Bianca

Acordei bem cedo e olhei pela última vez o quartinho do orfanato onde havia passado os cinco meses anteriores cuidando da Irmã Albertina. As lágrimas vieram aos meus olhos. Quanta coisa tinha vivido ali. Momentos de tristeza e de alegria. Dor e felicidade. Tantas recordações. Eu sentia que por mais que conseguisse sair daquele lugar, ele nunca sairia de mim como se fizesse parte do meu corpo.

Lembro-me perfeitamente do dia em que fui abandonada pelo meu pai na porta da instituição. Mal acabara de perder minha mãe, e ele simplesmente abriu mão de mim. Sem nenhuma família a quem pudesse me entregar, comprou uma passagem para voltar a sua terra natal, fez uma trouxa com minhas poucas roupas e me deixou sozinha ali chorando, apenas virou as costas e se foi. Sem saber o que fazer sentei na calçada encolhida de medo, tinha apenas seis anos e não entendia o que estava acontecendo, até que um anjo maravilhoso apareceu e me aconchegou em seus braços rechonchudos. Ela me tomou como sua responsabilidade e cuidou de mim, me dando amor, carinho e atenção. Além de tudo a sua acolhida me deu a oportunidade de ter um destino diferente do de muitas meninas que abandonadas acabam vivendo nas ruas e se prostituindo pra poder sobreviver.

Devo tudo o que sou a ela, que me ensinou a ter honra e coragem pra enfrentar o mundo. Usou seus contatos para que eu pudesse estudar e depois fazer o meu curso de técnica em enfermagem. Cresci entre as freiras, e sempre fui uma criança muito reservada, desse modo nunca fiz amizades. Quando me tornei adulta continuei com o meu jeito de ser. Sempre gostei de ficar quieta no meu cantinho. Se não estava estudando ou ajudando com os afazeres estava lendo. Os livros eram os meus companheiros, aliás, ainda o são. Com eles conheci lugares que nunca visitei, vivi emoções que nunca senti, alcei voos com minha imaginação e aprendi a sonhar. Nunca tive muito, mas sempre agradeci por tudo o que conquistei. Ela fez o que podia por mim. Foi a mãe que Deus me deu.

Em um determinado momento cogitei entrar para o convento e me tornar uma noviça, mas ela me disse que isso não era uma opção, como se fosse um emprego, era um chamado do coração. Era Deus que escolhia, e Ele não havia me escolhido para aquela missão. Por isso apenas as ajudava em todas as tarefas, inclusive cuidando das crianças que eram entregues por mães e pais que abriam mão dos seus filhos, às vezes por não terem como cuidar deles, às vezes por que se viam obrigados a fazê-lo e às vezes por não terem a capacidade de saber amar.

Quando fui trabalhar com os Andrieux, era uma garota assustada e insegura, mas me receberam com tanto carinho que em pouco tempo me senti parte da família. Fiquei muito triste quando foram embora e não pude ir junto, mas não podia deixar minha querida “mãe postiça” sozinha em um momento tão sombrio e doloroso. Ela queria que eu fosse de qualquer jeito, mas eu fui firme e disse não. Foram dias de muita agonia e sofrimento. Sabíamos que nada mais poderia ser feito para que sua vida fosse poupada, porém em nenhum momento saiu de seus lábios uma palavra sequer de mágoa, reclamação, frustração ou qualquer coisa assim contra o Pai Eterno. Ao contrario, ela só fazia era agradecer por cada instante passado nesse mundo. Quando ela se foi tinha um sorriso nos lábios. Viver com uma pessoa tão especial assim foi um presente, uma dádiva.

Deixei esses pensamentos de lado pois precisava ir embora. Agora só me restava seguir meu caminho e torcer para que tudo desse certo nesse novo emprego. Estava um pouco apreensiva por tudo o que tinha visto no dia anterior, mas tinha fé de que conseguiria superar todos os problemas que viessem a surgir. Eu era uma guerreira e não me deixaria abater facilmente.

Desci para o pátio central e fui à procura de Emilia, uma garotinha que estava conosco desde os cinco meses de idade, quando foi abandonada por conta de uma doença que a deixou cega. Hoje ela contava com seis anos, e durante todo esse tempo eu havia cuidado dela, mesmo a distância. Me salário era praticamente todo usado para que ela tivesse a oportunidade de ter uma vida um pouco melhor. Comprava livros em braile para que pudesse estudar, os remédios que necessitava e pagava especialistas para tentar ajuda-la. Havia me afeiçoado a ela como a uma filha. Eu tinha esperança de um dia poder tirá-la de lá e adotá-la. Era o meu sonho e lutaria para realiza-lo. Ela estava sentada no banco de pedra onde costumava ficar a minha espera.

- Oi meu amor. Tudo bem? – Disse sentando-me a seu lado e segurando suas mãos

- Oi Bi. Tá tudo bem. Você já está indo embora? – Perguntou com o semblante triste.

Olhei para aquele rosto lindo cheio de sardas, de nariz empinado e boca pequena. E passei a mão por seus cabelos encaracolados.

- Sim, daqui a pouco. Por isso vim me despedir.

- Vou sentir sua falta. – Começou a chorar.

- Não faz assim Milli. Você sabe que jamais vou te abandonar. Eu preciso trabalhar. Se eu pudesse não sairia do seu lado. Mas é necessário – Disse apertando-a em meus braços.

- Eu sei. Mas mesmo assim dói muito ficar longe de você. – Ela fungou em meus ombros

- Eu virei vê-la, uma vez por semana em minhas folgas. Como fazia antes quando estava com meus antigos patrões. Aí vamos passear, tomar sorvete e tudo o que você gosta de fazer. E depois vou ligar todas as noites em seu celular, foi pra isso que o comprei pra você.

- Tá bom. Me desculpa. Eu não queria deixar você chateada.

- Meu amor, não precisa se desculpar. Um dia, não nos separaremos nunca mais. Eu vou te levar para morar comigo.

- Promete?

- Prometo. É pra que eu possa fazer isso que tenho que trabalhar. Você entende né?

- Entendo Bi.

- A Irmã Cecilia vai cuidar de você direitinho. Fica tranquila.Eu te amo muito, viu? Não esquece disso. – Minhas lágrimas também começaram a correr

- Eu também te amo. Eu vou ficar te esperando.

- Agora eu tenho que ir meu anjo.

- Tudo bem. Boa sorte.

Dei um último beijo em sua testa e segui meu caminho com o coração partido. Quando cheguei a casa dos Barcellos Bittencourt fui recebida por uma criada atenciosa que me levou para a mesma sala do dia anterior, onde aguardei que alguém viesse falar comigo, estava muito nervosa, imaginando que seria Amanda. Será que ainda estaria muito brava pelo ocorrido? Eu tinha certeza absoluta que jamais seria escolhida por ela. Mas não podia ficar me preocupando com isso. No chão ao meu lado estava uma mala velha e pequena, pois quase não tinha pertences. De repente a porta se abriu e ela entrou, imediatamente senti aquele aperto no peito e o coração disparou. Uma sensação de angustia e prazer que não conseguia explicar. Por que aquela mulher mexia comigo daquele jeito?

- Bom dia Bianca! – Disse estendendo-me a mão.

- Bom dia senhora. – Respondi me levantando para cumprimentá-la.

- Meu nome é Marcella, não me lembro se te disse isso ontem. Mas vamos ao que interessa. Sente-se, por favor. Conversei com Carla que é a babá que você substituirá. Ela te passará todas as orientações, e te ajudará com Maria Eduarda até sexta feira. Sei que é pouco tempo, mas infelizmente sua mãe está muito doente e ela não vê a hora de poder ir embora pra cuidar dela.

- Sim senhora. Tenho certeza que esses dias serão suficientes para que eu conheça a rotina da criança e me adapte aos seus horários. Quantos anos tem sua filha?

- Minha filha?

- Sim senhora. A bebê de quem vou tomar conta não é sua filha?

- Não, é minha sobrinha. Irmã de Roxanne, que você conheceu ontem, se é que podemos chamar aquele fato grotesco de conhecer. – Falou de cara fechada.

- Foi apenas um acidente senhora. Nem me lembro mais.

-Tudo bem, ainda bem que pensa assim. Respondendo a sua pergunta Duda tem dois anos e quatro meses, há muitas outras coisas que você não sabe, mas vai descobrir com o passar do tempo e com a ajuda de Carla e dos demais criados. Trouxe seus documentos?

- Trouxe dona Marcella.

- Ótimo. Pode deixá-los comigo. Mandarei para o contador da família. Ainda hoje seu registro será feito.

Retirei os papeis da bolsa e os entreguei a ela. Enquanto ele verificava se estava tudo certo eu a observava. Suas mãos eram delicadas e bem cuidadas, as unhas curtas, com um esmalte vinho. Notei que usava anéis, mas nenhuma aliança. Será que era solteira? Uma mulher tão linda! A pele perfeita, a boca bem desenhada parecia tão macia. Meu Deus o que era aquilo pensei sobressaltada. Eu estava reparando na boca de outra mulher! Nesse momento ela levantou os olhos e eu me peguei paralisada por aquele olhar. Aqueles olhos misteriosos me hipnotizavam. Ficamos assim por um momento que pareceu uma eternidade. Então abaixei a cabeça totalmente envergonhada. Minha respiração estava acelerada!

- Bem está tudo aqui. Vou mandar chamar Carla para que a conheça e depois te leve até seus aposentos.

-Sim senhora.

- Espero que goste de trabalhar conosco. Seja bem-vinda. – Disse e retirou-se da sala.

Assim que ela saiu o ar mudou, fiquei mais calma e consegui voltar a respirar normalmente. Me peguei pensando no que estava acontecendo comigo. Nunca antes havia sentido aquele tipo de coisa por ninguém, e agora ficava abalada daquele jeito por causa uma mulher? Como? Isso era errado. Eu tinha que mudar os rumos desses pensamentos estranhos. Colocar minha cabeça no lugar. Nisso a babá entrou na sala.

- Oi, sou Carla. – Disse sorrindo amistosamente

- Oi, sou Bianca – Retribui

- Venha vou leva-la até seu quarto, que por enquanto também é meu. Até sexta dormiremos na mesma cama, que é de casal. Você se incomoda?

- De jeito nenhum. Mas não quero te atrapalhar.

- Que é isso menina! Eu não ligo pra essas coisas não. Quando era mais nova dividia a cama com mais duas irmãs, e nem era tão grande. E agora pra onde vou nem tem é só rede mesmo. – Respondeu rindo.

Ela foi falando sobre sua família enquanto subíamos as escadas. Era uma pessoa risonha, simpática, falante e muito agradável. Gostei dela imediatamente apesar de ser o oposto de mim. Paramos em frente a um quarto e quando ela abriu a porta e entrei meu queixo quase caiu. Quanto requinte! Nunca tinha visto nada assim. A janela enorme com cortinas brancas tinha vista para o jardim, a cama de casal era tão grande que duas pessoas poderiam dormir nela sem se tocarem, havia uma cômoda grande com espelho, e um guarda roupas no canto. A televisão ficava na parede em frente a cama e haviam duas portas em lados opostos do cômodo.

- Essa porta é do banheiro. – Disse levando-me até lá.

O cômodo era tão luxuoso quanto o anterior, todo branco e tinha até uma banheira.

- E essa, -  levou-me até a outra – é a do quarto da Duda.

Entramos e fiquei encantada. As paredes cor de rosa e lilás com estampas de castelos e personagens infantis, a cama de dossel trabalhada como a de uma princesa, vários bichinhos de pelúcia a enfeitavam. Nas prateleiras livros e bonecas dividiam o espaço. Tinha uma cadeira de balanço embaixo da janela. Uma caixa de brinquedos, uma cômoda e um guarda roupa completavam a decoração

- Que lindo! – Exclamei.

- Sim é mesmo. Mas o melhor de tudo é a própria Maria Eduarda. Só de pensar em deixá-la meu coração dói. Se minha mãe não estivesse tão mal...- Seus olhos marejaram.

- Ela é dócil?

- Ela é um anjo enviado por Deus. Não dá trabalho nenhum, é obediente, carinhosa, boazinha mesmo. Você vai amá-la pois é impossível não o fazer. Tadinha. Pensar que perdeu a mãe tão nova!

- Perdeu a mãe?

- Sim. Dona Marcella não te contou? A mãe dela morreu mãe em um acidente de helicóptero. Muito triste. Você não viu nos telejornais?

- Nossa! Que horror! Eu evito assistir televisão. Principalmente nos últimos meses, pois cuidava de uma pessoa doente.

- Entendi. Ainda bem que ela tem a bisavó e a tia pra cuidar dela. Senão, a coitadinha podia até ir parar em um orfanato.

Imediatamente enrijeci. Não gostava quando falavam daquele jeito de orfanatos.

- Eu cresci em um orfanato, e não me sinto menos por conta disso.

- Não foi isso que eu quis dizer. É que por mais que sejamos amados em qualquer outro lugar, não há nada como o amor da família né?

- Isso é verdade. Você está certa. Mas e o pai dela onde esta?

- Aquele safado? Hum abandonou a mãe dela antes mesmo da coitadinha nascer.  Enrabichou-se pela secretária com metade da idade dele e foi embora. Nunca mais procurou saber das meninas. Sumiu no mundo. De certo nem sabe que é viúvo agora.

- Meu Deus! Então agora ela só tem as pessoas da casa?

- Bom pelo menos que eu saiba sim. Nunca apareceu ninguém aqui da família do pai. Nem quando dona Marina estava viva e nem em seu enterro. Mas dona Marcella é apaixonada por ela, então ela está com a melhor pessoa possível.

- E a irmã?

- Roxanne? Aquela lá vai dar muito trabalho. Ficou revoltada depois da morte da mãe. Não há quem a controle. Já estava naquela fase difícil da adolescência, mesmo antes da tragédia acontecer. Você vai ver o que eu quero dizer quando ver um embate entre ela e a tia.

Lembrei da cena na biblioteca, mas resolvi não mencionar o fato.

- É uma idade difícil mesmo. O pai faz falta nessas horas.

- É menina. Por isso que eu não quero saber de casar nunca na vida. Tenho um namorado que vive me pedindo em casamento. Esta bravo porque vou embora, mas eu não tô nem ai. Gosto da minha liberdade, comigo é assim, sex* e curtição. Vou ficar lavando cueca de marmanjo na vida não. E você tem namorado?

Fiquei vermelha imediatamente. Nossa que facilidade que ela tinha em falar sobre sex*. Aquele tipo de assunto me constrangia muito. Não gostava nem de falar da minha vida particular.

- Não. Eu nunca namorei e nem pretendo.

- Tá brincando né? – Admirou-se

- Eu nunca tive tempo nem interesse para essas coisas.

- Como é que é? Não acredito. Mas fala aí, pelo menos você dá uns pegas de vez em quando né?

- O que isso significa?

- Cê tá falando sério mesmo?

Meneie a cabeça em sinal de positivo

- Pega, amasso, beijos, trans* essas coisas que todo mundo faz.

- Eu nunca fiz nada disso. Na verdade, eu nunca beijei ninguém.

- Menina! Não creio. Quantos anos você tem?

- Vinte e cinco.

- Jesus, acho que encontrei a última mulher virgem do mundo! Como é que você consegue viver sem goz*r minha filha. É a melhor coisa do mundo! Não sabe o que está perdendo.

- Pode ser pra você, mas para mim que nunca fiz, não faz falta. Depois nunca conheci ninguém que me despertasse esse tipo de vontade.

- Ah mas vai conhecer. E nesse dia vai querer fazer tudo o que o corpo mandar e muito mais. Escreve o que eu tô falando. – Disse rindo maliciosa

Aquilo me deixou tão embaraçada que me virei em direção à porta para disfarçar o meu incomodo e dei de cara com um par de olhos cinzas tempestuosos que me observavam de um modo curioso como se estivessem me analisando.

Ela estava parada sob o batente com a linda menininha nos braços. A quanto tempo será que estava escutando a conversa? Tomara que não muito. Senti o sangue subir por minhas faces imediatamente. Vendo a direção do meu olhar Carla virou-se e a garota estendeu os braços para ela, que a tomou no colo.

- Oi meu docinho. Essa é a tia Bianca. Ela vai cuidar de você quando eu for ver minha mamãe.

- Oi. – A garotinha falou. – Eu não vejo mais a minha mamãe.

Aquilo me tocou profundamente. Tão pequena e indefesa sem pai nem mãe. Muito triste.

- Eu já dei o lanche da manhã para ela Carla. Agora podem leva-la pra brincar no jardim. Você pode aproveitar para passar as instruções e horários para Bianca. – Disse e virou-se para sair, depois como se lembrasse de algo voltou e me questionou:

- Por acaso tomou café da manhã antes de vir pra cá?

- Não se preocupe senhora, eu tomei um café preto no orfanato.

- Café puro não sustenta ninguém. Tem que se alimentar direito, afinal vai cuidar de uma criança e isso consome energia. Por favor me acompanhe, vou levá-la até a cozinha.

- Não há necessidade. Eu estou bem.

- Eu disse pra você me seguir. – E saiu sem olhar pra trás.

Só me restou obedecê-la. Dentro de mim algo me disse que eu a seguiria pra onde quer que ela quisesse, sem questionar e alegremente. E essa constatação me apavorou.

Fim do capítulo