Cicatrizes Noturnas e Promessas Matinais
A madrugada avançava lenta quando Ísis adormeceu no colo de Lia, o rosto escondido contra a barriga da Fênix, como se aquele contato fosse a última âncora de sanidade que lhe restava. Lia ficou ali por um tempo, os dedos deslizando com leveza pelos cabelos negros da ex-amante, tentando afastar os ecos recentes da personalidade da Oráculo que ainda vibravam no ar como um cheiro queimado.
Quando o peso de Ísis começou a incomodar suas pernas, Lia a chamou baixinho:
— Ísis … vai pra cama.
Ísis abriu os olhos devagar, as íris ainda umedecidas, a expressão vulnerável como há anos Lia não via.
— Posso… dormir com você hoje? — A voz saiu pequena, hesitante. — Não quero ficar sozinha.
Lia hesitou por um instante. Pensou em Elisa, pensou em Ariel, pensou em todas as linhas que vinha tentando não cruzar. Mas no fim cedeu.
— Vem.
As duas foram para o quarto, como tantas vezes antes. Na cama, deitaram-se de conchinha, o corpo de Ísis encaixado ao de Lia como uma peça perdida voltando ao lugar.
E pela primeira vez em dias, Ísis dormiu profundamente. Sem despertar no meio da noite. Sem nenhuma das suas outras personalidades tomando o controle. Sem vozes. Sem a Oráculo.
Só silêncio e Lia.
****
O sol mal tinha subido quando Lia acordou.
E lá estava Ísis, ainda dormindo, o rosto sereno como uma criança. Lia se levantou com cuidado, prendeu os cabelos num coque bagunçado e foi até a cozinha.
Abriu a geladeira.
Nada além de um pão de queijo velho e endurecido que parecia ter sobrevivido a uma explosão.
— Ótimo, Liana… — murmurou para si mesma, abrindo os armários à procura de café.
Antes que pudesse decidir o que fazer com aquele café da manhã deprimente, a campainha tocou.
Lia franziu a testa. Àquela hora?
Ao abrir a porta, deu de cara com Elisa, de calça jeans, regata preta e um coque mal feito que denunciava o quanto ela tinha dormido pouco.
— Desculpa aparecer sem avisar… — Elisa disse, erguendo as sacolas nas mãos. — Esqueci meu celular na empresa. Mas trouxe café da manhã. E um pão de queijo quentinho.
Lia sorriu de canto, abrindo espaço para ela entrar.
— Você leu pensamentos… Minha geladeira tá mais vazia que a moral da Petúnia do RH.
Elisa riu, largando as sacolas sobre a bancada.
Enquanto arrumavam as coisas, o assunto desviou para a notícia maldosa que Lia havia visto naquela manhã.
Um perfil de fofoca empresarial insinuando que a alta recente nas ações da Wicca Enterprise tinha sido graças à saída de Lia da sociedade e ao fim do relacionamento das duas.
— Ridículo. — Elisa comentou, mordendo um pedaço de pão de queijo. — As ações subiram por causa da expansão para os mercados da Europa e você sabe disso.
— Sei.— Lia respondeu, mas o incômodo ainda estava ali.
Por alguns minutos, o clima ficou leve, até voltarem ao assunto que Lia mais temia.
O presságio.
— Você quer que eu fique por perto, Lia? — Elisa perguntou, direta.
— Quero. — Lia respondeu de imediato. — Mas não porque eu tô pedindo. Não quero que você se sinta presa por causa disso.
Elisa suspirou fundo, encarando o chão por um instante antes de responder.
— Se for pra te proteger… eu faço. Mesmo que isso me mate.
Lia congelou.
— Não fala isso…
— Falo. — Elisa deu um sorriso leve. — É o ciclo da vida, Lia. Morrer é tão natural quanto nascer… mesmo pra gente. Mas, pra te deixar menos ansiosa… vou ficar. Posso me mudar pra cá, se você quiser.
Lia concordou, e por um instante, o coração pesou, mas de alívio.
Foi então que Elisa viu os sapatos.
O par de botas femininas, diferente de qualquer coisa que Lia costumasse usar.
Ela não perguntou. Apenas olhou. Mas Lia percebeu.
— A Ísis tá aqui. — Lia disse, com naturalidade forçada.
Elisa ergueu uma sobrancelha.
— Ela passou a noite?
Lia respirou fundo.
— Ela só precisava de uma amiga.
O olhar de Elisa endureceu, mas ela não comentou mais.
— Ótimo… poupa minha viagem até a casa dela. — Elisa disse, pegando uma das sacolas. — A Alex pediu que eu entregasse isso pra ela… é o videogame do Enzo. O menino quase surtou ontem porque esqueceu com a mãe.
Lia riu, mas o clima tinha ficado mais denso.
E antes que Elisa saísse, o celular de Lia vibrou. Mensagem de Ariel.
Ariel:
"Primeiro dia das minhas férias!!! Quero fazer alguma coisa! O que cê acha?"
Lia mostrou a mensagem para Elisa.
— Você lembrava que ela tava de férias?
Elisa franziu o cenho.
— Não… mas também, minha cabeça tá um caos esses dias.
Lia lembrou do terninho azul que Elisa havia esquecido ali tempos atrás.
— Quer se trocar aqui? Tem aquele terninho que você deixou.
— Aquele é muito justo. Não vou me enfiar naquilo.
— Ia fazer sucesso no escritório…— Lia comentou sorrindo.
Elisa bufou e foi embora com um sorriso discreto nos lábios.
****
Minutos depois, Ariel chegou.
Trazendo mais comida e uma fome de tamanho sobrenatural.
— Adivinha o que aconteceu ontem! — Ariel disse já entrando na cozinha e começando a organizar a mesa. — Beijei a Ana.
Antes que Ariel pudesse entrar em detalhes, Lia a interrompeu.
— A Ísis tá aqui.
Ariel travou.
— Vocês…?
— Ela só precisava de uma amiga.—Lia repetiu.
Ariel mordeu o lábio, confusa, mas mudou de assunto quando Lia contou sobre a conversa com Elisa.
Pouco depois, Ísis finalmente apareceu.
Desceu as escadas com o cabelo bagunçado, usando uma camiseta longa, estampada com a logo da mulher maravilha, que provavelmente era da própria Lia.
Ariel olhou, curiosa.
— Vocês dormiram juntas? — Perguntou sem pensar.
— Eu… só não queria ficar sozinha. Eu e a Lia… somos amigas. Só isso. — Ísis gaguejou, visivelmente nervosa.
Lia manteve o olhar baixo.
— A vida às vezes não é fácil… — disse e desviou o assunto — Falando nisso… a Elisa trouxe o videogame do Enzo que estava lá na Alex.
— Obrigada, ele sempre esquece as coisas lá. — Ísis respondeu com um sorriso breve.
As três sentaram-se para tomar café juntas. Conversaram sobre as férias de Ariel. Sobre a viagem a Las Vegas que acabaram de decidir fazer juntas.
Ísis parecia estranhamente calada e quando chegou a hora de se despedirem, a tensão aumentou de novo.
Lia e Ísis quase se beijaram, sem querer, no momento da despedida. Foram para o mesmo lado ao tentar o beijo no rosto.
As duas pararam no meio do caminho, o ar carregado de eletricidade.
Ísis recuou primeiro.
Ariel percebeu tudo e se sentiu ainda mais confusa.
Antes de sair, Ísis apertou a mão de Ariel de um jeito mais demorado do que o necessário e o olhar entre as duas foi carregado de significado não dito.
****
Depois que Ísis foi embora, Ariel e Lia continuaram conversando.
Falaram sobre Ana. Sobre o beijo. Sobre o pico de energia da noite anterior.
— Agora faz sentido porque suas runas quase explodiram na minha pele… — Lia brincou. — Preciso mesmo te fazer uns acessórios novos… pulseiras, talvez uma tornozeleira… uma linha completa pra dias emocionais.
Ariel riu, agradecendo em silêncio.
As duas saíram juntas para comprar bebidas para a festa que Ariel estava planejando.
Antes de entrar no carro, Lia lançou um último pedido.
— Só não chama a Petúnia do RH. Não quero ter que lidar com ela… Uma crise por noite já é o suficiente.
Ariel gargalhou.
— Pode deixar.
Mas no fundo, enquanto mexia no celular pra organizar os convites, Ariel sentia que aquela festa ainda ia render mais do que elas imaginavam.
Fim do capítulo
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