Marcella

Estava absorta em meus pensamentos quando Amanda resolveu me questionar:

- Marcella, me desculpe a insistência no assunto, mas não consegui entender o que você fez. Sei que não tenho nada a ver com isso, porém há no mínimo mais vinte entrevistas agendadas. E se entre essas pessoas houver alguém muito mais qualificada? Afinal temos que nos preocupar com o bem estar da Duda. Por que essa contratação tão abrupta?

- Por que, para mim a carta com o pedido da Irmã é mais do que o suficiente pra que eu tenha a certeza de que nenhuma outra seria melhor do que a pessoa que contratei. Se ela indicou a moça foi por ter confiança absoluta em sua capacidade para ocupar o cargo que oferecemos e isso já me basta. Ou será que você acha que eu poria em risco a segurança de minha sobrinha? Ou quem sabe pensa que eu não tenho a capacidade de escolher uma babá. – Respondi a encarando sem sorrir.

- É claro que tem total capacidade para fazer o que quiser. Não foi isso que quis dizer. É que só achei que seria mais interessante entrevistar outras...

- Sinceramente Amanda, não me importa o que você acha interessante ou não. Eu tenho plena consciência do meu ato. Para mim esta questão esta encerrada. Cancele as outras entrevistas para que as moças não percam o tempo em vir até aqui. Há algo mais que queira discutir comigo? – Questionei sem levantar a cabeça dos documentos que tinha em mãos.

- Não. Já deixei as cartas, contas e demais documentos separados para que informe o que deve ser feito com cada um deles. – Retrucou sem graça

- Ótimo, então, por favor, deixe-me só para que possa organizar meu dia. Obrigada.

Ela saiu da sala, provavelmente sentida e chateada pelo modo como a tratei, mas honestamente hoje não era um dos meus melhores dias e não estava com um pingo de vontade de ser delicada com ninguém. Recostei-me na cadeira sentindo a tensão em meus ombros e pescoço, comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido em minha vida nos últimos anos. As perdas eram uma constante em meu caminho. Primeiro fora o meu pai, logo que completei dezessete, por conta de um ataque cardíaco fulminante, aquilo abalou toda a estrutura familiar. Aí minha mãe acabou voltando a morar com meus avós, pois sempre fora dona de casa e não conseguiria criar sozinha as duas filhas. Dois anos depois meu avô havia sido ceifado após de uma batalha intensa contra um câncer de próstata. Aos vinte e oito vi minha mãe desabar ao meu lado por conta de um AVC, nunca mais voltou a abrir os olhos, após uma semana de UTI ela se foi. E agora aquele acidente estúpido que matou minha única irmã. Era coisa demais para uma pessoa só. Às vezes tinha a sensação de que iria estourar.

Que mal será que havia cometido em minhas vidas anteriores para estar carregando esse fardo tão pesado sozinha? Parecia que vivia dentro de um trem fantasma desses dos parques de diversões, a cada curva um novo monstro aparecia. Estava literalmente cansada. E no meio disso tudo ainda houvera Viviana. Meu Deus porque estava pensando naquilo de novo? Exasperada balancei a cabeça como se com isso conseguisse afastar as lembranças torturantes. Tinha tantas coisas para resolver e nem sabia por onde começar. E ficar perdendo meu tempo naquelas divagações inúteis não me ajudaria em nada.Precisava desanuviar a mente ou jamais conseguiria por a casa em ordem como se diz por ai. A primeira coisa a fazer seria comunicar minha avó da decisão que tomara em relação à nova babá.

Lembrei-me da cena grotesca que encontrei à pouco assim que entrei na biblioteca. Roxanne esparramada em cima da moça atordoada pelo atropelamento. Aquele tipo de coisa estava se tornando uma constante. Sem querer a figura da mulher voltou a minha memória. Ela aparentava ter uns vinte e poucos anos, trajava roupas bem simples e era notória a baixa qualidade do tecido. Tinha a feição bem comum, sem nada que chamasse a atenção, mas no conjunto era encantadora, olhos castanhos que transmitiam calma e tranquilidade apesar de estarem assustados, mas também pudera depois de ser atirada ao chão qualquer um estaria, o nariz um pouco grande, mas combinava simetricamente com a estrutura facial, boca delicada e o mais interessante era que não havia um pingo sequer de maquiagem em seu rosto. Os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, não usava nenhum tipo de joia ou bijuteria, a bolsa era surrada, assim como os sapatos. Bianca, o nome combinava perfeitamente bem com sua aparência, ela exalava uma paz que só uma pessoa pura e limpa poderia ter, sua alma com certeza era clara como um dia de sol, muito diferente da minha que era negra como noite sem lua por conta de tantos pecados cometidos.

Afinal o que estava acontecendo comigo? Porque estava pensando em uma garota que mal acabará de conhecer? Decidida levantei-me e fui até o quarto de minha avó.

- Oi querida. Como está passando hoje? – Perguntei enquanto caminhava em direção à cama para beijar sua testa.

- Melhor filha. Mas sabemos muito bem que isso não quer dizer muita coisa. Minha hora está próxima, você sabe disso. –Me respondeu com voz fraca.

- Não fala assim. Você sabe que não gosto. – Retruquei aborrecida sentando-me ao seu lado.

-Prefere que eu minta? Marcella eu estou preparada, para encontrar os que partiram.

- Vó, por favor, vamos mudar de assunto. Esse me deixa extremamente chateada. E hoje o dia não está sendo muito agradável. - Disse passando as mãos pelos cabelos.

- Certo. Desculpe meu amor. Não quero aborrecê-la.  Então me diga o que foi aquela gritaria que ouvi agora pouco?

- O que mais poderia ser? Roxanne pra variar. Ela esta conseguindo me deixar completamente maluca. Não sei mais o que faço. Cada dia está pior. Parece um trem desgovernado. Só por Cristo! - Desabafei

- Você precisa ter mais paciência com ela. Não é fácil perder a mãe desse jeito.

- Eu também perdi a minha mãe, meu pai, e agora minha irmã. Você também perdeu pessoas que amava vovó e nem por isso saímos por ai fazendo coisas absurdas.

- Nós somos adultas. Ela é muito jovem. Você precisa entender que nem todos reagem da mesma forma perante os obstáculos.

- Não podemos ficar passando a mão na cabeça dela, como se fosse certo o que esta fazendo. A dor é terrível, eu sei,compreendo o que está sentindo, eu já passei por isso, mas ela precisa crescer, amadurecer e entender como a vida funciona. Não pode continuar agindo dessa forma. Ela não dá valor a nada e a ninguém.

- Eu não tiro a sua razão, Marcella, mas não adianta nada ficar brigando com ela. Só a deixará mais revoltada.

- E o que devo fazer então? Já tentei de tudo. Diálogo, castigo, porém não consigo fazer com que perceba que está destruindo a si mesma.

- Precisamos ter paciência. Só isso. Uma hora ela se ajeitará. Aceitará o fato. O tempo ensina mais do que podemos. Somos humanas e passiveis de erros, mas não a vida, essa é perfeita, mesmo que caminhe a passos lentos e por estradas tortuosas. Tudo tem um motivo de ser. Creia, ela vai mudar, eu sei.

- Ai vó, queria ter a sua certeza. Mas esta difícil. Ela responde, briga,xinga. Ela me provoca, me enfrenta.

- Afinal o que foi que ela aprontou dessa vez pra te deixar tão nervosa?

- Foi pega ingerindo bebida alcoólica no banheiro, junto com outras duas meninas tresloucadas. Todo dia recebo um comunicado com uma reclamação diferente. Daqui a pouco vão expulsá-la, a verdade é que ainda não o fizeram em consideração a você, que é uma das mantenedoras da escola. Ela vai acabar repetindo de ano, as notas estão despencando.

- Depois peça venha até aqui. Tentarei conversar com ela novamente. Vamos ver se me escuta.

- Você quem sabe. Se quiser perder seu tempo fique a vontade. Eu, pra falar a verdade, estou quase desistindo. Mas vamos esquecer Roxanne, não foi por isso que vim até aqui. Sabe a moça que foi recomendada por Irmã Albertina? Eu a contratei. Ela começa a trabalhar amanhã. Já está tudo acertado.

- Imaginei que o faria. Quem bom! Ela sempre foi uma pessoa tão querida. Sinto sua falta! Nós nos conhecíamos desde meninotas. – Disse sorrindo com a lembrança

- Se a Irmã indicou é porque confiava nela. Então eu não poderia negar esse pedido. Eu também nutria muito carinho por ela.

- Você esta certa. E o que achou da moça?

- Parece ser uma pessoa bem calma. Simples, delicada. Eu gostei da sua postura. Além do que demonstrou que sabe lidar com contratempos. Porque se tivesse acontecido comigo o que aconteceu com ela eu nem teria aceito o serviço.

- O que aconteceu?

Contei o ocorrido para minha avó, que também ficou muito chateada, depois me despedi com um beijo pois ela precisava descansar  e fui verificar como estavam os preparativos para o almoço. Ainda faltava muito para o final do dia e já me sentia exausta. Aquelas batalhas com minha sobrinha adolescente acabavam comigo. Se as coisas continuassem desse jeito em breve teria que procurar um analista, meu medo é que me mandassem internar. Quando descia as escadas encontrei-me com Carla que subia com Duda no colo. Ela era uma criança doce e adorável, sempre rindo tinha apenas dois anos e quatro meses, mas no momento era a única pessoa no mundo que conseguia fazer seu coração se encher de amor.

- Tia Cella. Colo. – Disse a menininha estendendo os bracinhos gorduchos em sua direção

- Vem cá meu amorzinho. Como você esta linda hoje! O que você estava fazendo? – Dei-lhe um grande beijo na bochecha rosada.

- Eu tava bincando de bola! Agola vou papa.– Respondeu em sua linguagem infantil.

- Muito bom. Então sobe com Carla para tomar um bainho que a titia vai arrumar sua comida tá bom?

- Bom. – E voltou aos braços da babá sem reclamar.

- Carla, tenho uma noticia para você, conseguimos uma pessoa para seu lugar. Ela começará amanhã. Isso significa que poderá ir viajar para cuidar da sua mãe já na sexta feira se quiser. Acho que quatro dias serão suficientes para que ensine a ela como cuidar da nossa menina.

- Deus seja louvado! Obrigada dona Marcella. Estava muito preocupada. Minha mãe está cada dia mais fraca.

- Não tem de que. Agora por favor, leve Maria Eduarda, que vou até a cozinha ver como as coisas estão por lá.

Continuei a descer as escadas. Ver aquele rostinho lindo tinha me dado um pouco de tranquilidade. Ainda bem que tinha aquele anjinho em minha vida.

Fim do capítulo