Capitulo 19
-Ei, meu bem...acorda...acorda dorminhoca...- Fedra tentava acordar Sabrina com beijos e afagos pelo corpo sem que ela sequer se mexesse.
-Não quero ir! Não vou! - resmungou ainda de olhos fechados.
-Mas eu ainda nem disse nada, meu bem. - Fedra sorriu e beijou-lhe o ombro.
-Não quero voltar para casa...- Sussurrou.
-Sabrina, ainda é sábado...nem me fales em voltar para casa. A tua viagem é daqui a dois dias. Acorda, meu bem. Vamos para o paraíso...
-Existe outro além da tua casa...dessa cama deliciosa e da mulher mais gostosa que eu já vi na vida? - Puxou-a e se enroscaram entre risos e beijos.
-Fedra que horas são? - Sabrina tapou os olhos diante da luz do sol que entrava pelas franjas das cortinas.
-Passa do meio dia...dormimos muito...
-Demoramos muito a dormir, eu diria...
Riram abraçadas.
-E então, onde é o segundo paraíso?
-Hmm, vejo que a senhorita se animou.
Risos.
-Muito!
-Pensei de irmos a um hotel de uma amiga minha que fica em Rui Vaz...o lugar é lindo...
-Eu quero! Ah, tu sabes que eu sou apaixonada pelo interior de Santiago...tem cachoeira?
-Tem e deve estar cheia...tem chovido com alguma regularidade. - Fedra sorriu feliz.
***
A viagem até o hotel no interior foi uma sucessão de curvas, subidas, verde a perder de vista, o sol a espreitar por entre as árvores enormes e a estrada a abrir-se como uma promessa. O trajeto todo foi feito na maior parte do tempo em silêncio cúmplice. Fedra conduzia sem pressa, uma mão no volante e a outra, de vez em quando, pousada na perna de Sabrina. O silêncio era um idioma, nele sonhavam com muitas possibilidades e pediam que o tempo se arrastasse por longas horas.
-Então tens amigas proprietárias de hotel?
-Minha história coma a Walkiria é interessante...começou como uma relação profissional, aluguei o espaço de eventos do hotel dela algumas vezes, antes de me apaixonar pela potência dela...ah, sem contar que o lugar é lindo e elas não medem esforços em tornar a experiência cada vez mais inesquecível.
-Wow, fiquei curiosa para conhecer essa Walkiria...
-Uma pena que elas não estejam no hotel. Ah, a Walkiria é casada com a Nahima que é espanhola e veio para cá e...
-Perdeu-se de amores pela mulher maravilhosa e nunca mais encontrou o caminho de volta.
Risos.
-Se o hotel é de um casal de mulheres, eu não vou precisar ficar controlando minha admiração pela senhora, certo? Ah, não te preocupes, eu sou discreta e não vou beijar-te em público...e só Deus sabe o sacrifício que isso é...
Gargalhadas altas.
***
Chegaram ao final da tarde. O hotel parecia uma pintura: chalés de pedra espalhados pelos campos verdes, um pequeno lago artificial, flores silvestres por todos os lados, o ar com cheiro de eucalipto e terra molhada. Um sonho.
Foram recebidas por um funcionário simpático e prestativo que fez questão de avisar que a dona Walkiria tinha pedido que elas fossem acomodadas no melhor chalé.
O chalé tinha janelas largas e uma varanda suspensa sobre o vale. De dentro, via-se o pôr do sol numa mescla de tons entre laranja e lilás e ouvia-se o cantar de cigarras ou grilos anunciando que a noite já se avizinhava. Sabrina olhava tudo sem acreditar na beleza de cada detalhe daquele espaço. Levou as mãos ao peito e agradeceu em silêncio. Na varanda, abriu os braços e riu alto. Liberdade era isso...
-Bem-vinda ao meio do nada. - Fedra abraçou-a por trás e juntas mergulharam o olhar na imensidão do vale.
-Meio do nada que preenche cada partícula do meu ser...que lugar perfeito...da natureza ao toque humano. Tudo aqui respira beleza...obrigada por me presentear com esse pedaço do paraíso. - Deixou-se ficar no abraço e de olhos fechados, mais uma vez agradeceu por tamanho presente.
Mais tarde, deitaram-se na rede que balançava preguiçosa na varanda. O vento suave que soprava fazia os cabelos de Sabrina dançarem sobre o peito de Fedra e ambas fixavam o olhar no verde que parecia infinito. Houve mais um momento de silêncio cúmplice e respiração compassada.
-Eu gosto do que temos, do que estamos a construir. - Sabrina sussurrou mais para ela, mas em volume suficiente para Fedra ouvir. - Mas tenho medo...
Fedra não disse nada, pois já sabia que qualquer palavra em falso, faria Sabrina se retrair.
-Medo de meter os pés pelas mãos, de te magoar, de...
-Sabrina...
-Medo que tudo se desfaça e acabes por me odiar...
-Ei...ei, de onde veio isso agora? Viemos para cá para aproveitar...relaxar...- acariciou-lhe a face. - Não vou te odiar nunca.
Sabrina suspirou com os olhos marejados.
- Às vezes penso que não sou suficientemente boa para ti, que não mereço tudo isto. - Desabafou apertando mais o seu corpo contra o de Fedra.
Fedra pousou o olhar nela por alguns instantes sem dizer uma única palavra.
-Sabrina, tu és o contrário de tudo que esse teu medo te faz acreditar...
-E se eu falhar?
-Todos nós falhamos...
-Não sei se sei lidar com uma mulher tão inteira, sendo eu tão...- Calou-se engolindo as lágrimas.
-Meu bem, não sou tão inteira como vês...tenho inseguranças que não fazes ideia, mas eu não tenho medo, ou não permito que ele me domine e se me permitires, vou te mostrar até onde a coragem pode nos levar...
E por ali ficaram, na rede que balançava devagar, enquanto os resquícios do dia se dissolviam sobre o vale. A sensação era que o mundo parecia em pausa.
***
Sabrina acordou com o barulho de passarinhos na varanda e espreguiçou languidamente. Olhou para o lado e Fedra dormia profundamente, exalando uma paz cativante. Esgueirou-se da cama e com o telefone nas mãos, tirou inúmeras fotos, inclusive delas juntas sem que Fedra notasse qualquer movimento. Saiu para a varanda, mais uma vez fez fotos do cenário perfeito. Não se ouvia nada além do barulho da natureza, pássaros, bater das folhas das árvores...sonho. Ainda era cedo, e entre jantar à luz de velas regado a um excelente vinho e horas de prazer intenso, tinham dormido tarde, mas queria aproveitar tudo que aquele lugar oferecia. Animada e quase saltitando, correu para a beira da cama determinada a acordar Fedra.
-Sabrina, pelo amor de Deus, preciso de pelo menos mais duas horas de sono...- Resmungou Fedra virando para o outro lado.
-Não senhora! Só temos hoje e eu quero explorar as belezas que tão bem promoveste. Ah e não te esqueças da moça simpática que nos convidou para fazer yoga com ela. É daqui a meia hora...
-Oh meu bem...estou cansada...não me deixaste dormir...
Riram juntas e Sabrina deitou sobre o corpo dela.
-Assim, eu não saio daqui nunca mais.
-Chata! Vou fazer yoga sozinha então e dizer à moça que preferiste a cama à aula dela.
Risos.
-A Greta também é sócia daqui...mais uma que veio e se apaixonou pela terra e pelo povo.
-Ela tem duas crianças lindas...vamos, meu bem, por favor...
-Ai, Sabrina...eu não consigo dizer não...tu me cansas a noite inteira, me acordas cedo cheia de energia que não sei de onde vem e eu ainda não consigo pensar em nada melhor do que isso...
-Tu não estás a pensar, meu amor...estás em delírio.
Gargalhadas altas.
***
Depois da sessão de yoga, que apesar da resistência, Fedra adorou, ela conversava com Greta enquanto Sabrina se deslumbrava com uma exposição de pintura e desenho que estava patente pelos arredores da área externa do hotel.
-Uma pena que a Walkiria e a Nahima não estejam cá. - Lamentou Fedra.
-Por pouco não se encontraram. Elas foram ao Tarrafal com o intuito de acompanhar o andamento do novo empreendimento por lá, mas eu espero mesmo é que relaxem. Pelo menos a minha parte eu fiz. - Sorriu cúmplice.
-Ah, mas com certeza elas vão relaxar...Tarrafal convida a isso. Greta, eu fico impressionada com o vosso esmero, cada vez que venho cá está melhor. Esse lugar é um pedaço do paraíso.
-Ah, mas tu conheces a Wiki e a Nahima vai na onda dela. - Risos. - O bom é que elas são apaixonadas pelo que fazem e uma pela outra e nos contagiam a todos.
-Que delícia! Se eu pudesse eu vivia por aqui.
-Mãe...mãe, o Julius não quer me devolver a bola.
A filha de Greta exigia a sua atenção e Fedra sorriu enquanto procurava Sabrina com o olhar.
-Fedra, meu dever de mãe me chama. Preciso apagar o incêndio antes que ele se alastre. - Riu com a menina a puxar-lhe a saia.
-Gary está em digressão?
-Sim, e volta no meio da semana, graças a Deus. Qualquer coisa que precisarem, podem me chamar. Já vou meu amor, vamos conversar com o Julius.
Fedra agradeceu e dirigiu-se para onde Sabrina estava.
-Esses quadros deveriam estar em galerias do mundo. - Disse Sabrina completamente encantada.
-Mas há muitos pelo mundo. O artista é o marido da Greta e ele passa vida viajar mostrando a sua arte.
-Olha esse meu bem, meu Deus quanto será que eu tenho que trabalhar para conseguir comprar essa peça?
Riram.
-Meu bem, nem sabes o preço já pressupões que não podes comprar. - Riu da cara de Sabrina.
-Acabaste de dizer que o homem expõe no estrangeiro e entendes de arte, esse quadro é maravilhoso e como tal, caríssimo.
Risos.
-Ah, mas um dia eu chego lá. Uma pena não poder conversar com ele.
-Nós voltamos...gostastes tanto e eu adoro. E quero que conheças as donas.
Perderam-se numa troca de olhares carregada de paixão e cumplicidade.
-Professora Sabrina...não acredito. Professora Sabrina!
Sabrina olhou para o lado e o sorriso lhe pareceu familiar, mas não conseguia lembrar o nome da moça.
-A senhora não se lembra de mim? Lorena, foi minha professora na formação profissional em Mindelo...há alguns anos, mas eu nunca me esqueço da senhora.
-Lorena, claro...e o que fazes por aqui no interior de Santiago?
-Longa história...saí de Mindelo porque não conseguia trabalho, vim para a Praia e num curso conheci uma moça que trabalha aqui, ela me falou tão bem e eu já estava cansada de sobreviver na Praia, vim para cá. Já fiz muitas coisas e agora sou responsável pela gestão dos eventos que acontecem aqui.
-Fico tão feliz por ti, Lorena. Sempre foste tão aplicada e dedicada. Esse lugar é maravilhoso. Essa é a Fedra, a responsável por eu estar aqui. - Sorriu segurando Fedra pela cintura.
-Que bom gosto tem a dona Fedra. Acho que já a vi por aqui...talvez num evento?
-Boa memória, Lorena. Já estive aqui algumas vezes em reuniões de trabalho e num retiro.
-A senhora é amiga das minhas patroas, eu não me esqueço de uma cara bonita. São parentes?
As duas riram enquanto se olhavam.
-Delirei? Eu juro que me parecem primas...são muito parecidas.
-No cabelo e olhe lá.
Gargalhadas.
-Tom de pele, cabelo, sorriso aberto...ah sei lá. Professora Sabrina, eu que faço a gestão dos retiros que a sua amiga fez. Estamos com dois em andamento agora, um corporativo cheio de executivos e outro de caráter mais religioso, com senhoras de mais idade. Por falar nisso, preciso correr para me assegurar que nada falhe. Professora Sabrina, está a morar na Praia?
-Não...
-Ah, já estava animada para frequentar alguma de suas aulas. Preciso de reciclagem de conhecimentos. Divirtam-se e qualquer coisa que precisarem, estamos aqui.
-Lorena...meu Deus, ela me levou para outro tempo...bons tempos...
-Meu bem e seus inúmeros talentos...
Sorriram.
-Vamos desbravar? A senhora me prometeu cachoeiras, aventuras e muitos beijos na boca.
Gargalhadas e uma sintonia vibrante.
As horas seguintes foram uma espécie de sonho em câmera lenta. Caminharam pelos trilhos, nadaram na cachoeira, adormeceram nas pedras e terminaram o passeio com uma passagem pelo miradouro que dava a sensação de se estar suspenso no ar. No regresso ao hotel, aproveitaram para explorar todos os recantos de beleza privilegiada daquele reduto. Em meio à paz e beleza inequívocas daquele lugar, Fedra não se furtou de demonstrar toda a sua felicidade, pelo momento e principalmente pela companhia. Andaram de mãos dadas, trocaram carinhos, beijinhos despretensiosos nos ombros, mãos...a sensação de Sabrina era de finalmente estar inteira, como se o mundo permitisse que ela descansasse, ainda que por alguns dias...
Mais tarde, deitadas na rede da varanda sobre o vale, apreciavam em silêncio a beleza estonteante do crepúsculo.
-Meu bem, queres ficar aqui até amanhã, ou voltamos para a cidade? - Perguntou Fedra enquanto alisava o cabelo de Sabrina que descansava a cabeça no seu peito.
-Apesar do meu receio do nevoeiro e de adorar esse lugar, prefiro dormir na cidade. Se ficarmos aqui, depois será muito stressante voltar a correr para que eu não perca o voo...
-Ele desce daqui a pouco, se pegarmos a estrada mais tarde, já não incomodará muito e eu gosto...obriga-nos a ter calma...-Sorriu.
-Quero voltar mais vezes para cá...- Ergueu a cabeça e encarou Fedra com doçura no olhar.
-Quantas vezes quiseres, meu bem. - Sorriu. - Sabrina, fiquei a pensar...
-Hmmm...em quê?
-No que a tua antiga aluna disse, que se morasses cá, ela voltaria a ter aulas contigo.
-Ela sempre foi muito gentil...- Sabrina sorriu.
-Ela foi sincera e fez-me pensar se nunca te passou pela cabeça voltar a viver na Praia.
Sabrina experimentou alguma hesitação e o coração bateu com mais força.
-Às vezes...sim...
-E o que te impede?
-Não sei...medo, talvez...já tive tantos recomeços que começa a cansar...
Fedra percebeu o desconforto e não insistiu mais. Apertou-a mais no abraço e suspiraram ao mesmo tempo.
-Só perguntei porque...gosto da ideia de ter mais perto...-Sussurrou.
***
Encostada à porta da varanda de seu apartamento, Fedra observava Sabrina enquanto ela terminava de se arrumar. Vê-la abotoando a blusa devagar era quase um convite a despi-la e mergulhar no prazer que era cada vez mais intenso quando seus corpos se encontravam.
-Não me acostumo com as despedidas. - Disse obedecendo a um impulso. - Fico mal-acostumada.
-Mal-acostumada? - Sabrina caminhou até ela e enlaçou-a pela cintura.
-Sim, a casa demora a perceber que não vives cá e eu...bom, eu sigo em delírio por longos dias...
-Adoro os teus exageros! - Sorriu beijando-lhe a bochecha, o pescoço, várias vezes.
-Não é exagero, é a mais pura verdade. E se não parares com isso, eu juro que faço-te perder o voo.
Riram abraçadas.
-Também me custa muito ir embora...sempre e ainda mais depois do fim de semana de tanto sentimento bom...sinto-me inundada do que há de melhor...- Sonhou Sabrina.
- Então fica...ou melhor, vai pensando na possibilidade de ficar - Disse Fedra sem drama, só com ternura.
-Ainda não posso. - Olhou o relógio. - E já estou atrasada.
-Como sempre. - Brincou Fedra. - Estás certa que não queres que eu te leve ao aeroporto?
-Fedra, é obvio que quero que me leves ao aeroporto, mas meu bem, não há necessidade ainda mais que eu sei que estás com tempo limitado.
-Tens razão...tenho tanto trabalho essa semana que por mais experiente que seja, nem sei por onde começar.
-Vais brilhar, minha executiva brilhante, competente, e sexy...muito sexy...
-Doida!
Beijaram-se devagar, como forma de enganar o tempo que corria alheio ao desejo delas. O telefone de Sabrina tocou e era o sinal de que o táxi tinha chegado para levá-la ao aeroporto.
-Até breve meu bem, que é puro exagero. - Sorriu abraçada a Fedra.
-Até breve, meu motivo para exagerar. - respondeu Fedra num misto de tristeza e encantamento.
***
A manhã nublada na cidade de Mindelo contrastava com a aura ensolarada que Sabrina irradiava. Sua mente estava presa nas horas de felicidade, no cheiro de eucalipto do vale de Rui Vaz e no sorriso de Fedra. Entrou no escritório sem se fazer notar, já era assim em dias comuns e não queria sobre si olhares indiscretos. Embrenhou-se no trabalho, que como de costume, era tão natural quanto respirar.
-O fim de semana foi bom, não restam dúvidas...quase ninguém te viu pelos corredores. - Lúcia e seu tom musical que quase sempre antecedia uma provocação. Sabrina já conseguia identificar as nuances contraditórias da chefe.
-Muito trabalho, prazos apertados e tu sabes disso. - Aproveitou para alongar o pescoço.
-Talvez precise reforçar o time...mas e o fim de semana? Maravilhoso?
-Passei bem...- Respondeu de forma vaga a ver se ela mudava de assunto.
-Que bom! - Inclinou um pouco sobre a mesa de Sabrina - é bom poder desaparecer sem dar satisfação a ninguém. Nem todos temos esse privilégio.
-Ah é? E o que te prende? Podes organizar o teu tempo como quiseres...
-Claro, claro...- Lúcia fez uma pausa estudada. - Uns organizam e outros são organizados.
Sabrina mexeu nos papéis sobre a mesa sem nenhuma vontade de entrar naquele jogo de gato e rato. Mas, Lúcia não desistia.
-E o fim de semana foi romântico? A Fedra esteve contigo, ou tinha compromissos mais diplomáticos?
-Estive na Praia para o aniversário da filha da Glória e sim, vi a Fedra. - Respondeu com o olhar firme e sem esboçar nenhuma emoção.
-Imagino. - O tom de voz era doce, baixo. - Ela é mesmo encantadora...sabe fazer uma gestão de tempo como ninguém e dar atenção a todos...
A expressão neutra de Sabrina esvaneceu dando lugar a uma inquietação gritante.
-Preciso sair...tenho de ir lá abaixo colher algumas informações...
-Claro...minha exímia consultora.
Sabrina saiu às pressas como quem busca o ar. No corredor respirou fundo. Por mais que lembranças do seu fim de semana maravilhoso ainda pulsassem vivas dentro de si, a realidade, mais uma vez, tentava roubar-lhe a paz.
***
Fedra tentava encontrar forças para ligar à mãe, mas sentia-se esgotada. A semana do evento de maior envergadura da agência que chefiava era sempre desgastante, mas nessa em particular, sentia-se ainda mais pressionada. Tinha exigências de Bruxelas, protocolos diferentes do novo Governo, gente nova para lidar, um verdadeiro caos. Sentia-se tão exaurida que não fora ver a mãe como era hábito.
-Se não tivesse passado um fim de semana de sonho, nem sei...- Sorriu ao lembrar de detalhes dos seus dias no paraíso. O telefone tocou arrancando-lhe do devaneio. Aprumou-se ao ver o nome da tia no ecrã.
-Tia Adélia? Que surpresa! - pensou logo na mãe e seu coração bateu fora do compasso.
-Fedra, estás em casa?
-Estou! Está tudo bem? - seu coração galopava e a imagem da mãe grudou na sua mente.
-Sim...estou aqui em baixo. Posso subir?
-Aqui em baixo? - Fedra franziu o sobrolho. Alguma coisa muito séria estava a acontecer. A tia raramente a visitava.
-Sim, vim deixar uma lembrança para a tua mãe.
-Claro, pode subir.
Alguma coisa muito séria tinha acontecido e só podia ser com a sua mãe. A campainha tocou, respirou fundo, abriu a porta e sorriu.
-Tia, que surpresa boa. - Sorriu
Tia Adélia esboçou um leve sorriso e entrou como quem atravessa uma fronteira que lhe pertence.
-Trouxe isto para a tua mãe. - Depositou uma pequena caixa sobre a mesa. - É uma peça de arte que comprei-lhe numa viagem que fiz recentemente e esses papéis antigos que ela me pediu há algum tempo.
-Obrigada tia! - Fedra sorriu sem entender. - Mas não seria mais prático entrega-los diretamente?
-Seria, mas passei por cá e resolvi ver a minha sobrinha, afinal, não nos vemos há algum tempo.
-Nem tanto tia...há sempre almoços de família...- Fedra tentava sorrir, mas alguma coisa na expressão da tia a incomodava.
-Queria saber de ti sem tanta gente a falar ao mesmo tempo. - Acomodou-se no sofá como quem se instala para decidir a vida alheia.
-Está tudo bem. - respondeu Fedra cautelosa.
-E o José Carlos? - Perguntou Adélia com um ar de interesse polido. - Sempre muito ocupado, imagino.
-Está sim. - Respondeu Fedra no seu tom mais neutro.
-E para quando o próximo passo? Já é hora, não achas? - Adélia enrolou o lenço de seda que trazia na ponta dos dedos. - Cinco anos, não é? Um homem de bons princípios, está mais do que na hora, minha sobrinha.
-Tia, as coisas não acontecem assim...- Fedra sorriu de leve, já a perceber a direção daquela conversa.
Adélia inclinou-se um pouco para a frente, as mãos unidas e encarou Fedra com uma expressão indecifrável.
- Pois! É que eu achei que talvez houvesse algum motivo... quando te vi ontem...
-Ontem? - Fedra franziu o cenho.
-Sim! - A voz da tia era baixa, mas carregada de desprezo. - No hotel, em Rui Vaz. Eu estava lá para um encontro de mulheres da paróquia. Vi-te e não queria acreditar no que via.
-Viu-me...o quê exatamente? E não foi falar comigo? - O corpo de Fedra enrijeceu.
-Vi-te no jardim, com uma mulher. - Adélia pousou o olhar sobre ela, firme, cruel. - Achei que fosse alguma amiga, mas depois percebi...
-O que é que percebeste, tia? - Fedra tentava manter a compostura, mas a voz já tremia.
-Percebi o suficiente. - Adélia pousou as mãos sobre os joelhos, fixando-a. - Não imaginas o desgosto que senti. Ainda quero acreditar que estás confusa, que foi um momento qualquer. Que há uma explicação.
-Há! - A voz de Fedra soava fria. - Nenhuma que a tia queira ouvir, mas há.
-Fedra, pelo amor de Deus! A tua mãe não merece isto, nem o José Carlos. - Gritou Adélia ofendida.
-A minha mãe não tem nada a ver com isto.
-Claro que tem. Ela, o José Carlos, a família toda. - Explodiu Adélia. - Achas que ninguém comenta? Achas que isso não chega aos ouvidos dela? Tu não estavas minimamente preocupada com a opinião dos outros. Exibias a tua falta de juízo para todos verem.
-A minha vida diz respeito a mim, tia - Fedra impacientou-se.
-A tua mãe não merece isto. - A voz dela agora tremia de indignação. - Gracelina dedicou-se a ti de corpo e alma. Passou noites inteiras no hospital, rezou por ti, alimentou-te quando nem conseguias segurar uma colher. E é assim que lhe pagas?
-Não vás por aí, tia...- Fedra ficou de pé.
- O câncer não te matou, Fedra, mas comeu-te o juízo e a decência. - Esbravejou de pé.
As palavras atravessaram o ar como um golpe físico. Fedra ficou imóvel. Por instantes perdeu o ar, o mesmo que lhe faltara tantas vezes durante o tratamento.
-Tia Adélia, saia da minha casa. Agora! - A voz era baixa e cortante.
-Vais destruir a tua mãe, Fedra. Que fique claro, que a Gracelina não merece esse transtorno a essa altura da vida e da única filha que Deus lhe deu.
Saiu deixando para trás um eco ensurdecedor de maldade e intolerância.
Fedra sentiu que as paredes de sua casa iam sufocá-la. As mãos tremiam sem que ela tivesse qualquer controlo sobre elas. Sentou no sofá e o mundo girou. O corpo todo se contraiu num misto de raiva e culpa. O estomago saltou-lhe para a garganta e correu para a casa de banho.
***
Sabrina não permitiu que nada lhe tirasse do rumo da terapia. Não faltaram demandas de última hora, coisas sem nenhuma urgência, mas que Lúcia teimava em fazer parecer caso de vida ou morte. Já conseguia driblar a loucura de sua chefe. Estava feliz, claro que sim, mas uma angústia que não sabia ao certo de onde vinha, precisava ser exorcizada. Provavelmente sairia da sessão com mais perguntas do que respostas, mas com certeza faltar não era uma opção.
A sala da terapeuta era a mesma de sempre, clara, silenciosa com cheiro de alecrim ou algo muito parecido. Sabrina sentou na poltrona, arrumou o cabelo atrás das orelhas e cruzou as mãos sobre as pernas. Para não fugir à regra, sentia-se exposta.
-Como foi o fim de semana? - Perguntou a terapeuta num tom calmo.
- Foi... lindo. - Sabrina hesitou e sorriu de leve. - Daqueles que temos vontade de guardar no canto das memórias boas.
-E o que ficou desse fim de semana? - Insistiu a terapeuta.
Sabrina pensou um pouco, os olhos perdidos num ponto qualquer da estante à sua frente.
-Ficou a certeza de que já é tarde demais...
-Tarde demais para quê?
-Para não me envolver. - A voz saiu num sussurro. - Eu tentei tanto, tanto, manter-me na superfície. Sinto que fracassei...
A terapeuta manteve-se em silêncio, deixando espaço para Sabrina desaguar.
-Eu tenho medo! - Continuou Sabrina. - De não ser suficiente, sempre foi assim. A minha vida inteira eu vivi com esse peso, eu e o meu pai a deambular de um lado para o outro e eu sempre tentando agradar a todos a ver se permanecia...eu sempre achei que mais cedo ou mais tarde, as pessoas se cansam de mim...tenho medo que a Fedra se canse...
-Porquê?
-Porque às vezes acho que o que sinto é maior do que devia - Sorriu sem vontade - Tenho medo de acabar odiada.
- Há alguma razão concreta para pensar isso?
-Lúcia diz que a relação dela com o namorado é sólida e que está apenas a viver uma fantasia comigo. Eu... - Respirou fundo. - Eu sei que não faz sentido, mas as palavras dela grudam na minha mente...
-A mesma Lúcia que te causa desconforto? - Perguntou num tom mais calmo ainda.
-Sim, a minha chefe. Não consigo ignorar, ela fala com muita propriedade e conhece muita gente, muita coisa...é como se ela tivesse o roteiro da vida nas mãos...
-E o que é que tu sabes?
Silêncio.
-Eu sei o que sinto...o que vejo. Falo com ela todos os dias, ela se preocupa comigo, ouve-me, está inteira quando estamos juntas. Nunca me senti preterida por esse tal namorado, aliás, eu nunca o vi...só sei que ele existe porque ela me disse, a Lúcia faz questão de me cutucar e também porque de vez em quando ele liga. Mas eu não sei o que sou? O que sou para ela?
-E o que é que queres ser? - Perguntou num tom suave.
-Quero não ter medo. - Apertou os dedos uns contra os outros. - Mas ainda não sei como.
O alarme discreto marcou o fim da sessão. Sabrina sentia-se cansada, mas um pouco mais inteira do que quando chegou.
-Vamos continuar daqui na próxima vez. - Disse a terapeuta.
***
Em casa, Sabrina tentava organizar pequenas bagunças, mas seu coração não se aquietava. Já inventara mil tarefas para se ocupar, inclusive escrevera várias páginas de pensamentos sem sentido, mas o sentimento inquietante estava lá. Uma saudade angustiante...diferente.
O telefone vibrou perto do cavalete e ela correu tropeçando no sofá. Era Fedra. Atendeu com um sorriso escancarado:
-Meu bem, que saudade...
Fim do capítulo
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mtereza
Em: 17/11/2025
Que maravilha revisitar o paraíso de Walkiria e Nahima amei . E parece que o mundo exterior esta cada vez mais próximo e prestes a se chocar com o mundo que elas contruiram a bolha esta prestes a ser furada será que o amor já forte o suficiente para suportar estou curiosa para ver esse desenrolar
brunafinzicontini
Em: 11/11/2025
Que ótimo! Adoro quando você nos faz revisitar personagens lindas de histórias passadas, que ficaram em nossa melhor lembrança! Espero que Sabrina realmente as encontre num futuro próximo.
Você descreve muito bem os encontros de Sabrina com sua terapeuta. Parece ter formação acadêmica em psicologia! Parabéns, querida!
Até quando Sabrina vai aguentar as provocações de Lúcia sem revidar à altura? Mulher desagradável... Sabrina tem que considerar seriamente sua transferência para a Praia, ainda mais levando em conta a maior proximidade de Fedra. Pobre garota... precisará de muita força para enfrentar o ataque violento da tia! Qual será a reação de sua mãe? Dá para sentir receio...
Recuperou-se totalmente da queimadura na mão, querida? Grande abraço e boa semana.
Bruna
Nadine Helgenberger
Em: 15/11/2025
Autora da história
Olá :)
Pois é, lembrei que Fedra morava em Santiago e pensei, porque não um encontro? rsrsrs
Vou pensar se Sabrina terá esse prazer...preciso é me lembrar com detalhes quem são Walkiria e Nahima kkkkk
Formação em psicologia não e nem nada que se pareça. Estudo, curiosidade, conversa com amigas que fazem terapia e uma dose de bom senso...no caso, quando penso como a terapeuta.
A Sabrina que revida vai chegar, confia em mim rsrsrs
Mão sarada só com a pele mais sensível. Obrigada pela preocupação.
Abraço e boa semana.
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HelOliveira
Em: 09/11/2025
Wiki, Magina, Greta....saudades delas...
Depois de um fim semana maravilhosos, a volta a rotina já fica mais complicada..
Parece que agora as coisas vão ficar difíceis para Fedra, esperro que essa ligação seja apenas para buscar apoio da Sabrina, e não para se afastar...
Boa semana
Nadine Helgenberger
Em: 10/11/2025
Autora da história
Olá :)
Vamos ver o que a Fedra vai fazer. Tenso…
Muito obrigada. Bjs
Nadine Helgenberger
Em: 10/11/2025
Autora da história
Olá :)
Vamos ver o que a Fedra vai fazer. Tenso…
Muito obrigada. Bjs
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NovaAqui
Em: 09/11/2025
Wiki, Nahima, Greta! Que surpresa boa vê-las por aqui
Apareceu uma luz para Sabrina ficar mais perto de Fedra. Acho que trabalho ela consegue. E ela ainda pode fazer uns freela para a empresa que ela trabalha, caso ela queira e eles aceitem.
Será que Fedra irá ceder ao veneno da tia? Apesar de Fedra tê-la expulsada de sua casa, tenho minhas dúvidas quanto a esse enfrentamento. Espero que a mãe de Fedra não seja tão intolerante quando a tia Adélia.
Tentando não achar que Fedra ligou para dizer que tudo não passou de uma aventura para ela. Eu torço para Sabrina não sofrer esse desgosto. Elas não merecem isso
Boa semana para você na sua Terra Linda!
PS: vou fazer um roteiro com todos os lugares que você cita/citou nos seus romances. Sempre me apaixono um pouco mais pelo seu Paraíso
Nadine Helgenberger
Em: 10/11/2025
Autora da história
Olá :)
Pois é, crossover gostoso rsrs
Sabrina consegue tudo na Praia, mas vá dizer isso para aquela cabeça dura. O medo trava essa mulher num grau, enfim…
Vamos ver a reação da Fedra...tenso. Eu sei qual será kkkk, já escrevi a escaleta do capítulo e tudo, mas sem spoiler ;)
Wow, quero ver esse roteiro. Adorei!
Abraço e muito obrigada
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