O Reencontro
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – 08h45
Verena estava sentada à cabeceira da longa mesa da Sala 5 do 1º andar. A mesma sala onde já tinha comandado dezenas de reuniões com firmeza, onde já derrubara argumentos rasos com uma única frase precisa, onde sua presença era sinônimo de autoridade. Mas hoje… algo escorregava por dentro.
A caneta tinteiro repousava entre os dedos. Não anotava nada. Só girava. Suavemente. Em círculos.
— Deputada Castilho? — a voz do assessor da comissão de Orçamento soou. — A senhora quer comentar esse trecho da proposta?
Ela ergueu os olhos, demorando um segundo a mais que o habitual. Tinha lido o relatório, claro. Mas parecia que nenhum conteúdo fixava. Nenhum número fazia sentido. Como poderia? Faltavam menos de 30 horas.
— Sim — disse, clara, a voz firme. — Mas quero ouvir os argumentos finais da bancada do PSOL primeiro.
O assessor assentiu, satisfeito. Verena manteve a postura ereta, cruzou as pernas com elegância. Mas por dentro… um redemoinho. Uma mistura insuportável de ansiedade, medo, desejo e uma culpa que latej*v*.
Valentina.
Nem mesmo pensava o nome em voz alta. Mas ele ecoava o tempo todo.
O celular vibrou no modo silencioso, como um sussurro contra a madeira polida da mesa. Verena não olhou. Não podia. O gesto parecia pequeno demais para alguém como ela — e perigoso demais para alguém como ela hoje.
Mas o pensamento voou até a imagem que não saía da cabeça. Aquele story. Aquela indireta que queimava mais que elogio explícito. E o rosto da menina no perfil… tão jovem, tão doce, tão…
— …deputada? — foi Rafaela dessa vez, num tom mais baixo, porém incisivo. Do outro lado da mesa.
Verena despertou, como se tivesse voltado de um transe.
— Perdão — respondeu com um leve movimento de cabeça. — Continue.
Rafaela apenas sustentou o olhar por um segundo. Sabia o que estava acontecendo. Não disse nada.
A reunião seguiu. Verena fingiu que estava presente. Disfarçava bem — como sempre. Mas seu corpo denunciava o oposto. As unhas curtas marcando levemente a lateral da coxa por baixo da calça de alfaiataria. O salto batendo imperceptivelmente no chão, no ritmo de uma inquietação crescente.
Por fim, a sessão interna foi encerrada.
No corredor, já com menos pessoas ao redor, Verena respirou fundo. Olhou as notificações no celular. Mensagens de grupo. Um e-mail do jurídico. Um emoji de foguinho da Lilian em alguma postagem antiga. Ela apertou o botão lateral com força. Bloqueou a tela. Piranha, pensou, com raiva contida.
— Tá impossível, né? — Rafaela apareceu ao lado, com uma pasta de documentos sob o braço.
— O que exatamente?
— Fingir que não tá pensando nela.
Verena virou-se devagar, o olhar frio.
— Estou pensando na votação da tarde.
— Aham. E eu virei presidente da Alesp — Rafaela respondeu seca. — Eu espero que você tenha noção do risco que tá correndo por não saber conter seus caprichos.
Verena bufou. Quase riu, de nervoso. Segurou a pasta que carregava com força, endireitou a postura e caminhou firme até seu gabinete. Cada passo ecoava mais do que gostaria.
Faltavam poucas horas.
E ela não sabia se torcia pra voar ou pra congelar no tempo.
Gabinete 312 – 09h12
Verena entrou e fechou a porta com mais firmeza do que pretendia. O barulho seco ecoou pelo espaço silencioso. Não havia ninguém ali — ainda. A sala estava organizada, como sempre: a mesa limpa, o porta-canetas alinhado, o blazer reserva pendurado na arara.
Ela soltou a pasta sobre o tampo de vidro e parou em frente à janela.
Lá fora, o céu oscilava entre nuvens densas e frestas de sol tímido. Quase como ela: oscilando. Por dentro, um terreno instável.
Um dia.
Ou menos.
O relógio no canto da tela do notebook marcava 09h12. Faltavam exatamente vinte e quatro horas e quarenta e oito minutos até a sua chegada à escola. A apresentação. A roda de conversa. A presença inevitável.
Valentina.
Verena passou a mão pelo rosto, tentando reorganizar os pensamentos como quem empurra papéis soltos pra dentro de uma gaveta. Em vão.
A imagem da menina voltava sempre. Não da última vez que se viram. Mas da última vez que quase se viram. O story. Aquela música ambígua. O fundo desfocado. O rosto em meia luz. A indireta discreta. Como se dissesse "tô viva", mas em silêncio.
E estava.
E isso bastava pra tirar Verena Castilho do eixo.
Ela apertou os olhos. Inspirou fundo. Tentou se ancorar no que era concreto: a pauta da tarde, a entrevista com a Folha, o discurso que ainda precisava revisar. Mas era inútil. O nome voltava como um refrão.
— Valentina.
Disse baixo, só uma vez. Quase sem som.
A porta se abriu com uma batida leve. Rafaela entrou, ainda com a pasta de antes e um copo de café na mão.
— Fala baixo o nome dela, por favor. Essa sala tem ouvidos — disse, deixando o copo na mesa.
Verena não se moveu.
— Eu não falei.
— Falou. Eu ouvi. E, sinceramente, se até eu tô ouvindo pensamento agora, imagina amanhã com metade da escola olhando.
Verena se virou lentamente.
— Você veio me lembrar do óbvio ou tem alguma informação útil?
— Os dois. — Rafaela se sentou no braço do sofá, cruzando as pernas. — Já falei com a diretora da escola, confirmaram sua presença na roda de conversa, organizaram a quadra, provavelmente colocaram até banners com a sua cara, e vão dar um microfone pra você dizer que a juventude importa. Tudo pronto.
— Ótimo.
— Menos você.
Verena encostou-se na lateral da mesa, os braços cruzados.
— Eu tô bem.
— Você tá um caco bem vestido. Isso sim.
Ela não respondeu. Só encarou o chão por alguns segundos, como se ali houvesse alguma resposta que ainda não tinha lido.
Rafaela ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, falou num tom mais baixo:
— Eu sei o que isso tá fazendo com você. E sei que você acha que pode controlar. Mas, Vê... você não controla mais nada. Desde o dia em que ela entrou naquela porta.
Verena apertou os dedos contra o braço.
— Isso vai passar.
— Vai. Depois que você implodir o que ainda tem de vida estável.
— Eu não vou fazer nada.
— Já tá fazendo.
Verena soltou o ar com força, como quem tenta desentupir o peito. Rafaela bebeu um gole do café, depois sorriu com leveza.
Verena se sentou, pegou a caneta e começou a rabiscar palavras aleatórias numa folha em branco.
— Me lembra de revisar o discurso antes do almoço.
Rafaela deu um leve sorriso. Mas não era o mesmo de antes. Tinha alguma coisa ali, algo que endurecia o rosto.
— Claro. Se você ainda quiser que eu revise alguma coisa pra você.
Verena parou o movimento da mão. Olhou por cima dos óculos.
— Que parte da sua função te parece opcional?
— A parte que envolve saber quando minha opinião realmente importa — respondeu Rafa, já se levantando. — Porque ultimamente, você só escuta quando convém. E quando não convém… você escapa. Ou ignora.
Verena ergueu uma sobrancelha, calma.
— Não tô te ignorando, Rafaela.
— Ah, não? Então foi outra Verena que me cortou no meio da frase terça passada. Outra que saiu da reunião sem nem olhar pra trás. Outra que manda recado por ofício, mas evita conversa direta.
— Eu tenho tido dias difíceis — rebateu, seca. — Ou você quer que eu desenhe?
— E eu tô tentando evitar que esses dias virem meses. Ou manchete.
As duas ficaram em silêncio por um segundo.
A tensão, fina como linha de náilon, esticava-se entre elas.
Rafaela ajeitou a bolsa no ombro, os olhos firmes.
— E só pra constar… você tá ficando ruim em disfarçar, tá?
— Disfarçar o quê?
— O jeito que você fica cada vez que pensa nela. A forma como se desfez por dentro desde quando ela saiu. A sua calma é uma performance. Boa, mas cansada.
Verena respirou fundo, desviando o olhar.
— Que diagnóstico impressionante — murmurou, sem ironia. — Vai abrir consultório agora?
Rafaela não riu. Nem sorriu.
— Só tô dizendo o que você finge que não sabe.
Verena voltou os olhos pro papel, girando a caneta entre os dedos outra vez. O silêncio se alongou. Mas não era confortável.
Rafaela já estava a meio passo da porta quando ouviu, baixa, a voz da outra:
— Você mudou.
Ela parou, sem virar.
— Talvez tenha mudado porque precisei.
Verena a encarou por um segundo mais. Havia algo ali. Uma postura diferente. Um afastamento. Um tipo de frieza que ela conhecia — mas nunca tinha visto vindo de Rafaela.
A assessora saiu sem mais nada.
A porta se fechou com precisão.
Verena permaneceu sentada, a coluna reta, o olhar fixo em nada.
Não sabia o que era pior: o nome que pulsava o tempo todo dentro dela… Ou a sensação incômoda de que começava a perder o único elo que sempre achou inabalável. E ainda era só o começo do dia.
Escola Estadual Prof. Luiz Roberto Pinheiro – Quinta-feira, 11h10
O som do ventilador da sala girava em falso, rangendo no teto como se pedisse socorro. Os últimos minutos de aula se arrastavam, e os alunos já estavam mais preocupados com o que iriam comer na saída do que com a análise sintática no quadro.
Valentina, sentada na segunda fileira, fingia copiar o exercício. Mas a folha estava quase em branco.
A caneta entre os dedos tremia só um pouco. Ninguém parecia notar. Só Carol.
A amiga, na carteira de trás, já tinha fechado o caderno e apoiado o queixo na mão. Os olhos alternavam entre o relógio e a nuca da amiga — onde alguns fios de cabelo já grudavam de leve pelo suor.
— Falta pouco — sussurrou assim que o sinal tocou.
Valentina recolheu as coisas devagar, como se o tempo estivesse mais denso em volta dela. A mochila pesava como se carregasse concreto, não cadernos. O corpo, desde cedo, parecia em suspensão. Uma vigília constante.
Carol se aproximou pela lateral e, com o cotovelo, cutucou a amiga.
— Tá pronta pra amanhã, deputadinha?
Valentina arregalou os olhos.
— Fala baixo!
— Ué, e eu falei alto? — disse, com a cara mais cínica do mundo. — Falei só pra você.
— Alguém pode ouvir…
— Ai Valen, ninguém tá ligando. A única coisa que os meninos tão ouvindo agora é o barulho da fome.
Valentina mordeu o lábio, corada.
Saíram juntas da sala. No corredor, o calor parecia ainda maior. O cheiro de merenda revirada no lixo se misturava ao do desinfetante passado às pressas. Um grupo do 3º ano passava correndo, empurrando um ao outro.
Valentina se encolheu instintivamente. Caminhava devagar, os ombros ligeiramente curvados, o olhar preso aos próprios passos. Carol, ao lado, alternava entre vigiar a amiga e pensar em como quebrar o silêncio.
Até que quebrou.
— Você vai ter coragem de perguntar alguma coisa amanhã?
Valentina virou o rosto na hora.
— O quê?
— Na roda de conversa. Você vai perguntar? Falar alguma coisa pra ela?
— Claro que não — respondeu, rápido demais. — Eu nem sei se vou ter coragem de participar, Carol.
— Nossa... mas eu achei que você queria. Tipo, mostrar que tá bem, que superou. Sei lá...
Valentina engoliu seco.
— Não tem nada superado. Não tem nada que superar.
Carol a olhou de lado. Depois suavizou o tom.
— É, eu sei. Foi só jeito de dizer.
As duas continuaram andando, em silêncio por alguns passos. Até que Carol não resistiu:
— Mas assim... você acha que ela vai olhar?
Valentina olhou tão rápido que a amiga riu.
— Que foi? Tô só perguntando! Porque se ela olhar, eu vou ver. Eu quero ver com esses dois olhos aqui — disse, apontando pra si. — Porque até hoje, tudo que eu sei foi o que você me contou.
— Carol…
— Não! Pensa comigo: você, crente tímida, toda quieta, doida pra sumir do planeta quando esquece de rezar antes de dormir… e de repente vem me contar que quase beijou a deputada no carro. Aí eu fico como?
Valentina fechou os olhos, vermelha até a orelha.
— Eu devia ter ficado calada.
— Devia nada. Você me contou porque confia em mim. E agora eu tô curiosa, ué. Quero ver com esses dois olhos que a terra há de... enfim, você entendeu.
— Carol, pelo amor de Deus...
— Tá bom, tá bom — disse, levantando as mãos em rendição. — Mas amanhã, se ela te olhar daquele jeito... você vai fingir costume?
Valentina mordeu o lábio, desviou os olhos.
— Eu não sei nem se vou conseguir olhar de volta.
Carol parou por um instante, segurando a amiga pelo braço.
— Então olha. Mas não congela. Você não é a mesma menina que entrou naquele estágio tremendo. Você viveu. Sobreviveu. E agora vai voltar com blush no lugar e olhar firme. Se ela olhar... devolve.
Valentina assentiu devagar. Os olhos brilhando, mas o sorriso ainda tímido.
— E se eu travar?
Carol sorriu, carinhosa.
— Aí eu invado a quadra, chamo de “deputadinha” no microfone e carrego você no colo.
Valentina riu, mesmo envergonhada.
— Você é maluca.
— E você é linda. E amanhã vai ser forte.
Caminharam mais um trecho em silêncio. Ao longe, os portões já começavam a se abrir. A manhã terminava. E o coração da Valentina parecia só saber bater fora de ritmo.
Jardins – Quinta-feira, 14h52
Sorveteria gourmet “Lumière Gelato Artigianale”
Silvia girava suavemente a colher de inox dentro do copinho de porcelana branca. Escolhera dois sabores que combinavam com o dia quente: limão-siciliano e lavanda. Mariana, como sempre, optara por algo mais extravagante — pistache com flor de sal e caramelo de laranja.
— Eles inventam umas coisas que eu nem sei se gosto ou só acho bonito — disse Mariana, rindo, enquanto mexia o sorvete com ar de criança entediada.
— Eu acho que você gosta do conceito — respondeu Silvia, com aquele sorriso contido. — E do garçom.
Mariana arregalou os olhos, teatral.
— Que calúnia.
Silvia deu um riso leve, e por um momento, tudo parecia leve mesmo. A mesa na calçada da esquina arborizada, os carros passando devagar, os casais em suas conversas contidas, o sol filtrado pelas árvores.
— E então? — retomou Mariana, recostando-se. — Depois do nosso almoço italiano… o que aconteceu? Você falou com ela?
Silvia ergueu os olhos, pigarreando suavemente antes de responder.
— Falei. No mesmo dia, aliás.
— E?
— Disse que era hora. Que não dava mais pra fingir que o tempo ia parar esperando a nossa estabilidade perfeita.
Mariana a observou por um segundo.
— E como ela reagiu?
Silvia ajeitou os óculos escuros no alto da cabeça, como se isso lhe desse tempo.
— Disse que estava tudo bem. Que também quer. Que só precisava… organizar as coisas.
Mariana estreitou os olhos, cética.
— “Organizar as coisas” é o novo “me dá só mais um tempo pra continuar fingindo que não tenho pânico de maternidade”?
Silvia manteve o sorriso no rosto, mas não respondeu. Mexeu o sorvete. Um pouco já havia derretido.
— Vocês são casadas há sete anos, Sil. E toda vez que esse assunto vem, ela responde como se fosse uma jovem promissora de vinte e cinco anos tentando terminar o mestrado.
— Eu sei — disse Silvia, por fim, mais baixo.
Mariana a olhou por alguns segundos. Depois mudou de assunto.
— Vai ter evento da OAB amanhã. Você vai?
— Não sei. Depende da tarde no escritório. A Renata tá cobrindo uma audiência em Diadema, e o Ricardo resolveu tirar dois dias no meio do mês. Acho que vou ter que apagar incêndio sozinha.
— É sempre você apagando tudo, né?
— Nem sempre.
— Sempre, Silvia. Até quando ela tá emocionalmente fora do planeta, você é quem segura a pose, a casa, a imagem, tudo.
Silvia ficou em silêncio. O talhe do rosto permanecia sereno, mas havia algo diferente nos olhos.
Mariana puxou o celular e mostrou uma foto de um vestido que estava em dúvida se comprava ou não. Silvia sorriu, comentou que a cor era linda. Seguiram assim, por alguns minutos — amenidades, comentários rápidos, ironia de leve.
Até que um casal passou pela calçada, conversando em voz baixa. Jovens, talvez no fim da faculdade. As mãos entrelaçadas. As risadas tímidas. A menina, de vestido florido e mochila jeans, encostou de leve a cabeça no ombro do rapaz.
Silvia não conseguiu não olhar.
Ficou com os olhos presos naquela cena por um segundo a mais do que gostaria. Mariana percebeu.
— O que foi?
Silvia desviou o olhar, rápido.
— Nada.
— Foi alguma coisa.
— É que... não sei. Me lembrou a gente, anos atrás. A Verena… ela era assim, no começo.
— Ah — Mariana disse apenas.
Silvia mexeu o sorvete, que agora era só um creme derretido.
— Às vezes eu tenho a impressão de que... tudo ficou mais bonito com o tempo, menos a gente.
A frase veio baixa. Honesta demais pra quem quase nunca deixava escapar nada.
Mariana se inclinou levemente.
— Vocês ainda se amam?
Silvia não respondeu de imediato.
— A gente se respeita. Se cuida. Se admira.
— Mas se ama?
Silvia respirou fundo. Sorriu. Mas não respondeu.
Do outro lado da rua, o casal jovem sumia pela esquina. Rindo de algo que não importava.
Na mesa, entre sorvetes gourmet e copos com água aromatizada, uma mulher bem-sucedida, elegante e segura... sentia, pela primeira vez em muito tempo, que talvez estivesse perdendo algo. E nem sabia exatamente o quê.
Assembleia Legislativa de São Paulo – Gabinete Verena Castilho – Quinta-feira, 17h36
O relógio da parede avançava, mas a luz do entardecer já tingia o gabinete de âmbar. A mesa de Verena estava tomada por pastas abertas, documentos grifados, pareceres impressos com marcações à caneta. O ar-condicionado roncava no canto, vencido pelo calor.
Na ponta da mesa, o assessor jurídico do gabinete, Daniel, falava com um tom técnico, quase monótono, como se isso tornasse menos absurda a situação.
— …e hoje recebemos o aditamento do Carmona ao pedido de providência. Alegam quebra de decoro, incitação à violência verbal e ataque à honra parlamentar.
Verena passou os olhos pelo texto. Uma folha solta do processo tinha um print colado — o trecho da entrevista para Lilian, em que ela dizia, com aquele meio sorriso de desprezo:
" Diante de um homem que já casou quatro vezes e não conseguiu segurar nenhuma mulher por mais de dois verões... eu até fico tentada a acreditar que sou mais homem que ele
Ela fechou a pasta com um estalo seco.
— É impressionante — disse, ajeitando os óculos. — Ele é um misógino, um covarde, um populista barato, mas sabe usar o sistema jurídico como quem usa uma espingarda: com a segurança de quem não vai nem carregar a munição sozinho.
Daniel trocou um olhar breve com a advogada do gabinete, Maíra, que permanecia em silêncio até então.
— A questão — disse ela, por fim — é que, tecnicamente, a frase pode ser interpretada como ofensa pessoal, especialmente se descontextualizada, o que já aconteceu. A entrevista circulou em páginas da base bolsonarista, o gabinete dele está usando isso como prova de perseguição ideológica.
Verena girou levemente na cadeira, apoiando os cotovelos nos braços e entrelaçando os dedos.
— Perseguição ideológica? — repetiu com um riso curto. — Ele gritou no meu rosto no plenário. Apontou o dedo. Me chamou de vagabunda. E agora eu sou o problema porque fui espirituosa?
— O problema é que o espírito foi registrado em vídeo, publicado, compartilhado e transcrito num processo. E agora tá servindo de munição. — Maíra falou com frieza, como quem já perdeu o gosto de tentar suavizar a realidade.
— E qual a chance de isso prosperar? — perguntou Rafaela, que até então permanecia em pé, ao fundo da sala, braços cruzados, expressão tensa.
— Muito baixa — respondeu Daniel. — Mas suficiente pra encher o saco. A Corregedoria não vai ignorar um processo formal, ainda mais com o Carmona pressionando por pareceres.
Verena levantou-se. Caminhou lentamente até o frigobar, pegou uma água com gás, abriu com um estalo e voltou a se sentar. Bebeu um gole como quem saboreia a própria indignação.
— Ele não quer me punir. Ele quer me diminuir.
— E você sabe como ele é — disse Rafaela, agora se aproximando. — Ele vai repetir isso até parecer verdade. Vai explorar tua fala fora de contexto, usar seus trechos na CPI da educação, jogar sua imagem na lama e dizer que a esquerda quer "virar homem e apagar o cristão". Ele já fez isso antes.
Verena encostou-se na cadeira, os olhos fixos num ponto indefinido.
— Eu nunca quis virar homem. Só sempre fui mais forte que todos eles.
Um silêncio pesado se formou na sala.
— A gente pode entrar com um contra-argumento técnico — disse Maíra, pegando outra pasta. — Mostrar a escalada de agressividade dele antes do episódio, os vídeos do plenário, as falas ofensivas. Talvez usar o dossiê da Comissão de Ética da legislatura passada.
Verena assentiu devagar.
— Faça isso. Mas sem perder tempo com maquiagem de discurso. Se a gente for responder, vai ser com o mesmo tom.
Rafaela ergueu uma sobrancelha.
— Você quer bater de frente de novo?
Verena olhou pra ela com aquela firmeza de quem não está perguntando.
— Eu quero que ele sinta medo antes de falar meu nome da próxima vez.
Maíra e Daniel trocaram olhares de novo, um pouco tensos.
— Tá — disse Rafaela, enfim. — Mas não esquece: amanhã você vai estar em uma escola, diante de adolescentes, mães, professores e o Instagram inteiro.
Verena sorriu.
— E justamente por isso eu vou estar com o batom impecável.
Ela se levantou, recolheu a pasta com os documentos e saiu da sala de reunião rumo ao gabinete interno.
Rafaela ficou parada por um instante. Depois comentou com Maíra:
— Ela vai acabar matando esse homem com uma frase.
Maíra deu de ombros.
— Melhor com uma frase do que com um sapato Louboutin.
Gabinete Interno – Alesp – Quinta-feira, 19h30
Verena estava sozinha, finalmente. Luz baixa, blazer jogado sobre a poltrona, a camisa social com os dois primeiros botões abertos. A pasta com o parecer do jurídico ainda aberta na mesa, mas os olhos... vagavam.
Estava exausta. Por fora, sustentava tudo — como sempre. Mas por dentro, as estruturas tremiam.
Pegou o celular do bolso. Ia verificar os compromissos do dia seguinte, rever o ofício da escola, tentar organizar os horários da roda de conversa.
Mas então, apareceu.
Número desconhecido.
“Quando vamos nos ver de novo? Não consigo parar de pensar em você.”
Verena congelou.
Os olhos fixos na tela.
O coração deu aquele pulo seco, como se tivesse escorregado dois andares sem aviso.
Ela leu de novo.
A mesma mensagem.
Uma gota de suor escorreu da têmpora, como se o corpo tivesse acabado de captar o grau do problema.
Sentiu a mão formigar.
Leu de novo. E de novo.
A frase era curta. Mas não deixava margem. Não era ameaça. Não era profissional. Não era erro.
Era pessoal. Íntima. Imprudente.
E ela sabia exatamente de quem vinha.
Lilian Nobrega.
A única pessoa com coragem — ou audácia — pra escrever aquilo, do nada. De um número que Verena nunca tinha dado.
Passou as mãos no rosto.
“Como essa filha da puta conseguiu meu número?”, pensou, o sangue fervendo por trás da pele gelada.
Bloqueou a tela. Depois desbloqueou. Abriu o WhatsApp.
Nada.
Era SMS.
SMS.
Ou seja: sem rastreio, sem bloqueio direto, sem foto de perfil, sem confirmação de leitura. Um método antigo. Mas eficaz.
Verena apoiou o celular na mesa e se afastou, como se o objeto estivesse prestes a explodir.
Deu dois passos. Parou.
Voltou.
Levantou o aparelho outra vez, só pra se certificar. A mensagem ainda estava lá.
E Lilian...
Lilian era um problema em forma de mulher.
Verena digitou uma resposta, mas apagou. Escreveu de novo. Apagou de novo. Jogou o celular sobre a mesa com mais força do que deveria.
— Desgraçada — murmurou, apertando a ponte do nariz.
O mais assustador não era ela ter mandado. Era ter lido quatro vezes antes de reagir. E, pior, lembrar do perfume na hora.
Ficou em pé, andou até a janela do gabinete, olhou a escuridão da cidade por trás do vidro espelhado. A cabeça latej*v*. A jornalista que tinha lhe arrancado frases perigosas numa entrevista casual demais. Que flertava com a ruína alheia como quem brinca de xadrez com o destino. Que sabia o efeito que causava. E agora... invadia o único espaço que Verena ainda achava seguro: o pessoal.
Apartamento – Jardins – Quinta-feira, 21h12
A porta se abriu com o clique seco da chave. Verena entrou já tirando os sapatos. Os ombros caídos, a bolsa escorregando devagar da mão, o corpo exausto… mas o impacto foi imediato: a luz morna da sala já estava acesa, e ali, logo à frente, como se a cena estivesse cuidadosamente montada, estavam Silvia e Mariana.
Silvia estava sentada de lado no sofá, um dos pés descalços apoiado na almofada, uma taça de vinho na mão. Ao lado dela, Mariana — elegante como sempre, vestido fluido, rindo de algo recém-dito. A garrafa aberta sobre a mesa de centro. Um pratinho com frutas. Dois copos já usados.
Verena demorou um segundo pra processar a imagem.
Silvia se levantou de imediato, cruzando o tapete em passos leves.
— Oi, meu bem — disse com aquele tom baixo e carinhoso de sempre. — Achei que fosse dormir no gabinete hoje.
Antes que Verena dissesse qualquer coisa, Silvia já tinha se aproximado e tocado de leve sua cintura, dando um selinho rápido, quase ritual.
Verena correspondeu — suave, automático. Mas dentro do peito, o impacto ainda reverberava.
— Resolvi voltar — disse apenas. — O dia foi... longo.
— Imagino. — Silvia deslizou a mão pelo braço da esposa antes de se afastar de volta ao sofá. — Nós almoçamos juntas. Mariana me sequestrou pra um vinho rápido. Já que você ia demorar...
Verena respirou fundo. A cabeça ainda processava a mensagem da Lilian. Agora, tinha que recalibrar o corpo inteiro pra parecer normal. Equilibrada. Casada.
— Não demorei tanto assim — respondeu, sem parecer contrariada. Mas quem sabia ler, via no sutil retardo dos gestos que ela não esperava por aquilo.
— Que sorte a nossa — disse Mariana, erguendo a taça num brinde discreto. — Já estávamos quase acabando a garrafa.
Verena forçou um sorriso, já avançando um pouco.
— Espero não estar interrompendo.
— Claro que não! Vem sentar com a gente — ofereceu Mariana.
Verena assentiu, largando a bolsa na poltrona. Mas antes, caminhou até a cozinha, pegou um copo de água. De costas, fechou os olhos por um segundo. Respirou fundo.
Processo. Mensagem. Escola. Roda de conversa. Valentina. Lilian. Silvia. Mariana. Um vinho. E ainda é quinta.
Voltou à sala com o copo na mão.
— Estavam falando sobre o quê?
— A gente tava conversando sobre a agenda de amanhã — disse, casual. — A Silvia me contou da visita na escola. Fiquei curiosa com o formato. É algo aberto?
Verena tomou um gole d’água e se sentou com delicadeza na poltrona a frente. Não comentava a visita. Mas quem entendia, via a tensão nos ombros, a leve hesitação no copo, o resíduo de choque no olhar.
— É institucional. Voltado pros alunos.
— Ah, que pena — Mariana disse, sorrindo. — Seria interessante te ver em ação com os jovens. Você tem um jeito tão… magnético.
Verena forçou um sorriso.
— E a presença da deputada tem qual papel? — provocou ainda, já deslizando um pouco além do aceitável. — Institucional? Simbólico? Ou estratégico mesmo?
A deputada sustentou o olhar da amiga da esposa por um segundo a mais.
Silvia notou.
— Mariana... — disse num tom suave, de aviso.
— Eu tô só brincando — rebateu ela, rindo. — A Verena sabe lidar com farpas. Ela mesma já jogou várias melhores que as minhas.
Verena terminou o copo d’água. Cruzou as pernas, endireitou a postura.
— Eu sei lidar com o que tem substância. Farpas sem argumento são só barulho.
Mariana sorriu, satisfeita. Tinha provocado. E recebido de volta.
Silvia deu um leve sorriso nervoso e se levantou lentamente, indo até a esposa novamente.
— Quer que eu prepare alguma coisa pra você comer?
— Não precisa. Tô sem fome.
— Pelo menos uma fruta. Você comeu mal o dia inteiro, aposto.
Verena hesitou. Depois assentiu com um aceno de cabeça.
Silvia sorriu e seguiu até a cozinha, com passos leves. Mariana cruzou as pernas, observando a cena como quem assiste a uma peça em andamento. Sabia que ali, naquela aparente tranquilidade, o subtexto gritava.
Girou a taça entre os dedos, observando Verena em silêncio por alguns segundos.
— Não vai ser um dia fácil, né?
Verena ergueu os olhos.
— Nenhum dia é.
— Mas amanhã... é outro tipo de teste. E você sabe.
Verena manteve o olhar firme.
— Se tem algo que eu sei, Mariana, é me comportar quando tudo dentro de mim quer explodir.
— Esse é o problema — respondeu, de leve. — Um dia você explode. E todo mundo finge que se surpreende.
Silêncio.
Do outro lado da parede, Silvia partia uma pera com cuidado.
E Verena… não sabia mais o que queria esconder, nem de quem.
Apartamento – Jardins – Quinta-feira, 22h04
A taça de vinho de Mariana já estava vazia. Silvia voltara da cozinha com uma tigela pequena de frutas, que colocou sobre a mesa com discrição.
Verena aceitou alguns pedaços da pera, mastigando devagar. A conversa seguiu em amenidades por mais alguns minutos — comentários sobre a nova secretária da Cultura, o projeto que Silvia tinha com o escritório, um comentário ácido da Mariana sobre um advogado da base que tinha feito Lattes com IA.
Quando o relógio já passava das dez, Verena apoiou as mãos nos braços da poltrona e se levantou com suavidade.
— Eu já vou indo. Preciso revisar algumas coisas pro evento de amanhã.
Silvia assentiu com um sorriso gentil.
— Eu vou daqui a pouco.
Mariana também sorriu, mas com aquele brilho nos olhos de quem sabe que as entrelinhas falam mais que as frases.
— Boa sorte amanhã, deputada — disse, com um leve aceno de taça.
Verena inclinou levemente a cabeça.
— Obrigada. Vai ser... interessante.
Seguiu pelo corredor em passos lentos, o copo de água ainda na mão. O corpo parecia mais leve do que horas antes, mas a mente seguia em sobressalto.
No quarto, a luz estava baixa. O ar condicionado soprava frio, e o abajur da escrivaninha estava aceso, projetando uma sombra suave na parede. Verena afrouxou o colarinho, desabotoou a camisa com movimentos lentos, precisos. Estava cansada. Mas não tanto quanto gostaria de admitir.
Vestiu uma camiseta branca de algodão, larga, e uma calça moleton fina. O celular repousava sobre a cômoda, ainda em silêncio — mas a mensagem da Lilian parecia brilhar dentro da gaveta do pensamento.
Sentou-se à beira da cama, passou as mãos pelos braços. Depois se deitou de lado, sem cobertor. Olhou o teto.
Pouco depois, a luz do corredor se apagou e passos suaves cruzaram o piso.
Silvia entrou com o cabelo preso de qualquer jeito e uma camisola de seda clara. Fechou a porta com delicadeza, como quem respeita um silêncio que não quer assustar.
Verena apenas olhou. Silvia sorriu de leve.
— Mariana já foi.
Verena assentiu.
Silvia caminhou até a cama, sentou-se na beirada, olhando a esposa por alguns segundos antes de falar.
— Obrigada por ter ficado. Achei que fosse se trancar aqui direto.
— Eu precisava de silêncio.
— Eu sei.
Ficaram assim por alguns instantes. Depois, Silvia deslizou para debaixo do lençol. Afastou um pouco o cabelo da nuca da esposa, de leve. Só o toque dos dedos.
— Você tá gelada.
— Tô cansada.
— Eu sei.
Silêncio.
Silvia se aproximou mais. Encostou o corpo ao de Verena com cuidado, sem invadir. Como quem reaprende um caminho.
Verena não reagiu de imediato. Mas também não afastou.
— Posso?
A deputada virou o rosto um pouco, só o suficiente pra ver os olhos dela. Não disse sim. Mas também não disse não.
Silvia então aproximou os lábios e beijou o ombro nu da esposa. Um beijo leve. Depois outro, mais demorado, mais cheio de lembrança.
— Eu sinto sua falta — disse num sussurro.
Verena fechou os olhos.
Silvia a puxou de leve, encaixando o rosto na curva do pescoço da outra. O calor das peles se misturava ao cheiro sutil de perfume, suor e saudade.
A conexão era real. Mas frágil.
Verena deslizou os dedos pela cintura da mulher, num gesto quase automático. E, por alguns minutos, os corpos conversaram no lugar onde as palavras já não sabiam habitar.
A entrega foi silenciosa. Lenta. Com carinho. Como quem ainda tenta descobrir se existe ponte depois do abismo. E quando terminou, estavam deitadas lado a lado, de mãos entrelaçadas no escuro.
Silvia adormeceu primeiro, respirando fundo, o corpo relaxado.
Verena permaneceu de olhos abertos por mais tempo, encarando o teto, os pensamentos em outra parte da cidade.
Na escola.
Na menina.
No que aconteceria dali a algumas horas.
Apartamento da Rafaela – Vila Mariana – Sexta-feira, 06h17
A luz da manhã já começava a filtrar pelas frestas da persiana, desenhando listras suaves sobre o lençol branco amassado. O quarto era sóbrio, de tons neutros, com poucos objetos pessoais à mostra — livros empilhados, um abajur de luz âmbar, o blazer de Rafaela jogado sobre a poltrona ao lado da cama.
No centro, os corpos ainda entrelaçados.
Rafaela estava deitada de lado, um braço por baixo da cabeça. O cabelo levemente bagunçado, o rosto ainda marcado pelo sono. Ao seu lado, Jéssica mantinha os olhos abertos, observando. Um leve sorriso no canto da boca, como se já estivesse dois lances à frente na conversa que ainda nem começou.
Os lençóis envolviam os corpos nus com descuido. E o cheiro no ar era uma mistura de pele quente, perfume seco e algo entre poder e cansaço.
Jéssica se inclinou devagar, os lábios encontrando a curva da mandíbula de Rafaela num beijo lento, quase preguiçoso.
— Ainda tá cedo — murmurou.
Rafaela não respondeu de imediato. Apenas fechou os olhos por um segundo a mais.
— Você vai mesmo fingir que dorme depois do que fez comigo?
Rafaela abriu um leve sorriso, de canto.
— Tô tentando recuperar o fôlego.
Jéssica riu baixo, deslizando os dedos pela lateral da coxa da outra.
— Já te vi em três reuniões da Corregedoria sem piscar. Mas depois de meia hora comigo, fica muda. Interessante.
— É uma tática. Pra você achar que tá vencendo.
— E não estou?
Rafaela virou o rosto. Os olhos ainda pesados. Mas já havia ali o traço do sarcasmo voltando.
— Se acha.
Jéssica se ajeitou na cama, apoiando a cabeça na mão.
— Você fala dela até quando finge que não tá pensando.
Rafaela abriu os olhos, mas não olhou de volta.
— Não começa.
— Só tô dizendo. Seu corpo tá aqui. Mas sua cabeça continua orbitando o sistema solar Castilho.
Rafaela suspirou fundo, mas não respondeu. Os olhos fixos no teto.
Jéssica deslizou os dedos pela barriga da outra, com suavidade.
— Engraçado... você sabe que ela não vai mudar. Que vai continuar tratando você como satélite. Mas ainda assim, volta. Protege. Se humilha.
— Eu não me humilho — respondeu Rafaela, firme.
— Não? E aquele teatrinho de ontem na reunião jurídica? Praticamente implorando pra ela não reagir como um trator emocional.
— Eu tava fazendo o meu trabalho.
— Claro. Como sempre. A fiel escudeira. A defensora da moral. A mulher que se rasga inteira por alguém que nunca vai olhar de verdade pra você.
Rafaela fechou os olhos. O maxilar travado.
— Você não sabe do que tá falando.
— Sei — respondeu Jéssica, encostando o rosto no ombro dela. — Sei exatamente. Porque eu vi. Porque você muda quando fala dela. Porque você endurece pra todos... menos pra ela.
Rafaela se virou de lado, encarando Jéssica. O olhar sério.
— E você? Quer o quê com tudo isso?
Jéssica sorriu. Sem medo.
— Só tô observando. E me divertindo.
— Você joga sujo.
— Eu jogo inteligente. Você é que ainda não entendeu que o jogo mudou, Rafa.
Rafaela se levantou, pegando a camisa de linho no chão. Vestiu-a com pressa contida.
— Tenho que me arrumar.
— Claro. — Jéssica apoiou-se no travesseiro, os seios ainda cobertos pelo lençol. — Hoje é o grande dia, não é?
Rafaela não respondeu.
— Roda de conversa. Escola pública. Adolescentes eufóricos. E ela... no centro. Como sempre.
Silêncio.
Rafaela ajeitou o cabelo, pegou o celular e olhou a tela. Nenhuma notificação.
Mas o dia já tinha começado.
E Jéssica, nua e relaxada na cama, só observava.
Como sempre.
Apartamento – Jardins – Sexta-feira, 06h42
O sol já tocava a lateral das cortinas, projetando uma luz dourada no chão de madeira. A casa ainda dormia. Ou quase.
Silvia já estava de pé havia alguns minutos. Caminhava pela casa em silêncio, o cabelo preso num coque torto, vestindo um robe leve e os pés calçados numa havainas branca, simples. Passou pela cozinha, preparou um café simples — só o cheiro já preenchia o ar com calor e rotina.
Depois voltou ao quarto.
Abriu devagar a porta, como quem respeita o sono alheio. Mas ao olhar a cama, não conteve o riso leve.
Verena estava largada.
Literalmente.
O lençol embolado pela metade do corpo, uma perna pra fora, a camiseta branca toda torcida, o braço estendido em cima do travesseiro com o celular ainda na mão. O cabelo solto despenteado, a boca entreaberta num respiro pesado. Uma cena que jamais caberia nas câmeras da Alesp.
Silvia se aproximou devagar. Sentou-se na beirada da cama.
— Bom dia, general.
Verena não se mexeu.
Silvia passou os dedos de leve pelo cabelo da esposa, afastando uma mecha do rosto.
— Você tem trinta minutos pra voltar à pose de mulher mais temida da comissão de Orçamento — disse baixinho, com humor. — Vamos conseguir?
Verena soltou um som incompreensível. Algo entre um resmungo e uma negativa.
— Acordar não é constitucional — murmurou, com a voz rouca de sono.
Silvia riu, baixinho.
— Não sei se esse argumento vai colar com os adolescentes do Ipiranga.
Verena finalmente abriu um olho. Depois o outro. Fechou de novo.
— Que horas são?
— Quase sete.
— Isso é tortura.
Silvia se deitou de lado, enfiando-se por debaixo do lençol embolado, e abraçou a esposa pelas costas.
— Você tava uma criança dormindo. Sério. Só faltava o urso de pelúcia.
— Não fala isso... — resmungou Verena. — Tenho uma imagem a zelar.
Silvia sorriu e beijou a nuca dela.
— A imagem tá intacta. Mas eu adoro quando você deixa cair.
Verena suspirou. O corpo ainda pesado.
— Você vai comigo?
— Hoje não. Vou pro escritório direto. Mas depois quero saber tudo. Inclusive se você foi simpática com os adolescentes.
— Eu sou sempre simpática.
Silvia riu, descrente.
— Claro. Aquele tipo de simpatia que faz estudante tremer e professor gaguejar.
Verena sorriu também. Mas não abriu os olhos.
Silvia então se levantou, esticando-se um pouco.
— Seu café tá pronto. E seu terno tá passado. Só falta o resto: acordar, se vestir e fingir que não tá surtando por dentro.
Verena abriu os olhos.
— E se eu não quiser fingir?
Silvia parou, pensativa.
— Aí você me liga no intervalo. E eu digo que vai passar.
Elas se encararam por um instante.
E naquele silêncio, havia tudo.
Apartamento – Jardins – Sexta-feira, 07h11
O som da água preenchia o banheiro com vapor e silêncio.
Verena estava dentro do box, de costas para a porta, deixando a água quente cair sobre os ombros. As mãos apoiadas na parede de azulejos claros. Respirava devagar. Como se precisasse daquilo pra lembrar onde estava. Quem era.
A mente corria. Valentina. Escola. Roda de conversa. O olhar dela.
Fechou os olhos.
A água escorria pelo rosto, levando embora qualquer vestígio de resistência. Sozinha ali, era só cansaço e expectativa.
Do lado de fora, Silvia caminhava pelo quarto em busca de algo quando viu — a toalha esquecida sobre a cama, dobrada com cuidado, mas esquecida na pressa sonolenta da esposa.
Pegou o pano branco com uma das mãos, ajeitou os cabelos no espelho do closet e seguiu até o banheiro.
Empurrou a porta com o cotovelo, com a leveza de quem já conhecia cada passo daquela rotina.
— Esqueceu isso aqui — disse, com voz baixa.
Verena não respondeu. Mas não precisava. O vapor cobria o vidro do box, mas a silhueta molhada era nítida.
Silvia se aproximou, pendurou a toalha na lateral da pia, ao alcance da mão.
Ficou ali por um segundo a mais do que o necessário.
Apoiou-se na bancada, olhando o reflexo no espelho. A camiseta fina que usava já começava a grudar na pele com a umidade do ambiente.
— Você tá com essa cara desde quando falou dessa visita — disse, sem acusação. Só constatação.
Do box, uma pausa.
— Que cara?
— De quem tá indo enfrentar a cruzada mais importante da vida.
Verena soltou uma risada baixa, quase sem som.
— Talvez esteja.
Silvia andou até a porta do box e encostou a mão no vidro, suavemente.
— Você vai sair bem. Como sempre. Só... não esquece que não precisa carregar tudo sozinha.
Verena abriu os olhos. Não conseguia ver o rosto de Silvia, só a sombra. Mas a voz bastava.
— Eu tento.
Silvia fez menção de sair, mas parou de novo.
— Eu ainda acredito na gente, Vê. Mesmo quando você não diz nada. Mesmo quando parece longe. Eu tô aqui.
Por um instante, o silêncio respondeu.
E então, um leve baque da testa de Verena encostando no azulejo frio, como quem absorvia aquilo com o corpo inteiro.
Silvia saiu do banheiro em silêncio, deixando a porta entreaberta. E no box, sozinha outra vez, Verena deixou a água escorrer mais alguns minutos. Até conseguir se recompor.
Apartamento – Jardins – Sexta-feira, 07h42
O quarto agora estava mais claro, com a luz da manhã invadindo pelas janelas amplas. A cama já desfeita, o café da manhã meio esquecido na bandeja de madeira sobre a cômoda. E no centro da cena: Verena, em pé, de costas para o espelho, vestindo apenas a calça de alfaiataria preta, o sutiã combinando. Os cabelos ainda úmidos caíam soltos pelas costas. Os pés descalços sobre o piso de madeira.
Com o celular em uma mão, gesticulava com a outra, a voz cortante saindo num áudio gravado com precisão militar.
— …e se a coordenação jurídica não conseguir articular com a controladoria antes das onze, eu mesma vou ligar pra presidência da comissão. E aí vocês resolvem com eles, porque eu já avisei desde terça. Não me façam repetir, por favor.
Silenciou o áudio e apertou “enviar” com o polegar, seca.
— Bom dia pra você também — murmurou Silvia, do outro lado do quarto, com um sorriso enviesado.
Verena respirou fundo. Deixou o celular sobre a penteadeira.
— Eu juro que se mais uma pessoa tentar me enfiar em outra crise hoje, eu mudo de nome.
Silvia caminhava de um lado ao outro com uma camisa social branca passada pela décima vez no cabide, examinando se havia algum vinco teimoso. Era como um ritual. Uma oferenda à deusa estressada de terno e poder.
— Essa aqui, né? — perguntou, erguendo a camisa.
Verena assentiu, ainda de costas.
Silvia pendurou o cabide com cuidado na maçaneta da porta do armário. Depois foi até o blazer preto, colocou-o com delicadeza no encosto da poltrona, alisando os ombros com as mãos. Tudo meticulosamente organizado. Como se, ajudando na roupa, pudesse de alguma forma aliviar o peso do dia que vinha.
— A gravata vai hoje?
— Não. Sem gravata. Só minha correntinha.
— Aquela pequena?
— Isso.
Silvia abriu a caixinha de veludo no canto da cômoda, pegou a joia e deixou à vista sobre o espelho.
Enquanto isso, Verena já começava a abotoar a camisa sozinha, sem olhar. Os dedos ágeis, mas o olhar distante.
Silvia observou por um instante. E então se aproximou pelas costas.
— Deixa. Eu fecho pra você.
Verena parou.
Silvia completou os botões com precisão. Depois ajeitou a gola com cuidado, puxando levemente o tecido para que assentasse bem nos ombros. Os dedos suaves, mas firmes. Como quem sabia exatamente onde tocar.
Em seguida, foi até o cabide da poltrona, pegou o blazer preto de corte impecável e o estendeu nos braços.
— Vira — pediu, suave.
Verena virou-se de costas e deixou que a esposa a ajudasse a vestir a peça. Os ombros assentaram como se tivessem sido feitos sob medida — e tinham sido mesmo. Silvia alisou o tecido com as mãos, com precisão e afeto.
— Agora sim. A pose tá perfeita.
Verena se virou, já vestida. A silhueta marcada, sóbria, elegante. Blazer fechado com um botão só, o pulso esquerdo com um relógio de couro preto.
— E por dentro?
Silvia sorriu, ajeitando os punhos da camisa.
— Por dentro você é um redemoinho desde 2017. Mas vai sobreviver. Como sempre.
Verena ajeitou mais uma vez o cabelo com as mãos, depois passou a correntinha pela cabeça. Quando estava prestes a calçar os sapatos, Silvia apareceu com um par limpo na mão.
— Usa o de verniz. Combina mais com a sua intenção de destruição.
— Você me conhece bem demais.
Silvia entregou os sapatos com um sorriso.
— Ainda bem.
Verena os calçou em silêncio.
— Você quer que eu vá?
— Quero que você cuide de você hoje. Já tem gente demais me esperando errar.
— Eu nunca espero isso de você.
Verena se levantou. Agora pronta. Tão impecável que parecia até menos humana.
Mas Silvia sabia.
Sabia do desespero por trás da voz firme. Mas não sabia do nome que ela não dizia em voz alta. Do coração acelerado por algo que não era voto nem política.
Verena pegou a pasta de couro. Ajeitou no braço. Respirou fundo.
— Então vamos.
Silvia a acompanhou até a porta. E antes que saísse, puxou-a pela gola da camisa para um beijo discreto, mas firme.
— Vai arrasar os corações da plateia, deputada.
— Não me provoca.
— Não sou eu quem precisa se preocupar com isso hoje.
E Verena sorriu. Um meio sorriso. O suficiente para atravessar o dia.
Gabinete da Deputada Verena Castilho – Assembleia Legislativa – 09h04
O gabinete já não era mais um escritório. Era uma base operacional em modo de missão. A assistente de comunicação revisava o kit imprensa da escola, os estagiários finalizavam a impressão de etiquetas de identificação da comitiva, e o motorista da Torre Norte aguardava na garagem com o veículo oficial já com ar ligado. Temperatura ambiente: 21 graus.
Uma estagiária encaixava as ecobags institucionais nas caixas de transporte. Cada bolsa vinha com um bloquinho da Alesp, uma garrafinha azul dobrável, com a logo da instituição, uma caneta azul com a inscrição “Juventude & Cidadania 2025”, um marcador de página com QR Code do portal da Assembleia e um broche metálico com a frase: “O futuro começa com você”. Tudo devidamente embalado em saquinhos transparentes, lacrados com fita adesiva com o brasão do Estado.
Rafaela revisava os nomes da comitiva em voz baixa, prancheta na mão, celular entre o ombro e o queixo:
— Sim, Letícia da Comunicação, Lucas do Legislativo, os dois estagiários de apoio e eu. A deputada vai no carro institucional com motorista da Torre Norte. Jéssica vai direto da Procuradoria. Confirmado. Pode avisar a escola que estamos saindo em cinco minutos.
Desligou e empurrou a porta do gabinete principal.
Verena já estava de pé, ajustando os punhos da camisa branca por baixo do blazer preto. Calça de alfaiataria com vinco bem marcado, sapato de couro envernizado, cabelo impecável. No espelho, uma versão blindada de si mesma.
— Tá pronta? — perguntou Rafaela, já entrando sem cerimônia.
Verena nem virou.
— Há vinte minutos. Alguém atrasado?
— O motorista já tá esperando. As caixas já estão sendo levadas pro carro. Só faltava você — respondeu Rafaela, com aquela ironia velada que vinha se tornando sua segunda língua.
Verena soltou um meio sorriso, cansado.
— E você ainda me chama de atrasada? Logo você?
— Eu chamo como quiser. Ou você vai me obrigar a te chamar de “excelência”?
Verena bufou uma risada seca, pegando a pasta de couro sobre a mesa.
— Nem pensar. Mas não posso negar que combina comigo.
— Que bom que ainda tem senso de humor — disse Rafaela, já girando nos calcanhares. — Porque vai precisar.
— Alguma surpresa no cronograma?
— Nada que você precise saber agora — rebateu Rafaela, com precisão cirúrgica.
Verena parou por meio segundo. Encarou a amiga pelas costas, mas decidiu não insistir.
— A Jéssica vai com a gente?
— Encontra lá. Tá com o pessoal do jurídico.
Verena assentiu. Mas Rafaela não deixou de notar o leve repuxar no canto da boca da deputada. Aquela tensão silenciosa, o incômodo sutil.
— Algum problema com ela?
— Ainda não — respondeu Verena, secamente. — Mas se você tiver algo a me dizer, aproveita o caminho.
— Eu não tenho nada a dizer. Só observar.
O silêncio ficou ali entre as duas por um instante, espesso. Verena apertou os dedos contra a lateral da pasta.
Rafaela conferiu o relógio.
— São 09h10. Se sairmos agora, a gente chega com tempo de sobra pra passar o protocolo da direção.
— Imprensa?
— Só a estudantil, oficialmente. Mas o nome Castilho anda rendendo clique. E você sabe: escola pública, celular na mão, rede social ativa… qualquer gesto fora do lugar e a manchete já tá pronta.
Verena respirou fundo. Fria. Elegante. Intacta.
— Eu nunca faço gesto fora do lugar.
— Não intencionalmente — Rafaela respondeu, já abrindo a porta.
E sem esperar resposta, saiu.
Verena a seguiu segundos depois.
Na antessala, os estagiários carregavam as caixas com os brindes. O motorista organizava os últimos ajustes no porta-malas do carro preto com placa oficial. A comitiva já estava pronta para partir.
...
Verena saiu da sala com a pasta institucional de couro embaixo do braço. Os cabelos bem alinhados, o blazer preto bem cortado, camisa branca passada com vinco. No punho esquerdo, o relógio Cartier discreto. Passos firmes. Olhar adiante. Postura de quem é inalcançável.
Rafaela já aguardava do lado de fora com o checklist na prancheta, o celular no ombro enquanto falava com a equipe da escola.
— Sim, a entrada será feita pela lateral da quadra coberta, portão C, conforme combinado. A mesa principal está montada? Ótimo. Peço que o microfone seja testado novamente. Sim, a deputada está saindo agora. Obrigada.
Desligou. Entregou o celular a um dos assessores e começou a andar ao lado de Verena no corredor.
— A comitiva é formada por você, eu, Letícia da Comunicação e o assessor parlamentar Lucas. Mais dois estagiários responsáveis pelo material de apoio. Jéssica vai com o jurídico, em carro separado. O tempo estimado até a escola, com trânsito, é de 25 minutos. Programamos chegada às 9h45, mas estamos saindo com cinco minutos de vantagem.
Verena assentiu sem interromper o ritmo.
— Tem gravação oficial? — perguntou, sem virar o rosto.
— Só a da escola. Com autorização prévia, sob responsabilidade da direção. O gabinete não vai registrar. Você mesma preferiu assim.
Verena parou por um segundo diante do elevador privativo. As portas abriram com um bip suave. As duas entraram.
Dentro do elevador, silêncio.
Rafaela olhou o próprio reflexo na lateral. Estava séria. Sem maquiagem além do mínimo. Olheiras discretas. Uma espécie de exaustão que já vinha de semanas.
Verena, do outro lado, também encarava o espelho. Mas não a si mesma — encarava o que via atrás. O peso que carregava.
— Quando a gente chegar… — começou Rafaela, com calma — quero reforçar que não é só mais uma visita institucional. A escola está sob pressão. A coordenação sabe que há algo estranho envolvendo o nome da aluna desligada. E você sabe qual é a última turma dela, não sabe?
Verena não respondeu.
— Segundo ano C.
Verena apertou o botão lateral do blazer, conferindo se a costura da lapela não estava torta. Fria. Elegante.
— Eu estou ciente da agenda — disse, sem entonação.
— E eu estou ciente da sua fragilidade. Esse não é um dia qualquer.
— Eu estou perfeitamente apta — rebateu Verena, calma. Precisa. Quase cortante.
Rafaela ergueu os olhos. Não sorriu.
— Então espero que se comporte como tal.
O elevador parou no subsolo. A porta abriu com suavidade. O motorista já aguardava com a porta traseira do carro aberta. Dois assessores ajustavam a pasta com os brindes e o envelope de documentos para entrega simbólica.
— Pronta? — perguntou Rafaela.
Verena passou a mão no cabelo. Inspirou devagar. E assentiu com leveza.
— Sempre.
Entrou no carro. Rafaela veio em seguida. O veículo deslizou silencioso pela rampa da garagem da Alesp.
Na pasta, uma ficha plastificada com o cronograma do dia. Na ficha, o nome da escola. E em algum lugar naquelas cadeiras de plástico que já estavam alinhadas desde cedo, estaria sentada a menina que ela não conseguia esquecer.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – 09h30
Entrada Lateral – Portão C
O portão lateral da escola, que normalmente ficava fechado com um cadeado enferrujado, hoje estava aberto desde as 07h20. Dalva ajeitava a bandeja de plástico com copos de água mineral sobre a mesinha improvisada de rodapé escolar. Acima, um cartaz escrito à mão: "Sejam bem-vindos à Semana da Juventude e Cidadania!" com fita colorida contornando as bordas.
Do outro lado da escola, a quadra coberta fervia.
Professores em camiseta polo branca (a “uniforme institucional” improvisada para o evento), corriam entre cadeiras de plástico desalinhadas, som que dava microfonia e um projetor que insistia em não sincronizar.
Regina estava sem voz. A diretora Sônia suava nas têmporas. E Luciana, a supervisora, tentava controlar um grupo de alunos do 3º ano que resolveram começar uma batalha de improviso com o microfone já ligado no sistema de som.
— Desliga esse troço AGORA, Matheus! A comitiva tá chegando!
Na sala dos professores, caixas de suco e bandejas com salgadinhos estavam sobre as mesas, cobertas com panos de prato. Tudo comprado com doação dos próprios funcionários.
No banheiro feminino no final do corredor, Carol segurava um espelhinho e reaplicava o pó no nariz da amiga.
— Para de suar, Valen. Sério. Vai estragar tudo.
— Eu... não tô conseguindo — sussurrou Valentina, com a voz presa na garganta.
Estava pálida, o rímel leve começando a borrar no canto externo dos olhos. O cabelo, preso num rabo simples, tremia conforme ela respirava.
— Você só vai apresentar a mesma fala que ensaiou mil vezes. E depois senta. É isso. Você consegue.
— Ela não vem, né? Ela não vai vir... né?
Carol parou. Olhou para o lado. Mordeu o lábio.
— Valen...
— Fala!
— Não sei.
E era verdade. Ninguém tinha confirmado nada. A Alesp vinha, isso todos sabiam. Mas ela... ninguém sabia.
Do lado de fora, Dalva olhou para o final da rua e viu o carro preto institucional encostar com calma.
— Gente! Chegou! É agora! — gritou, quase atropelando a bandeja de água.
Dentro da quadra, Sônia endireitou a postura, ajeitou o colar no pescoço e olhou para Regina com um único comando nos olhos: é agora ou nunca.
Os alunos começaram a sentar, empurrando cadeiras, tropeçando em mochilas. A turma do 2º C foi chamada para a entrada pela lateral, para se preparar para a apresentação — todos ansiosos, mas só uma em pânico.
Valentina sentiu o chão tremer.
— Eu não posso — murmurou.
— Você vai — respondeu Carol, segurando firme o braço da amiga. — Porque ela precisa te ver. E você precisa se ver. Vai ser só um segundo. E eu vou estar ali.
No portão, o carro abriu a porta traseira.
Verena desceu primeiro. Cabelo solto, impecável, uma leve onda caindo com perfeição sobre o lado direito do rosto. Óculos escuros discretos. Pasta de couro na mão. A calça social ajustada, sapatos envernizados brilhando. Ao seu lado, Rafaela — sóbria, sem um sorriso.
Letícia, da Comunicação, conferia o nome da diretora em um crachá impresso. Lucas carregava a caixa com os brindes. Jéssica, que veio no segundo carro, chegou segundos depois, de vestido neutro e blazer claro, observando tudo com olhos atentos e um sorriso quase imperceptível.
Verena avistou a faixa com o nome da escola. E o coração acelerou.
— Vamos entrar pela lateral da quadra — disse Rafaela, seca. — O cerimonial já nos aguarda.
Verena não respondeu. Ajustou o cabelo com os dedos e seguiu.
Do outro lado da escola, Valentina ouvia a movimentação. Os passos. Os cochichos.
E sentia. Ela estava ali.
Estava.
E o coração dela... já não sabia se queria fugir ou ficar.
Quadra coberta da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – 09h46
O som do microfone já estava ligado, mas ninguém ousava testá-lo. O eco metálico pela quadra coberta parecia gritar mais alto que qualquer voz humana. As cadeiras de plástico — cerca de 80 — estavam quase todas ocupadas por alunos, professores, mães de grêmio estudantil e dois ou três representantes da comunidade do bairro, convidados pela direção.
Do lado direito da quadra, num dos bancos baixos, os alunos do 2º ano C aguardavam em fila. A apresentação deles era a primeira — uma dramatização breve sobre o conceito de cidadania, mesclando falas e trechos encenados. Ensaio não faltou. Mas, naquela hora, tudo parecia esfarelar.
— Gente, por favor, ninguém levanta agora — Regina pedia, no centro da quadra, já sem paciência. — A comitiva tá entrando. Mantenham a compostura.
Não adiantou.
— Atenção, pessoal! Vai começar a entrada das autoridades. Todo mundo nos seus lugares, por favor! — Ela quase gritava, tentando manter o tom institucional enquanto corria de um lado a outro da quadra.
A banda parou por um instante. O som do microfone voltou a chiar. Um burburinho já se espalhava pelas cadeiras. Os professores, a maioria nervosos, cochichavam entre si com papéis nas mãos, olhares trocados. Sônia ajeitava o paletó do coordenador de projetos, já suado, como se ele fosse subir no palco do Oscar.
— Agora, silêncio. Por favor. Silêncio, gente! — insistiu Luciana, sem sucesso.
As cabeças se viravam todas na direção do portão lateral da quadra. E então, a porta foi aberta.
A comitiva entrou.
Primeiro, um representante do setor de comunicação da Alesp, depois um segurança discreto. E por fim, ela.
Verena Castilho.
Não havia como confundir.
Cabelos soltos, ondulados com precisão, uma mecha caindo sobre o lado direito do rosto, como se tivesse sido penteada pelo vento e domada com autoridade. Blazer preto levemente acinturado, calça de alfaiataria, sapatos brilhantes e polidos. Cada passo ecoava com uma firmeza que nem o som da banda tinha conseguido provocar.
Dois meninos do 3º B esticaram o pescoço, apontando discretamente.
— Olha lá… É ela. Caraca, é a Verena Castilho mesmo!
— Mentira que é essa mulher? Ela é mó gata, viado.
— Cala a boca, mano — cochichou uma garota, segurando o riso. Vocês tão na frente da diretora!
Mas ninguém piscava.
Verena andava com postura ereta, os olhos ligeiramente semicerrados. Parecia insensível a tudo. Mas por dentro, buscava.
Olhos discretos, treinados — mas inquietos. Procurava alguém entre todas aquelas cadeiras plásticas brancas, entre uniformes azuis, blusas do grêmio, professores em paletó emprestado.
Procurava ela.
Rafaela vinha logo atrás, tablet em mãos, atenta. Sabia o que a chefe estava fazendo. Via na inclinação sutil do queixo, na hesitação de dois segundos antes de encarar a plateia da frente. Mas não disse nada. Apenas seguiu, os olhos escaneando tudo — inclusive Jéssica, que andava mais atrás, ao lado de outro servidor do jurídico, com uma expressão serena demais para quem deveria estar ali só como observadora.
Ela também observava.
Mas não a plateia. Era Verena.
Estudava cada gesto. O ritmo dos passos, o olhar que desviava demais para um lado específico da quadra, o quase-sorriso que nunca vinha. Como quem acompanha uma peça sabendo que a melhor parte ainda vai acontecer.
Carol, lá no canto com o grupo do 2º C, murmurou, tensa:
— Valen… tá vendo isso?
Mas Valentina já não estava mais ali. O corpo sim. Mas a mente… girava em círculos.
Ela ainda não tinha visto Verena.
E Verena… ainda não tinha encontrado Valentina.
Mas estavam perigosamente perto.
E a qualquer segundo… os olhares iam se cruzar.
Bastidores do palco improvisado — 09h53
O espaço improvisado atrás das cortinas do palco era pequeno, abafado, sem ventilação. Alguns ventiladores foram posicionados por ali, mas faziam mais barulho do que efeito. Os alunos do 2º C se enfileiravam, tentando manter a ordem, mas o nervosismo era palpável.
— Calma, gente, é só uma apresentação — disse um dos monitores, mas nem ele parecia acreditar.
Valentina estava parada, mãos frias, o figurino simples colando na pele por causa do calor. O cabelo preso com cuidado pela amiga mais cedo, a maquiagem leve que parecia querer derreter a qualquer momento. Ela sentia tudo e não sentia nada. O corpo flutuava. A garganta seca. O estômago em nó.
Lá fora, o som dos aplausos ecoava. Depois o burburinho abafado da entrada da comitiva. E então, os cochichos começaram a chegar como ondas.
— Você viu? Ela é linda demais…
— Você viu o cabelo? Nossa, parece atriz de filme.
Valentina piscou várias vezes, tentando controlar a respiração. Sabia de quem estavam falando. Sabia. O som do passos batendo na quadra parecia ecoar dentro do seu peito.
Carol se aproximou, falando baixo.
— Valen… olha pra mim. Respira.
Valentina assentiu, mas era automático. Não tinha fôlego.
— Tá tudo bem, tá? Vai dar certo. E olha… só pra constar… a deputada tá um arraso.
Valentina fechou os olhos, murmurando:
— Carol, por favor…
— Não tô falando isso pra te zoar. É sério. Ela tá… meu Deus. Se eu não fosse hétero convicta, tava ferrada. Sua deputada tá de terno preto, cabelo solto… parece uma diva de filme francês.
— Você não tá ajudando — sussurrou Valentina, rindo nervoso, quase chorando.
— Tô sim. Só tô tentando te lembrar que ela é de carne e osso. E que você já sobreviveu uma vez. Vai conseguir de novo.
Valentina a olhou. Os olhos marejados.
— Eu não sei se vou aguentar.
Carol pegou suas mãos.
— Vai sim. Você vai entrar, vai dizer o texto todo certinho, e depois vai sentar de volta. A gente respira juntas, tá?
Ela assentiu, engolindo em seco.
Do lado de fora, uma voz ecoou no microfone:
— E agora, com vocês, o 2º ano C! Um poema cênico construído a partir de relatos dos próprios estudantes, sobre juventude, democracia e escuta.
O coração de Valentina pulou no peito. Era agora.
Os colegas à frente começaram a andar, seguindo em fila indiana. Carol foi uma das primeiras. Valentina vinha logo atrás.
— Vai dar tudo certo — ouviu alguém repetir. Não sabia se era Carol, se era ela mesma ou só o desespero tentando ajudar.
E então os pés se moveram.
Passo a passo, atravessando o limiar das cortinas.
A luz da quadra bateu forte. Os olhos demoraram um segundo para se adaptar.
E foi aí…
Que os olhos buscaram.
Instintivamente. Como se tivessem vida própria.
E encontraram.
Verena.
Sentada, imóvel. Cabelos soltos com uma onda caindo pelo lado do rosto. Blazer fechado, perna cruzada. Um olhar que não piscava.
O mundo de Valentina parou.
Os sons sumiram. As vozes viraram ruído. Só existia aquele olhar.
Desejo. Medo. Saudade.
Tudo num único instante.
Verena, ao vê-la, pareceu perder um segundo de fôlego. O corpo não se moveu. Mas algo por dentro desabou.
Rafaela, ao lado, viu. Claro que viu.
Jéssica também viu. Mas ainda não entendeu exatamente o que era.
Carol sentiu o tremor de Valentina logo atrás e discretamente puxou a amiga pelo braço, como quem guia uma boneca de porcelana prestes a cair.
O 2º ano C se posicionou em formação.
E a apresentação começou.
Mas o mundo, para as duas, já tinha explodido ali.
Quadra Coberta — Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 10h10
A formação da turma já estava completa, os alunos alinhados no centro do tablado, cercados pelo público em cadeiras de plástico improvisadas. Os professores e a coordenação se distribuíam nos cantos, tentando manter a ordem, enquanto a diretora discretamente dava sinal para o som começar.
Mas havia uma tensão no ar que não se explicava só pela presença da comitiva da Alesp.
Era ela.
Verena Castilho.
Sentada na primeira fileira, com um ar que exalava poder, a perna cruzada com precisão milimétrica. Impecável.
Mas os olhos… os olhos traíam tudo.
Vidrosos. Fixos.
Ela não disfarçava. Não queria disfarçar.
Valentina estava no centro da quadra, quase em transe, os pés firmes no chão por pura força de vontade. Sabia o texto. Tinha ensaiado dezenas de vezes. Mas as palavras sumiram da mente. Só conseguia pensar naquele olhar. E no que ele dizia, sem som algum.
Carol, posicionada discretamente ao lado da amiga, fez um leve movimento de cabeça. Como quem confirmava algo que suspeitava há tempos.
— Puta merd* — sussurrou baixinho, olhando de canto para a deputada. — Isso é sério mesmo.
Era a primeira vez que via com os próprios olhos o que Valentina tantas vezes tentara explicar, com vergonha, com medo, com culpa. O quase beijo no carro. A foto na palestra. O aperto na cintura.
Agora não era mais teoria. Era cena ao vivo.
E Verena não tirava os olhos dela.
Rafaela, sentada ao lado da chefe, tentava manter a compostura. Mas sua perna já batia embaixo da cadeira, e as mãos apertavam o tablet institucional com força.
— Verena… pelo amor de Deus — murmurou num tom que só ela ouviria, fingindo arrumar a posição na cadeira.
Mas a deputada sequer reagiu. Os olhos estavam longe, muito longe. Presos em uma menina de dezesseis anos com o rosto levemente maquiado e a respiração entrecortada.
— Vê… disfarça. Por tudo que é mais sagrado. Olha pros outros alunos — insistiu Rafaela, entre os dentes.
Verena piscou pela primeira vez em muitos segundos, como quem voltava de um mergulho profundo. Mas não atendeu ao pedido. Apenas um leve murmúrio escapou:
— Ela tá linda.
Rafaela arregalou os olhos.
— Tá maluca? Fala isso alto mais uma vez que eu dou um jeito de arrancar você daqui.
Verena não respondeu. Só respirou fundo, tentando manter a coluna ereta, o queixo firme. Mas as mãos tremiam levemente sobre o colo.
Jéssica, sentada estrategicamente um pouco mais atrás, observava tudo com atenção. Havia algo ali. Algo intenso. Mas ainda não sabia o quê. Os olhos de Verena estavam diferentes — vazios de tudo, cheios de uma coisa só.
O som começou. Uma melodia suave, seguida de trechos de poesia falada. Um a um, os alunos iam se alternando, cada qual com sua frase sobre o que é crescer num mundo desigual, o que é resistir, sonhar, ser jovem.
— “A gente aprende cedo a pedir licença… até pra existir” — dizia uma menina.
— “E quando a gente fala, ninguém escuta. Mas quando a gente erra, a escola toda grita” — completava outro.
Valentina era a última.
E Verena sabia disso. Contava mentalmente os alunos. Cada passo a aproximava do momento em que a voz que ela tanto sonhava ouvir de novo quebraria o silêncio institucional.
Carol sussurrou baixinho:
— Tá tudo bem, Valen. É a sua vez. Vai com calma.
Valentina respirou.
Deu dois passos à frente. O microfone foi passado em sua direção.
E Verena, sem nem perceber, se inclinou levemente à frente, como se o corpo respondesse sozinho ao chamado.
— “E mesmo quando a gente acha que ninguém repara… alguém tá olhando. Lá no fundo. No silêncio. Esperando que a gente fale” — finalizou, a voz levemente trêmula.
Verena fechou os olhos por um segundo. Como se tivesse levado um soco no estômago.
O público aplaudiu com suavidade. A coordenadora enxugou discretamente os olhos. Os alunos se curvaram num gesto de encerramento.
Mas Verena não se moveu. Só piscou devagar.
E murmurou, quase sem som:
— Eu reparo.
Rafaela largou o tablet no colo e recostou na cadeira, exausta só de imaginar o pós dessa história.
Carol olhou de novo pra deputada, e depois pra amiga.
E pensou:
“Se isso aqui não é amor, então eu não sei mais o que é.”
Quadra Coberta — Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 10h35
O 2º ano C fez sua última reverência. Palmas, assobios discretos de alguns alunos no fundo, professores sorrindo com alívio. A apresentação mais esperada — e mais sensível — tinha terminado sem tropeços.
Valentina deu dois passos pra trás, tentando sorrir, mas sentia as mãos geladas. O microfone fora passado adiante. A música da próxima turma já começava a ecoar pelo espaço. Mas ela mal conseguia ouvir.
Tinha uma certeza: estava sendo observada.
E estava.
Verena não disfarçou.
Não por rebeldia. Não por descuido. Mas porque não conseguia. O corpo inteiro parecia em alerta, os olhos fixos na menina de olhar assustado e passos tímidos que agora saía do centro da quadra.
Carol foi a primeira a notar. Valentina estava voltando ao seu lugar na fileira do meio, e a deputada acompanhava cada movimento com os olhos, como se o mundo ao redor fosse uma névoa.
Rafaela quase teve um AVC.
— Você tá me tirando — murmurou entre os dentes, encostando-se de leve na cadeira de Verena, como se o toque fosse suficiente pra chamar de volta ao planeta Terra. — Disfarça, porr*.
Nada.
Verena seguia com o queixo levemente erguido, a respiração contida, como se absorvesse cada detalhe de Valentina. O andar contido. A franja caindo de leve sobre o olhar. O leve tremor nas mãos. E a maquiagem... A maquiagem ainda mais bonita agora, sob a luz natural da quadra. Como se a deixasse mais mulher. Mais inatingível. Mais perigosa.
Valentina sentou-se entre Carol e uma colega. O rosto tentava manter a serenidade, mas o peito arfava. Evitava virar o rosto para a comitiva. Sabia que, se encontrasse aquele olhar de novo, não conseguiria manter a fachada.
Carol, por outro lado, não resistiu. Virou discretamente o rosto.
Verena ainda olhava.
— Caraca… — sussurrou Carol, quase rindo. — Ela tá completamente entregue.
Valentina franziu a testa, sem coragem de conferir.
— Quem?
— A Verena, minha filha. Aquela ali. A mulher que você diz que quase te beijou no carro. A mesma que te apertou na cintura naquela foto da Alesp. Tá babando em você. E nem disfarça.
Valentina mordeu o lábio com força, o rosto começando a corar. Quis esconder o rosto nas mãos. Quis sumir.
Na fileira da frente, Rafaela estava quase arrancando os próprios cílios de raiva. Esticou o pescoço, se inclinou e sussurrou no ouvido da amiga-chefe:
— É isso. Você quer que a imprensa descubra. Você quer sair daqui direto pra outro escândalo. Porque só isso explica essa palhaçada.
Verena respondeu sem virar o rosto:
— Ela tá diferente. Mais... não sei.
Rafaela prendeu o ar. Deu um leve tapa no próprio joelho, como quem precisava se controlar. Passou a mão no rosto e falou baixinho:
— Isso aqui ainda vai acabar com você.
— Já acabou — veio a resposta, cravada como faca.
A próxima apresentação começou. Alunos do 3º ano subiram com cartazes, encenando uma pequena peça sobre violência simbólica na escola. Todos os olhares se voltaram ao palco improvisado.
Menos dois.
Verena lutava. Lutava com todas as forças pra não olhar de novo. Mas era como se os olhos tivessem vontade própria. A cada segundo, desviavam ligeiramente. Para a direita. Para o meio da quadra. Onde ela estava.
Rafaela fingia conferir mensagens no celular. Na verdade, estava digitando um lembrete mental: "nunca mais confiar em silêncio prolongado vindo da Verena."
Na arquibancada lateral, Jéssica também assistia com atenção. Mas de vez em quando… também espiava. Verena. Rafaela. Algo ali cheirava a bomba-relógio.
Carol cruzou os braços, inclinada pra frente, e sussurrou só pra Valentina ouvir:
— Se eu fosse você, tomava água e respirava. Porque, se continuar assim, vai ser você que vai causar o escândalo.
Valentina baixou o olhar.
E pensou: "já é escândalo dentro de mim há muito tempo."
Quadra Coberta — 11h05
Os aplausos se espalharam como uma onda contida, mas calorosa. A última turma — 3º ano B — fazia sua reverência, os cartazes coloridos ainda erguidos, o grupo sorrindo com alívio. Um dos meninos tropeçou ao sair do “palco”, arrancando algumas risadas tímidas. Estava encerrada a fase das apresentações artísticas.
Os coordenadores e professores logo se moveram com agilidade discreta. A professora Rosana chamou os alunos do 3º ano B para um corredor lateral. Regina já conversava baixinho com um rapaz de camiseta da escola e crachá: um dos voluntários do grêmio. Ele assentia enquanto recebia instruções sobre como alinhar as cadeiras novamente.
Ao fundo, o som de microfone sendo testado ecoou. Um chiado. Depois a voz grave do professor Lúcio:
— Pessoal, vamos nos reorganizando. Em dois minutos começamos a roda de conversa. O painel vai ser logo em seguida, então fiquem com os grupos juntos.
As cadeiras da plateia improvisada começaram a ser realinhadas. Algumas haviam sido empurradas com os pés, outras estavam viradas de lado. Os monitores tentavam refazer a fileira com pressa — e com cuidado para não parecer bagunça.
Carol puxou Valentina pelo braço com gentileza.
— Vamos, o nosso grupo vai ficar nas três fileiras do meio.
Valentina assentiu, em silêncio. O coração ainda corria. Os olhos baixos. Sabia que ela estava ali. Sabia que a qualquer momento voltaria a olhar.
Mas não olhou.
Não podia.
Atravessaram a quadra e sentaram-se de volta. A movimentação agora era mais dispersa, com todos se ajeitando para a próxima fase.
Na lateral, a comitiva da Alesp se mantinha discreta. Verena continuava sentada na primeira fileira reservada, agora com um copo d’água nas mãos. Os olhos focavam em um ponto indefinido à frente — mas Rafaela sabia exatamente pra onde ela queria olhar.
— Já deu — disse Rafaela, encostando-se no braço da cadeira com força, a voz baixa, cortante. — Se você virar agora, eu te juro que levanto e vou embora.
Verena não respondeu. Mas também não virou.
Jéssica ajeitava o vestido nude, sentada dois assentos à direita de Rafaela, atenta a todos os movimentos, aos detalhes. Aos olhares de Verena. Aos gestos sutis que escapavam do controle. Ainda não sabia de nada — oficialmente. Mas começava a farejar.
Mais ao fundo, um trio de professores se aproximava da comitiva, prontos para iniciar a mediação da conversa com os estudantes. Verena levantou-se com naturalidade, apertou uma das mãos estendidas, esboçou um sorriso institucional. Já estava de novo em modo “deputada”, mas com um leve atraso de segundos em cada reação.
Rafaela notou. E suspirou.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 11h08
Sala dos Professores
A porta foi aberta com um gesto cordial por Regina.
— Por aqui, por favor. Um cafezinho, uma água… fiquem à vontade. Em cinco minutinhos, a gente já volta pra quadra, tá bom?
Verena entrou primeiro, seguida por Rafaela e Jéssica. A sala dos professores, apesar de simples, havia sido arrumada com esmero: um pano limpo sobre a mesa central, copos de vidro enfileirados ao lado de uma garrafa térmica de café e caixas de suco de uva e laranja. Biscoitos sortidos num pratinho, além das bandejas com salgadinhos variados. Um ventilador girando no canto, fazendo um ruído constante, quase reconfortante.
— Obrigada — disse Verena com um aceno polido, já se servindo de água. Não estava com fome. Nem sede. Mas precisava manter o gesto político de quem agradece a acolhida.
Rafaela deu uma volta pelo ambiente, analisando tudo. Jéssica, por sua vez, preferiu encostar-se próxima à janela, observando o pátio de dentro, em silêncio.
A coordenadora se retirou para alinhar os últimos ajustes. Verena aproveitou o momento sem olhares externos para ajeitar o cabelo diante do pequeno espelho pendurado na parede.
Rafaela estreitou os olhos.
— Você vai aguentar?
— A pergunta correta é: você vai parar de perguntar? — rebateu Verena, sem encará-la.
— Eu vou parar no dia que você parar de agir feito adolescente. Olha seu estado, Verena…
Verena virou-se devagar. O rosto estava tranquilo. Mas os olhos…
— Eu tô perfeitamente funcional.
— Você tá num furacão. E se não tiver noção disso, é capaz de puxar ela pelo braço no meio da quadra.
Verena riu pelo nariz. Irônica.
— Você é dramática.
— Eu te conheço.
Silêncio. Jéssica, de longe, observava o reflexo das duas no espelho. Não ouvia tudo. Mas sentia o clima.
Quadra — Bastidores (Corredor lateral da escola)
Enquanto isso, o 2º ano C se ajeitava no corredor que dava acesso ao centro da quadra. Um dos professores fazia um alerta de voz alta:
— Assim que o microfone estiver posicionado, a gente começa o painel. Lembrem: silêncio, respeito, e se forem chamados pra perguntar, o microfone vai chegar até vocês, ok?
Valentina, sentada num dos bancos encostados na parede, parecia feita de vidro. As mãos geladas. O coração disparado. As pernas balançavam nervosas. O cabelo já estava um pouco bagunçado de tanto passar os dedos. A maquiagem leve que Carol havia feito ainda resistia, mas os olhos já denunciavam um brilho de pânico.
Carol sentou-se ao lado e deu uma leve cotovelada de leve.
— Valen…
— Hm?
— Respira. Você tá tremendo.
— Eu não consigo — sussurrou. — É agora. Ela vai estar ali. A poucos passos…
Carol se aproximou mais, murmurando, tentando cobrir com o corpo.
— Tá. Então ouve aqui. Você só vai ouvir perguntas. Ninguém vai te chamar no microfone. Ninguém vai te expor. Só senta e respira. Finge que é uma palestra chata.
Valentina soltou uma risada nervosa. Quase chorosa.
— Ela vai olhar pra mim, Carol. E eu vou morrer.
— Você já morreu e voltou cinco vezes desde o começo dessa semana. Agora aguenta mais uma.
Valentina abaixou o rosto entre as mãos.
Carol, tentando manter o humor como um escudo, cochichou:
— Se você chorar, vai borrar a maquiagem que eu fiz. E eu me recuso a deixar a senhora deputadinha aparecer toda borrada.
Valentina enterrou o rosto no ombro da amiga.
— Cala a boca…
— Você que me ama.
Lá fora, ouviu-se a movimentação de cadeiras e o som do microfone ligando. Estava começando.
Valentina ergueu o rosto devagar. As pernas pareciam de algodão. Mas ela levantou.
Sala dos Professores — 11h14
Regina voltou à sala com um sorriso gentil, mas a tensão no olhar de quem precisava manter tudo nos trilhos.
— Deputada Castilho, Rafaela, equipe... podemos retornar à quadra? A roda de conversa já vai começar.
Verena se levantou com calma, ajeitando a manga do blazer. O cabelo impecável deslizava por um dos ombros, formando a onda perfeita que ela nem precisava mais ajeitar. Jéssica foi a primeira a sair, trocando um breve olhar com Rafaela — que manteve o semblante tenso, como se antecipasse um terremoto silencioso.
No caminho de volta até a quadra coberta, o som dos alunos sendo acomodados preenchia o ar: arrastar de cadeiras, passos apressados, sussurros, gargalhadas abafadas. Tudo muito típico. Mas naquela manhã, tudo parecia diferente.
Quadra Coberta — 10h15
A escola havia organizado a quadra da melhor forma possível, considerando os poucos recursos. A parte central fora reservada com cadeiras de plástico em forma de meia-lua — uma “roda de conversa” adaptada ao espaço. Não era exatamente uma roda completa, por limitação física, mas o espírito era o mesmo: criar um espaço horizontal, simbólico, onde alunos e autoridades pudessem interagir com mais proximidade e escuta.
No centro da roda, um pedestal com microfone e um pequeno púlpito improvisado com o brasão da escola. Ao redor, cadeiras para os convidados. Mais ao fundo, os estudantes acomodados nas arquibancadas e em fileiras adicionais de cadeiras enfileiradas por turma.
A professora Luciana — que coordenava a semana da Juventude e Cidadania — segurava uma prancheta e um microfone para os alunos e já sinalizava com a mão para os monitores ajudarem no silêncio.
— Por favor, sem aglomeração na frente — dizia para um grupo de alunos do 1º ano. — A comitiva já está chegando, vamos manter os corredores livres.
Valentina já estava sentada com sua turma, no canto lateral da quadra, com a blusa do uniforme cuidadosamente passada por Ana Paula na noite anterior. As mãos, porém, tremiam. O rosto já parecia pálido demais. O coração… nem se fala.
Carol, ao seu lado, se inclinou discretamente.
— Já tá com vontade de sair correndo?
Valentina não conseguiu nem rir. Apenas assentiu com a cabeça, os olhos fixos no centro da quadra. O som do microfone testado ecoou. E então…
— Senhoras e senhores, vamos receber agora a comitiva da Assembleia Legislativa, que vem participar conosco desta roda de conversa sobre juventude, cidadania e educação democrática!
Aplausos. Alguns espontâneos, outros puxados pelos professores para animar os alunos.
A comitiva entrou pelo portão lateral. Regina à frente, conduzindo com gestos firmes. Verena surgiu logo depois.
Foi um impacto.
Mesmo entre adolescentes que nem sabiam direito quem era aquela mulher, o efeito visual da sua presença foi imediato. A postura firme. Ela parecia flutuar. O cabelo solto, escovado com uma onda suave caindo por um lado, completava a imagem de alguém que não passava despercebida.
Novamente, cochichos surgiram entre os alunos:
— Caraca, parece atriz de série…
— Se eu pego uma dessas…
Valentina ouvia tudo. Cada comentário parecia um raio atravessando a espinha. E no meio da multidão, os olhos da deputada procuravam.
Rafaela percebeu no segundo seguinte.
— Foca na roda, Verena… foca na roda.
Mas era tarde.
Verena havia encontrado o que procurava. E bastou um segundo. O olhar colado no canto da quadra. Onde Valentina estava.
Era como se todo o resto da escola desaparecesse. O ginásio, os professores, a equipe. O som abafado dos aplausos parecia vir de longe. Rafaela segurou no braço da amiga discretamente, como se quisesse acordá-la do transe.
— Vai dar merd*… — murmurou por entre os dentes.
Carol, do outro lado, percebeu. Era impossível não perceber. Verena olhava para um lugar só. E era exatamente onde Valentina estava.
Virou lentamente o rosto para a amiga. Valentina tentava olhar para qualquer lugar, menos para Verena. Mas já estava vermelha. O pescoço, o rosto, até a orelha. A respiração curta.
Carol apenas sussurrou, entre assustada e impressionada:
— Valen… ela tá te comendo com os olhos, cara…
Valentina mal piscava. Só balançou a cabeça num movimento mínimo, negando. Quase como uma prece: não, não, não…
Quadra Coberta – 11h18
O burburinho na quadra ainda persistia quando a supervisora Luciana se aproximou do pedestal com o microfone já ligado.
— Pessoal, silêncio agora. Vamos dar início à nossa roda de conversa. Lembrem-se: este é um espaço de escuta, de participação e respeito. É um momento importante para a escola, então contamos com a colaboração de todos.
Alguns alunos ainda sussurravam, mas logo o ambiente se aquietou. As cadeiras ao redor da área central estavam todas preenchidas. Verena sentou-se ao lado de Rafaela, cruzando as pernas com elegância, o olhar fixo adiante. Por dentro, tentava alinhar a respiração. As palmas das mãos estavam frias.
Na lateral, Valentina acompanhava cada movimento. Mal piscava. O coração batendo no esterno como se fosse explodir. Ela segurava os joelhos com força. Não confiava nem nas próprias pernas.
Carol se inclinou e sussurrou:
— Se você não respirar, vai apagar.
Valentina fechou os olhos por um segundo. Forçou o ar pra dentro. Só que não entrava.
No centro da quadra, Luciana continuava:
— Hoje temos a honra de receber representantes da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, dentro do projeto Juventude e Cidadania. A proposta é ouvir os jovens, trocar ideias e discutir caminhos reais para o futuro. Por isso, agradecemos a presença de todos. E pra começar, convido a deputada Verena Castilho a fazer uma breve fala inicial.
Um novo burburinho se espalhou. Valentina sentiu o estômago afundar.
Verena se levantou.
Cada gesto era medido. Preciso. O blazer ajustado nos ombros, o sapato firme, a voz — quando saiu — carregava toda a impostura que uma figura pública treinada poderia reunir.
— Bom dia a todas e todos. É uma alegria enorme estar aqui hoje. A escola pública é um dos maiores espaços de transformação que o nosso país tem. Eu mesma sou fruto dela. É aqui que a gente aprende muito mais do que conteúdos. É aqui que a gente aprende a conviver, a se posicionar, a sonhar.
Valentina já não via mais ninguém além dela. A voz de Verena soava como um campo magnético.
— E é por isso que programas como este são tão importantes. Eles não são eventos isolados. São sementes. Quando a gente ouve os jovens, a gente se obriga a repensar as estruturas. A educação é um processo vivo. E vocês são parte disso.
Rafaela observava a amiga com atenção. A fala estava impecável. Mas os olhos…
Os olhos, não. Eles estavam em busca. Disfarçados, mas inquietos. E em algum ponto do discurso, pararam de procurar. Porque tinham achado.
Do outro lado da quadra.
Valentina.
Verena não encarava diretamente — seria demais —, mas seu olhar se demorava demais naquela direção. E Rafaela percebia.
A garota tentava se manter imóvel. Mas a mão tremia. Os olhos marejavam. E o peito… tão apertado que parecia que o ar fugia pelos cantos da boca.
Carol encostou o joelho no dela, apertando de leve. Sem palavras. Só presença.
— Espero que este momento seja leve, sincero e transformador. Mais do que discursos, queremos ouvir vocês. Obrigada.
Aplausos.
Verena sentou-se novamente, ajeitando discretamente o cabelo, como se fosse só mais um gesto elegante. Mas por dentro… era um incêndio.
Rafaela cochichou, bem próxima:
— Você vai conseguir sair daqui sem cometer um crime ou eu chamo o resgate agora?
Verena respondeu sem virar o rosto:
— Você trouxe Lexotan?
Rafaela prendeu o riso. Tinha vontade de matar e proteger aquela mulher na mesma proporção.
A roda de conversa estava oficialmente aberta.
E nenhuma das duas — nem Verena, nem Valentina — sabia como ia sobreviver até o fim.
Quadra Coberta – 11h24
O microfone estava no pedestal ao centro da roda.
Silêncio.
A coordenadora trocou um olhar tenso com Luciana, que tentava manter o sorriso nos lábios. A dinâmica era simples: alunos fariam perguntas, os convidados responderiam. Mas ninguém se mexia.
Os minutos se esticavam como elástico prestes a arrebentar.
Carol cutucou discretamente Valentina com o cotovelo, mas a amiga nem reagiu. Estava pálida, os olhos fixos em algum ponto do chão entre as cadeiras da frente.
Luciana tentou aliviar:
— Vamos, gente… alguém quer começar? Uma pergunta, uma dúvida, qualquer coisa que tenha surgido a partir do que foi dito?
Nada.
Um zumbido tímido se espalhou entre os alunos, mas nenhuma mão subiu.
Lá no fundo, alguém sussurrou:
— Se eu perguntar, eu ganho ponto?
E outro rebateu:
— Só se for ponto no coração da deputada, né…
Algumas risadinhas. A coordenadora cerrou os dentes discretamente. Valentina baixou ainda mais os olhos. O rosto queimando. Será que tinham percebido?
Rafaela suspirou pesado. Sentada ao lado de Verena, já antevia o desastre. O evento estava prestes a minguar por inanição.
Verena, no entanto, manteve-se ereta.
Calma.
Como se soubesse exatamente o que estava fazendo.
Então, num gesto suave, levantou-se.
— Posso propor uma inversão de lógica aqui?
Todos voltaram os olhos pra ela.
Verena deu alguns passos pelo círculo, com as mãos unidas à frente do corpo, como quem pensa em voz alta.
— A gente costuma acreditar que só os especialistas têm perguntas a responder. Mas eu tenho várias perguntas que gostaria de fazer.
Silêncio absoluto.
— Então vamos inverter. Eu pergunto, e vocês respondem. Porque política também é escuta. E ninguém precisa de diploma pra saber o que sente.
Luciana quase suspirou de alívio.
Rafaela… bufou, vencida. Cruzou os braços, disfarçando o orgulho com um muxoxo irônico.
— Eu odeio quando você faz isso — murmurou.
Verena nem respondeu. Caminhava agora lentamente pelo centro da quadra, como se desfilasse entre os próprios pensamentos.
— Por exemplo… quem aqui já se sentiu completamente invisível dentro da própria escola?
Alguns alunos ergueram os olhos, surpresos. Uns três ergueram a mão timidamente.
— Quem aqui já teve medo de se posicionar numa conversa com colegas, com professores, com a própria família?
Mais mãos.
— Quem já pensou que política não era lugar pra gente como a gente?
Um burburinho começou. Agora os olhares já não estavam no chão. Estavam nela.
— Quem já sentiu vergonha por gostar de coisas diferentes da maioria? Ou já ouviu que sonhar grande é coisa de gente rica?
O ambiente se transformava.
— Alguém aqui já fingiu que entendeu o conteúdo só pra não passar vergonha?
Várias mãos se ergueram imediatamente. Um menino do fundão gritou:
— Eu até hoje!
— Pelo menos é sincero — retrucou Verena, com um meio sorriso. — Sabe qual é o problema disso? Que a gente vai levando essa mentira adiante e um dia ela vira um buraco. Um buraco grande. E aí quem fica com vergonha somos nós mesmos.
Carol olhou discretamente para Valentina ao lado. A amiga não ria. Estava tensa demais. Mas absorvia tudo.
Verena olhou pra outra ponta da roda.
Valentina… também. Só que por um fio.
Era como vê-la em sua forma mais pura — poderosa, eloquente, com uma calma que era puro teatro. E mesmo assim, ela parecia falar direto com seu peito. Cada palavra era como um puxão. Uma lembrança do que tinham vivido, e do que jamais poderiam viver.
Carol a observou de lado. Encostou-se discretamente na cadeira, sussurrando como se não fosse nada:
— Cara… se eu não fosse hétero, eu também tava ferrada.
Valentina fechou os olhos. Quase riu, quase chorou.
Verena girou nos calcanhares, ainda dona da roda.
As mãos, antes imóveis, começaram a se erguer. Os sorrisos surgiam aqui e ali. Alguns cochichavam, mas agora com interesse genuíno.
Os alunos estavam com ela.
No centro, Castilho permanecia em pé, calça social perfeitamente alinhada, o cabelo solto com uma onda impecável caindo sobre o ombro. Sem blazer. Só a camisa branca bem ajustada ao corpo, com as mangas dobradas na altura dos cotovelos. Elegância afiada.
— Vamos mais uma — disse, girando levemente o tronco para o outro lado da roda. — Quem aqui já teve vontade de desistir da escola?
Um silêncio se espalhou como um sopro contido. Alguns rostos baixaram. Uma ou duas mãos se ergueram, tímidas. Depois mais uma, hesitante.
— Obrigada por serem honestos — disse Verena, sem ironia. — É difícil mesmo. E às vezes parece que ninguém vê. Mas eu vejo. Nós vemos. Por isso estamos aqui.
Valentina mordeu o lábio inferior, os olhos baixos. Mas não havia como não escutar. Cada palavra atravessava direto, como se fosse dita só pra ela.
— Vocês sabiam que a maioria dos jovens que abandonam os estudos fazem isso por causa de fatores fora da escola? — continuou Verena. — Violência em casa. Trabalho precoce. Falta de apoio. Depressão. Problemas emocionais. Tudo isso que ninguém coloca no boletim, mas que carrega no corpo todo dia.
A plateia estava muda. Nem mesmo os alunos do fundão arriscavam piadas agora.
— Então, se você tá aqui hoje, mesmo com tudo que carrega... — ela olhou em volta, devagar — você já venceu a parte mais difícil. Só por não ter desistido ainda.
Um aplauso espontâneo começou, tímido, e foi crescendo. Professores, alunos, até alguns funcionários nas laterais da quadra.
Rafaela desviou o olhar, apertando a prancheta contra o peito. Era impossível não se orgulhar. Verena era mesmo um ponto fora da curva. Pena que, naquele momento, toda essa potência parecia queimar só por uma única presença naquele ginásio abafado.
Jéssica inclinou levemente a cabeça, como quem tentava montar um quebra-cabeça. E o centro da suspeita se desenhava com clareza.
Verena girou nos calcanhares, ainda dona da roda.
— Então, quem aqui quer me responder? O que vocês mudariam na escola se pudessem começar por algo pequeno?
Um garoto da 3ª série gritou:
— Poder usar celular!
Gargalhadas. Até os professores sorriram, com resignação.
— Ok, resposta honesta — disse Verena. — Mas agora quero ouvir uma que seja possível defender numa reunião com o secretário de Educação.
Uma menina do canto arriscou:
— Aumentar o tempo do intervalo?
— Boa. Argumento?
— A gente quase não tem tempo nem pra comer e nem pra descansar a cabeça.
Verena fez um gesto com a mão, como se anotasse mentalmente.
— Essa é boa. Tempo de descanso é parte da aprendizagem. Isso sim é política pública.
Os alunos começaram a cochichar, um clima de empolgação se formando. O círculo já não era mais tão formal. Estava se transformando, como deveria ser.
E então… um braço se ergueu.
Por vontade própria.
Dessa vez, uma menina da 1ª série levantou a mão. Tímida, mas firme.
Verena parou.
Sorriu.
Era o começo de verdade da roda.
A menina da 1ª série abaixava a mão devagar, quase arrependida no meio do gesto. O microfone chegava até ela.
Verena a viu primeiro.
— Pode falar. Qual seu nome?
— Bianca — respondeu a garota, encolhendo os ombros.
— Bianca, você me ouviu agora há pouco falando sobre sonhos grandes, né? Então me diz: se você pudesse mudar uma coisa na sua escola, qualquer coisa mesmo, por onde começaria?
A menina respirou fundo. Depois, soltou de uma vez:
— Eu… queria que tivesse menos prova difícil. Ou mais chance de recuperar, sei lá… porque às vezes a gente tá com problema em casa, não consegue estudar, mas mesmo assim perde nota e fica mal.
O silêncio veio. Não por desprezo — mas porque a simplicidade da resposta dizia mais do que muitos discursos.
Verena assentiu, com expressão séria. Depois, abaixou-se um pouco, trazendo o olhar à altura da menina.
— Você sabia que isso é uma pauta política, Bianca?
A garota arregalou os olhos, confusa.
— Pois é. Tem gente que acha que política só serve pra falar de Brasília. Mas política também é sobre justiça no boletim. Sobre o direito de falhar e poder tentar de novo. Você tem toda razão de dizer isso em voz alta. Nenhuma aprendizagem acontece se o que a gente vive é ignorado. E escola boa é aquela que pergunta antes de julgar.
A menina sorriu, tímida. Um aplauso tímido veio de um canto, depois outro — até que boa parte da plateia estava batendo palmas baixinho, com respeito.
Verena se levantou.
Carol murmurou para Valentina:
— Eu tô tentando odiar ela. Juro. Mas tá difícil…
Valentina nem conseguiu rir. Sentia o coração bater na garganta.
— Vamos fazer mais uma? — perguntou, agora olhando pra roda. — Mas dessa vez... uma pergunta diferente: alguém aqui já teve vergonha de pedir ajuda?
Um menino do 2º ano levantou o braço, rápido.
— Eu, deputada. Porque parece que vão achar que você é burro.
— E você é?
— Não. — Ele riu. — Só me distraio fácil.
Verena devolveu o sorriso com naturalidade.
— Todos nós. Inclusive eu, no colegial, era campeã de perder prova porque lia jornal escondida na aula de química. — A plateia riu. — Mas o que eu quero dizer é: pedir ajuda não é sinal de burrice. É sinal de inteligência emocional. A gente precisa aprender isso aqui dentro também.
Mais um momento de aplausos. Na lateral da roda, Carol soltou um assovio baixo, quase inaudível.
— Essa mulher tem mesmo alguma coisa, viu… — murmurou, sem tirar os olhos da amiga ao lado.
Valentina, com as mãos cruzadas no colo, mal piscava.
Rafaela observava a cena de longe, braços cruzados, semblante indecifrável. Sabia o risco daquele olhar fixo. Sabia o quanto Verena tentava se conter — e falhava a cada segundo.
Jéssica, por sua vez, anotava mentalmente cada detalhe. O tipo de brilho que passava nos olhos da deputada… não era institucional. Era visceral.
Verena ergueu novamente a voz:
— Próxima pergunta, ou comentário, ou crítica… tô pronta.
Mais braços se ergueram. A roda começava a girar de verdade.
A próxima mão levantada veio do meio das felireiras. Um garoto do 3º ano. Moreno, alto, jeito de líder de turma.
— Deputada, posso perguntar um negócio mais… polêmico?
Verena sorriu de canto.
— Polêmica é o meu nome do meio. Manda.
Risos. O garoto engoliu o nervosismo.
— Você acha que os políticos hoje em dia escutam a juventude? Porque parece que ninguém se importa de verdade com o que a gente pensa.
Verena respirou. Caminhou com calma até ele.
— Sabe o que eu acho? Que uma parte da política tem medo da juventude. Medo da coragem que vocês têm. Medo de serem desafiados por quem ainda sonha.
O garoto fez que sim com a cabeça, quase com reverência.
— E é por isso — continuou ela, com a voz firme — que vocês precisam ocupar os espaços. Participar do grêmio, do conselho, da roda. Porque quem cala uma geração, cava o próprio fim.
Rafaela sussurrou entre os dentes:
— Pronto. Virou culto agora…
Jéssica, ao lado, deu um sorrisinho discreto. Observava. Catalogava.
Enquanto isso, Valentina… estava travada.
Ela não se mexia. Não piscava. Só ouvia. Cada palavra era uma flecha. Um gesto, uma lembrança.
A mão sobre a cintura. O “quase beijo” no carro. A forma como Verena pronunciava “sonho” como se fosse a coisa mais perigosa do mundo.
E ali estava ela.
Dizendo tudo isso.
Diante de todos.
E olhando, de tempos em tempos, direto pra ela.
Carol inclinou o corpo, num sussurro:
— Você vai aguentar?
Valentina respondeu com um único gesto: mordeu o lábio com força, os olhos úmidos.
— Vai passar — mentiu.
Outra aluna pediu a palavra. Um garoto perguntou sobre política partidária. Outro, sobre oportunidades de bolsa.
A roda se fortalecia.
Mas Verena… mesmo respondendo com maestria, mesmo controlando tudo — sentia o corpo aquecer de um jeito diferente cada vez que olhava pro lado e via Valentina ali.
Imóvel.
Com os olhos mais doces que já conhecera.
Não era só poder, nem desejo.
Era uma saudade absurda do que nem chegou a ser.
E, por mais que soubesse que Rafaela a fulminava em silêncio, ela não conseguia parar de olhar.
Valentina, sua Valentina, estava ali.
E ela estava viva de novo.
Quadra coberta – 11h42
O microfone foi entregue a um menino do 1º ano. Ele segurou como se fosse um objeto sagrado.
— É… bom dia. Eu sou o Lucas. E eu queria saber se vai ter mais prova de recuperação esse ano. Porque às vezes a gente perde uma e aí já era, né?
Alguns alunos riram. Professores entreolharam-se.
Verena sorriu.
— Lucas, ótima pergunta. Pode parecer simples, mas diz muito sobre como a escola se organiza. Você sabe o que eu aprendi na política?
— O quê?
— Que dar segunda chance não é ser bonzinho. É ser justo.
Mais risos e alguns aplausos discretos.
Carol olhou para Valentina e sussurrou:
— Ela é boa, hein? Fala bonito até disso. Se ela prometesse acabar com a lição de casa, virava presidente hoje.
Valentina fez um esforço enorme pra não rir. Mas seus olhos… estavam úmidos.
O microfone seguiu. Passou por mais dois alunos — um perguntou se teria passeio no fim do ano, outro quis saber se o grêmio estudantil podia organizar campeonatos esportivos.
Verena respondeu a todos com atenção. Brincava, devolvia a pergunta, envolvia os professores na resposta. Estava à vontade, como se tivesse nascido ali. Como se fosse impossível não gostar dela.
— A gente vai ver esse negócio do campeonato sim — respondeu em dado momento, olhando para a direção. — Mas vou deixar o compromisso nas mãos deles, hein? — apontou para os coordenadores.
A plateia reagiu com risos. Até os professores riram, ainda que nervosos. Mas foi no próximo aluno que o tom mudou. Uma garota, 15 anos, cabelo preso num coque simples. Segurou o microfone com as duas mãos.
— Eu queria perguntar se algum deputado já conversou com a senhora sobre trazer educação sexual pra nossa escola. Porque aqui não tem. E a gente sente falta.
O silêncio caiu como um peso.
Valentina arregalou os olhos.
Verena ergueu o queixo.
Rafaela se moveu na cadeira, tensa.
— E você acha importante? — perguntou de volta, sem desviar o olhar da menina.
— Acho. A gente ouve um monte de coisa na internet, e não tem onde perguntar de verdade. Tem professor que desvia do assunto. Mas a gente tem dúvida, né? Tem medo também.
Verena respirou fundo.
— Você sabe que esse tema é o que mais apanha na Assembleia, né?
A garota fez que sim, com firmeza.
— Mas apanha porque incomoda. E incomoda porque é necessário. Eu defendo a educação sexual nas escolas desde antes de ter mandato. Porque proteger a infância é informar, não esconder.
Dessa vez, a salva de palmas foi geral.
Rafaela olhou de lado, discreta. E não conseguiu conter um sorriso. Orgulho, apesar de tudo.
Verena Castilho era mesmo um ponto fora da curva.
E Valentina…
Valentina só pensava numa coisa:
Como é que se esquece alguém assim?
O microfone passou para outra aluna.
— Eu sou a Kátia, do 3º A. Eu queria saber se vai ter mais passeios esse ano. Tipo, culturais mesmo. A gente sente falta, sabe?
Verena respondeu com leveza, puxando os professores para a conversa.
— Acho ótimo que vocês queiram sair um pouco da bolha da escola. Mas vou jogar a responsabilidade pra quem organiza o calendário — olhou para a direção com um sorriso bem-humorado. — Se precisar de parceria com a Alesp, a gente conversa.
Mais aplausos. Os alunos se soltavam. As perguntas começavam a ganhar profundidade.
Carol inclinou-se no ouvido da amiga:
— Se ela prometer acabar com o Enem, eu largo tudo por ela.
A amiga tentou rir, mas os olhos continuavam marejados.
E do outro lado da quadra, Verena viu.
Sempre via.
Quadra Coberta — 11h55
O braço erguido pertencia a uma menina magra, de cabelo trançado e olhar firme. Verena apontou para ela com um gesto leve do queixo.
— Pode falar. Qual seu nome?
— Talita.
— Talita, manda sua pergunta.
A garota segurou o microfone com as duas mãos. Respirou fundo.
— Como a senhora lida com as críticas por ser mulher e ocupar um lugar de poder? Tipo… parece que pra gente sempre cobram o triplo.
Um burburinho percorreu a roda. Professores trocaram olhares. Uma aluna do 1º ano murmurou um “nossa” baixinho.
Verena assentiu devagar. A resposta veio com a calma de quem já a formulou mil vezes — mas sempre escolhe as palavras como se fosse a primeira.
— Cobram, sim. Mas tem uma coisa que ninguém ensina: a gente não precisa responder tudo. Às vezes, é mais inteligente deixar que o tempo fale por nós. — Ela deu uma pausa. — Mas em outras vezes, a gente precisa levantar a cabeça e responder alto. Porque o silêncio também pode virar costume. E mulher nenhuma veio ao mundo pra se acostumar com humilhação.
As palmas vieram antes mesmo do fim da frase. Professores, alunas, até um ou outro aluno que no começo parecia disperso agora batia palmas com vigor.
Rafaela fechou os olhos por um segundo. Era insuportável o quanto Verena podia ser brilhante. Jéssica sorriu de lado, como quem se certificava de que a própria análise estava correta.
Do outro lado da quadra, Carol olhou Valentina de soslaio. A amiga estava estática, o olhar grudado na figura de Verena como se o tempo tivesse parado ali. A menina mal respirava.
— Valen… — sussurrou Carol, se inclinando pra ela. — Você tá bem?
Valentina assentiu com um gesto mínimo, os olhos marejando.
— Eu tô… — mas a voz não saiu. Engoliu seco, as mãos entrelaçadas no colo, suando frio.
No centro da roda, outra mão se ergueu. Dessa vez, de um menino com boné enfiado até os olhos, da 2ª série.
— Manda aí, campeão — disse Verena, de modo leve.
— Se a senhora pudesse mudar uma coisa na sua vida, o que seria?
A roda inteira pareceu prender o ar.
Verena arqueou levemente a sobrancelha. O tipo de pergunta que a assessoria jamais aprovaria. Mas ali, ela estava só… ela.
— Boa pergunta. E difícil. — Ela cruzou os braços, pensativa. — Acho que eu mudaria a forma como me cobrei quando era mais nova. Eu cresci achando que precisava dar conta de tudo, o tempo todo. E isso cansa. Machuca. Faz a gente se perder de quem realmente é.
O silêncio que se instalou era quase emocional. Professores assentiam em silêncio. Um aluno no fundo apertava a caneta com mais força, como se anotasse sem anotar.
Verena respirou fundo. Seus olhos, traidores, escorregaram de novo pro canto da quadra.
E ali estava ela.
Valentina.
Linda.
Assustada.
Real.
A menina olhava diretamente para o centro agora. Não fugia mais. E no instante em que seus olhos se encontraram, algo dentro de Verena pareceu suspender o tempo.
Rafaela viu. Jéssica também.
Carol mordeu o canto do lábio, sem conseguir esconder o pensamento: meu Deus… é real.
Verena piscou, voltando pra roda.
— Mais alguém?
Dois alunos levantaram as mãos ao mesmo tempo.
A política estava viva.
E o caos emocional… também.
O microfone mal tinha saído da mão do último aluno quando Carol ergueu o braço. Decidida. O gesto firme contrastava com o sobressalto de Valentina ao lado, que imediatamente segurou o punho da amiga.
— Carol, não — sussurrou, desesperada. — Para. Por favor.
— Relaxa, deputadinha — murmurou Carol, num tom provocador e carinhoso, com o canto dos lábios. — Não é nada demais. Só não vou perder a chance da minha vida.
O microfone passou por duas mãos antes de chegar até ela. Verena já observava com atenção a movimentação naquele canto. E quando viu de onde vinha a pergunta — exatamente ao lado de Valentina —, sentiu o impacto antes mesmo das palavras.
— Pode falar, qual seu nome? — perguntou Verena, a voz mais neutra do que gostaria.
— Carol. 2º C.
Verena assentiu. E Carol nem piscou antes de lançar:
— Eu queria saber o que a senhora pensa sobre inclusão nas escolas, especialmente sobre sexualidade. A gente fala muito de respeitar as diferenças, mas pouca gente tem coragem de dizer isso com todas as letras. Qual o papel da escola nisso?
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Foi cheio.
Cheio de gente que prendeu o fôlego.
Cheio de significados.
Valentina fechou os olhos por um segundo. O coração disparado, a nuca suando, os joelhos duros como pedra. Sabia que aquilo era pra ela. Que Carol estava, de algum jeito, dando voz ao que ela nunca teria coragem de dizer em público.
Verena demorou meio segundo a mais que o habitual para responder. Seus olhos passearam brevemente entre os alunos... e pousaram onde não deveriam.
Nela.
Que, por instinto, desviou o olhar.
Mas Verena já tinha visto. Já tinha sentido.
A garganta secou.
Mas a resposta veio.
— A escola é, ou deveria ser, o lugar onde a gente aprende a existir sem medo. Isso inclui falar de gênero, de orientação, de identidade. Não pra impor nada a ninguém, mas pra garantir que ninguém seja apagado. — Verena deu uma breve pausa, então continuou: — Quem quer respeito precisa começar respeitando a si mesmo. E quem ama a liberdade precisa garantir que ela sirva pra todos — e não só pra quem se parece com a gente.
Um murmúrio de aprovação percorreu a roda. Professores assentiam. Uma aluna mais velha bateu palmas sozinha, no reflexo, e logo foi acompanhada por outros.
Carol sorriu, orgulhosa.
Valentina queria se enfiar debaixo da cadeira.
Rafaela passou a mão na testa, tensa.
Jéssica olhou pra Verena com um brilho nos olhos — um brilho que misturava admiração e desconfiança. Algo naquela resposta parecia vir de um lugar mais íntimo que o discurso de sempre.
E Verena... Verena fingiu que nada queimava por dentro. Mas queimava. Porque ela sabia exatamente o que aquela pergunta era. E pra quem.
Quadra Coberta – 12h10
A roda de conversa já tinha perdido qualquer formalidade. Agora era troca viva. As perguntas fluíam, os sorrisos também. E Verena... ela já nem notava mais o microfone na mão. Falava como quem respira — firme, articulada, à vontade. Gesticulava com leveza, com aquele charme calculado que encantava multidões. Seus olhos dançavam entre os rostos dos alunos, professores, membros da equipe.
Até que a coordenadora se aproximou sutilmente, avisando com um gesto discreto que o tempo estava acabando. Verena assentiu, agradeceu em silêncio, e então voltou-se à todos com um último fôlego de palco:
— Eu queria dizer que, pra mim, estar aqui hoje foi mais do que um compromisso. Foi uma lembrança viva do porquê a gente luta todo dia. — Seus olhos passearam uma última vez por cada lado da quadra, pousando só por meio segundo a mais onde não deviam. — A escola pública precisa continuar sendo um lugar onde os sonhos cabem. Onde as diferenças não viram silêncio. E onde a política não é algo distante, mas uma parte do nosso jeito de existir no mundo.
Fez uma breve pausa, a voz cheia de firmeza e afeto.
— Eu saio daqui com mais esperança do que entrei. E prometo: enquanto eu puder, enquanto eu estiver onde estou, vocês não vão estar sozinhos.
Palmas. Primeiro contidas, depois crescentes. A quadra vibrou por um momento — genuinamente. Alunos batendo palma em pé, alguns professores emocionados, os olhares da equipe se cruzando em aprovação.
E então, com aquele sorriso enviesado que era sua marca registrada, Verena concluiu:
— E agora… antes que alguém me acuse de só falar bonito… — um murmúrio curioso percorreu o espaço — …eu trouxe uma coisa que sei que todo mundo gosta.
Ela virou-se levemente, apontando com o queixo para a lateral da quadra.
Dois assessores da Alesp apareceram, carregando caixas com o brasão do Estado estampado. Foi o suficiente.
— Brindeeees! — gritou alguém, e o alvoroço explodiu.
Alunos se levantaram instintivamente, a confusão já se formando.
— Calma, gente! — disse Verena, rindo. — Tem pra todo mundo, eu prometo. Mas vamos por ordem, ou minha equipe vai pedir exoneração coletiva hoje mesmo.
Mais gargalhadas. Professores tentavam conter o furor com diplomacia, os olhos da equipe da escola arregalados, mas também divertidos.
Valentina continuava sentada, imóvel. Mas sorria, de canto, como quem testemunhava um espetáculo — o tipo de espetáculo que parte a gente ao meio.
E Carol, ao seu lado, murmurou sem disfarçar:
— Fala sério! Essa mulher é um evento.
Valentina não respondeu. Só apertou os dedos entre os próprios joelhos, tentando não tremer.
Rafaela, do outro lado da quadra, respirava fundo. Verena estava brilhando. Outra vez. E aquele brilho… era um perigo. Mas como deter algo que já tinha virado luz?
Quadra Coberta – 12h20
A roda já havia se desfeito fisicamente, mas o burburinho permanecia como uma espécie de corrente elétrica na quadra. Professores tentavam organizar os alunos em filas — sem muito sucesso. Bastou a palavra "brinde" ser ouvida mais uma vez para a multidão adolescente se transformar num formigueiro apressado, disputando os melhores lugares.
Verena, agora ao lado da mesa improvisada com os brindes, controlava o caos com um sorrisinho cínico no rosto e um olhar de superioridade afetuosa. Como quem diz: Vocês não me merecem, mas eu vim mesmo assim.
— Um de cada, tá, pessoal? — avisava um dos assessores, tentando conter as mãos ansiosas que mergulhavam nas caixas. — Tem bloquinho, caneta, garrafinha e aquele marcador de página que ninguém usa, mas todo mundo pega.
— E tem um bottom da Alesp também! — completou o outro, orgulhoso.
— Esse aí já virou moeda de troca no corredor da minha sala — ironizou Verena, arrancando risos de alguns professores que se aproximavam.
Enquanto isso, do fundo da fila, Carol e Valentina observavam tudo.
— A gente devia ter corrido quando falaram do brinde — reclamou Carol. — Agora vamos pegar o restolho.
— Melhor assim — murmurou Valentina, mexendo no elástico do cabelo. — Assim a gente nem chega perto da…
— Da mulher mais gata que eu já vi? — provocou Carol, olhando diretamente pra deputada, que naquele momento posava para uma selfie com duas alunas da 2ª série. — Pena que a sua coragem não é proporcional ao crush, deputadinha.
— Não me chama assim — sussurrou Valentina, olhando em volta aflita. — Alguém pode ouvir!
— Ah, e daí? Vai que a Verena escuta e te chama pra tomar café na Alesp — disse Carol, rindo alto. — Aliás, olha só, o povo tá tirando foto com ela! Eu e você vamos também.
— O quê?! Não! Nem pensar. Eu não vou — disse Valentina, já tentando dar um passo para fora da fila.
Carol segurou o braço da amiga com firmeza, rindo como quem já sabia que seria assim.
— Nem vem. Você me fez acordar cedo, ensaiou essa fala por semanas, quase desmaiou vendo a mulher e agora vai fugir? Não. Eu te arrasto no colo, se for o caso.
— Carol… eu não vou aguentar… — murmurou Valentina, o rosto corado.
— Vai sim. Você sobreviveu ao quase-beijo no carro, lembra? Sobrevive a uma selfie também. E olha, se a deputada te olhar como olhou naquela hora de novo… aí quem desmaia sou eu.
Valentina quis responder, mas o estômago já estava todo virado. A fila andava, as vozes ao redor zuniam, e cada passo em direção à mesa parecia puxar o chão debaixo dos seus pés.
Lá na frente, Verena posava com naturalidade. O sorriso profissional, o olhar sempre atento. Mas a cada novo rosto que se aproximava, os olhos dela varriam discretamente o espaço, como quem procurava algo… ou alguém.
E então, um grupo de alunos se afastou.
E ela viu.
Valentina. Na fila.
E o mundo parou.
Verena desviou o olhar rápido, como se nada tivesse acontecido. Mas Rafaela, ao lado, viu. Tudo. E seu único pensamento foi: Merda. Lá vem.
Verena ajeitou a postura, passou a mão rápida no cabelo solto, o blazer recolocado perfeitamente alinhado. Mas o coração... acelerava sem controle.
Carol notou o microgesto. E murmurou:
— Tá. Isso realmente tá acontecendo.
— O quê? — sussurrou Valentina, desesperada.
— Ela tá te procurando Valen. Tipo, de um jeito que eu… nossa. Eu nem sei o que dizer.
— Não fala nada — pediu Valentina, apertando o pulso da amiga. — Só não deixa eu cair.
— Pode deixar. Eu te seguro. Mas essa foto, a gente vai tirar. Nem que eu tenha que empurrar você no colo dela.
E a fila continuava.
Cada passo, um terremoto.
Quadra Coberta – 12h25
A fila já se esvaziava. Os brindes estavam quase no fim, mas o entusiasmo não diminuía. Alguns alunos posavam para fotos com Verena como se estivessem diante de uma celebridade de Hollywood. Garotos do 3º ano se revezavam entre selfies, piadas infames e olhares descarados.
— Um sorrisinho aí, deputada… pra registrar o dia em que quase votei certo! — disse um deles, rindo alto, o braço passando ligeiro demais pelas costas de Verena enquanto a câmera do celular piscava.
Ela sorriu de volta, polida. Mas seus olhos… estavam em outro lugar. Procuravam sem parar.
Até que encontraram novamente.
Carol.
E ao lado dela… Valentina.
E o mundo parou.
Literalmente.
A quadra seguiu existindo, mas em segundo plano. O barulho dos alunos virou ruído, os flashes dos celulares sumiram, a conversa dos professores se dissolveu no ar. Verena perdeu até a postura, por um segundo. Os olhos cravados naquela figura cada vez mais perto — magra, tensa, tímida. A mesma franja que sempre tentava esconder o rosto, inquietas, sem saber como agir.
Valentina.
A menina parada a poucos passos. Mais real do que nunca. E, ao mesmo tempo, tão inacessível que doía.
Verena não piscou. Nem fingiu. Aquela era a visão que ela esperou por dias. Que tentou afastar. Que tentou racionalizar. E agora estava ali, viva, concreta… devastadora.
Valentina percebeu o olhar. E parou.
Literalmente travou, como se o corpo não soubesse mais o que fazer. Um passo adiante? Um sorriso? Um aceno?
Nada.
Seu coração batia tão forte que ela teve certeza de que alguém ia ouvir. As pernas tremiam. As mãos formigavam. Aqueles olhos… aqueles olhos de mulher feita, olhos de quem carrega o mundo e ainda assim se permite olhar pra ela.
Carol, ao lado, segurou firme no ombro da amiga. Sussurrou, entre dentes:
— Tá olhando pra você. Caralh*, Valen… ela tá te olhando como se o resto do mundo tivesse sumido.
Valentina mordeu o lábio com força.
— Eu… eu não consigo — balbuciou, a voz embargada. — Não dá. É demais.
— Respira. Você tá aqui. Você é incrível. E você vai passar por isso. E ainda vai me agradecer depois.
Verena continuava imóvel.
E só voltou a respirar quando Rafaela lhe deu um leve toque no cotovelo. A expressão dela era clara: disfarça, Verena, que merd*.
Verena piscou. Pigarreou. E então virou o rosto para o próximo aluno que pedia um brinde.
Mas era tarde.
A imagem da menina a dois passos de distância já tinha reconfigurado tudo por dentro.
E agora?
A fila andava. Carol puxava Valentina gentilmente. E logo… logo seria a vez das duas.
E o que viria a seguir, ninguém — nem mesmo Verena — estava preparada para sentir.
Quadra Coberta – 12h30
A fila ia chegando ao fim. O alvoroço da distribuição de brindes já tinha perdido força, mas alguns alunos ainda insistiam em garantir a tão sonhada foto com a deputada. Verena mantinha a compostura — mãos no braço dos estudantes, sorriso leve, pose institucional.
— Próximas — avisou um assessor, fazendo sinal com a cabeça.
Carol foi primeiro, puxando Valentina pelo braço. As duas já estavam com as ecobags nas mãos. Brinde simples, mas simbólico. A multidão já se dissipava, mas o foco… estava prestes a se concentrar inteiro ali.
Verena sentiu os passos antes de ver.
A pele reagiu primeiro. Depois o estômago. E por fim, o coração — que disparou como se tivesse sido empurrado para fora do peito. Os olhos buscaram. Encontraram. E congelaram.
Valentina vinha se aproximando com passos curtos, quase travados. A bolsa com os brindes na perna, como se o tempo todo lembrasse: você não pertence a esse lugar. Mas ela estava ali. Mais viva do que nunca.
Carol se adiantou, toda natural.
— Deputada, podemos tirar uma foto? — perguntou com um sorrisinho maroto.
Verena abriu um leve sorriso. Mas seus olhos não estavam em Carol.
— Claro — respondeu, e a voz falhou por um segundo imperceptível.
Valentina parou ao lado. E o mundo tremeu.
A garota estava pálida. Suava pelas mãos. O cabelo levemente preso deixava o rosto mais exposto que o habitual. Verena não sabia onde pôr as mãos. Nem como esconder o abismo que acabara de se abrir por dentro.
— Carol, acertei? — respondeu Verena com um leve sorriso, já ajustando a postura.
A jovem assentiu maravilhada por ter seu nome lembrado por alguém como Verena. A foto foi rápida. A pose clássica: a mão de Verena na altura do braço da aluna, um sorriso formal, e pronto. Clic.
— Obrigada! — disse Carol, com o rosto aceso, mas a mente já tramando a segunda parte do plano.
Ela se virou e puxou Valentina com força contida.
— Vai, agora é você.
— Não… não precisa, já pegamos o brinde, tá bom — murmurou Valentina, recuando um passo, visivelmente nervosa.
— Valentina — disse Carol com um olhar afiado. — Você vai tirar essa foto, nem que eu te carregue.
Valentina se aproximou devagar. As mãos apertando a ecobag como se aquilo pudesse salvá-la. Parou à frente da deputada, mas não se moveu para a pose.
Verena notou.
Notou a hesitação, o rubor nas bochechas, o tremor sutil dos dedos.
— Ué — disse ela, com um sorriso enviesado. — Eu fui uma chefe tão ruim assim que você não quer nem uma foto pra guardar?
Valentina congelou.
Seu rosto ficou vermelho num segundo. Um pimentão vivo, inteiro. A vontade era de cavar um buraco no chão da quadra e entrar sem nem se despedir.
— N-não é isso, é que eu… — tentou dizer, mas a voz não saía.
Carol teve que se virar pro lado, contendo um grito histérico de desespero contido.
— Então vai logo — murmurou, empurrando a amiga de leve.
Verena riu baixo. Uma risada curta, mas com um fundo de algo muito mais quente. Deu um passo à frente, sutil.
Carol já tinha se afastado alguns passos, ainda ajeitando a ecobag no ombro, mas não tirava os olhos da cena que se armava à frente. E o que viu… quase a fez derrubar tudo.
Valentina, ainda sem conseguir se mover, parou diante da deputada como se o chão estivesse prestes a sumir. Verena deu um passo adiante — e a mão que antes repousava no ombro de todos os outros alunos, desceu.
Para a cintura.
Com um gesto suave, lento, envolveu a lateral do corpo da garota com firmeza. A única foto do dia com aquele toque. A única que parecia não ser apenas para o registro.
Carol arregalou os olhos.
“Ela meteu a mão na cintura da Valen.”
Rafaela soltou um leve engasgo, que abafou com um pigarro improvisado. A pasta quase escorregando do braço.
Valentina fechou os olhos por um instante. Era como se aquele toque despertasse tudo de novo. Um toque que conhecia, mas que ainda assim a desarmava por inteiro. A pele que ardia. O coração que não obedecia. O cheiro dela. A presença dela. Estava em transe. Era como estar no lugar mais seguro e mais perigoso do mundo ao mesmo tempo.
Jéssica, a poucos metros, cruzou os braços com calma. Os olhos fixos na cena. E, embora não conhecesse todos os detalhes… ela já tinha entendido tudo.
Verena não disfarçou. Na verdade, parecia incapaz de lembrar onde estava. Olhava para ela como quem olha para a única coisa que importa.
Se deu conta de que estavam esperando o clique — e foi aí que falou.
— Sorria — pediu, com a voz tão baixa, tão doce, que parecia um segredo.
E enquanto dizia, apertou com um pouco mais de força. Um milímetro a mais. Como se aquilo fosse o que a mantinha de pé.
Valentina obedeceu. Ou tentou. O sorriso saiu vacilante, frágil, mas estava lá.
Clique.
A foto foi tirada.
E por um instante… ninguém se moveu.
Verena segurou aquele momento como se o mundo inteiro pudesse desmoronar ao redor, desde que ela não soltasse a cintura daquela menina.
— Obrigada por ter vindo — murmurou, mas não era sobre a visita à escola. Era sobre tudo.
Valentina respirou fundo. A alma em carne viva.
— Eu… que agradeço — conseguiu dizer, antes de dar um passo atrás, quase tropeçando no próprio corpo.
Carol correu até ela com os olhos esbugalhados.
— Ela colocou a mão na sua cintura — sibilou. — Ela colocou a mão na sua cintura!
Valentina não respondeu. Mal piscava. Caminhava como se flutuasse, os olhos borrados, as pernas instáveis.
Rafaela fechou os olhos, praguejando internamente.
“Vai acabar com tudo, Verena. Vai acabar com tudo assim mesmo.”
Jéssica, atrás do grupo, acompanhava o desfecho com aquele olhar calmo demais. Analisando. Arquivando.
Sabia o que tinha visto. Sabia o que aquele gesto queria dizer.
E agora, mais do que nunca, tinha certeza: havia uma rachadura no império Castilho.
E ela estava observando.
Quadra Coberta – 12h32
Valentina já se afastava, atônita, quando ouviu:
— Valentina… espera um instante.
A voz de Verena cortou o ar como um raio.
Carol congelou no mesmo segundo. Rafaela fechou os olhos devagar, murmurando um “puta que pariu” inaudível, já pronta pra arrancar a chefe dali. Mas antes que pudesse se mover, Verena ergueu um dedo, como quem pede paz num campo de guerra.
— Só um minuto — disse, sem tirar os olhos da garota.
Valentina parou. As pernas tremiam, mas ela parou.
Verena deu alguns passos à frente. Os ruídos da quadra desapareceram. Eram só as duas ali. A multidão embaçada, distante.
Com movimentos lentos, Verena enfiou a mão dentro do blazer, no bolso interno, e tirou uma caneta. Não era qualquer caneta. Corpo dourado, acabamento metálico, o nome “Verena Castilho” gravado com perfeição na lateral.
Luxo discreto. Precisão. Poder.
Ela estendeu a caneta como quem oferece um segredo.
— É um brinde especial. Não tá nos kits, nem nas caixas… — falou, com um sorriso pequeno, sincero. — É só pra você. Pela forma como trabalhou comigo. Você foi… impecável.
Valentina arregalou os olhos, sem saber o que fazer com as mãos, com o corpo, com o coração.
Verena deu um passo mais perto, sem invadir, mas sem pedir permissão.
— Mas não espalha, tá? — disse, num tom mais leve. — O estoque dessas é limitado… e o charme também.
Valentina soltou um riso fraco, quase sem ar. As pontas dos dedos encostaram na caneta com tanto cuidado que parecia cristal.
Verena segurou por mais um segundo, antes de soltar. Seus olhos diziam tudo o que os lábios não podiam.
Carol estava a dois passos, em choque. Foi pega completamente desprevenida quando Verena se virou para ela com um sorrisinho de canto.
— Fico te devendo uma, Carol. Prometo compensar com um café... ou com uma próxima visita à Alesp.
Carol piscou, ainda tentando processar.
— Ahm… obrigada — respondeu, desconcertada.
Rafaela finalmente se aproximou, o semblante fulminante.
— Verena… precisamos seguir.
A deputada apenas assentiu, o olhar ainda na menina que segurava a caneta como se fosse uma relíquia.
Valentina desviou os olhos, respirando fundo, tentando conter o turbilhão que se formava por dentro. Era demais. Aquilo era demais.
Ela virou de costas, e só então permitiu que o rosto se contorcesse. O passo seguinte foi cambaleante. Carol teve que apoiar o braço dela.
— Ela te deu a porr* de uma caneta personalizada — murmurou Carol, entre surpresa e encantamento. — Isso é tipo… um pedido de casamento político?
Valentina riu. Ou tentou. Porque o choro veio junto, tão silencioso quanto inevitável.
Rafaela, do outro lado, olhava para a chefe como quem vê alguém à beira do abismo.
— Você surtou de vez? — sussurrou. — Tá perdendo o juízo, Verena?
Verena não respondeu. Só olhava para a menina que ia se afastando.
“Se ela soubesse… que tudo isso ainda era pouco diante do que eu queria fazer.”
Jéssica, a alguns passos, observava em silêncio. O sorriso discreto nos lábios, quase profissional. Mas os olhos… atentos. Gravando cada segundo.
Porque naquele instante, Verena Castilho não era mais apenas uma deputada poderosa.
Era uma mulher apaixonada.
E apaixonados… fazem coisas perigosas.
Fim do capítulo
Oi gente!
Como vocês estão? Espero que todos estejam bem!
Primeiro, quwero dizer que tava com suadade de vocês rsrs, e agardecer por quem ainda tá aqui. S2
Segundo, fiquei com uma dúvida em relação ao tamanho dos capítulos e queria saber o feedback de vocês. Os capítulos estão muito grandes, fica ruim de ler? Preferem meno? Ou tá bom assim?
A ideia é deiar a leitura o mais confortável possível e as vezes dá a sensação de que capítulo muito grande deixa mais cansativo. Então fica a cargo de vocês deicidir.
Bjs e boa noite pra quem for dormir (euzinha) ou bom dia pra quem já acordou rsrs.
Comentar este capítulo:
Zanja45
Em: 07/08/2025
Verena é a melhor., mesmo. - Jéssica entrou como espiã, observadora, mas no final, senti um quê de admiração da parte dela pela Deputada. - Ela soube envolver os adolescentes na conversa. - E ao que tudo indica, aos adversários na política também. .
anonimo2405
Em: 10/08/2025
Autora da história
A Verena é a Verena rsrs, quando ela quer, é difícil segurar. Torcendo pra Rafaela ter uma conversas mais sérias com a Jéssica.
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Zanja45
Em: 07/08/2025
Oiii, estou muito ocupada, mas bem. Também senti muitas saudades.
Os capítulos estão bem grandinhos, porém não cansativos. - Não vou sugerir que diminua os capítulos, porque acredito que se você coloca essas quantidades de palavras é porque é necessário.- Então, continue fazendo do jeito que você sabe fazer, pois, o faz muito bem. - E só estamos ganhando com sua vasta escrita.
P.S. Queria te conhecer algum dia, " A" ( Autora),pois sou fascinada pela forma espetacular como escreve. - Mas, talvez, já te conheça, porque suas palavras são capazes de transportar a outras realidades que não estas.- Provavelmente já tenha lido algo seu antes, pois sinto uma leveza, uma alegria, uma intimidade, um prazer enorme em ler cada capítulo dessa história.
anonimo2405
Em: 10/08/2025
Autora da história
Oieeee.
Primeiro, fico muito feliz que você esteja bem. Tenho que confessar que já tava preocupada com seu sumiço rsrs e nem é brincadeira rsrs. Mas eu te entendo, também tô sempre na correria. Mas, tentando me organizar melhor pra dar uma acalmada rsrs
Segundo, eu realmente não sei lidar com elogios assim gente, sério. Obrigada! S2
Eu fico lendo e relendo e tudo o que falar vai parecer pouco pra agradecer. É incrível saber que eu consigo transmitir o mesmo prazer que eu sinto quando escrevo pra vocês. Essa é a ideia, levar a gente pra outro universo e se eu tô conseguindo isso, é meu objetivo tá sendo alcançado.
Ahh Não vou mentir que eu fico tentando imaginar o rosto por trás de cada nome rsrs. E só pelo jeito de escrever acredito que já dê pra sentir um pouco a energia da pessoa. E... quem sabe algum dia a gente não se encontre, afinal, o mundo nem é tão grande assim né rs! ;)
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Hanna28
Em: 07/08/2025
Estou naquela de imaginar quais bombas teremos nesse vigésimo nono capítulo.
Aguenta cuore mio...![]()
anonimo2405
Em: 10/08/2025
Autora da história
Huuum, agora não vai mais precisar imaginar rsrs
E, please, como você colocou emoji aqui? Sou doida pra colocar e não consigo :)
Hanna28
Em: 10/08/2025
Tem uma barrinha de emojis no final da parte de deixar um comentário.
Mais uma vez de sua extraordinária e excepcional escrita e vou te abduzir tenente!.
anonimo2405
Em: 16/08/2025
Autora da história
Genteee! Não é possível que só eu que não tô enxergando esses emojs rsrsrs! ???? Mas não vou desistir.
Aii obrigadaa! E confesso que eu fiquei curiosa pra saber pra onde eu seria abduzida! Abraços capitã! ????
anonimo2405
Em: 16/08/2025
Autora da história
Ahhh não foooi (emoji chorando) kkkkkk
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Sem cadastro
Em: 30/07/2025
Primeiramente:
Valeu a espera!
Segundamente:
Eu adoro os capítulos longos, principalmente, se
Envolver Verena e Valentina juntas num mesmo ou curto espaço.
Hoje foi tenso... foi quente!
Às vezes a gente precisa perder os trilhos
O que essas duas estão sentindo é inevitável
Tem muito pano pra manga
Eu estou torcendo pra Verena e Valentina para que possam viver o que estão sentindo
E que possamos acompanhar o desenvolvimento dessa relação
Você é incrível
E cirúrgica
Pontual!
Só me resta aguardar ansiosamente pelo próximo desenrolar dos fatos
Por gentileza faz essas duas ficarem no mesmo espaço o mais rápido possíve, please!
Abraços!
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HelOliveira
Em: 30/07/2025
Esse capítulo foi tudo de bom.....e quanto maior melhor ainda....
Carol tem razão, quem não se apaixona por essa Mulher...
Agora Rafa precisa ver a cobra que essa Jéssica é....e torcendo pra ela não abandonar a Verena por mais difícil que seja....
Parabéns autora
anonimo2405
Em: 30/07/2025
Autora da história
Oiee! Boa noiteee!
Ahh obrigada por estar aqui. Obrigada pelo carinho! :) S2
Não tem como discordar da Carol.
E também torço pra que a Rafaela não abandone o barco, mas... Vamos ver né!
Abraço! ;)
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Sem cadastro
Em: 29/07/2025
Primeiramente:
Valeu a espera!
Segundamente:
Eu adoro os capítulos longos, principalmente, se
Envolver Verena e Valentina juntas num mesmo ou curto espaço.
Hoje foi tenso... foi quente!
Às vezes a gente precisa perder os trilhos
O que essas duas estão sentindo é inevitável
Tem muito pano pra manga
Eu estou torcendo pra Verena e Valentina para que possam viver o que estão sentindo
E que possamos acompanhar o desenvolvimento dessa relação
Você é incrível
E cirúrgica
Pontual!
Só me resta aguardar ansiosamente pelo próximo desenrolar dos fatos
Por gentileza faz essas duas ficarem no mesmo espaço o mais rápido possíve, please!
Abraços!
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N@ty
Em: 29/07/2025
Primeiramente:
Valeu a espera!
Segundamente:
Eu adoro os capítulos longos, principalmente, se
Envolver Verena e Valentina juntas num mesmo ou curto espaço.
Hoje foi tenso... foi quente!
Às vezes a gente precisa perder os trilhos
O que essas duas estão sentindo é inevitável
Tem muito pano pra manga
Eu estou torcendo pra Verena e Valentina para que possam viver o que estão sentindo
E que possamos acompanhar o desenvolvimento dessa relação
Você é incrível
E cirúrgica
Pontual!
Só me resta aguardar ansiosamente pelo próximo desenrolar dos fatos
Por gentileza faz essas duas ficarem no mesmo espaço o mais rápido possíve, please!
Abraços!
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N@ty
Em: 29/07/2025
Primeiramente:
Valeu a espera!
Segundamente:
Eu adoro os capítulos longos, principalmente, se
Envolver Verena e Valentina juntas num mesmo ou curto espaço.
Hoje foi tenso... foi quente!
Às vezes a gente precisa perder os trilhos
O que essas duas estão sentindo é inevitável
Tem muito pano pra manga
Eu estou torcendo pra Verena e Valentina para que possam viver o que estão sentindo
E que possamos acompanhar o desenvolvimento dessa relação
Você é incrível
E cirúrgica
Pontual!
Só me resta aguardar ansiosamente pelo próximo desenrolar dos fatos
Por gentileza faz essas duas ficarem no mesmo espaço o mais rápido possíve, please!
Abraços!
anonimo2405
Em: 30/07/2025
Autora da história
Oieee.
Aiii que maravilho saber que vc gostou e que eu não te decepcionei. S2
Eu tbm amo as cenas das duas juntas. Dá até um arrepio rsrsrs
Vc que é incrível, sempre com esses comentários maravilhosos! :)
E acredito que vc vai gostar do próximo capitulo tbm rsrsrs
Abraço! ;)
N@ty
Em: 03/08/2025
Você é uma escritora fantástica
Eu me sinto presente em cada cena, cada detalhe, cada ato.
Sim, quando da arrepio daí que a coisa já subiu de patamar
E a sua pode ter certeza que sim!
Uma história com tantas possibilidades
Estou amando a forma que você está desenvolvendo
Eu desejo que ainda tenhamos muito capítulos
Se assim, for!
No coração não se manda
A Verena parece que tá agindo de forma imatura, deixando de lado a mulher incrível que a esposa dela é.
Ela está tentando resistir
E não assumir a responsabilidade pelo que está sentindo
Mas é complexo
Porém, tem o outro lado chamado Valentina
Tão ingênua, tão alienada
Mas que está se descobrindo
São duas forças que se atraem
Inevitavelmente
Não é mais questão de proibido
É questão de atração
E escolhas
Porque nós acabamos por nos tornar nossas escolhas
Abraços !!
anonimo2405
Em: 10/08/2025
Autora da história
Oieee!
Ai gente, como que faz pra abraçar agora? rssr ????
Eu acabei de descobrir bem tímida pra elogio rsrs, eu nem sei o que dizer. É maravilhoso saber que o que eu procuro passar em cada cena tá chegando da forma que eu espero e até melhor. Obrigada de verdade pelo carinho. ????
E olha, você sempre certeira nas análises.
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Hanna28
Em: 29/07/2025
Agora é ter cardio para aguardar a próxima cena dessa novela de tensões e desejos reprimidos.
anonimo2405
Em: 30/07/2025
Autora da história
Sem querer dar spoiler, mas é uma boa ideia. Até agora tá tudo muito caminho. Acho que já tá na hora das coisas ficarem mais emocionantes rsrs.
Hanna28
Em: 30/07/2025
Calminho?
Autora...essas duas tem uma química quase transcendental!
É rara uma troca visceral e de tanta intensidade no nosso mundo real.Tudo consiste em algo raso e sem conexão.
Você amar alguém nessa magnitude e só por está no mesmo espaço que ela sem tocar,abraçar,beijar,cuidar como se o mundo fosse um mero detalhe já corrói tudo por dentro
anonimo2405
Em: 30/07/2025
Autora da história
Nossa, verdade. Acho que eu subestimo as vezes a intensidade do que elas sentem. Como vc disse, é raríssimo ver isso aqui no nosso mundo.
anonimo2405
Em: 30/07/2025
Autora da história
Mas perto do que vai vir, esse foi calmimho rsrsrs
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Hanna28
Em: 29/07/2025
O butantã deveria checar está nova espécie peçonhenta de nome: ( Jessica jajaracuçu enxeridallis).
Rafaela perdeu pontos comigo depois de dar tanta moral pra quem claramente só está lhe usando.
anonimo2405
Em: 29/07/2025
Autora da história
Kkkkkkkkkkkkkkk
Agora eu tô rindo de verdade kkkkkkkkkkkkkk
Acredito que se catalogarem essa espécie, vão descobrir uma população bem grande rsrs
Difícil acreditar que a Rafa não tenha percebido as intenções, ela mesma já comentou.
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Hanna28
Em: 29/07/2025
Eu tô rindo das tiradas da Carol!
Gente do céu...que capítulo foi esse?
Uau...sem palavras excelentíssima autora.
Sobre sua dúvida em relação aos caps serem longos é quase uma afronta não só para minha persona, mas, também inclui todas leitoras de plantão.
Eu penso ser cansativo para a senhorita fazer capítulos assim e não o contrário
Eu particularmente amo e artículo os próximos
Que Deus te guarde tenente kkk
Boa soneca!
anonimo2405
Em: 29/07/2025
Autora da história
Ahh fico muito feliz que tenha gostado :) A intenção é sempre ser melhor.
Esse capítulo mesmo eu tirei uma parte dele, que já tava ficando enorme. Fiquei pensando que ia ser ruim pra ler rsrsr.
Mas obrigada pelo carinho! S2
Deus nos abençoe cada dia mais!
anonimo2405
Em: 29/07/2025
Autora da história
Adorei o tenente kkkkk
Hanna28
Em: 29/07/2025
Pode continuar os capítulo grandes que adoramos!
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anonimo2405 Em: 10/08/2025 Autora da história
Oiee. Ahh eu não vou conseguir terminar sem chorar rs, sério.
Honra é a minha de escrever pra pessoas tão encantadoras. Isso é o maior incentivo que um escritor pode ter, seja ele amador, profissional, best-seller...
Eu não tenho palavras pra agradecer o carinho e eu espero sempre conseguir levar alegria e um pouquinho de drama vai rsrsrs, pra cada coraçãozinho que tira um tempinho pra ler a história.
S2