Minha cabeça fervia enquanto relia o teor daquele email, definitivamente a vida adorava rir da minha cara e das minhas expectativas. Não, ela não ria da minha cara, ela gritava que eu não tinha controle de nada, embora vivesse na ilusão que mantinha as rédeas de tudo nas mãos. Uma viagem à capital para receber um prémio pelo meu trabalho em prol do empreendedorismo jovem. Não gosto de receber prémios. Detesto holofotes sobre mim. Diria minha amiga, então não se dedique tanto a tudo o que fazes. Pois é, mas não dá. Ou estou por inteira em tudo o que faço ou nem saio de casa. Estava lisonjeada com o reconhecimento, afinal muita gente boa fazia mais ou menos a mesma coisa. Mas eu queria viajar para a Praia naquele momento? Não! Adoro a Praia e a ilha de Santiago em geral, mas minha alma bradava por uma semana no Vietname. Uma pena que meu desejo não acompanha minhas finanças. Eu já até imagino comentários como, ah, mas tu tens dinheiro para passar até um mês no Vietname...sim, pode ser verdade, mas há outras tantas prioridades...enfim, a vida não faz o que queremos e ponto. Há muito tempo aprendera essa lição.

            -Sabrina, copo cheio pelo amor de Deus. Santiago tem montanhas também, com sorte vais encontrar a ilha verde e tens a tua praia favorita. Vietname não vai sair do lugar e outras oportunidades virão.

Tenho a mania de falar para os meus botões. Faço perguntas que eu mesma respondo e nunca sei se as respostas foram dadas pelo meu lado sensato, ou pela faceta mais doida. Deve ser defeito de quem mora sozinha. Estava tão absorta nos meus devaneios que não ouvi baterem à porta.

            -Ei, tem gente aí? - Lúcia entrou como uma rajada de vento. Bem, nada de novo.

            -Oi, meu bem. Estava compenetrada...

            -Vim dar-te os parabéns. A notícia da tua distinção já se espalhou pelos corredores da empresa. Confesso que preferia que fosse um prémio que levasse o nome da Premium Consulting International...

            -Lúcia, não queiras comparar o incomparável. Esse prémio é uma brincadeira diante dos feitos da empresa de consultoria. E são coisas tão diferentes...coisas que tu consideras pequenas... - Tentei amenizar a questão do ego da minha amiga. Afinal, era muito grata, por naquele momento fazer parte da equipa de consultoria da empresa que ela chefiava. Não fosse pela nossa amizade, talvez não fizesse parte do projeto, e o que ganho aqui ajuda bastante para que possa fazer outras coisas menos rentáveis e, que, no entanto, alimentam a minha alma.

            -Entendeste o que eu quis dizer, mas é claro que estou muito contente por ti. Se puderes fazer alguma publicidade do que fazes aqui...

Sorri, embora não fizesse o menor sentido. O departamento de Marketing da Premium Consulting International era muito competente e não precisava de publicidade nenhuma e muito menos num evento da área de educação. Às vezes era melhor concordar com a Lúcia...

            -Mas não me pareces muito animada com o prémio.

            -Tu já me conheces...

            -E eu repito o que sempre digo, quem não quer aparecer não deve fazer as coisas com tanta dedicação como tu fazes. Uma hora ou outra, vais dar nas vistas...vá lá receber o teu prémio, mas já aviso, quero-te aqui em uma semana.

Rimos juntas.

            -Não tenho nada de especial para fazer na Praia, além de receber o prémio. Regresso em poucos dias.

            - A menos que encontres a mulher rica que vai te levar para um castelo na Europa.

Mais uma vez rimos. Eu brincava que queria uma mulher rica que me tirasse dessa vida de trabalhar para pagar as contas e que com certeza ela não seria daqui.

            -Na Praia?

            -Hmmm, se por aqui, com alguma afluência de turistas estrangeiras ainda a tua mulher rica não apareceu, não me parece que na Praia as chances aumentem. Mas também não te entendo, teve aquela consultora inglesa que colaborou contigo há alguns meses e que claramente queria alguma coisa e tu não deste a menor condição.

Ela riu da minha cara de desânimo. Na realidade, eu brincava com essa história de mulher rica. O que eu queria mesmo, era apenas uma companheira para seguir na vida. Queria, mas não alimentava qualquer ilusão. Minha vida nessa matéria andava tão parada...pelo menos de mulheres com quem poderia pensar em seguir pela vida...

            - Vais ficar em qual hotel? Eles pagam tudo, certo?

            - Pagam...mas eu preferi um airbnb...

            - Sabrina, tu nunca mudas. Podendo ter a mordomia de um hotel, vais ficar num airbnb e tenho a certeza que nem escolheste um sofisticado.

            -Eles fizeram a reserva e sabes que não ligo para nada disso. Sendo limpo e sem barulho, eu já me dou por satisfeita.

            -E com cortinas blackout.

Rimos muito.

            - Já sabes que vou ligar sempre e vê lá se me atendes. Eu sei que a senhora não gosta de telefones, mas eu não vivo sem ti. Temos muita coisa para estruturar para o evento do meio do mês. Bom, vou deixar-te em paz porque sei que a senhora não troca o trabalho por nada.

Ela saiu na mesma velocidade que entrou e embrenhei no trabalho.

***

            -Ei, colega maravilhosa!

Levei um susto, mas aquela menina tinha a mania de entrar em qualquer lugar sem anuncio prévio, que dirá pedido de permissão.

            -Catarina, claro. Bater à porta, para quê mesmo?

Ela riu e sentou na borda da minha secretária.

            -Imaginei que estivesses cansada e trouxe-te uma maçã e essas flores lindas que colhi pelo caminho enquanto vinha para cá. - E sorria com aquele seu ar de conquistadora barata.

            -Muito obrigada! - Coloquei as flores num copinho que ela mesma tinha trazido em outra ocasião e a maça num guardanapo.

            -Não tens fome? Como podes resistir a uma maçã tão linda como essa? Não te preocupes, não coloquei nenhuma poção mágica que te fará cair de amores por mim.

Não aguentei e soltei uma gargalhada. Essa menina...

            -Não tens nada para fazer? Não sei se lembras, mas és uma estagiária e em constante avaliação...

            -Queria a tua mentoria, mas também não sei para quê se não presto atenção. Quando é que abres uma exceção e aceitas sair comigo? Esquece essa coisa de idade, isso é coisa de gente tacanha.

            -Catarina, tu estás em experiência para a área de comunicação, eu não tenho nada a ver com esse departamento e sim, existe uma diferença de idade abissal entre nós...

            -Mas Sabrina, isso é retrogrado. Eu tenho 21 anos, sou adulta e ciente de todos os meus atos.

            -Eu também! E como podes ver estou atolada de coisas para fazer...

            -Ok, bela maneira de correr comigo daqui. Não sabes o que perdes...

            -Eu sei o que ganho em ter juízo.

            -Ao menos me achas linda? Eu preciso saber se daqui a alguns anos eu terei alguma chance.

Eu não podia rir, mas vontade não me faltava. Haja controlo. Fiquei calada e fiz cara de brava ou impaciente. Talvez as duas coisas juntas.

            -Ok. Já entendi. Não sabes o que perdes. Bom trabalho, senhora glaciar.

Ela saiu e pude rir à vontade. A Catarina não era a única mulher da empresa a querer conhecer-me melhor, mas com certeza era a mais ousada e persistente. Fora de questão qualquer envolvimento com colegas de trabalho. Mas eu achava engraçado a ousadia dos jovens dessa geração. Quando que na idade dela eu teria coragem de me atirar assim a uma pessoa mais velha? Jamais! Mordi a maçã e como estava boa. Por instantes pensei um pouco na minha vida fora do trabalho. Concluí que estava devagar, para não dizer em repouso absoluto. Com o meu telefone na palma da mão, dei por mim a premir a letra Z. Desisti antes de tentar...

***

Entrei em casa com uma sensação de cansaço absoluto, mas ainda teria de arrumar a mala. A viagem seria apenas ao final da tarde do dia seguinte, mas eu gosto de tudo feito com antecedência. O que eu queria mesmo, era tomar um banho morno e cair no meu sofá de pijama e ouvir música até adormecer. Descalça e começando a tirar as roupas, ouvi um barulho vindo do meu quarto. Estranhei, nem era dia da Guima, ou será que era? Andava confusa com tanta demanda...

            -Guima? - Gritei ciente de que só podia ser minha auxiliar doméstica.

            -Sabrina, desculpa-me por ainda estar aqui, mas hoje o meu dia foi terrível.

            -Que dia é hoje?

            -Hã? Quinta feira! Já sei, muito trabalho e perdeste a noção do tempo.

            -Na realidade estou preocupada com uma viagem de última hora e acabei confundindo tudo.

            -Vais para fora?

            -Quem me dera. Viagem de trabalho à Praia. Poucos dias...

            -Ah, mas tu gostas muito da Praia...eu não gosto, acho muito confuso para a minha cabecinha.

            -Eu adoro! Já fui muito feliz por lá...- Quase entrei em devaneio e só não alcancei tal estado porque Guilhermina falava pelos cotovelos. Eu e Lúcia partilhávamos a mesma auxiliar doméstica. Para ser sincera, eu gostava de cuidar da minha casa, mas a Guima era tão boa gente que acabei me acostumando a ter alguém que cuidasse das minhas coisas.

            -Vais aproveitar e tirar alguns dias de férias. Bom, pelo menos era o que deveria fazer. Tem as tuas amigas por lá, gostas daquela confusão e precisas descansar.

Ela estava certa. Eu precisava descansar um pouco e sim, tinha alguns dias livres. A instituição pela qual receberia o prémio, tinha deixado a viagem de regresso em aberto. Mas eu não queria pensar em nada, sentia-me exausta.

Tomei o banho morno que meu corpo exigia e deixei-me ficar na cama. Algum tempo depois, saí do quarto para beber água e ganhar coragem para arrumar a mala. A Guima ainda estava às voltas com as arrumações. Ela é detalhista e nunca tem pressa.

            -Guilhermina, não precisas fazer tudo num único dia. Tens dois dias na semana, mulher. - Ri da cara de doida que ela fez.

            -Estou a deixar tudo em ordem antes da tua viagem. - E seguia arrastando tudo dos cantos e eu desisti de argumentar. Não valia a pena.

            -Aproveita e passe alguns dias de férias. Deve ter alguma vantagem trabalhar por conta própria.

Sorri, sabia que era uma crítica. Ela passava a vida a questionar a minha dedicação excessiva ao trabalho.

            -Sabes que o trabalho na universidade é diferente do meu trabalho como consultora...

            -Mas deve haver alguma vantagem em ser amiga da dona Lúcia. Não é ela que manda naquela empresa toda?

            -Quase isso...mas há compromissos que ultrapassam a nossa relação de amizade. Guilhermina, preciso trabalhar.

            -Eu já acho que esqueceste que há mais coisas na vida, além desse computador e esse monte de livro que lês. Dona Sabrina, a senhora já não corre para nova...

Tive vontade de rir, mas consegui sustentar minha fisionomia neutra. Quando ela começava a me tratar por senhora era porque estava realmente preocupada.

            -Está bem conservada pelos seus quase 50, mas se não movimentar essas águas, daqui a pouco...

Ela seguia na sua doutrinação e eu não consegui evitar uma gargalhada.

            - Eu fiz 45 anos, Guilhermina.

            -E o que falta para 50? Eu achava que estava longe dos 40 e quando dou por mim, estou com 39 anos.

            -Tu és jovem, Guima.

            -E daqui a pouco estou com netos. Já avisei lá em casa que se tiverem filhos, eles que cuidem. Já não tenho controle sobre o Carlos e a Cíntia, são adultos. Só me resta zelar pela Carina, que ainda é adolescente.

            -Teus filhos são centrados. Nem sabes a bênção que é...

            -Dona Sabrina, - Ela colocou as duas mãos na cintura, sinal que vinha bomba a seguir - se essa história de gostar de mulher não está a dar resultados, porque a senhora não experimenta um homem?

Eu ri, mas eu ri tanto que quase me faltou ar.

            - Eu sinceramente não entendo como uma mulher tão bonita como a senhora, pode preferir...ai, não gosto nem de pensar nessas coisas. Não cabe na minha cabeça...- E ela batia a cabeça em negação.

            -Mas precisa caber na minha e cabe direitinho. - Sorri e ela me encarou com uma certa indignação no olhar. Pelo menos era o que parecia.

            -O tempo passa Sabrina...eu queria tanto ver-te feliz. Que fosse com uma mulher se é assim que quer. És boa pessoa, uma mulher bonita, educada...

            -E muito exigente. - Sentenciei.

            -Não exageres muito. Hoje em dia não podemos ser muito exigentes ou as coisas não fluem. Minha filha que sempre diz isso e acho que ela está certa.

            -Não é fácil abrir mão de princípios...

            -Meu Deus, já tenho de lidar com a dona Lúcia que complica demais as coisas, e agora tu pareces querer seguir a mesma cartilha. Ela com esse namoro entre Mindelo e Estados Unidos. Isso existe? Alguém namora assim? Às vezes eu acho...desculpa...parei...

Olhei-a com reprovação. Não falar da vida alheia era uma regra muito clara e inviolável.

            -Se calhar, as senhoras deveriam namorar. - As conjecturas dessa criatura eram hilariantes.

Ri, mas ri tanto que me senti leve.

            -Combinar, não combinam, mas quem sabe não é isso que fará as coisas darem certo. Quem sabe?

            -Guilhermina, vá trabalhar que preciso resolver algumas coisas da minha viagem.

            -Já sei...nesse bendito computador. E pensar que hoje em dia as pessoas namoram por ele. Que desperdício! Vou trabalhar que é para isso que a senhora me paga.

***

Mais tarde, depois de arrumar tudo para a viagem e estar finalmente em paz com o stress que eu invento para a minha vida, tentava ler um pouco do meu livro do momento. Não avancei cinco paginas, lia e relia e não retinha uma vírgula. As loucuras de Guilhermina ecoavam pela minha mente. Não sei muito bem o que aconteceu com ela para tamanho destempero. Ela não é a pessoa mais discreta do planeta, longe disso, mas raramente dá palpites sobre a minha vida e já convivemos há mais de 2 anos. Será que eu já tinha extrapolado o bom senso? Eu tinha a noção que vivia pelo trabalho e que ultimamente estava mais caseira do que nunca. Será que já beirava a neurose? E eu que parei de ir na terapia. Falta de tempo...

Sobre mulheres...que preguiça. Na realidade não era bem preguiça, mas ultimamente apenas mulheres héteros pareciam se interessar por mim. Para cutucar o meu trauma, só podia ser por isso. Tinha inventado de viver uma experiência com uma mulher hétero e casada. Um pesadelo!!! Só de relembrar, sou assolada por uma angustia avassaladora. Quero paz para a minha vida. Paz e bom sex*, mas prefiro a paz.

Mais uma vez me vi tentada a percorrer a lista alfabética do meu telefone atrás de sex* bom. Tinha algumas possibilidades, gente que assim como eu, depois do sex* não queria mais nada. Desisti. Não sabia ao certo o que queria, mas com certeza não era sex* por sex*. Não naquele momento...

            -Preciso encontrar tempo para voltar à terapia.

***

No avião, a caminho da Praia, eu me sentia alegre e de certa forma expectante. Não visitava a capital há mais de um ano e estava com saudades. Pensei na Glória e no escândalo que faria por eu não informar da viagem e por não ficar em casa dela. Por mais que me conhecesse, ela nunca se conformaria com meu jeito de ser. Não gosto de incomodar ninguém e adoro minha liberdade. Claro que iria estar com ela e com a Malú e com alguns outros amigos queridos. Mas sem stress, no meu tempo.

Sorri ao avistar o farol Dona Maria Pia, em minutos estaria na Praia.

Fim do capítulo