Bianca

Entrei no quarto fechei a porta e encostei-me a ela, o coração aos saltos! A revelação que acabara de ouvir havia mexido comigo de uma forma absurda. Meu Deus Marcella era lésbica! Eu já tinha conhecido uma pessoa homossexual na época do meu curso, mas como sempre me mantive distante de todos, nunca convivi com alguém assim. A menina em questão não era nem um pouco feminina, bem diferente da minha atual patroa. Não sabia ainda como lidaria com aquela situação, não me considerava uma pessoa preconceituosa, apesar de saber que aquilo era pecado, afinal era isso que tinha aprendido no orfanato, mas com certeza não ficaria  à vontade em sua presença, ainda mais por conta das coisas que ela me fazia sentir.

Saber que ela era gay tinha me afetado, e muito, só não conseguia entender o porquê, eu a conhecia pouco, era verdade, mas tinha a certeza absoluta que ela jamais me desrespeitaria. Era uma mulher tão bonita, elegante, altiva. E tinha aqueles olhos profundos, sombrios sim, mas incríveis. Insondáveis como se estivessem escondendo segredos irreveláveis. Sem dúvida a pessoa mais linda que já vira. Será que tinha namorada? E se tivesse ela frequentaria a casa?

Fechei os olhos e tentei me acalmar. “Para de ficar pensando nela Bianca” me ordenei mentalmente. Respirei profundamente e caminhei até onde havia deixado a minha mala, a coloquei na cama, abri e peguei uma camiseta branca, fora para isso que subira até ali. Me troquei, parei em frente ao espelho e prendi meus cabelos em um coque e sai da cômodo ainda assustada com minha reação ao escutar as palavras ditas durante a discussão no quarto ao lado.

Estava na metade do corredor quando uma porta abriu-se em minhas costas, virei e me deparei com Amanda. Ao me ver seus olhos lançaram chispas raivosas em minha direção e seu rosto se contorceu em uma máscara de furia. Ela era uma mulher bonita não havia dúvidas, mas aquela expressão azeda e arrogante presente em seu rosto a tornavam feia.

- O que está fazendo aqui em cima a essa hora? Mal começou e já está fugindo de suas obrigações? – Disse ríspida

- Não senhorita. Jamais faria isso. Apenas vim colocar uma camiseta, pois Carla me informou que devo receber um uniforme só amanhã e não estava vestida adequadamente para trabalhar. Fique tranquila pois ela esta cuidando de Maria Eduarda. – Respondi enrubescendo

- Foi providencial te encontrar aqui. Tenho umas coisas pra te dizer. É bom que saiba que por mim você não teria sido contratada, não acredito que seja o melhor para Duda. Deviam ter contratado uma pessoa mais velha e experiente. Mas infelizmente por conta do coração mole de dona Maria Thereza, Marcella fez o que fez. Tenho certeza de que se não fosse pela indicação da Irmã do orfanato ela não o teria feito. Mas não pense que vou deixar você sossegada. Vou vigiar cada passo seu. Se eu pegar qualquer coisa errada de sua parte, a mínima que seja, faço com que elas te despeçam rapidinho.

Eu sou uma pessoa calma, mas aquilo já tinha ido longe demais, não dava para ouvir tudo e ficar calada.

- Eu não entendo porque esta me falando essas coisas. Você não me conhece, não sabe nada de mim, da minha vida. Nem sabe se sou apta ou não para o serviço. Por que essa perseguição? Porque não gosta de mim? O que eu te fiz?

- Não fui com sua cara. Detesto mulher com jeito de sonsa. Geralmente de santas elas não têm nada. Eu imagino o que você quer aqui. Não sou idiota. Vem dando uma de boazinha. Pode enganar a todos, mas não a mim.

- Não sei sobre o que você está falando. Eu não quero nada a não ser trabalhar em paz.

- Sei. Você não me ilude com essa carinha de bobinha. Fica ai se fazendo de pobre coitada. Mas vi muito bem como olhou pra ela. Se eu pegar você jogando charme para a Marcella você vai se arrepender de ter nascido! Ela não é pro seu bico! Espero que tenha entendido, pois não vou falar novamente. Se afaste dela!

Dizendo isso passou por mim sem nem olhar para trás, me deixando atordoada e de boca aberta. Ela só podia estar maluca. De onde ela tinha tirado a ideia de que eu ... Meu Deus, mas eu tinha olhado, não tinha? Havia ficado encantada no exato momento em que meus olhos encontraram seu rosto. Não imaginei que tivesse deixado isso transparecer. Será que Marcella também tinha notado? Que loucura! O que estava acontecendo comigo? Porque estava sentindo essas coisas? Por quê?

Ainda estava parada, tentando afastar aqueles pensamentos perturbadores da minha cabeça quando ouvi uma voz fraca me chamar.

- Querida?

Olhei na direção do som e vi uma senhora de idade avançada, um pouco encurvada, cabelos brancos bem arrumados, vestida elegantemente e bem maquiada. Logo imaginei quem poderia ser. Caminhava com a ajuda de uma bengala e com certa dificuldade. Fui até ela.

- A senhora precisa de ajuda?

- Sim, por favor. Pode me oferecer seu braço?

- Claro. – Respondi sorrindo.

- Obrigada. Você é muito gentil. – Devolveu o sorriso.

- Que é isso. É um prazer poder ajudá-la.

Fomos caminhando lentamente pelo corredor.

- Minha neta queria reformar a casa para colocar um elevador. Disse que dessa forma me cansaria menos. Mas não deixei. É bom subir e descer as escadas de vez em quando. Faz-me sentir que ainda tenho um pouco de vida para gastar. – Falou

- A senhora há de ter ainda muita vida.

- Não meu bem. Meu tempo nesse mundo esta acabando querida. Mas isso não me assusta. Pra falar a verdade até me conforta. Quero reencontrar aqueles que amei muito e já se foram. Mas não conte isso pra minha neta, pois ela odeia quando falo essas coisas. Acha que vou viver para sempre. Bobagem. Essa vida é apenas passageira, todos nós um dia teremos que fazer a viagem final. Você deve ser Bianca, certo?

- Sou sim senhora.

- Imaginei que seria. Minha Cella a descreveu perfeitamente pelo que posso constatar.

- Sua neta me descreveu?

- Sim, ela disse que você era uma pessoa calma, tranquila, serena. E posso dizer mais ainda, você transmite uma maravilhosa sensação de paz. Além de tudo é linda, isso ela não tinha me contado.

- Obrigada pelas palavras gentis senhora. Mas de beleza eu nada tenho.

- Ah minha filha, tem sim. Tem um rosto delicado como de um camafeu. Olhos doces e um sorriso meigo. Essa beleza ela vem de dentro e te ilumina. Posso sentir a sua luz. É muito bom ter uma pessoa como você dentro dessa casa. Ultimamente o clima anda muito pesado por aqui.

Fiquei encabulada. Não estava acostumada a ouvir elogios. E senti que os que me dirigia eram sinceros. Chegamos ao último degrau e ela me pediu para levá-la até a biblioteca. Quando chegamos, abriu a porta e ao vê-la parada na soleira Marcella levantou-se e veio em nossa direção. Imediatamente meu coração disparou. Ela caminhava com uma graça, uma leveza. Ao chegar perto senti seu perfume, era tão bom. Jesus! Meu corpo estava tendo reações que eu nunca sentira antes. Minha boca ficou seca e senti o bico dos meus seios intumescerem. O que era aquilo tudo?

- Vó. Esta bem? – Beijou sua testa

- Estou meu amor. Vim te ver. Queria sair daquele quarto. Daqui a pouco vou criar mofo. – Ela deu o braço à neta. – E essa moça simpática e agradável me acompanhou.

 – Obrigada Bianca. – Marcella disse olhando em minha direção.

E pela primeira vez vi a sombra de um sorriso em seu rosto. O que a deixou ainda mais linda. Estava olhando embevecida para ela e de repente cai em mim. Como saindo de um transe respondi.

- De nada senhora. Estou à disposição. Com licença.

- Toda minha filha. – A avó dela falou

Sai dali o mais rápido que minhas pernas permitiram. Minha cabeça precisava processar todas aquelas informações. Estaria enlouquecendo? Muita coisa havia acontecido para um dia só. Fui para o jardim me encontrar com Carla e brincar com Dudinha.

A semana passou bem depressa, na sexta feira Carla se despediu com lágrimas nos olhos, eu fiquei triste, pois me afeiçoei verdadeiramente a ela. Seu espírito amistoso e agradável e sua risada alta e clara fariam falta com certeza. Porém já havia me adaptado muito bem aos horários e costumes da casa. E Duda já tinha se acostumado comigo, então não houve problemas quanto a isso. Durante aqueles dias evitei o máximo possível ter contato com Marcella, e também com Amanda, porque cada vez que esta última me via lançava olhares de ódio em minha direção. Todo esse esforço estava me causando um estresse emocional. Não via a hora de chegar domingo para poder me encontrar com Milli. Ela sempre conseguia me acalmar. Sua voz infantil, seu carinho, sujas risadas e brincadeiras eram tudo o que precisava para repor energias para a nova semana. Mas ainda era sábado, então só me restava continuar com meus afazeres e aguardar.

Estava na cozinha almoçando quando o chofer entrou com o semblante preocupado.

- Oi meninas. - Falou para mim ,Maria e Luciana. – Preparem-se que hoje a casa vai pegar fogo.

- Não me diga que Roxanne aprontou de novo na escola? – Disse Maria a cozinheira.

- Como se isso fosse novidade. Aquela menina tem o demônio no corpo. – Retrucou Luciana a arrumadeira fazendo o sinal da cruz.

- Foi pior que isso. Não foi na escola não. Dessa vez a dona Marcella vai arrancar o couro dela. Não quero nem ver.

- Fala logo homem de Deus. Fica ai fazendo mistério. Já está me deixando nervosa.  – Luciana reclamou

- Ela fugiu da escola, foi até um salão de cabeleireiro, raspou um lado da cabeça e tingiu o cabelo de roxo. Não contente com isso ainda colocou um piercing nos lábios que estão enormes de inchados. – Respondeu o motorista

- Senhor! A Marcella vai ficar furiosa! O que essa garota tem na cabeça? Ela faz tudo o que a tia odeia só pra provocar. Como se fosse culpa dela a Marina ter morrido. Coitada. Faz de tudo por essas meninas. Não merece isso. – Maria falou balançando a cabeça

Permaneci calada. Não conhecia o suficiente a família para me expressar sobre o assunto. Porém concordava com a cozinheira. E tinha a certeza absoluta que realmente a coisa ia ficar feia. Terminei o almoço e fui para o meu quarto. Maria Eduarda ainda estava dormindo, como fazia todos os dias após sua refeição, então podia descansar e ler um pouco até a hora que ela acordasse.

Mas ao invés de me entreter com a leitura fiquei pensando em Roxanne. Por que ela fazia aquelas coisas? Eu entendia o seu luto e sua dor, e até sua ira por conta da morte da mãe, mas não compreendia sua revolta com a família. Ela agredia a tia de todas as maneiras possíveis. Naqueles poucos dias já presenciara diversas cenas cáusticas entre as duas. Havia muita raiva em seu olhar, como se a culpasse realmente por algo. Mas o que? Gostaria de conversar com ela. Quem sabe com uma pessoa “estranha” ela abrisse seu coração.

Ainda estava deitada pensando nisso quando ouvi os primeiros gritos!

Fim do capítulo