minhas mãos e acariciar seu rosto, abraçá-la e tirar aquela dor de dentro do seu peito. Acho que demonstrei o que estava sentindo em meu olhar, pois imediatamente ela se calou e me encarou.

De repente ela passou as mãos nos cabelos como quem quer afastar uma ideia maluca da cabeça

- Bom Bianca, obrigada. Se por acaso conseguir mais alguma coisa com Roxanne, por favor, me comunique.

- Claro pode deixar.

- Tenha uma boa noite.

- Obrigada, a senhora também.

Ela abriu a porta e se foi. E alguma coisa de dentro de mim se foi com ela. Com certeza não seria fácil pregar os olhos aquela noite. Aquilo tudo estava acumulado em mim. O que será que ela havia sentido ao me enlaçar? Parecia tão confusa quanto eu. Que Deus me ajudasse por que eu não estava mais conseguindo controlar o que estava sentindo.

Fim do capítulo