Marcella

Quando cheguei na sala de jantar e notei que só havia o meu prato posto para o almoço meu coração gelou. Onde estaria minha sobrinha aborrecente? O que teria aprontado para não vir almoçar? A governanta estava parada esperando que eu me sentasse para mandar servir a comida.

- Ágata, por que o pranto de Roxanne não está à mesa? - Questionei

- Ela preferiu que sua refeição fosse servida no quarto hoje dona Marcella.

- Como assim? Por acaso está doente?

- Não sei senhora. – Disse abaixando a cabeça.

Aquele gesto foi o suficiente para eu saber que algo estava muito errado. Imediatamente minha cabeça começou a latejar. O que seria dessa vez?

- Posso mandar servir?

- Não. Vou buscar a “garota problema”. Que história! Lugar de comer é na mesa. - Resmunguei

- Senhora, eu acho que, só por hoje, talvez fosse melhor... – E calou-se quando olhei em sua direção

- Fala logo Ágata. O que foi que ela aprontou?

- Se a senhora acha que deve buscá-la. Com licença, vou avisar na cozinha para que esperem um pouco e mantenham a comida quente.

E saiu rapidamente da sala. Já passei as mãos em meus cabelos desacorçoada. A coisa pelo jeito tinha sido feia. Meu Deus me dê a paciência que deu a Jó.  Comecei a subir as escadas tentando me manter calma e controlada, o que não queria dizer que conseguiria me conservar assim. Bati na porta do quarto e entrei. Meus olhos se arregalaram imediatamente. Fiquei sem palavras por uns dez segundos enquanto observava a cena bizarra à minha frente.

A menina estava parada no meio do quarto de calcinha e camiseta, olhando-se no espelho. O lábio inferior enorme de inchado, parecia até que tinha colocado botox, tinha um piercing. Os cabelos antes tão lindos, longos, ondulados e negros estavam agora mutilados, com um corte louco, uma parte da cabeça estava raspada, e o que sobrou estava pintado de roxo. Por um instante achei que tinha entrado na casa dos horrores, ou em um filme de terror, ou sei lá em que parte de outro planeta. Não conseguia acreditar no que os meus olhos viam. De repente uma fúria vermelho sangue, ácida e violenta formou-se em meu peito e sem consegui me conter comecei a gritar ensandecida.

-EU NÃO ACREDITO NISSO! VOCÊ ENDOIDOU DE VEZ?

- Por quê? Não gostou? Pois eu sim. O corpo é meu faço o que quiser com ele! – Me afrontou

-Dessa vez você ultrapassou todos os limites possíveis Roxanne. Chega! Eu tentei de tudo. Fiz o que podia e o que eu não podia. Tentei ter paciência. Mas é impossível. Não há condições de manter você aqui. Já que não quer aprender por bem, terei que tomar outras providencias. Vou contatar o colégio interno na Suíça. Você vai pra lá.

- NÃO VOU!

- AH VAI SIM!

- Você não manda em mim. Não pode me obrigar a nada.

- Mando sim. Posso te obrigar sim. Tenho a sua tutela esqueceu? Você é menor de idade. Então quer queira ou não eu decido. Olha pra você Roxanne! O que te deu na cabeça pra se fazer uma coisa dessas? Você está ridícula!

- Estou na moda. Todas as garotas fazem isso. Sou descolada. Você que é uma atrasada!

- Você é uma tresloucada isso sim! Moda! Cada uma que eu escuto! Quer dizer que se ficar na moda pendurar uma melancia no pescoço você vai sair por aí com uma? Lembre-se que você pode ficar encurvada se fizer isso.

- EU TE ODEIO!

- E porque? Hein? Me fala! O que eu te fiz pra que me odeie? Tento te dar tudo do melhor. Te ensinar, te proteger, te dar carinho e atenção. E o que eu recebo em troca? Você acha que sua mãe ficaria feliz em te ver assim?

- Você não é minha mãe! E ela não está aqui pra me ver!

- Não, eu não sou sua mãe, mas te amo como se fosse. Você é sangue do meu sangue. Eu só quero o teu bem. Será que você não percebe? Porque você faz essas coisas? Me diz! Quem sabe a gente não se entenda? O que te incomoda tanto?

- Eu não quero nada de você. Me deixa sozinha! Vai embora!

- Não consigo entender. Juro que não consigo. Me explica. Conversa comigo.

- Eu já falei pra me deixar em paz! – Disse e entrou no banheiro batendo a porta.

Virei às costas e sai completamente desanimada e triste. Tinha perdido a vontade de tudo. Caminhei cabisbaixa e fui para o meu quarto. Sentia um peso enorme em meu peito. As lágrimas começaram a rolar por minha face sem que eu fizesse o mínimo esforço para contê-las. Onde é que eu tinha errado? Eu só queria que ela fosse feliz. Não que eu fosse substituir a mãe dela, lógico que isso nunca aconteceria, mas se eu pudesse pelo menos ajudá-la a enfrentar o mundo. Só que ela não deixava eu me aproximar. E agora havia dito que me odiava. Por quê? Eu a amava tanto. Era desesperador ver aquilo acontecendo e não poder fazer nada.

- Ai Marina, esteja você onde estiver me ajude minha irmã.  Por favor, por favor... não estou conseguindo mais. Não me abandone. Eu preciso de um milagre.

Mal terminei de falar e soou uma batida na porta. Rapidamente sequei meu rosto, e me olhei no espelho para ver se era possível que se percebesse que havia chorado. E só depois fui até a porta e abri. Qual não foi a minha surpresa ao ver o semblante que estava ali parado.

- Dona Marcella me desculpe vir incomodá-la. – Falou sem me encarar

- Diga Bianca. Algum problema com Maria Eduarda? - Perguntei

- Não senhora. Ela está bem. Apesar do barulho não acordou.

- Então em que posso ajudá-la?

- Eu sei que não tenho nada com a vida de vocês. Não devia me intrometer, mas é que ...

- Você esta incomodada com as brigas não é mesmo? – Terminei por ela

- Na verdade eu queria pedir sua permissão para conversar com Roxanne. É que eu tenho paciência para ouvir. Eu não sou da família, eu sei. É só que eu sinto uma coisa muito triste vindo dela. Não sei explicar. É uma angustia, uma dor profunda. Quando ela fala, é isso que eu percebo.

Fiquei olhando para ela, e ao invés de ficar chateada ou brava por ela estar se intrometendo eu fiquei agradecida. Um pouco daquele peso que estava carregando sumiu, abri mais a porta e convidei:

- Por favor, entre.

- No seu quarto?

- Sim. É onde eu estou. Por quê? Você não quer conversar sobre isso? Não é por este motivo que veio?

- Sim, mas...

Logo percebi o porquê de sua hesitação. Com certeza estava pensando que iria agarrá-la ou qualquer coisa assim por eu ser gay. Aquilo me deixou com raiva.

- Não se preocupe Bianca. Se esta assim por conta da discussão que ouviu outro dia, saiba que eu sou lésbica sim, mas não ando atacando mulheres por ai. Ser homossexual não faz de mim uma estupradora. Sou uma pessoa normal como qualquer outra. Fique tranquila que a sua virgindade estará preservada ao meu lado.

A moça enrubesceu violentamente ao ouvir aquelas palavras. Ela começou a tremer e então percebi que havia ido longe demais.

- Me perdoe não quis ser grosseira. É muita coisa pra minha cabeça. De vez em quando perco as estribeiras. Mas enfim, você vai entrar ou não?

-Com licença. – Disse e deu dois passos para dentro.

Fechei a porta e indiquei a poltrona que havia ao lado de minha cama, que foi onde me sentei.

- Diga-me por que você acha que pode ajudar nessa batalha entre mim e minha sobrinha?

- Acho que por conta da minha experiência. Pode até parecer estranho por causa da minha pouca idade, mas a vida me ensinou muitas coisas, algumas cedo demais. Quando meu pai me abandonou, eu era uma criança e também fiquei triste e de certa forma havia revolta dentro de mim.

- Não consigo te imaginar revoltada. Você é tão calma. Tão centrada - Respondi

- Eu não fiquei exatamente revoltada, porque desde muito nova eu aprendi a dar mais valor ao que eu tinha do que ao que havia perdido. Mas mesmo assim no começo eu ficava brava com ele, por ter aberto mão de mim, desdenhado do meu amor, sem nem mesmo me dar uma chance. A noite antes de dormir chorava e resmungava, com o tempo as coisas voltaram aos eixos e eu o perdoei sinceramente. Entendi que talvez ele até me amasse de verdade, mas não tinha coragem ou até mesmo capacidade para educar uma filha sozinha. Não temos como saber o que se passa no coração do outro. Então tudo se tornou mais fácil.

- Você é diferente da maioria das pessoas que conheço. Alias tão diferente de mim mesma. Não sei se teria conseguido perdoar com essa naturalidade. Quer saber, não sei se teria sequer perdoado.

- Teria sim. Você tem um coração bom. Dá pra perceber. Desculpe, eu quis dizer a senhora tem. – Ficou encabulada

Eu sorri. Tão pura e inocente que achou que ficaria zangada por ter me chamado de você. Daí deixei meus olhos percorrerem aquele rosto delicado. Ela era linda, mesmo não sendo de verdade pelos padrões de beleza estipulados pela sociedade. Porém o belo nela era latente. Encantadora, essa era a palavra correta a ser usada no seu caso. Aqueles olhos castanhos, quentes e calorosos. A voz mansa e suave. Por um momento desejei poder deitar minha cabeça cansada em seu colo macio e pedir que me fizesse cafuné. Me perder naquele mar de serenidade seria o paraíso. Quem sabe roubar um beijo daquela boca bonita e casta. Sentir seu sabor, seu gosto, seu calor. Foi só quando percebi a expressão de medo em seu rosto que me dei conta que estava olhando para ela fixamente. Cacete, isso porque tinha dito pra não se preocupar que não a atacaria. E ali estava eu imaginando aquilo tudo. Se ela soubesse sairia voando. Limpando a garganta tornei a falar

- Não se preocupe com isso. Pode me chamar de Marcella, eu não me incomodo.

- Melhor não. Eu prefiro assim.

- Você quem decide. Mas de qualquer forma é bom que saiba que meu coração não é tão maravilhoso assim como pensa.

- Ou talvez a senhora não consiga enxergar o quanto ele é perfeito. Posso tentar conversar com ela?

- Se quiser pode, claro. Só não se espante se ela lhe atirar pedras antes mesmo de começar a falar.

- Pode deixar. Eu estou acostumada a lidar com crianças, e no fundo é o que Roxanne ainda é.

Involuntariamente um sorriso veio aos meus lábios. Ela estava certa quanto a isso.

- Com licença dona Marcella.

- Pode ir. E Bianca, obrigada.

Ela saiu, mas sua essência permaneceu. Não sabia como ela conseguira aquilo, mas eu estava mais tranquila. Sua presença me trazia uma sensação de paz. Aquele rosto... o que havia naquele rosto que mexia tanto comigo? Eu tinha que me afastar dela, não poderia nunca macular uma alma tão pura. Eu não era digna. Não depois de tudo o que eu causara. Balançando a cabeça afastei as lembranças que vinham me assombrar.

Fim do capítulo