Marcella

Deixei Bianca na cozinha tomando o café da manhã e dirigi-me a biblioteca, tinha muitas coisas para resolver naquele dia. Primeiro liguei para o contador e pedi que mandasse alguém retirar os documentos para o registro da nova funcionária. Depois telefonei para o corretor de ações para ter uma ideia de como estava o mercado. Enquanto falava ao telefone remexia nos documentos sobre a escrivaninha. Os que a babá havia me entregue estavam na minha frente. Após acertar algumas compras com ele desliguei.

A carteira de trabalho estava por cima de tudo e eu a abri, olhei para a fotografia três por quatro estampada ali. Não havia nada marcante naquele rosto, mas até mesmo na foto a moça exalava um ar de tranquilidade que contagiava. Sem querer me lembrei da conversa que acabara de escutar. Era espantoso que nos dias atuais ainda existisse uma mulher de vinte e cinco anos que nunca havia namorado, pior ainda nunca havia dado um beijo sequer. Uma página em branco da sua existência no capitulo do amor. Será que era verdade mesmo? Uma vida sem carinho, sem romance, sem tesão, sem sex*? Lábios intocados? Como podia ser? Mas porque ela mentiria sobre isso para uma pessoa que iria embora em quatro dias?

Com essa idade já tinha sofrido uma dor tão intensa que me fez trancar o coração para sempre. Amei tanto e com tamanha paixão que quase perdi a sanidade. Depois disso nunca mais tive a coragem de deixar meu sentimento livre outra vez. Não que tivesse me tornado uma pessoa frigida, mas só tinha encontros sexuais e nada mais. E mesmo assim muito raros. Até tentara encontrar um alguém pra seguir o caminho ao meu lado, mas fora um desastre, não gostava nem de pensar naquilo.

Minha vida parecia um acumulo de erros, tropeços, acidentes e tragédias sem fim. Como se uma sombra escura tivesse encoberto a estrada que tinha a percorrer. Às vezes olhava para o espelho e me perguntava de que adiantava tanta beleza se meus olhos não desanuviavam. Nesses momentos tinha a vontade de me desfigurar para acabar com aquela máscara. Eu não era a bela, era a fera. Mas não podia fazer isso, tinha muitas responsabilidades. Minha avó que estava doente e agora as duas filhas de Marina. Por que ela havia morrido? Chegava a odiá-la por isso, mas depois o amor e a dor me tomavam o coração e chorava de saudades suas. Escondido é claro. O jogo é mesmo assim, até que não reste mais participantes ele tem que prosseguir.

Contemplei novamente a imagem e me pus a pensar em como seria ter uma mulher como aquela em minha companhia. Precisar ensinar os mínimos detalhes, como por exemplo, a beijar. Meus olhos se fixaram naqueles lábios sem um pingo de batom, eles eram cheios e pareciam ser macios, imaginei a ponta de minha língua passeando por eles antes de se infiltrar em sua boca. Cheguei a fechar os olhos para poder absorver melhor a sensação das nossas línguas se enroscando.

Nesse momento ouvi uma batida na porta e o som dela se abrindo, rapidamente coloquei o documento em cima da mesa. Era Amanda.

- Marcella, estava procurando por você. – Disse assim que entrou

- Já me encontrou. O que houve? – Respondi sem nem mesmo levantar a cabeça

- Nada eu só queria saber se estava precisando de alguma coisa. Se tem algo que queira que eu faça.

- Não. Esta tudo sob controle. Obrigada. Qualquer coisa eu mando te chamar na sua sala.

- Porque você esta me tratando assim? Fiz algo de errado? – Fez muxoxo

- Amanda você não fez nada de errado. Não estou entendendo o que você quer dizer com o “porque está me tratando assim”. Que eu saiba não estou agindo de forma diferente com você. - Retruquei

- Bom pra começar esta me chamando de Amanda e não de Mandy como é costume. E depois você está seca e distante.

- Impressão sua. Estou com muita coisa pra fazer, um pouco tensa e com dor de cabeça, só isso. Nada de mais.

Ela caminhou até minha cadeira e colocando-se atrás dela começou a massagear meus ombros. Imediatamente me levantei.

- Pare com isso, por favor.

- Está vendo? Não posso nem te fazer uma simples massagem.

- Eu sei muito bem onde você pretende chegar com essa massagem

- Eu só queria te fazer relaxar. Nada mais.

- Nós já conversamos sobre isso. O melhor é ficarmos distantes.

- Não faz isso comigo. Você sabe que sou apaixonada por você.

- O que você quer de mim, eu não tenho pra te oferecer. Aquele beijo foi um erro. Eu estava embriagada e emotiva, não sabia o que estava fazendo.

- Me dá uma chance de provar que posso te fazer feliz.

- Ninguém pode fazer isso! E depois Amanda eu não consigo entender essa sua paixonite por mim se até dois meses atrás estava noiva do Jonas.

- Mas eu não o amava. Não sabia o que era amar até te conhecer.

- Pois eu acho que você está enganada. E não vamos mais falar sobre isso, esse assunto me aborrece.

- Desculpe.

- Por favor, me deixe sozinha. Tenho negócios para resolver. Veja se minha vó não esta precisando dos seus serviços.

A secretária baixou os olhos e saiu da sala.

Meu Deus, eu só fazia besteiras. Agora tinha mais esse problema nas mãos. Se Amanda não parasse com aquelas investidas seria obrigada a demiti-la, e o que diria para minha avó se fosse necessário fazê-lo? “ Vó eu enchi a cara e beijei sua secretária”, seria lindo! O pior é ela estava trabalhando ali porque era filha de uma amiga da minha irmã. Como tinha deixado aquilo acontecer? Bom, podia ter sido pior, eu poderia ter ido pra cama com ela, ainda bem que me concentrara o suficiente para não o fazer. Sentei-me novamente passando a mão pela testa. Já tinha pouca coisa pra me preocupar e ainda fazia uma merd* daquelas. Meus olhos recaíram novamente na carteira de trabalho cheguei a levar a mão até ela e depois recuei. Que loucura estava fazendo? Tentando arranjar outra encrenca?

Peguei o telefone e comecei a fazer as demais ligações do dia. Estava entretida, olhando os e-mails dos consultores financeiros quando ouvi nova batida na porta. Dei ordem para que entrasse. Era o chofer com um novo bilhete da escola de Roxanne.

- Senhora a Madre estava à minha espera e pediu que lhe entregasse isso.

- De novo não Carlos! É brincadeira! Não aguento mais essa menina. Pode ir. Obrigada. – Disse pegando o envelope

Assim que ele saiu da sala eu abri e li o recado.

“Prezada Marcella

Boa tarde

Desculpe mandar tantos recados, mas está ficando cada dia mais difícil lidar com Roxanne.

Sua presença incomoda professores e alunos. Ela responde e agride a todos.

Está insuportável conviver com sua sobrinha.

Peço por gentileza que me ligue para marcar uma reunião pois precisamos conversar seriamente.

Providências terão que ser tomadas para que ela possa permanecer na escola.

Fico no aguardo de sua ligação

Cordialmente

Madre Elizabete.”

O sangue me subiu à cabeça! O que será que ela tinha aprontado dessa vez que nem fora mencionado no aviso. Eu acabaria ficando careca de tanto passar as mãos pelos cabelos por causa daquela pirralha. Batendo os pés fui até seu quarto. Ela estava deitada de bruços, ainda com o uniforme, batendo papo pelo WhatsApp. Arranquei o aparelho de suas mãos.

- Ei me devolve. Isso não é seu. – Disse me olhando com raiva

-Não vou devolver nada até você me dizer o que aprontou dessa vez.

- Não fiz nada. – Disse me encarado

- Ah claro. A Madre adora mandar bilhetes para mim à toa.

- Vai ver está apaixonada por você. - Respondeu ironicamente

- Chega de gracinhas. Fale logo. – Praticamente rosnei

- Elas estão enchendo o saco por conta de uns beijos só isso. Que saco!

-Como assim uns beijos?- Balancei a cabeça pressentindo que dali não viria nada de bom

- Elas entraram no banheiro e me pegaram dando um amasso. É isso. Satisfeita?

- Eu não acredito que você levou um menino para dentro do banheiro feminino. Você enlouqueceu de vez?

- E quem te falou que era um menino? – Deu um sorriso de escarnio

- Meu Deus do céu! Eu não sei nem o que te falar! Você me tira completamente do sério. Desde quando você anda beijando meninas por aí? Será que não percebe o que está fazendo? Perdeu o juízo, se é que teve um dia?

- Ué por quê esse auê todo? A única que pode ser sapatão nessa casa é você por acaso?

- Roxanne minha vontade é de te esgoelar! Estou cansada dos absurdos que anda aprontado.

- Quer dizer que eu beijar outra garota é absurdo, mas você trans*r com outra mulher é normal?

- Você não é como eu! Não gosta de outras meninas! Está fazendo isso pra me provocar, me irritar! Acha que isso é brincadeira? Que é modinha? Pensa que é fácil enfrentar uma sociedade hipócrita? Não percebe o que está querendo fazer com sua vida? Acha legar fingir ser uma coisa que não é?

- Você não sabe nada de mim! Não pode me dizer o que eu sou ou não!

- Nesse caso eu posso sim, e sabe porquê? Por que se você fosse mesmo homossexual jamais teria usado um termo tão pejorativo para me definir, ou se definir. Teria dito a palavra correta: lésbica. O no máximo gay. Sapatão é ofensivo. Mas quer saber garotinha mimada eu não vou mais ficar discutindo com você. Não vale a pena!

Virei as costas e abri a porta para sair quando ela falou e eu me voltei:

- É bom mesmo porque da minha vida cuido eu! Não preciso de você!

- Que cuide então! Não estou nem aí! Cansei! Quer beijar outras meninas, pois que beije! Quer trans*r com elas, que transe! Você não é mais um bebezinho para que eu corra atrás. Quer ser sapatão como você mesma disse oras, vá em frente! Só não pense que namorar outra mulher é tão fácil assim, e falo por experiência própria. Apesar que isso não te interessa não é mesmo? Mas se é o que quer seja feliz! Arranje dez, vinte, trinta namoradas, o problema é seu! – Estava até azul de tanta ira.

Virei e sai a toda, me deparando com imensos olhos castanhos arregalados e assustados como se estivessem assistindo a um filme de terror. A verdade é que eu realmente acordara o diabo que vivia em mim e isso era amedrontador mesmo. Ela estava petrificada com a boca aberta e a mão no peito.

- O que foi Bianca? Algum problema com Maria Eduarda? – Perguntei sem gentileza

- Não senhora. Só estava indo até o meu quarto. Desculpe. Com licença. – Disse abaixando a cabeça

E passou voando por mim como se estivesse fugindo do próprio demônio em pessoa. Com certeza escutara a parte final da conversa e devia ter se alarmado, já que era virgem. Se nunca ficara com um homem imagine o que pensaria de uma pessoa como eu. Provavelmente que era uma aberração da natureza. Mas eu não estava nem aí. Era assumida para toda a minha família e amigos e não seria uma simples empregada que me incomodaria com o seu preconceito enraizado pela cultura falida da sociedade.

Desci as escadas com mais raiva ainda do que quando subi. Agora tinha que me preparar psicologicamente para falar com a Madre Superiora e contornar a situação para tentar manter aquela cabeça oca na escola. Com certeza eu tinha atirado pedra na cruz, só podia ser. Enquanto descia os degraus, o rosto apavorado da babá voltou a minha cabeça e mesmo que eu houvesse dito que não me importava, a verdade é que estava incomodada com sua expressão. Nem bem chegara e já descobrira que além de um monstro malévolo eu também era uma mulher diferente. Não queria nem pensar se ela soubesse o que estava imaginando ao olhar sua foto pela manhã. Sairia correndo da mansão sem nem mesmo olhar para trás. E foi com essas reflexões que cheguei até a biblioteca e fui fazer a temida ligação.

Fim do capítulo