Passei dez dias em Madri, depois resolvi ir para Lisboa. Não queria ficar ociosa, e ter muito tempo para pensar. Quando fazia isso muitas coisas acabavam vindo a minha mente já confusa. Como em um filme em câmera lenta lembrava o começo do nosso relacionamento. Aquela primeira vez, quando a lua iluminou sua imagem tão linda na janela e o que senti a partir dali, bastou uma única vez frente a frente com ela para que meu coração se apaixonasse sem nem eu mesma perceber. Tudo parecia ser tão limpo, tão inocente. Como podia ser tudo mentira? Minha mente passional me dizia que era impossível, que tinha sido verdadeiro. Nenhuma garota de quinze anos teria cabeça para elaborar um plano de conquista tão bem engendrado. E por que faria isso?

Durante o ano que passamos juntas meu amor só aumentou, e sentia que o mesmo acontecia por parte dela. Como pude me iludir tanto? Parecia tão real. O jeito como me tratava, os beijos quentes que trocávamos, as noites e depois as tardes que passamos nos amando, nos descobrindo, nos entregando. Tudo tão mágico. Como poderia ela já ter tido outra se parecia tão pura? E o bilhete dela quando pegou meu beijo com Alicia. Tão verdadeiramente emocional. O choro desesperado que minha mãe descreveu. Uma menina de tão jovem seria capaz de ser tão dissimulada? Teria uma mente tão cruel a ponto de escrever aquela carta? As palavras tão chulas. Ela só tinha dezesseis, quase não dava pra acreditar. Quase... Porque em minha área já havia visto com meus próprios olhos que a maldade não escolhe idade. Foram muitos casos envolvendo adolescentes acima de qualquer suspeita, que cometeram crimes absurdos, alguns inclusive chegando ao homicídio. Os rostinhos de anjo, a fala mansa o olhar doce e por trás uma mente doentia.

Não podia me deixar iludir por sentimentos e lembranças, na vida aprendi que o que tem realmente relevância são as provas. Fatos contundentes. Gostaria de ser menos realista nesse ponto, mas todas as evidências apontavam contra Clara. Primeiro as fotos que ela não havia “encontrado” para me mostrar, depois ela nunca me levou para sua casa, sempre ficamos em meu apartamento, oras se não tinha nada com Jaqueline por que eu não podia dormir com ela lá?

E agora a maldita carta que tinha em minhas mãos, o papel que pertencia a ela, desgastado por conta do tempo, as dobras marcadas pelo passar das décadas, e a letra, que eu conhecia tão bem, pois já tinha sido usada para me escrever coisas tão lindas. Mesmo assim eu me questionava, não queria aceitar tão facilmente que eu amava uma pessoa tão repulsiva.

Mas o que dizer do sumiço de Clara? Por que não atendeu minhas ligações? E as mensagens no celular de Alicia? E o fato de eu ter ligado para todos os hotéis de Ushuaia e não ter ninguém com seu nome registrado? Mesmo que tivesse sido impossibilitada de usar o celular para se comunicar comigo, ainda havia a internet. E as fotografias dela com a menina e o rapaz? Tantos contras e quase nenhum pró.

Mesmo assim meu coração resistia a acreditar naquilo tudo.  Resolvi ligar e pedir um favor para Clarice, uma última cartada, por assim dizer:

- Sisse, tudo bem?

- Oi meu amor! Estamos bem graças a Deus e você?

- Tudo e como estão as coisas por aí?

- Morrendo de saudades suas, mas de resto tudo na mesma.

- Alguma novidade?

- Se é de Clara que você está querendo saber não tenho a mínima ideia. Mesmo porque quero distancia daquela cobra. Nem Jaqueline deu mais sinal de vida. Susana acha que ela mudou até o chip do telefone.

- Preciso que faça um favor para mim.

- Claro o que você quiser.

- Quero que procure Alicia.

- Para que?

- Eu quero que peça uma coisa a ela.

- O que?

- O envelope.

- Envelope?

- Sim, quando ela me mandou a carta, o envelope não veio junto. Sei que não deveria estar duvidando diante de tantas provas, mas algo está me incomodando. Afinal algumas coisas podem ser forjadas...

- Mas Ana, diante de tantas evidências? Você não acha que pode estar se iludindo?

- Eu não sei, pode até ser, mas droga Sisse.... Ainda é tão difícil para mim.

- Entendo. Não deve ser fácil amar tanto uma pessoa e saber que ela te enganou por tantos anos.

- Estar aqui, distante de tudo, me fez parar pra pensar que tenho sido pouco racional. Sempre agindo por impulso. Se fosse um caso onde eu estivesse de fora, teria agido de forma diferente.

- O que você acha que esse envelope pode mostrar que você já não saiba?

- Você sabe que eu trabalho com alguns peritos, quero que pegue esse envelope, se houver, e leve até um deles, que vou te passar o nome, assim como quero que leve as fotos também. Se houver alguma prova de que isso foi uma fraude ...

- E se não for? Se não houver montagem com as fotos, se o envelope for verdadeiro, o que você fará? De que vai adiantar? Você ficará ainda mais chateada.

- Pode ser. Mas pelo menos fiz algo para ter certeza disso. Alguma coisa está me escapando, e não consigo saber o que. É como um quebra cabeça onde tem uma peça que não se encaixa.

- Se é isso que quer, eu farei. Me passe o endereço de Alicia e o perito que quer que eu procure.

Passei todos os dados para Clarice, agradeci e desliguei. Precisava me acalmar, agora que tinha tomado uma atitude só me restava esperar para saber o que aconteceria. Por mais que não quisesse estava rezando para que algo apontasse para um embuste. Apesar de ver as lágrimas de Alicia, se Clara podia ser uma artista ardilosa ela também poderia ser não tinha como ter certeza de nada. Talvez fosse loucura querer acreditar naquilo, mas como ainda não havia conseguido tirar aquele amor filho da puta do peito, precisava me agarrar a qualquer coisa.

Desde que Clara havia retornado ao Brasil eu me tornara uma escrava da culpa pelo que tinha acontecido em minha adolescência, me retrai, deixei de ser eu mesma. Não tomei as rédeas da situação, meu medo foi maior que eu. Se eu tivesse enfrentado os meus fantasmas, batido de frente com ela, feito com que me ouvisse a pulso, muita coisa seria diferente. Isso impediria que essa carta tivesse me sido entregue? Não. Porém eu não teria deixado às coisas irem acontecendo a Deus dará. Fui deixando Clara comandar o jogo ditando as regras, será que não estava fazendo o mesmo com Alicia? Agora eu faria a minha jogada.

Minha mãe veio me visitar três dias depois que cheguei a Portugal. Foi bom tê-la ao meu lado, mas as inevitáveis perguntas vieram á tona, logo na primeira noite.

- Filha, sei que sou intrometida, quer dizer, intrometida não só preocupada com sua vida.

- Sei mãe, fico ainda com a primeira opção. – Disse sorrindo

- Não fale assim de sua mãe. É pecado. – Fez cara de brava

- Tá bom, desculpe, eu amo sua “preocupação”. Fala o que você quer saber.

- Você pediu que não perguntasse nada sobre o que aconteceu. Porém amore mio, não consigo. Como você pode ter brigado com Clara se ela estava viajando?

- Como sabe que ela estava viajando? Sisse comentou alguma coisa?

- Não, mas a menos que vocês tivessem se comprometido a morar juntas, ela só poderia estar viajando.

- Mãe...desembucha.

- É que ela foi te procurar na segunda feira, e estava com uma mala. O que significa que ela tinha voltado de viagem.

- E não poderia estar indo viajar?

- Não, a roupa estava amarrotada, o cabelo despenteado. Nenhuma mulher sai de casa assim.

- Ok dona Vânia. Ela estava mesmo viajando.

- Então como vocês tiveram uma briga tão definitiva?

- Mãe, sinceramente não quero discutir sobre isso. Pelo menos por enquanto. Antes de te dizer algo preciso tirar algumas coisas a limpo. Ter certeza do que vou falar. Já cometi injustiças demais, se o que eu descobri for verdade. Esta na hora de por a casa em ordem. Por os pingos nos is.

- Do jeito que você fala parece que o que aconteceu foi grave demais.

- E foi. Creia. Se tudo for comprovado não tem perdão.

- Ela estava bem abatida, filha.

- O que você disse a ela?

- O que pediu, que tinha saído de férias sem data para retornar.

- E?

- Bem ela ficou olhando pra minha cara como quem não esta entendendo nada.

- Não perguntou ou falou mais nada?

- Perguntou se tinha ido sozinha. Respondi que sim. Daí ela falou “mas tirou férias assim sem mais nem menos?” e eu disse é estava cansada. Aí perguntou se você havia deixado algum recado pra ela, falei que não. Depois só respondeu ok.

- Só isso?

- Ah, ela já estava indo embora, mas voltou e perguntou se por acaso eu sabia se você tinha visto Alicia.

- Perguntou foi?

- É. Achei estranho. Disse que não. Não sei de onde ela tirou essa ideia maluca.

- Eu sei de onde foi. Mas vamos deixar isso pra lá, por favor.

- Tudo bem Ana, mas prometa que assim que “a casa estiver arrumada” como disse você me contará o que aconteceu.

- Quando tiver todas as certezas direi. Ok?

- Ok.

Os outros dias que passamos juntas foram tranquilos e ter sua companhia me ajudou a reabastecer meu estoque de carinho, nada como um bom cafuné de mãe. Quando ela foi embora comecei a me sentir ansiosa de novo. Eu era uma pessoa impaciente quando queria algo, e esperar nunca foi meu forte. Dois dias depois da partida de minha mãe recebi o telefonema que estava aguardando.

- Oi Aninha.

- Sisse, que bom que ligou. Já estava me descabelando aqui.

- Nossa podia perguntar pelo menos como estou né?

- Desculpa meu amor. Você está bem?

- Sim, tudo bem.

- Conseguiu falar com Alicia?

-Consegui. Aliás, ela queria a todo custo saber onde você estava.

- Você não contou né?

- Tá louca? Pra ela ir atrás de você? Clara foi uma sacana, mas ao contrario de você eu não perdoo Alicia por ter demorado tanto tempo pra te entregar a carta.

- Ela teve seus motivos Clarice. Mas não vamos discutir sobre isso. Ela ainda tinha o envelope?

- Tinha.

- Sério? – Falei um pouco desanimada

- Ué, parece que não gostou da resposta.

- Não foi nada. E ela te entregou.

-Entregou. E eu levei até o perito.

-Quando ele vai te falar o resultado?

- Por ser teu amigo ele apressou as coisas e me entregou hoje.

- E o que esta esperando pra me falar?  - Perguntei aflita

- Ana... eu...

- Clarice. – Estava perdendo a paciência

- Ele testou tudo. As fotos são verdadeiras. Não há nenhum tipo de manipulação, nem na tinta da parte de trás.

- E o envelope?

- Lamento Ana, mas ele também é original. Foram feitos testes no papel, nos selos, e no carimbo dos correios. Além disso, ele também fez o teste para caligrafia, levei um dos bilhetes antigos que estava na caixa, a letra é mesmo de Clara. O carimbo do correio é de Porto Alegre e a data é de julho de 1995.

- Não há duvida nenhuma quanto a isso?

- Não. As provas são irrefutáveis. Clara mandou a carta para Alicia.

- Ok. Sisse. Obrigada.

- Você está bem?

- Gostaria que o resultado tivesse sido diferente é claro, mas a vida segue. Eu vou superar tudo isso. – Falei triste

- O que você vai fazer agora.

- Ainda vou dar um tempo por aqui.

- Você vai procurar por ela quando voltar?

- Uma hora terei que enfrentá-la Clarice. Mas não agora.

- Eu a mandaria para os quintos dos infernos, nunca mais iria querer ver a cara dela.

- Talvez eu faça isso. De qualquer forma muito obrigada por tudo o que fez por mim. Te amo viu sua doidinha.

- Também te amo. Se cuida.

E depois desta conversa as últimas cartas do meu castelo desmoronaram. Não podia mais me iludir. Só me restava agora arranjar alguma forma de matar aquele sentimento que me consumia. 

Fim do capítulo