Contagem Regressiva
Cozinha – Casa das Castilho Alencar – Sexta-feira, 22h52
Verena se virou devagar. Os olhos ainda vermelhos, mas secos. Havia algo raro ali: o silêncio da mulher que sempre soube o que dizer. A postura ainda ereta, as mangas da camisa social desabotoadas até o antebraço, os fios de cabelo presos de forma descuidada. Ela parecia menor naquela noite. E, pela primeira vez, havia na sua expressão uma espécie de confissão muda: ela não sabia o que fazer.
Silvia permanecia sentada, os olhos semicerrados, tentando conter um cansaço que não era físico. Estava ferida. Mas o pior não era a mágoa – era a incerteza de que ainda havia um "nós" para consertar.
Verena se aproximou com passos contidos, parando do outro lado da mesa. Não se sentou.
— Eu sei que... tudo o que eu disser agora vai parecer defesa — disse por fim, com a voz baixa, rouca, quase falhando. — Mas, pela primeira vez, eu não vim com um discurso. Nem com desculpas. Só... eu não sei como chegamos aqui. E juro por tudo o que ainda me resta que eu daria qualquer coisa pra voltar atrás em cada vez que eu errei com você. Antes de tudo isso. Antes de você... — ela parou. Respirou. — Antes de você se sentir invisível ao meu lado.
Silvia apertou os lábios. Tentava se manter ereta, racional, adulta. Mas era difícil quando o coração ainda latej*v* feito uma criança assustada.
— Eu só queria um futuro com você, Verena. Só isso. Um pouco de paz. Um pouco de continuidade. Um plano que fosse nosso... e não mais um capítulo de caos entre tantos.
Verena então puxou a cadeira devagar e se sentou de frente pra esposa. Os cotovelos apoiados na mesa, os olhos fixos nos de Silvia. Parecia mais velha ali. Exausta.
— E se eu disser que topo? Que... tudo isso me assustou tanto que talvez eu esteja finalmente entendendo o que significa dividir a vida com alguém? Que o medo de perder você falou mais alto que o medo de ser mãe?
Silvia hesitou. A garganta apertou.
— E se você estiver dizendo isso só porque está com medo? — sussurrou. — Porque não quer me perder, mas também não quer isso de verdade?
— Eu não sei. — a resposta veio seca. Mas havia honestidade, e isso doía mais do que qualquer mentira bem contada. — Talvez seja impulso. Talvez seja desespero. Talvez eu só esteja tentando segurar o que ainda resta entre a gente. Mas... não é só isso, Silvia. É que... cada vez que você fala sobre esse filho, não é só um filho. É o que você representa. É o mundo que você quer construir. E eu quero estar nesse mundo. Mesmo que entre tropeços. Mesmo que sem manual.
Silvia abaixou os olhos. As lágrimas voltaram antes que ela pudesse impedir. E dessa vez, não por dor. Mas por exaustão.
Verena se esticou um pouco, segurando com cuidado a mão da esposa. O toque foi hesitante, mas firme. Como quem estende uma ponte sem saber se do outro lado ainda há chão.
— Eu posso não estar pronta. Mas eu quero tentar. Do jeito certo. Sem pressa. Sem promessa vazia. Mas com verdade. A minha. A sua. E o que sobrou da nossa.
O silêncio que veio depois não era mais sufocante. Era uma pausa cheia de perguntas sem resposta. Mas já era um começo.
Silvia levou a outra mão ao rosto, secando os olhos. Por um segundo, apenas balançou a cabeça, como quem não sabia se ria ou chorava da própria esperança.
— Você me assusta, Verena. Porque, quando você promete, eu sempre acredito. E isso já me quebrou tantas vezes.
— Eu também me assusto comigo. — Verena respondeu, com a voz embargada. — Mas se você ainda tiver um pouco de fé... me deixa tentar de novo.
E, por um momento, só por um instante, Silvia não se afastou.
Quarto do Casal – Casa das Castilho Alencar – Sexta-feira, 23h57
A luz do abajur, do lado de Verena, mal passava de um fio amarelado no escuro do quarto. A cama estava desfeita, como sempre ficava depois de um dia longo demais — e um amor cansado demais. Silvia estava deitada de lado, com o rosto meio escondido no travesseiro, os olhos ainda entreabertos, como quem queria dormir, mas não queria perder o último gesto de afeto do dia.
Verena estava deitada de costas, com uma das mãos atrás da cabeça e a outra sobre a barriga, imóvel. Os olhos presos ao teto, mas a mente longe. Longe não… perto demais. Ainda nos olhos da esposa quando ela falou em maternidade com a voz embargada. No choro da cozinha. Na sensação de impotência. Virou o rosto devagar, estudando os traços cansados de Silvia. O nariz fino, delicado, os cílios longos, a curva dos lábios entreabertos.
Aproximou-se um pouco. Apenas o suficiente para que a respiração das duas se encontrasse no ar morno entre elas.
— Você ainda tá acordada? — sussurrou, sem saber se torcia por um sim ou por um não.
Silvia se remexeu de leve, a cabeça ainda no travesseiro, o braço abraçado ao próprio corpo. Só então, num fio de voz:
— Tô.
Verena sorriu com ternura, quase sem perceber. Se aproximou mais um pouco, agora de lado, a mão pousando com muito cuidado na cintura da esposa.
— Posso ficar perto?
Silvia deu de ombros, sem virar. Mas não disse não.
— Eu fico pensando no que você falou.— disse Verena, no tom calmo de quem pensa alto. — Eu nunca fui o tipo que planeja a vida como quem monta um quebra-cabeça. Mas... eu entendi o que você quis dizer. Ou pelo menos tô tentando.
Silvia respirou fundo. A voz ainda morna, sem acusar:
— Você não precisa me dizer o que acha que eu quero ouvir, Verena. Não hoje.
Verena ficou em silêncio por um tempo. O braço ainda pousado sobre a esposa, mas o corpo rígido.
— Eu tô dizendo porque fiquei com medo. — confessou, com a voz mais baixa. — Medo de te perder. Medo de ter passado do ponto. E de nem perceber que você tava indo embora.
Silvia a olhava com os olhos vermelhos, a expressão cansada.
— Não é sobre chantagem emocional, Verena. É sobre... esgotamento. — ela falou, devagar. — Eu tô cansada de engolir as coisas, de fingir que tá tudo bem, de sempre esperar mais tempo, mais paciência. A gente tá nessa dança faz anos. E eu... eu quero sair dela. Mas queria sair com você, não sem você.
Verena engoliu seco. Passou os dedos com cuidado pelos cabelos da esposa.
— Eu não sei se tô pronta pra ser mãe. — ela disse, com honestidade crua. — Mas... eu também não sei viver sem você. E isso me assusta mais.
Silvia não respondeu de imediato. Só baixou os olhos, a voz presa no fundo da garganta.
— Você tem noção do que tá dizendo?
— Tenho. E sei que não devia ser assim, tão atropelado. Mas é o que tem aqui agora. Não tô te prometendo um berço montado amanhã. Mas... posso prometer que, se isso for mesmo importante pra você, eu vou caminhar nisso com você. De verdade. Só não me pede pra fingir segurança, porque eu tô no escuro tanto quanto você.
O silêncio que veio depois não era vazio. Era denso. Silvia olhou pra ela, por um instante longo. Depois, como se o corpo cansado tivesse pedido abrigo, se aproximou devagar, encostando a cabeça no ombro da esposa.
— Eu não quero um filho com qualquer pessoa, Verena. Eu quero com você. Mas eu quero com a mulher que me olha nos olhos quando fala. Não com a política que responde com nota oficial.
Verena apertou de leve a cintura da esposa. A voz saiu contida, mas carregada:
— Então me ajuda a ser essa mulher de novo.
Silvia não respondeu. Mas seus dedos buscaram os de Verena, entrelaçando devagar. E assim ficaram. Sem certezas. Sem promessas heroicas. Apenas duas mulheres no escuro de um quarto e de uma fase difícil, tentando encontrar um jeito de seguirem juntas.
Ipiranga — Rua Dom Luís Lasagna — Sábado, 16h56
O calor tinha dado uma trégua, mas a brisa da tarde ainda era quente. Valentina caminhava ao lado de Carol, as duas com sacolas reutilizáveis nas mãos e os cabelos ligeiramente grudados à testa pelo suor acumulado do dia. Haviam saído só pra comprar iogurte e pão de forma, mas, como sempre, saíram com bem mais do que deviam: pacote de bolacha, miojo, duas latinhas de refrigerante, e um chocolate que Carol fez questão de colocar na cestinha enquanto Valentina se distraía no corredor dos frios.
O mercadinho da esquina da rua, o “Casa Verde”, era o típico lugar que vendia de tudo um pouco: frutas fora de forma, vassoura encostada num barril de ração, balas no caixa e uma vitrine minúscula com fiambre cortado na hora. O rádio atrás do balcão estava ligado na FM popular, e o dono, seu Mário, acenou com a cabeça quando viu as meninas saindo.
— Obrigada, seu Mário! — Carol acenou.
Valentina sorriu de canto, discreta como sempre.
Foram andando devagar pela rua estreita, que começava a ganhar sombras longas enquanto os postes ainda não se acendiam. Um cachorro latiu atrás do portão da casa 316. Uma senhora varria a calçada, empurrando a sujeira contra o meio-fio já gasto.
— Tô com a sensação de que esqueci alguma coisa… — murmurou Carol, mexendo na sacola.
— O queijo ralado. A gente não pegou.
Valentina falou tão rápido que a amiga riu.
— Tá vendo? Isso é conexão mental. Somos praticamente casadas.
Valentina riu fraco, mas parecia distante. O céu já estava num tom azul escuro, quase cinza, e o ar carregava aquele cheiro doce de terra quente misturada ao cheiro do amaciante que vinha de alguma casa próxima.
E então… veio a música.
“Falando em saudadeee…”
“De novo eu acordei pensando em você…”
A voz de Marília Mendonça cortou o ar feito navalha. Alta. Sentida. Inconfundível.
Valentina parou de andar por um segundo, como se o corpo tivesse travado.
Era a casa da esquina. O portão estava meio aberto, e dava pra ver uma mulher mexendo no tanque de roupas, fone pendurado no pescoço, mas o som saindo mesmo da caixa de som portátil apoiada num tamborete.
“Trinta dias que acordo pensando em você…”
“Não sei se você está bem…”
Carol não falou nada. Só olhou para a amiga — que agora caminhava de novo, mas com passos miúdos, como se algo a puxasse de volta. As mãos suavam, apertando as alças da sacola. Os olhos estavam fixos no chão, mas claramente... estavam longe dali.
“O corte de cabelo tá do mesmo jeito… Aparentemente tudo igual”
— Valen…
Ela não respondeu. Só balançou a cabeça, baixinho.
“O que falta em você sou eu…”
“Seu sorriso precisa do meu…”
Carol engoliu em seco. Aquilo dizia tudo. O corpo da amiga parecia frágil. A alma… mais ainda.
— Essa música é braba.
Tentou quebrar o clima, mas o silêncio respondeu por Valentina.
As duas seguiram até a casa da Carol. Quando entraram, a rua já tinha se apagado e os postes estavam acesos. O portão da frente se fechou com o clique metálico de sempre, e o som da melodia, ficou pra trás.
Quarto da Carol — 18h34
Valentina estava deitada de lado, os cabelos meio bagunçados sobre a fronha azul-clara, o corpo virado pro canto da parede. Largou o celular no colchão por um instante, como quem se rendia. Tinha passado a tarde inteira tentando encontrar paz naquele aparelho — e tudo o que encontrava era mais ansiedade.
Carol, encostada no guarda-roupa, abriu uma barrinha de cereal como quem estudava a amiga em silêncio.
— Posta essa música.
Valentina franziu a testa, sem entender.
— Que música?
— Aquela que a gente ouviu na rua. Você ficou até mole, Valen. Dá pra fingir não.
— Ah não, Carol… Nem vem.
Ela suspirou e cobriu parte do rosto com o antebraço.
— Não vou postar isso. É muito na cara. Indireta demais.
— Indireta pra quem? — rebateu Carol, mordendo a barra com deboche.
Valentina soltou um riso nervoso, quase triste. E não respondeu. Carol deixou o cereal de lado. Caminhou até o colchão. A amiga ainda deitada, olhos perdidos no teto.
O celular ali, ao lado do travesseiro.
— É só uma música. Sábado. Todo mundo posta coisa aleatória no sábado. Ninguém vai sacar.
— Ela vai — Valentina murmurou, baixinho. — Ela sempre saca.
Carol se abaixou sem que a amiga percebesse, pegou o celular de fininho e já foi abrindo o Instagram. Gravou o story ali mesmo, no modo texto:
"Talvez o que falta em você sou eu"
🎵 Marília Mendonça — O que falta em você sou eu
Sem marcar ninguém. Sem emoji. Só isso.
A publicação subiu.
Valentina ouviu o som da notificação e virou no susto.
— Você postou!?
Carol levantou as mãos, rindo.
— Calma! Só uma música, Valen.
— Carol, não era pra… Ai, meu Deus!
Ela pegou o celular e ficou olhando o story como se tivesse cometido um crime. O nome dela bem ali. O texto gritando. Aquilo era mais que uma indireta. Era uma confissão.
— Você não entende... — murmurou. — Eu não devia sentir isso. Ela é casada. E mulher. E...
— E você é humana, Valen. — Carol cortou, mais séria agora. — Ninguém aqui tá fazendo nada demais. É só um story. É só uma música. Se ela vir… viu. Se não vir, pelo menos você não vai se arrepender.
Valentina respirou fundo, ainda apertando o celular contra o peito. Carol se sentou ao lado dela.
— Amiga… eu te amo. Mas você tá se apagando. Se escondendo. E a única coisa que brilha no seu olhar de novo, depois de semanas, é quando esse nome aparece na sua tela.
— Eu tô com medo — confessou Valentina, a voz quase sumindo.
— Eu sei. Mas… Não fica pensando besteira. — Carol sorriu, com doçura.
Valentina não respondeu. Só fechou os olhos, com o coração martelando.
O story já estava no ar.
Agora era esperar.
Ou se esconder.
Ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Supermercado Naturale – Vila Mariana — Sábado, 19h49
O piso era de cimento queimado. As prateleiras, de madeira clara. Plantas pendiam do teto em vasos de macramê. E um difusor aromático exalava cheiro de capim-limão perto da entrada.
Era o tipo de supermercado onde até a água parecia orgânica. Os tomates tinham nomes de batismo. E o preço de qualquer coisa que terminasse em “sem glúten” dava vontade de abrir uma CPI.
Verena empurrava o carrinho como quem empurrava a própria vida: com tédio, controle e cansaço.
— Você vai querer kefir de novo? — perguntou Silvia, parada diante de uma gôndola de produtos fermentados que mais pareciam espécimes de laboratório.
Verena arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu. Seus olhos estavam fixos na prateleira oposta, onde um vidro rotulado “chucrute vegano” parecia rir dela.
— Tá — Silvia disse, seca. — Vou pegar mesmo assim.
A voz era firme, porém gelada. Desde a conversa sobre filhos, sonhos interrompidos e silêncios engolidos, o apartamento delas parecia grande demais. A cama, fria demais. O tempo, suspenso.
Entre a seção de grãos a granel e os produtos veganos, Verena seguia empurrando o carrinho com os dedos no guidão como quem fazia um favor à humanidade.
Cabelo solto, negro e liso, caindo impecável até abaixo dos ombros. Camisa branca semiaberta nos punhos e gola, óculos de grau apoiados no nariz.
— O que você acha dessas barrinhas aqui? — Silvia perguntou, exibindo uma embalagem feita de papel reciclado com castanhas, damasco e, provavelmente, promessas.
Verena inclinou o corpo por educação, leu em silêncio e deu de ombros:
— Não parecem comida.
Silvia bufou uma risada seca, quase inaudível, e seguiu adiante.
A tensão ainda pairava entre elas, o casamento parecia uma peça de porcelana rachada — bela à distância, perigosa de perto.
Verena a seguiu pelos corredores como uma sombra elegante, sentindo-se cada vez mais deslocada num mundo onde abacates tinham mais espaço emocional do que ela. Foram juntas até a seção refrigerada, onde Silvia analisava potes de iogurte sem lactose com a concentração de um químico.
— Aquele mesmo da semana passada ou esse novo com lactobacilos veganos? — perguntou a esposa.
— Amor… isso é um iogurte ou um organismo vivo? — murmurou Verena, arqueando uma sobrancelha com ironia contida.
Silvia nem respondeu. Apenas pegou o de sempre e colocou no carrinho.
Apartamento Verena e Silvia — Condomínio nos Jardins — 20h59
O sofá era o abrigo natural de Verena nos dias sem plenário. Ali, largada com a camisa meio amarrotada, os pés descalços e os óculos de grau escorregando levemente no nariz, ela afundou entre as almofadas com a mesma expressão de quem chegou ao fim de uma maratona emocional.
Silvia guardava as compras com perfeição de catálogo. Frascos empilhados por ordem de data de validade, potes com etiquetas viradas pra frente, e um certo prazer contido em manter a ordem que faltava no resto da vida.
Verena apoiou o braço no encosto e puxou o celular.
Notificação no Instagram.
Um novo story. Dela. Valentina. A tela se acendeu. Ela hesitou por um segundo. O coração acelerou antes mesmo de ver o conteúdo.
Clicou.
Tela preta. Letra branca.
A música começou suave, e ela abaixou o volume por instinto, como se estivesse ouvindo algo proibido.
“Talvez o que falta em você sou eu...”
Marília Mendonça.
Verena gelou. Não havia marcação.
Nenhuma menção direta. Mas o perfil... o perfil só seguia duas pessoas: Carol.
E ela.
O peito apertou. O estômago revirou.
“Será?”
“Não. Impossível.”
Mas… Seu polegar parou sobre o nome de usuário.
A respiração ficou presa. Era como receber uma carta de amor escondida dentro de uma equação.
“Ela pensou em mim. Postou pra mim.”
O coração batia alto. Tão alto que quase abafava o som da louça sendo guardada na cozinha. A ponta dos dedos deslizou sobre a tela. A imagem já tinha sumido. Mas a letra ecoava. A saudade, mais ainda.
Lembrou do rosto de Valentina. Do olhar espantado, doce, corajoso.
Do quase beijo.
Do “boa noite” não respondido. Lembrou do motivo pelo qual sentia tanto medo.
E também do motivo pelo qual sentia tanta falta.
Casa da Carol – Quarto – Sábado, 21h14
A luz azul do abajur iluminava suavemente o quarto. Os cadernos de biologia estavam espalhados pela cama, mas nenhum deles aberto. O celular, no centro da colcha florida, piscava de tempos em tempos, e era sempre isso que fazia Valentina perder o foco.
Ela mordeu o canto da unha, deitada de lado, os olhos presos na tela.
— Ela viu. De novo. Viu e não falou nada — murmurou.
Carol, sentada no chão com as pernas cruzadas e o pacote de Fandangos no colo, soltou um suspiro. Sabia que aquele momento chegaria.
— Valen... você postou uma música da Marília Mendonça. A mulher é uma deputada, casada, adulta. Não vai responder com coraçãozinho, né.
— Eu sei — respondeu baixinho. — Mas doía menos quando ela não via.
O silêncio se estendeu por alguns segundos. Carol mastigou mais devagar. A amiga parecia miúda, encolhida. Os olhos marejados.
— Me sinto uma idiota. Eu não sou assim. Eu nunca fui assim. Nem sei quem eu sou mais — confessou, abraçando um travesseiro.
— Você tá apaixonada. Isso muda as pessoas. Mas, Valen... você tá se machucando muito com isso. E ela nem sabe o quanto — disse Carol, com a voz calma, sem ironia.
Valentina olhou pro teto. O coração batia estranho. Não era só tristeza. Era vergonha também. Vontade de sumir. Vontade de ser vista.
Pegou o celular de novo. Abriu o story. O número de visualizações era uma piada. Só dois nomes: “carol.s.oliveira” e “verenacastilho.ofc.
— Talvez ela nem tenha escutado a música toda. Talvez tenha aberto sem querer... — começou.
— Talvez, talvez, talvez — interrompeu Carol. — Você fica vivendo em cima de talvez. E enquanto isso, ela tá vivendo a vida dela, com a esposa dela. E você aqui, sem conseguir estudar biologia por causa de uma mulher que provavelmente nem lembra de você.
A frase foi dura. Valentina sentiu como se tivesse levado um tapa. Carol se arrependeu no mesmo instante. Tentou consertar, mais suave:
— Ou lembra. Mas não pode fazer nada. Porque esse “nada” já tá dizendo tudo. E você tá sofrendo por uma ausência que é um tipo de presença.
Valentina desviou o olhar. Sabia que a amiga tinha razão. Mas doía igual.
Doía até mais.
Apartamento Verena e Silvia – Sala – Sábado, 22h30
O apartamento estava em silêncio, exceto pelo som ambiente vindo da varanda. A cidade ainda vibrava, mesmo naquela altura da noite. Verena estava sozinha na sala, com o celular na mão e a cabeça cheia demais pra dormir.
Ela abriu o Instagram.
A notificação do story da @vemoraes ainda brilhava.
Assistiu de novo. O peito apertou.
Não era só a música. Era o gesto. A escolha. A intenção silenciosa por trás de tudo. Aquilo atravessou Verena feito lâmina — como quase tudo que vinha dela.
Mas não era novidade. O que era novidade era aquela vontade idiota de responder.
Não com um comentário. Não com um emoji. Mas com algo à altura.
Algo que dissesse: “eu vi.”
Algo que dissesse: “eu sinto.”
Queria responder. Mas não podia. Não ali. Não publicamente.
Não com quase 90 mil pessoas de olho.
E uma esposa dormindo no quarto ao lado.
Mas precisava deixar algo. Uma brecha. Uma fagulha. Pensou por alguns segundos. Depois abriu os stories.
Pegou uma foto da estante de livros da sala. O foco estava torto. O fundo era escuro. Mas em destaque, sobre um dos livros, havia um marca-páginas antigo — quase invisível — com uma frase rabiscada à mão:
"Nem todo silêncio é ausência. Às vezes, é só alguém tentando sobreviver ao próprio caos."
Postou.
Sem localização.
Sem legenda.
Sem emoji.
E então bloqueou a visualização de Silvia — como fazia às vezes, em certas postagens que ela dizia serem “profissionais demais” pro feed pessoal.
Soltou o celular no sofá e passou a mão pelo rosto. Não sabia se aquilo era certo. Na verdade, já não sabia o que era certo fazia muito tempo. Mas ali, naquele instante, foi o que conseguiu dar.
Quarto da Carol – Sábado, 22h46
O ventilador fazia um ruído suave no teto, e a luz baixa do abajur deixava o quarto com cara de fim de sábado. A cama estava uma bagunça: apostilas abertas, caderno colorido com canetas espalhadas, pacote de biscoito quase vazio. Valentina estava sentada com as pernas cruzadas, o cabelo preso num coque frouxo, segurando o próprio celular com as duas mãos, como se o aparelho fosse escorregar a qualquer momento.
Carol bocejava ao lado, deitada de barriga pra baixo, rolando o feed do TikTok no volume mínimo.
— Eu não devia ter postado aquilo… — murmurou Valentina pela décima vez, o olhar ainda grudado no celular.
— Menina, de novo essa conversa? A mulher viu. Já é mais do que eu imaginava. Você devia era tá dando glória.
— A gente não fala "glória" pra isso, Carol! — Valentina respondeu, com as bochechas já vermelhas. — E... e se ela tiver entendido errado? Ou pior, se tiver entendido certo?
— Mas foi pra ela, ué!
— Eu sei. Mas agora eu tô com vontade de sumir.
Carol ia responder, mas o celular de Valentina vibrou na hora. Uma notificação do Instagram apareceu na parte superior da tela. Um novo story. Dela.
Verena Castilho.
Valentina travou. O coração deu aquele pulo involuntário.
Carol percebeu o silêncio repentino.
— Que foi?
— Ela... ela postou.
— A Verena?
Valentina só assentiu, sem conseguir tirar os olhos do visor. Os dedos tremiam ao abrir o aplicativo. O story carregou.
Era uma estante de livros, escura. E ali, quase escondido entre os títulos, um marca-páginas antigo, meio torto. A câmera parecia ter captado de relance, mas o foco era nítido onde importava.
"Nem todo silêncio é ausência. Às vezes, é só alguém tentando sobreviver ao próprio caos."
Valentina leu uma vez. Depois outra. E outra.
O peito parecia apertar de dentro pra fora.
— CAROL!!
— Que foi?!
— Vem ver isso.
Carol se levantou de um salto e se inclinou pra espiar o celular da amiga. Leu a frase. Voltou e leu de novo. Depois olhou pra Valentina, com os olhos arregalados.
— Uau... ela respondeu mesmo. De um jeito bem “sou profunda e misteriosa”, mas respondeu.
Valentina estava paralisada.
— É impossível, né? Ela tem quase 100 mil seguidores. Por que postaria isso justo agora?
— Porque ela é obcecada por você — Carol respondeu, como se estivesse narrando um filme.
— Para com isso.
— Valen, você só segue duas pessoas. E só duas pessoas te seguem. Eu e ela. E você postou aquela música. Agora olha isso. Isso é uma troca. Digital, elegante, e cheia de tesão reprimido. Mas é uma troca.
Valentina tapou o rosto com as mãos.
— Meu Deus... isso não pode tá acontecendo.
— Tá sim. E a deputada tá caidinha por você. Fim.
— Carol... — ela tirou as mãos do rosto e olhou fixo pra amiga. Os olhos brilhando. — O que eu faço?
Carol mordeu o lábio inferior, fingindo pensar.
— Agora? A gente vai rever esse story umas cinquenta vezes. Depois, talvez, você posta outro. Uma frase de efeito. Um versículo. Ou uma foto. Não sei. A gente vê.
— Você tá maluca. — Valentina disse, mas com um sorriso crescendo nos lábios.
— Eu tô maluca? E ela? Deputada estadual, casada, toda poderosa... apaixonada por uma menina que só sai da escola pra ir pro culto. Não sei que milagre sua mãe deixar você dormir aqui hoje.
As duas se encararam por um segundo, entre o absurdo e o impossível. Depois caíram na gargalhada, abraçadas sobre os travesseiros.
Mas, no fundo, Valentina sabia.
Que tinha alguma coisa ali.
E que, se aquela troca continuasse, ela não ia mais conseguir fingir que não sentia nada. Nem pra ela mesma.
Apartamento Castilho-Alencar – Quarto do Casal – Domingo, 07h13
A luz ainda era suave, filtrada pelas cortinas cinzas que cobriam parcialmente as janelas do quarto. O ar-condicionado trabalhava discretamente que, somado ao friozinho da manhã, fazia Silvia se encolher ainda mais debaixo do edredom, com o rosto quase afundado no travesseiro.
Verena estava deitada de barriga pra cima, olhos abertos, mirando o teto como se ele tivesse algo a dizer.
O braço esquerdo dela repousava sobre o abdômen, o direito meio dobrado, segurando o celular acima do rosto.
Silêncio.
Só o som leve da respiração da esposa ao lado.
A mesma cama. O mesmo cobertor.
Mas a quilômetros de distância.
Ela desbloqueou o aparelho com o polegar.
O story da noite anterior ainda estava ali.
A estante, o marcador, a frase. Tão cuidadosamente sutil.
Tão absurdamente pessoal.
Quase se arrependeu. Quase.
Quase.
Mas foi então que notou o aviso no canto da tela.
1 nova mensagem no Direct.
Ela hesitou. Clicou.
O nome brilhou ali, com a bolinha azul ainda piscando.
Lilian Nóbrega.
Verena prendeu o ar.
Tocou com o polegar. A mensagem carregou.
"Não sei se o caos da mensagem sou eu… mas se for, estou disposta a te dar paz."
"Ou mais confusão, se preferir." 😈🍷
Verena soltou o ar como se tivesse tomado um soco.
Fechou os olhos.
Abaixou o celular sobre o peito.
E ficou ali. Entre a vontade de rir… e a de gritar.
— Merda.
Silvia se mexeu ao lado, soltando um murmúrio sonolento. Verena virou o rosto. Ela ainda dormia. Tão perto… e tão inalcançável.
Voltou os olhos pra tela.
A mensagem continuava ali, como uma provocação.
O vinho, a ironia, a certeza. Lilian achava mesmo que era pra ela. Claro que achava.
“Droga.”
Ela digitou algo. Apagou.
Digitou de novo. Apagou outra vez.
Encostou o celular no peito, os olhos vidrados no teto.
Ela não ia responder.
Não podia responder. Mas o pior...
é que por dentro, a única coisa que martelava sua cabeça não era a frase da jornalista. Era o nome que ela não conseguia dizer em voz alta.
Valentina.
Gabinete 312 – Segunda-feira, 8h52
A sala estava silenciosa. O ar-condicionado mantinha o ambiente com aquele frio artificial e constante, indiferente ao caos político e emocional que girava lá fora. A agenda da semana impressa sobre a mesa — seis compromissos oficiais, três entrevistas marcadas, duas reuniões com a liderança do partido. Um dia normal na vida de Verena Castilho.
Mas não era um dia normal.
Rafaela entrou no gabinete sem bater. Os saltos curtos marcando ritmo no chão de madeira. Na mão, o ofício da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — o mesmo que ela havia deixado discretamente na sexta-feira na pilha de documentos da chefe.
Verena estava sentada à mesa, de óculos, camisa branca ainda com as mangas desabotoadas. Lia alguma coisa no tablet, com a expressão distante de quem lia sem ler. Rafaela fechou a porta com cuidado.
— Vê… — disse, calma.
Verena ergueu os olhos, sem grande interesse.
— Hum?
Rafaela entrou com a mesma seriedade que usava quando algo precisava ser dito. Tinha uma pasta na mão. E um olhar estranho.
— Trouxe os retornos do jurídico, a minuta do requerimento da Comissão… e o da escola. de novo.
Verena arqueou uma sobrancelha, sem desviar os olhos da tela do tablet.
— De novo por quê? Já não tinha respondido isso na sexta?
— Tinha. Mas… achei que você podia rever.
— Rever o quê? É um pedido institucional, igual a todos os outros. “Incompatibilidade de agenda”, resposta educada, ponto final. — Ela esticou a mão, pegou o papel e passou os olhos sem qualquer interesse. — Semana da Juventude, escola estadual, blá blá blá…
— Escola estadual… do Ipiranga.
Verena só fez um som com a garganta, impaciente, voltando ao aparelho.
— Tá. E daí?
Rafaela cruzou os braços. Firmou os pés no chão como quem prestes a iniciar uma travessia tensa.
— Você não reparou no nome da escola?
— Rafaela, eu tenho trinta convites por semana de escolas estaduais. — Ela tirou os óculos. — Você quer chegar a algum ponto ou tá só tentando encher linguiça numa segunda-feira?
Rafa deu uma risada curta, nervosa. Passou a língua nos dentes antes de encarar a amiga.
— Tá bom. Então vou direto ao ponto.
Verena ergueu os olhos, finalmente atenta. Mas ainda com o olhar carregado de cansaço e mau humor.
— A escola que mandou esse ofício… é a mesma onde a Valentina estuda.
O silêncio não veio devagar. Ele caiu. Rápido. Brutal.
Verena ficou imóvel por dois segundos. Depois piscou. Voltou os olhos pro papel, como se de repente as letras ganhassem peso.
— Como é que é?
— Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro. Bairro do Ipiranga. — Rafa apontou com o queixo.
Verena ainda olhava pro papel. Mas agora como se segurasse uma granada sem pino.
— E você só me diz isso agora?
— Você não notou. Eu... achei que talvez fosse melhor deixar quieto. — Rafaela respirou fundo. — Mas na hora que você assinou e mandou devolver com resposta-padrão, ali… eu vi que você não tinha percebido.
— E mesmo assim não me falou?!
— Porque eu sabia que ia dar nisso! — Rafa explodiu. — Porque você muda quando fala nela! Porque eu sabia que era só uma questão de tempo até isso acontecer!
Verena se levantou, abrupta. A cadeira arrastou no piso. Ela andou até a janela e parou, de costas.
— E o que você sugere, então? Que eu vá lá?
— Eu não sugeri nada. Só achei que você merecia saber onde tá se metendo antes de ignorar por impulso.
Verena apertou os olhos, as mãos nos quadris. Não respondeu. Só ficou ali, com os olhos presos na cidade lá fora. Pequena. Cinza. E, por um instante, sem saída.
Estava de costas pra janela, mas o silêncio entre elas já não era o mesmo. Não era o silêncio de dúvida — era o de decisão iminente. Rafaela fechou os olhos por um segundo, respirou fundo. Quando voltou a encará-la, Verena já tinha se virado, os braços cruzados, os olhos duros.
— Ainda dá pra aceitar o convite?
Rafa arqueou uma sobrancelha, meio em choque.
— Você tá falando sério?
— Eu tô perguntando se ainda dá tempo, Rafaela. Não tô pedindo sua opinião.
Rafaela soltou uma risada seca, incrédula.
— Claro que dá. Mas você realmente quer que eu responda “sim, a deputada topa ir na escola da menor que o pai acabou de implicar com o estágio”? É isso que você quer na sua agenda oficial agora?
— Eu quero que você veja no protocolo se ainda dá pra responder e ponto. — A voz da Verena cortava o ar como navalha.
— Olha… — Rafa se aproximou, os olhos acesos. — Eu vou fingir que não ouvi isso. Porque se eu responder do jeito que dá vontade, vai virar escândalo aqui dentro.
— Vai virar escândalo se você continuar achando que manda em mim.
— Eu não mando em ninguém, Verena. Eu protejo. Até quando você não merece.
— Então por que me avisou, porr*?! — estourou Verena, avançando um passo. — Se era pra cagar a minha cabeça e depois vir com lição de moral, era melhor ter ficado quieta!
Rafaela não recuou. Nem um milímetro.
— Porque a minha consciência já tava um lixo, Verena. Porque eu vi você assinando aquilo como se fosse só mais um protocolo e achei que era o certo te avisar. Mas quer saber? — Ela deu um passo também. — No fundo, eu torci pra você já ter superado essa paixonite adolescente que tá acabando com a sua vida.
O ar pareceu mais denso de repente.
Verena franziu a testa, como se não tivesse ouvido direito.
— Cuidado com o que você tá dizendo.
— Não, você que devia ter mais cuidado. — Rafa apontou o dedo. — Com sua imagem, com seu casamento, com o mandato. Mas não. Prefere continuar nesse transe ridículo por uma garota de dezesseis anos, fingindo que é só coincidência, que tá tudo sob controle. Acorda, Verena. Você vai afundar, e vai levar todo mundo junto.
Verena cerrou os punhos.
— Você não sabe de nada.
— Sei o suficiente. — Rafaela se virou, pegando os papéis que ainda estavam na mesa. — E por isso mesmo, pro seu bem, esse convite vai continuar exatamente com a resposta que você mandou na sexta. Formal. Elegante. Com “incompatibilidade de agenda” em negrito.
Ela começou a sair, mas parou na porta.
— Porque se você pisar naquela escola… aí sim, Castilho, não tem mais volta.
E a porta se fechou devagar, sem estardalhaço — mas como se selasse o início de uma guerra fria dentro do próprio gabinete.
Corredor da Alesp — Ala dos Gabinetes — Segunda-feira, 9h26
Rafaela encostou na parede fria, o som abafado dos saltos de outros assessores ecoando ao longe. Ainda segurava os papéis com força demais, como se pudesse esvaziar a raiva que pulsava no maxilar travado.
Passou a mão nos cabelos, fechou os olhos por um instante. O coração batia acelerado, não de medo, mas de frustração. Raiva. Pena. Um afeto torto demais pra se explicar. E por mais que odiasse admitir, sabia: aquela mulher era sua ruína e sua responsabilidade.
Abriu os olhos devagar e encarou a porta fechada do Gabinete 312. Lá dentro, o caos.
Ela respirou fundo, recuou dois passos e voltou ao ritmo da Alesp — mas os olhos diziam tudo: isso ainda vai dar merd*.
Gabinete 312 — Sala Principal — Mesmo horário
Verena continuava em pé, imóvel, como se o corpo ainda estivesse tentando absorver o que acabara de acontecer. Os dedos, antes tensos, tocaram o papel sobre a mesa com um gesto quase automático.
O maldito ofício.
O nome da escola agora queimava diante dos olhos, como se tivesse sido escrito com brasa.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro.
Semana da Juventude e Cidadania.
Ela o pegou com movimentos lentos. As mãos estavam firmes, mas o olhar… o olhar denunciava tudo. A linha do tempo voltou com força: o nome no crachá, o uniforme no primeiro dia, os olhos da menina que pareciam maiores que o mundo inteiro. A timidez. A fé. O cuidado com as palavras. O sorriso frágil e inexplicavelmente perigoso.
Verena se sentou devagar. A cadeira girou um pouco, rangendo como se também carregasse o peso daquela lembrança.
A saudade doía. Como uma ausência física, latejando em pontos específicos do corpo. No peito, nas mãos, na nuca. Uma falta que não se explicava com lógica alguma. E mais que isso: uma saudade que gritava mais alto do que o medo. Do que os riscos. Do que Silvia. Do que a imprensa. Do que a própria noção de certo ou errado.
Olhou para o canto do papel, onde havia assinado mecanicamente, dias antes, a recusa-padrão. A caneta azul ainda estava ali, ao lado da pasta de reuniões. Pensou em rasgar o papel. Em chamar Rafaela de volta. Em ignorar tudo.
Mas não fez nada.
Apenas fechou os olhos por um segundo… e pela primeira vez em semanas, permitiu-se imaginar:
“Como ela vai estar lá?”
“E se ela me olhar como antes?”
E foi nesse pensamento — perigoso e embriagante — que Verena ficou, encarando o ofício com os olhos cheios de tudo que não podia dizer.
Alesp — Ala de Comunicação — Segunda-feira, 10h14
A porta se fechou atrás dela com um estalo seco. Verena nem esperou o rapaz levantar da cadeira.
— Bom dia, deputada. — ele disse, erguendo os olhos do monitor com cautela.
— Resposta ao ofício da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro. Já foi?
O jovem — Vinícius, coordenador de comunicação — clicou duas vezes e puxou a planilha de controle com agilidade.
— Já, sim. Saiu sexta mesmo. Protocolo 242-A. Seguiu com agradecimento formal e nota de apoio geral às ações comunitárias da juventude. Padrão.
— Algum retorno?
— Nenhum. Só o recebimento confirmado. — ele virou o monitor sutilmente para mostrar a linha verde no sistema interno.
Verena apertou os olhos, como se quisesse fazer a tela recuar no tempo. Mas já era tarde.
— E se eu quiser mudar?
Vinícius hesitou.
— Deputada… a resposta foi oficial, carimbada. Já subiu no sistema da Alesp, tá com número de protocolo público. Se a gente envia outra coisa agora, fica parecendo erro. Ou recuo. — Ele pausou, tateando o tom. — Ou favorecimento.
Verena cruzou os braços.
— Favorecimento por quê?
Ele deu um sorrisinho nervoso, claramente arrependido de ter usado essa palavra.
— Só estou pensando em como a imprensa costuma tratar qualquer oscilação institucional. Ainda mais… vindo da senhora.
Silêncio.
Apenas o barulho da CPU e do ar-condicionado.
Verena então apoiou as mãos na mesa. O blazer levemente aberto, os olhos por trás dos óculos faiscando.
— E se a escola entrar em contato dizendo que houve erro de comunicação e que ainda gostaria da minha presença? Podemos alegar erro no cruzamento das agendas. Reabertura formal. Vocês redigem outro documento e me mandam pra assinatura.
Vinícius engoliu em seco.
— Isso muda o cenário, sim. Mas tem que partir deles.
Ela se endireitou. A mente já calculando como fazer aquilo acontecer sem deixar rastros. Pegou a caneta na mão.
— Então procure a Sônia. Diretora da escola. Use o e-mail institucional. Nada de telefone pessoal. Redija algo sutil. “Em nome da deputada Verena Castilho, gostaríamos de confirmar se o convite permanece válido, uma vez que houve ajuste na agenda para a data sugerida.”
— Queremos que eles “mudem” a realidade?
— Exato. — respondeu seca. — E façam parecer que foi ideia deles. Nada nos nossos registros deve sugerir recuo. Vocês são bons nisso. Façam parecer uma correção natural. E se questionarem a mudança, a justificativa é: erro de cruzamento de pauta. Coisa que acontece todos os dias.
— Tá certo.
— E Vinícius… — ela parou na porta, virando-se de perfil — se alguém da imprensa levantar isso, você segura. Diz que é a Alesp se aproximando da comunidade escolar. Ponto.
Ele assentiu, já digitando.
Verena então saiu, sem olhar pra trás.
Mas por dentro… o coração disparava como se estivesse cometendo um crime.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — Sala da Direção — Segunda-feira, 11h47
A caixa de entrada institucional da escola apitou com um som seco. Sônia terminava de revisar os relatórios da Semana da Juventude e Cidadania quando viu o assunto do e-mail:
Re: Confirmação de disponibilidade - Gabinete Deputada Verena Castilho.
Ela franziu o cenho, sem entender de início. Clicou.
“Prezada Sra. Diretora Sônia,
Em nome da Deputada Estadual Verena Castilho, gostaríamos de confirmar se ainda permanece válido o convite encaminhado à parlamentar no último dia 20, referente à participação institucional na programação da Semana da Juventude e Cidadania promovida por esta unidade escolar.
Informamos que houve readequação na agenda da parlamentar, o que possibilitaria sua presença em um dos eventos sugeridos.
Aguardamos retorno para confirmação e, se for o caso, alinhamento técnico do formato.
Atenciosamente,
Gabinete 312 — ALESP”
Sônia arregalou os olhos.
— Regina? — chamou do outro lado da porta.
A coordenadora entrou com uma pasta na mão, já com cara de quem estava atolada.
— Que foi?
— Olha isso aqui.
Regina se aproximou, leu em silêncio, depois leu de novo.
— Ué. Eles não tinham recusado na sexta?
— Sim… mas agora tão dizendo que a agenda mudou. Que querem confirmar se ainda queremos a presença.
— Claro que queremos!
— Claro. Mas… — Sônia ficou pensativa — por que mudaram? Será que foi alguma movimentação política? Interesse real? Ou só correção de rota?
— Ou alguém lá dentro lembrou que já teve estagiário nosso, vai saber… — disse Regina, dando de ombros, mesmo sem imaginar o quão perto da verdade estava.
— De qualquer forma, é um reforço de peso. A gente pode usar isso pra conseguir patrocínio de empresas da região pro encerramento da semana. E, dependendo da abordagem dela, até chamar a atenção da Secretaria de Educação. — Sônia já estava raciocinando em ritmo institucional.
— Tem ideia de que dia seria?
— Ainda não. Mas se respondermos rápido, a gente encaixa no encerramento da sexta. Roda de conversa, trinta minutos. Podemos até tentar uma brecha pra mostrar a obra no laboratório de informática.
— Tá. Vou falar com a Luciana pra organizar os horários das turmas.
Do outro lado do corredor, Dona Dalva apareceu com uma bandeja de café e biscoito Maizena.
— Tá tudo certo aí, meninas?
Regina riu:
— Dalva, adivinha quem talvez venha na sexta aqui na escola?
— Quem? — ela ajeitou o coque no alto da cabeça, curiosa.
— Uma deputada. Daquelas da televisão.
— Deputada? Aqui? — ela parou, segurando a bandeja com as duas mãos como se o chão tivesse sumido. — Mas tem que limpar aquela vidraça da entrada então. Imagina uma mulher fina chegando e vendo aquela sujeira?
— Dalva… — Regina segurou o riso. — Ela não vai inspecionar o vidro. Vai conversar com alguns alunos.
— Mesmo assim. Se é da Alesp, é chique. E chique repara nas coisas.
— Verdade. — Sônia sorriu, fechando o e-mail com a resposta pronta. — Mas a primeira coisa que ela vai reparar é no tipo de aluno que a gente forma aqui. E isso, Dalva, nenhuma vidraça cobre.
Dalva sorriu, orgulhosa.
Sônia clicou em “Enviar” com a resposta oficial. O jogo estava em campo.
Gabinete da Deputada Verena Castilho – Segunda-feira, 12h23
A sala estava silenciosa, com a luz suave das persianas filtrando o sol da tarde. Verena assinava alguns documentos com a caneta preferida — uma Montblanc preta com detalhes prateados — tentando ignorar o peso do próprio coração. Os olhos cansados, o blazer já pendurado na poltrona ao lado. No celular, a tela piscava com o direct ainda não respondido de Lilian e os stories recentes de @vemoraes ainda ecoando no peito como um vício silencioso.
A porta se abriu com força demais para o padrão da chefe de gabinete.
— Dá pra me explicar que porr* você fez? — Rafaela entrou de salto firme, segurando o celular como se fosse uma arma.
Verena levantou os olhos, erguendo uma sobrancelha com a calma calculada de quem já sabia que a tempestade vinha.
— Boa tarde pra você também, Rafaela.
— Ah, não começa, Verena. Não hoje.
Ela jogou o celular na mesa, com o e-mail da diretora da escola aberto.
— Eu te pergunto: você fez isso pelas minhas costas?
— Fiz o que exatamente?
— Você foi por fora do gabinete, usou o canal de comunicação da Comissão de Juventude pra reverter a recusa do convite da escola. E sabe como eu sei? Porque eles acabaram de mandar um aviso pro nosso sistema interno pedindo confirmação logística, e não passou por mim. — Ela bateu no peito. — Por mim!
Verena fechou os olhos por um segundo, antes de se levantar.
— Eu tomei uma decisão. A escola me convidou. Eu reconsiderei.
— Reconsiderou? Verena, você mandou a resposta de recusa. Mandou! E agora quer voltar atrás por quê? Não mente pra mim.
— Eu não tô mentindo.
— Então assume. Foi por causa dela. Da Valentina.
O nome explodiu na sala.
Verena cerrou os dentes. Por um instante, parecia que ia desviar. Mas não desviou.
— E se foi? — a voz saiu baixa, firme. — Eu sou deputada, não uma máquina. Se eu achei que devia ir, eu vou.
— Isso aqui não é terapia, Verena! É um mandato! É a Alesp! Tem regras, protocolos, coerência! Você ignora um convite institucional, depois volta atrás de maneira pessoal, burlando a chefia de gabinete… isso é uma afronta.
— Sabe o que é uma afronta? — Verena deu um passo à frente, o olhar já faiscando. — Uma assessora que acha que pode ditar os rumos da minha vida como se fosse minha mãe.
— Eu sou a única pessoa aqui dentro que ainda se importa com a sua vida, Verena! A única! — Rafaela elevou a voz. — Porque o resto? Tá todo mundo de olho no seu próximo escândalo pra cair fora quando for conveniente.
Silêncio.
O ar ficou denso, cortante. As duas se encaravam como numa trincheira.
Verena respirou fundo, mas não deu o braço a torcer.
— Você acha que me conhece, mas não conhece nem metade do que eu sou capaz. Nem do que eu suporto.
— E você acha que ainda dá tempo de manter esse teatro de integridade enquanto se arrasta emocionalmente atrás de uma adolescente que nem deve lembrar que você existe?
A frase caiu como um tapa.
Verena empalideceu.
— Sai da minha sala.
— Com prazer. Mas antes de sair, deixa eu te dizer uma coisa. — Rafaela se aproximou, os olhos marejados, mas duros. — Você tá indo pra um lugar onde nem eu vou conseguir te proteger. E, diferente de você, eu ainda sei reconhecer a hora de parar.
Ela se virou, abriu a porta com firmeza e saiu.
Verena ficou ali, imóvel, encarando o celular ainda sobre a mesa. O som do salto da amiga ecoando pelo corredor foi o único ruído da queda.
Ela levou as mãos ao rosto.
E pela primeira vez em muito tempo…
Não se sentiu poderosa.
Rooftop da Alesp — Segunda-feira, 18h07
O sol começava a mergulhar por trás dos prédios do centro, tingindo o céu com tons alaranjados e violetas. O vento no alto do edifício trazia um leve alívio ao calor do dia, e o barulho da cidade parecia distante ali em cima, abafado pelas paredes de concreto e protocolos.
Rafaela apoiava os antebraços na mureta, olhos fixos no horizonte, mas sem ver nada de verdade. O terno claro estava aberto, o cabelo preso às pressas num coque improvisado. Um cigarro apagado entre os dedos, que ela não teve coragem de acender. Só o gesto já bastava. À frente, um copo de papel com a logomarca da cafeteria da Assembleia, ainda úmido pelo calor do café que já esfriava.
Atrás dela, passos ecoaram. Suaves, firmes. Jéssica — do setor jurídico — se aproximou com a elegância habitual. Usava um tailleur azul-marinho, maquiagem leve, mas certeira, e a expressão de quem sabia mais do que dizia.
— Fugindo das comissões ou da chefe? — perguntou com um meio sorriso, parando ao lado da assessora.
Rafaela riu, sem humor.
— Fugindo de mim mesma.
Jéssica encostou-se na mureta ao lado, discreta.
— Vi a atualização no sistema. A escola do Ipiranga, certo? Vi o ofício. E o recuo. Mas aí... hoje entrou o aceite. Não era pra ser “agenda incompatível”?
Rafaela bufou. Os olhos semicerrados, a mandíbula travada.
— Era. Mas você sabe como funciona quando ela resolve usar o poder do sobrenome.
— Castilho? — Jéssica arqueou uma sobrancelha. — Ou só Verena mesmo?
Um sorriso enviesado escapou da assessora, mas foi mais dor do que ironia. Pegou o copo com a mão esquerda, girou-o no próprio eixo, distraída. Deu um gole minúsculo, amargo e morno. Voltou a apoiar o copo sobre o parapeito, do lado do cigarro apagado.
— Te vi saindo da sala da Verena — Jéssica comentou, casual. — Parecia... um campo minado. Deve ser difícil trabalhar com um furacão daqueles. Uma hora ela te arrasta, outra te derruba — Jéssica comentou, com a calma de quem joga veneno na água sem mexer a superfície.
— Às vezes eu nem sei se trabalho com ela ou pra ela.
— E mesmo assim... você fica.
Rafa suspirou. Os olhos estavam marcados de cansaço. Mas era o cansaço de quem sente mais do que quer admitir.
— Às vezes eu acho que fico por costume. Outras, porque sou cúmplice. Outras... nem sei.
— Você é muito mais do que cúmplice, Rafa. Você é o cérebro. A bússola. É quem segura as pontas enquanto ela vive queimando as extremidades.
— Cuidado. — Ela ergueu uma sobrancelha, ainda com os olhos voltados pra cidade. — Se continuar assim, vou achar que está tentando me seduzir.
— E se eu estiver?
A frase caiu como uma brisa cortante. Rafaela virou o rosto pela primeira vez, encontrou os olhos de Jéssica. E não era piada.
— Eu não sou fácil de convencer.
— Eu sei. É por isso que gosto de conversar com você aqui em cima. Porque aqui você fala a verdade. — Jéssica deu meio passo pra frente. — E sabe... tem gente lá dentro que acha que você devia estar na tribuna. Não atrás da mesa da Verena.
O impacto foi imediato. Rafaela levou o cigarro à boca, mas não acendeu. Só o manteve ali, como se isso a ajudasse a segurar a língua.
— Não começa, Jéssica.
— Só tô dizendo o que todo mundo vê. A diferença é que eu tenho coragem de te dizer.
Rafaela apertou o copo com mais força. A borda enrugou levemente sob seus dedos.
— Às vezes eu me pergunto se eu ainda sirvo pra alguma coisa ali dentro. Porque chefe, ela não ouve. Amiga, ela ignora. E profissionalmente... ela faz o que quer. Às vezes eu só... estou ocupando espaço. Ocupando um cargo que parece mais enfeite do que utilidade.
Jéssica ficou em silêncio por alguns segundos, depois se virou completamente para Rafaela, como se estivesse analisando-a.
— Sabe, às vezes eu me pergunto como seria aquele gabinete... se você estivesse no comando.
Rafaela virou o rosto, surpresa.
— Não viaja, Jéssica.
— Não estou viajando. Tô só observando. Tem gente que nasce pra ser bastidor. Mas você... — ela deu um passo mais perto, os olhos presos nos dela — ...você é o tipo que segura o palco inteiro sem derramar uma gota. E o pior: ainda faz parecer fácil.
A respiração de Rafaela prendeu por um instante. Não era a primeira vez que Jéssica elogiava seu trabalho. Mas agora havia algo no tom. Um calor sutil, quase imperceptível. Quase.
— Ela vai acabar se perdendo — Jéssica continuou. — E quando isso acontecer, vai levar quem estiver ao lado junto. Se você for esperta, começa a pensar em como sair antes que afunde com o barco.
— Eu não sou dessas que abandona.
— Eu sei. Mas quem disse que isso é qualidade?
O vento soprou mais forte. Rafaela virou o rosto de volta pro horizonte. Mas sentiu o olhar de Jéssica ainda cravado nela.
E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se desejada. Reconhecida. Viu, nos olhos da outra mulher, algo que não era bajulação política — era perigo. Mas também era possibilidade.
Rafaela ficou em silêncio por longos segundos. O vento mexia seus cabelos de leve, e o cigarro entre os dedos continuava apagado, como se acendê-lo fosse selar um destino que ela ainda relutava em aceitar.
Jéssica a olhava com calma, sem pressa de responder. Apenas esperou, até que a outra mulher voltasse a encará-la. E, quando o fez, havia ali algo mais do que cansaço. Havia o desgaste de quem ama demais... e sabe disso.
— Você não precisa ficar aqui hoje, Rafa.
— Eu trabalho aqui.
— Hoje, você só sobrevive aqui.
Rafaela soltou um riso baixo, cansado.
— E pra onde você quer me levar? — perguntou, tentando parecer casual.
— Pra um barzinho tranquilo. Nada que manche sua reputação. — Jéssica sorriu de lado. — Só um lugar com vinho decente, luz baixa e nenhuma pauta da Alesp.
Rafaela fingiu pensar, levando o cigarro aos lábios mais uma vez. Depois tirou, como se o gosto do filtro seco fosse resposta suficiente. Baixou os olhos pro próprio copo e viu o resto de café frio no fundo.
— Eu nem me lembro da última vez que fui a algum lugar sem pensar no que ela ia precisar na manhã seguinte.
— Então você precisa mesmo ir. Nem que seja pra lembrar que você existe fora dela.
Silêncio.
Rafaela bufou devagar, passou os dedos no rosto como quem remove uma máscara de exaustão. E então olhou Jéssica nos olhos. Pela primeira vez, sem disfarces.
— Se eu topar, não pode rolar nenhum “eu avisei”, tá?
— Prometo. — Jéssica deu um passo em direção à porta, abrindo-a. — Mas aviso logo: você vai querer repetir.
Rafaela pegou o celular do bolso. Uma notificação da Verena piscava na tela — alguma cobrança qualquer sobre uma pauta da semana. Ela simplesmente bloqueou a tela e colocou o aparelho no modo silencioso.
— Às 20h? — disse, passando por Jéssica. — Só vou trocar esse blazer. E talvez a vida.
A porta se fechou atrás delas.
E o cigarro, apagado, ficou esquecido no parapeito, como o último vestígio de uma lealdade que começava a se dissipar no ar frio do fim do dia.
Sala de Reuniões da Liderança — Alesp — Segunda-feira, 19h03
A mesa era oval, de madeira nobre. As luzes do teto refletiam sobre o verniz brilhante, e a temperatura do ar-condicionado parecia dois graus abaixo do aceitável. Três pessoas à espera: Márcio, líder do partido; um assessor jurídico da liderança, Cláudio, e a deputada Ruth Assunção, da ala mais conservadora da casa, com um leve sorriso nos lábios e a caneta estalada entre os dedos.
Verena entrou sem bater. Blazer preto, camisa branca de botões — dessa vez fechada até o colarinho. Óculos de grau nos olhos, cabelo solto e um andar firme, calculado. A presença se impunha por si só. Mas os olhos estavam cansados. Ela sabia que vinha bomba.
— Boa noite — disse, com um aceno rápido de cabeça, sem perder o charme. Sentou-se. Cruzou as pernas. Tirou o celular do bolso e colocou virado pra baixo sobre a mesa. — Qual é o incêndio da vez?
Márcio pigarreou, com aquele tom de quem estava prestes a repreender sem parecer que estava.
— Recebemos uma consulta da bancada conservadora sobre o apoio do seu gabinete à Semana da Juventude e Cidadania numa escola estadual do Ipiranga.
— Uma escola da rede pública, Márcio. Um evento institucional. — rebateu, seca.
— A questão é o “timing”, Verena. — Cláudio interveio, puxando um dossiê de matérias impressas. — Depois da confusão com a jornalista, os boatos sobre a estagiária, o vídeo, os recortes com a Lilian Nóbrega circulando como se fossem trailer de novela…
Ruth interrompeu, como quem coloca a faca com delicadeza.
— E agora a senhora decide estreitar laços com uma escola… da base evangélica? Justo você?
Verena bufou devagar. Aquela calma de quem já estava por um fio.
— Eu não faço política por biografia alheia. A escola me convidou. Não fui atrás de ninguém. Aliás, o convite foi recusado, se não me engano.
Márcio levantou o olhar.
— E mesmo assim a escola recebeu um aceite extraoficial, assinado por você. Sem passar pelo gabinete, sem orientação da Liderança, sem aviso prévio.
Verena arqueou uma sobrancelha, como quem ponderava.
— Às vezes, pra não afundar o barco, é preciso remar sem pedir permissão.
Ruth sorriu, debochada.
— Ah, claro. Verena Castilho, a mártir da Alesp. Sempre acima do partido.
— Não me provoca, Ruth. — disse, sem levantar a voz. Mas a tensão na mandíbula denunciava o limite.
Márcio interveio, firme.
— Chega. Isso aqui não é duelo pessoal. Verena, a pergunta é simples: você vai insistir nesse evento?
A deputada respirou fundo. Sentiu o celular vibrar sob a mão — não olhou. E, pela primeira vez, hesitou. O nome Valentina queimou como tatuagem invisível por baixo da roupa.
— A escola é pública. O evento é legítimo. Não há crime em apoiar jovens que ainda acreditam no sistema.
— Desde que não pareça um movimento pra limpar imagem. — Cláudio emendou.
— Então talvez vocês devessem começar limpando o próprio partido. Eu não tenho culpa se o resto do mundo me observa.
Márcio encarou-a, tenso.
— Um deslize a mais e não vai sobrar partido nenhum te segurando.
Verena apoiou os braços na mesa, encarou os três. Um brilho feroz nos olhos.
— Um deslize a mais e talvez não sobre mundo nenhum pra me segurar.
Silêncio. Cortante. Ninguém respirava.
Márcio passou a mão no rosto.
— Verena… por hoje é só. Boa noite.
Ela se levantou. Pegou o celular. Sorriu.
— Boa noite.
Saiu como entrou: elegante, firme… e em combustão interna.
Elevador Privativo — Torre Norte da Alesp — 19h31
As portas se fecharam com um leve sopro de ar comprimido. Verena exalou o ar devagar, como quem soltava os últimos fragmentos da própria sanidade. Encostou a cabeça na parede espelhada, olhos fechados por um instante. A sala de reuniões ainda pulsava na mente como uma sirene. Ruth, Márcio, a ameaça velada, os recortes de jornal.
Ela passou a mão nos cabelos — aquele gesto que fazia sempre que precisava lembrar a si mesma quem era.
Verena Castilho, porr*. Deputada, advogada, filha do caos. Ninguém ia derrubá-la assim.
Sentiu a vibração do celular no bolso interno do blazer.
Pegou o aparelho. Um ícone aceso no canto da tela. Instagram. Notificação.
@lilian.nobrega postou um novo story: “Nem todo jogo precisa ser jogado com regras... 💋”
Verena arqueou uma sobrancelha, travando a mandíbula. Abriu o aplicativo por puro instinto — e ali estava a jornalista, em uma selfie de bastidor, fundo embaçado, microfone na mão, cabelo impecável. Mas o foco era o texto em cima da imagem:
“Algumas provocações valem o risco. Mesmo que custem caro.”
E pra coroar: marcado embaixo, discretamente: @verenacastilho.ofc. Como quem joga uma pedra e ainda sorri do estrago.
— Mas ela tá achando que tá falando com quem, caralh*? — murmurou, num tom baixo, quase venenoso.
Desmarcou a publicação no mesmo segundo, dedo firme, frio. Os olhos estreitos de raiva.
“Piranha sem limite”, pensou, com uma raiva que nem sabia mais se era da Lilian ou de si mesma. Porque, no fundo, sabia o quanto tinha alimentado aquilo — o quanto tinha gostado do jogo. Mas ali era a sua reputação que estava em jogo. E, pior: se Silvia visse… o que sobrava?
Encostou a testa no aço frio da parede, segurando o riso nervoso que veio, quase histérico.
— Eu tô no meio de uma investigação, uma crise conjugal, um escândalo de bastidor e ainda tenho que lidar com mulher apaixonada em story? Vai se foder, Lilian…
O elevador apitou. Térreo.
Ela endireitou a postura. Puxou o blazer pro lugar, ajeitou os óculos. Saiu como quem nunca perdeu a pose.
Mas por dentro?
Era só caos, desejo reprimido, culpa e saudade.
Estacionamento Subterrâneo — Alesp — Segunda, 19h47
O som abafado da cidade vibrava através das paredes de concreto. Lá em cima, os prédios já acendiam suas janelas. Mas Verena continuava ali, sentada no banco do motorista, sem vontade de voltar pro apartamento nos Jardins, nem pra vida que a esperava.
Silvia estava distante. Rafaela, magoada. Lilian, insuportável.
E ela? Ela estava exausta.
Desabotoou o colarinho da camisa branca e se recostou, o celular ainda preso entre as mãos. A tela acendeu. Nenhuma mensagem nova. Só então, meio sem pensar, tocou no ícone do Instagram.
O dedo hesitou por um segundo. Mas já não havia mais contenção possível. Buscou o perfil:
@vemoraes
Ainda ali.
Sem postagens novas. Sem stories. Mas ainda seguia de volta.
E ainda tinha a mesma foto de perfil. Pequena. Levemente desfocada. A imagem não tinha apelo. Não tinha maquiagem. Não tinha ângulo.
Mas tinha ela.
E isso bastava.
Verena aproximou a tela, como se pudesse invadir aquele instante. A ponta do dedo encostou no rosto minúsculo e pixelado da menina. Um toque idiota. Terno. Doído.
Ela sabia que aquilo era errado.
Inaceitável.
Que se alguém visse — Silvia, Rafaela, a imprensa, qualquer pessoa — aquilo teria consequências catastróficas. Que só estar ali, olhando, já era perigoso demais. Mas o peito doía de saudade. Uma saudade que nem sabia mais nomear. Não era desejo. Nem ternura. Era uma mistura corrosiva dos dois. Uma lembrança de algo que nunca aconteceu — mas quase.
Um impulso infantil passou pela mente.
“E se ela trocasse a foto?”
“E se deixasse de seguir?”
A angústia a invadiu como uma vertigem.
Mas Valentina não tinha postado nada novo.
Não tinha mandado mensagem.
Não tinha feito nada.
E ainda assim, Verena sentia o coração bater como se estivesse escondida num crime.
Uma notificação acendeu na parte superior do celular:
@lilian.nobrega marcou você em uma publicação.
Verena revirou os olhos. Bufou. Nem abriu.
— Vagabunda... — murmurou, largando o celular no banco do passageiro como se ele tivesse queimado sua pele.
No reflexo do retrovisor, viu os próprios olhos marejados.
A culpa. A saudade. O nojo de si mesma.
Tudo ali.
Abriu o vidro e acendeu um cigarro. Precisava respirar alguma coisa que não fosse ela.
Bar do Centro – Segunda-feira, 20h42
O bar era discreto, com luz baixa e música ambiente que misturava jazz e soul numa playlist despretensiosamente sofisticada. Ficava escondido numa travessa próxima ao centro histórico, o tipo de lugar onde políticos, jornalistas e advogados se encontravam depois do expediente sem levantar suspeitas — ou manchetes.
Jéssica chegou primeiro. Escolhera uma mesa nos fundos, perto da adega exposta. Vestia o mesmo tailleur azul-marinho do trabalho, mas sem o blazer. A blusa branca de seda agora mostrava discretamente os ombros, o colar de pérolas pousava com elegância na clavícula. Ela ajeitou o batom com o reflexo do celular e levantou o olhar no exato momento em que Rafaela entrou.
A assessora vinha com o cabelo preso num coque despretensioso, os ombros ligeiramente curvados, e a expressão de quem não tinha certeza se devia estar ali.
— Achei que ia dar pra trás — provocou Jéssica, já se levantando um pouco para cumprimentá-la.
— Quase dei — Rafaela sorriu de lado, entregando-se à cadeira de frente. — Mas achei que se eu ficasse em casa ia acabar bebendo sozinha. E chorando. Aí preferi vir te incomodar.
— Incomodar? — Jéssica ergueu a sobrancelha, chamando o garçom com um gesto elegante. — Você só me faz um favor.
Rafaela não respondeu. Tirou o elástico do cabelo, soltando os fios num gesto quase automático, e pegou o cardápio. Mas Jéssica já havia pedido por elas.
— Duas taças de vinho tinto, o da casa. E a tábua de queijos.
— Vai me embebedar?
— Só se você deixar. — respondeu, com um sorriso malicioso, quase imperceptível.
A primeira taça veio rápida. Rafaela girou o copo entre os dedos, sem pressa. Ainda usava a camisa branca de sempre, com os dois primeiros botões soltos. Na manga, a marca de uma pasta velha — provavelmente esquecida em cima da mesa de Verena entre uma explosão e outra.
— Então… — Jéssica recostou-se na cadeira. — O que tá acontecendo? Ou melhor… o que ainda tá acontecendo?
Rafaela soltou um riso curto. Bebeu metade da taça.
— Nada que você já não saiba. Verena sendo Verena. E eu… sendo o resto.
— O resto? — Jéssica inclinou levemente a cabeça, curiosa. — Isso é o que você acha de si mesma? Porque do lado de fora… parece que é você quem segura aquele gabinete em pé.
— É, eu ou a fita crepe. — ironizou Rafaela. — Mas segura até quando? Eu… às vezes me pergunto se tô ali pra quê. Ela me escuta? Não. Faz o contrário de tudo o que eu digo. E quando a merd* explode, sobra pra eu limpar.
— Porque você limpa melhor do que ninguém. E ela sabe disso.
— Às vezes eu me sinto... um acessório de luxo. Só sirvo enquanto for útil. Enquanto tapar buraco. Enquanto acalmar incêndio. — A voz saiu amarga. — E o pior? Eu gosto dela. Gosto de verdade. Mesmo sabendo que é um caos.
Silêncio.
Jéssica se inclinou um pouco à frente. A segunda taça já estava pela metade. Pegou a garrafa e serviu mais para Rafaela, sem perguntar.
— Você sabe que, no fundo, se fosse você naquela cadeira, nada disso estaria acontecendo.
Rafaela riu, o vinho já colorindo as bochechas.
— Não começa.
— Eu tô falando sério. Se o partido tivesse um pingo de coragem… se eles vissem o que você faz de verdade… Mas preferem o brilho da estrela.
— A estrela também tem úlcera, ataques de fúria e um dom inexplicável pra se envolver nas situações mais… impróprias. — A última palavra saiu mais amarga do que ela queria.
Jéssica notou.
— E você? Nunca pensou em sair dali? Fazer sua própria história? Sem se esconder atrás de ninguém?
— Já. — Rafaela respondeu, a voz baixa. — Mas aí… lembro o quanto eu ainda tô presa.
— Ou o quanto ela ainda te prende.
O silêncio agora era denso. Rafaela evitou o olhar da colega e terminou mais um gole do vinho. Estava quente por dentro, confusa. O álcool subia devagar, mas a presença de Jéssica também.
— Quer um cigarro? — Jéssica ofereceu, tirando o maço da bolsa.
Rafaela riu, meio embriagada.
— Trouxe o meu. Mas ainda tô fingindo que não vou fumar.
Tirou o cigarro da bolsa, colocou entre os dedos, mas não acendeu. Brincava com ele, distraída.
— Vem comigo ali fora. — Jéssica sugeriu, se levantando e estendendo a mão. — Vamos fingir que estamos só querendo respirar um pouco.
Rafaela hesitou… mas levantou.
Seguiu Jéssica até a área externa do bar, um recuo de pedras iluminado por pequenas luzes amarelas penduradas em fios suspensos, que tremeluziam ao vento. O ar da noite era mais frio ali fora, mas o calor entre elas parecia ignorar o clima.
Encostaram-se na mureta baixa, ao lado de um vaso com lavandas ressecadas. Jéssica acendeu o cigarro primeiro, tragou com calma, depois estendeu o isqueiro para Rafaela — que demorou um segundo para aceitar. Mas aceitou.
Os olhos se encontraram quando a chama acendeu. Rápido. Íntimo. Quase um pacto silencioso.
— A gente devia parar. — Rafaela disse, com um fio de voz.
— Devia. — Jéssica respondeu, soprando a fumaça pro alto. — Mas você quer?
A pergunta pairou no ar, densa como o silêncio entre elas.
Rafaela não respondeu de imediato. Encostou-se um pouco mais, o cigarro entre os dedos, a taça de vinho ainda pela metade na outra mão. As luzes tremeluziam nos olhos dela, que agora já não se desviavam mais.
— Eu nem sei o que eu tô fazendo aqui. — confessou, a voz rouca.
— Claro que sabe. — Jéssica se aproximou devagar, o tom baixo, quase um sussurro. — Você só não quer admitir.
O ombro de uma encostou no da outra. Era um toque sutil, mas íntimo o bastante pra fazer o coração de Rafaela disparar. E Jéssica notou. O olhar dela percorria cada detalhe — a forma como Rafa mordia o lábio, como os dedos tremiam ao segurar o cigarro, como o queixo dela subia só um pouquinho quando queria disfarçar o desconforto.
— Fica tranquila. — disse, quase num tom protetor. — Eu não vou fazer nada que você não queira.
— Esse é o problema. — Rafaela riu de leve, nervosa. — Eu não sei mais o que eu quero.
Jéssica soltou a fumaça devagar, abaixando a cabeça até encostar a testa no ombro da assessora, sem pressa.
— Então deixa eu te lembrar.
Foi uma frase simples. Mas dita daquele jeito — baixa, com um timbre que mais parecia um arrepio — fez com que Rafaela fechasse os olhos por um segundo. Sentia o corpo vibrar por dentro, o efeito do álcool misturado com tudo o que vinha tentando ignorar desde a última conversa com Verena. O peso de ser a sombra de alguém. A solidão que nunca confessava. A fome que negava até pra si mesma.
Virou o rosto devagar. E encontrou o olhar de Jéssica esperando. Ela estava ali. Presente. Atenta. Perigosa.
E linda.
— Rafa... — ela chamou, só pra testar se vinha.
E veio.
O beijo não foi violento. Nem súbito. Foi lento, calculado, sedutor. Um toque de lábios que se reconheciam no escuro. Um movimento contido, mas cheio de tensão acumulada. Jéssica conduzia com a mesma firmeza que mostrava nas reuniões — segura, direta, sem pedir licença, mas deixando brechas. E Rafaela… não resistiu.
As mãos dela, que estavam na mureta, escorregaram pela cintura da colega. E a de Jéssica, subiu devagar pela nuca, puxando de leve os cabelos ainda soltos de Rafa.
Foi o tipo de beijo que faz o tempo parar. Que ninguém testemunha, mas que muda tudo por dentro.
Quando se afastaram, ainda próximas, ofegantes, Rafaela apoiou a testa na testa dela. As palavras sumiram. Mas os olhos não mentiam.
Jéssica sorriu. Um sorriso pequeno. Confiante.
— Quer ir pra outro lugar?
Rafaela não respondeu com a voz. Só deixou o cigarro escorregar, apagando no chão de pedra… e assentiu.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — Terça, 13h10
O calor escorria pelos corredores estreitos da escola, mesmo com as janelas abertas e os ventiladores de parede zumbindo num esforço coletivo pra espantar o abafado da manhã. A “Semana da Juventude e Cidadania” dava outro ritmo ao colégio — professores circulavam apressados, salas adaptadas com cartazes coloridos, projetos de intervenção espalhados pelos pátios, cada turma tentando garantir o título simbólico de melhor atividade do ano.
Valentina andava ao lado de Carol, as duas com as camisetas brancas do evento por cima do uniforme, meio amassadas. Carol carregava um tablet velho emprestado da sala de informática. Tinham acabado de imprimir mais alguns cartazes do grupo de direitos humanos e resolveram dar uma última olhada no cronograma da semana, que tinha acabado de ser atualizado na página oficial da escola.
— Olha isso aqui. — Carol cutucou a amiga com o ombro, parando em frente ao mural do corredor central. — Botaram uma versão impressa da programação atualizada. — apontou com o dedo o papel recém-colado, ainda torto.
Valentina se aproximou devagar, passando os olhos por cada dia da semana. Segunda já tinha passado. Terça, ela sabia de cor — documentário, dinâmica, e uma apresentação do grêmio, encaixada de última hora.
Ela desceu o olhar mais um pouco, distraída. Quarta. Quinta.
Segunda-feira
– Roda de Conversa: A importância da voz jovem na política (com professores e alunos)
– Oficina: Criação de Podcast estudantil
– Debate Interclasses: Uniforme é liberdade ou opressão?
Terça-feira
– Cine Debate: Documentário “Primavera das Mulheres”
– Dinâmica com psicóloga convidada: Autoestima e ambiente escolar
– Apresentação Grêmio Estudantil.
Quarta-feira
– Oficina de Oratória com representante do Instituto Cidadania Já
– Feira de profissões com ex-alunos
Quinta-feira
– Mesa-redonda com coletivos de juventude e arte urbana
– Sarau aberto (alunos, ex-alunos, convidados)
– Teatro educativo.
E então… sexta.
“SEXTA-FEIRA – 10h às 12h: ENCERRAMENTO DA SEMANA DA JUVENTUDE E CIDADANIA. Presença simbólica e roda de conversa com a deputada estadual Verena Castilho. Tema: Juventude, escolhas e futuro.”
O mundo parou. Literalmente.
— Não… — Valentina recuou um passo, os olhos arregalados. — Não… isso não… não pode ser…
Valentina leu a última linha três vezes.
Congelou.
A mão suava no papel que segurava.
O coração… disparado.
— Valen? — Carol se aproximou — Tá tudo bem?
Valentina só mostrou o cronograma, apontando com o dedo.
Carol leu e arregalou os olhos.
— Puta merd*.
Valentina sentou-se no primeiro banco vazio que achou. Não falou nada. Só olhava fixamente o nome.
Verena Castilho. Ali. Preto no branco. Sexta-feira.
— Amiga… respira. — Carol abanava a amiga com a mão livre, tentando não rir da tragédia anunciada. — Você vai morrer antes de sexta assim.
Valentina congelou. A mão suava no papel que segurava. O coração… disparado. Carol mordeu o lábio, controlando o próprio susto. Não esperava por isso também. Leu de novo, pra ter certeza.
— É oficial. Tá aqui e tá no Instagram da escola. Postaram agora há pouco. — virou a tela do celular pra mostrar o post com a arte improvisada, uma foto institucional da Verena ao lado da logo da Alesp.
Valentina continuava sentadas no banco ao lado do bebedouro como se tivesse levado uma pancada. Carol se sentou ao seu lado, com calma e em seguida deu uma gargalhada baixa e maliciosa.
— Ah, não! Isso vai ser tudo! — subiu o tom só um pouco. — Sexta-feira promete!
— Fala baixo! — Valentina olhou em volta, corada, mesmo que ninguém ali parecesse estar prestando atenção nas duas.
— Amiga, olha o nível de fanfic que a vida tá te entregando. Ela vai vir na sua escola. Bem aqui! E você vai tá toda linda, responsável, cristã e misteriosa.
— Para… — Valentina escondeu o rosto entre as mãos, sentindo as bochechas queimarem. — Isso é muito errado. Não posso nem pensar nisso. Eu não vou aguentar. — murmurou. — Eu vou passar mal. Eu… eu não posso olhar pra ela. Não depois de tudo.
— De tudo o quê, Valen? — Carol se virou de lado. — Você não fez nada de errado. E nem ela.
— Ai Caroool... Eu... eu não respondi. Nem o boa noite. E depois postei story, deixei a coisa no ar… — cobriu o rosto com as mãos. — E se ela achar que eu sou infantil? Que eu tô jogando?
— Ela não achou nada disso. — Carol falou com firmeza. — E se achou, mesmo assim olhou teu perfil. Viu o story. Aquilo não foi por acaso.
Valentina suspirou, ainda com as mãos no rosto. O coração disparado. A mão tremia.
— Você acha… você acha que ela ainda pensa em mim?
Carol não respondeu de imediato. Apenas respirou fundo e disse, olhando pra frente:
— Eu acho que ela vai te olhar. Na sexta. E aí você vai saber.
Silêncio. Valentina baixou a cabeça, segurando as lágrimas. Carol encostou o ombro no dela, cúmplice.
— Mas pensa. Vai que você ganha essa competição com o projeto da turma, fica toda em evidência… Eu já vou até reservar o canto do fundão onde os casais se pegam.
— Carol!
— Brincadeira, credo! — riu. — Mas que eu vou estar com o celular pronto pra gravar qualquer olhar demorado, isso eu vou.
Valentina abaixou a cabeça, respirando fundo. O coração batia descompassado, uma mistura de pânico e expectativa. Tinha medo de vê-la. E ainda mais medo de não ver.
Olhou em volta. A turma se empenhava com cartolinas, marcadores e ideias para a quinta-feira, quando fariam uma dramatização sobre desigualdade social. Todos pareciam envolvidos. Menos ela.
E mesmo assim… se Verena realmente fosse, veria tudo isso. Veria o que ela fazia. Onde estudava. Talvez, apenas talvez, também sentisse alguma coisa.
Carol encostou o queixo na mão e murmurou, sarcástica:
— Vai treinando o “bom dia, deputada”. Mas com a voz firme. Sem desmaiar.
Valentina fingiu que não ouviu. Mas por dentro, ela já tinha repetido essa frase umas vinte vezes. E todas elas com o coração nas mãos.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – Sala 203 (vazia) – Terça-feira, 15h17
As janelas abertas deixavam entrar o calor abafado da tarde e o som de um rádio distante, em alguma casa vizinha, tocando pagode antigo. A sala, quase vazia, cheirava a cola quente, papel sulfite e marcador de quadro branco.
Três grupos de alunos se dividiam pelos cantos. Uns recortavam cartolina no chão; outros digitavam algo no notebook emprestado pela coordenação. Carol estava sentada numa cadeira ao lado da porta, pintando as bordas de um cartaz com pincel atômico.
Valentina estava em outra, mais afastada, encarando a tela do celular com uma expressão entre o pânico e o torpor. Os olhos percorriam a programação do evento pela décima vez. Como se as palavras fossem mudar a qualquer momento.
Presença simbólica e roda de conversa com a deputada estadual Verena Castilho. Tema: Juventude, escolhas e futuro.”
Ela respirou fundo. Largou o celular no colo. A cabeça inclinada pra trás, apoiada na parede, os olhos no teto.
— Eu não vou conseguir. — murmurou, quase num sussurro.
Carol nem olhou.
— Ainda com isso, Valen?
— Você queria o quê? Que eu simplesmente esquecesse? — respondeu, baixinho, mordendo o lábio com força. — Ela vai estar aqui. Aqui. Na mesma escola. No pátio. E eu vou ter que fingir que sou uma estudante normal.
— Mas você é uma estudante normal.
— Não quando ela tá por perto. — Valentina abaixou o olhar. — Aquele story, Carol. Eu juro… por um segundo achei que era pra mim.
Carol largou o pincel. Virou-se de lado, com os cotovelos no encosto da cadeira e um olhar debochado e protetor ao mesmo tempo.
— E talvez fosse. — disse, dando de ombros. — Ela viu o seu. Você viu o dela. Isso aí já é namoro no ensino médio, Valentina.
— Para. — murmurou, escondendo o rosto nas mãos. — Não brinca com isso.
— Por que não? — sorriu. — Vai que sexta-feira rola um reencontro épico. Deputada poderosa desce do carro oficial, entra na escola e te vê linda, cheia de brilho nos olhos. Vai ser tipo… clipe da Taylor Swift com filtro sépia.
Valentina soltou uma risada nervosa, com os olhos marejados e as bochechas vermelhas.
— Você não tem noção do quanto isso me deixa nervosa. Do quanto isso é… errado. — a voz embargou. — Ela é casada. É mulher. É… tudo o que eu não posso desejar.
Carol ficou em silêncio por um segundo. Depois sorriu, suave, e pegou de novo o pincel.
— Então só deseja em silêncio. — disse, sem drama. — Mas não tenta apagar o que você sente. Isso só piora.
Valentina abaixou os olhos, sem coragem de responder. Ao fundo, um colega pediu fita adesiva. Uma risada ecoou no corredor. A vida seguia.
E ela ali. Com o coração preso em alguém que não devia. E com medo — medo real — do que aconteceria se ela olhasse nos olhos de Verena na sexta-feira… e sentisse tudo de novo.
Carol cortou o silêncio com um sussurro debochado:
— E já falei. Se quiser, eu fico de vigia no cantinho onde os alunos se pegam. Só por precaução.
Valentina pegou uma caneta e jogou nela. Mas o sorriso no canto da boca já a entregava.
Mesmo com o coração apertado, estava feliz de ter Carol ali. Porque, de algum modo, ela sabia que, com a amiga do lado, talvez conseguisse sobreviver até sexta-feira. E quem sabe… até depois. E o coração... já estava em contagem regressiva.
Apartamento Verena e Silvia – Noite de Terça-feira – Jardins, São Paulo
O portão do edifício se abriu com um rangido discreto. O Audi A4 preto deslizou pela entrada subterrânea, silencioso, cortando a penumbra da garagem como um fantasma elegante.
Verena estava ao volante.
Silvia ao lado.
Nenhuma das duas dizia uma palavra.
O rádio permanecia desligado desde a saída da Alesp. O único som dentro do carro era o sutil rangido dos pneus no piso de cimento polido. E o som do coração de Verena — ou era só ela que ouvia? — batendo mais alto do que devia.
A parlamentar manobrou com precisão, encaixando o carro na vaga com um movimento automático. Engatou o freio, desligou o motor, mas não saiu de imediato. Olhou para frente, imóvel.
Silvia desceu sem esperar. Nem sequer a olhou.
Verena respirou fundo. Apertou o volante com força por dois segundos. Soltou. Depois pegou a bolsa, o blazer dobrado no banco de trás, e saiu com a postura de sempre — impecável por fora, arrasada por dentro.
Subiram no elevador social juntas. Mas poderia ter sido um por vez. As duas encararam o painel, em silêncio, como duas estranhas presas no mesmo espaço por acidente.
Chegaram ao apartamento. Silvia foi direto para o quarto. Verena, para a sala.
Largou a bolsa com descuido na poltrona. Tirou os óculos de grau, passou as mãos no rosto. Estava exausta. Mental, física, emocionalmente.
Jogou-se no sofá.
O teto branco parecia girar lentamente, ou talvez fosse sua cabeça.
Sexta-feira.
O nome de Valentina ecoava de novo, como um sussurro cruel.
Fechou os olhos. Tentou se distrair, mas bastava uma fresta de memória e lá estava o sorriso dela, o cheiro adocicado do cabelo, a respiração entrecortada no quase-beijo.
Quase.
“Você vai mesmo?”, a voz de Rafaela voltou em looping.
— Por que você me avisou, então? — murmurou sozinha, com raiva.
O celular vibrou.
Ela pegou. Uma notificação qualquer. Nem era da Valentina.
Claro que não era.
Nunca mais foi.
Desbloqueou a tela. Entrou no Instagram. O dedo hesitou, mas deslizou até o perfil @vemoraes.
Foto de perfil.
A mesma. De costas, na cama. Olhando pela janela. Uma luz suave tocando os ombros. E aquele detalhe do rosto meio virado, como se — por descuido ou arte — dissesse: "Ainda estou te ouvindo."
Verena fechou os olhos. Encostou a cabeça no encosto do sofá, os dedos ainda segurando o celular sobre o colo.
— Isso é doentio… — sussurrou.
Mas não conseguiu sair dali.
Abriu o direct. O histórico de mensagens era curto. Frio. O “boa noite” jamais respondido.
A falta de resposta que doía mais do que ela gostaria de admitir.
Pensou em escrever.
Só uma linha.
“Você vai estar lá na sexta?”
Mas apagou.
Tentou de novo.
“Não sei se é uma boa ideia.”
Apagou de novo.
“Eu sonhei com você.”
Engoliu seco. Riu, irônica. Era o fim. Estava ridícula.
Aperto no peito. A respiração acelerou. A garganta fechando.
Encostou o celular na testa. Os olhos marejando.
Estava à beira de um colapso. De novo.
Por um momento, pensou em descer e andar. Ou dirigir sem destino. Ou ligar pra Rafaela. Ou pra qualquer um. Mas ninguém podia ouvir aquilo. Nem mesmo ela mesma.
Levou as mãos ao rosto. Enxugou uma lágrima que escorreu sem aviso.
O amor, o desejo, o medo, o luto de si mesma. Tudo misturado num nó impossível de soltar.
E então Silvia apareceu no corredor, de camiseta, já com os cabelos presos num coque frouxo.
Elas se encararam por um segundo.
— Vai demorar pra vir dormir? — perguntou Silvia, sem emoção na voz.
Verena assentiu.
— Mais um pouco.
Silvia sumiu pela porta do quarto.
A parlamentar ficou ali, sozinha.
Com os olhos no celular.
E o coração nas mãos.
Apartamento nos Jardins — Sala de Estar — Terça-feira, 23h07
O apartamento estava mergulhado em penumbra. Apenas a luz indireta da cozinha acesa, suficiente pra não deixar a sala em total escuridão.
Verena estava jogada no sofá de linho claro. As pernas cruzadas, o copo de vinho apoiado sobre a barriga, camisa social branca desabotoada até o colo, as mangas enroladas nos antebraços. Os cabelos soltos caíam levemente sobre o rosto, bagunçados. Os óculos, tortos no nariz, pendiam perigosamente.
Na TV, o noticiário seguia em silêncio. Ela tinha deixado o som no mínimo. Mas não ouvia nada. Não via nada.
A cabeça latej*v*.
Entre a tensão no gabinete, o estômago preso desde o almoço, o casamento cada vez mais em frangalhos e... a sexta-feira se aproximando — era demais. Era tudo ao mesmo tempo. E o pior é que nada doía mais do que aquilo que ela não podia nomear.
Valentina.
A jovem.
A menina de voz doce, sorriso acanhado, olhos atentos que ainda a visitavam nos sonhos. A aluna. A ex-estagiária. A garota que ela não podia querer.
E ainda assim…
Verena levou o celular ao rosto. Desbloqueou.
Entrou no Instagram. O perfil da jovem continuava ali, silencioso. Privado. Aquela foto de perfil — aquela maldita imagem dela de costas, sentada na cama, olhando pela janela. Um misto de pureza e provocação involuntária. A luz da manhã atravessando os cabelos claros, quase dourados, os ombros visíveis sob uma blusa branca frouxa.
Ela prendeu a respiração. Apertou os olhos. Mas não desviou.
Sentia o peito latejar, uma angústia pulsante no centro do estômago. E sem conseguir evitar, abriu o aplicativo de notas.
Começou a digitar.
“Valentina.
Eu sei que você não vai ler isso. Mas preciso escrever, ou vou enlouquecer.
Você me assombra.
E não do jeito leve e poético. Do jeito que queima.
Penso em você quando entro no gabinete.
Quando passo por alguma livraria.
Quando ouço alguém me chamar de ‘deputada’, e lembro da forma tímida como você dizia isso, com tanto cuidado, como se meu nome fosse sagrado.
E o pior… é que eu queria ouvir sua voz de novo.
Queria sua risada sem jeito.
Queria sua presença perto da minha.
Queria tocar seu rosto.
Encostar meus dedos nos seus.
Beijar sua boca devagar, sem culpa, sem lei, sem nada.
Mas não posso.
Porque sou casada.
Porque sou sua ex-chefe.
Porque você é uma menina de 16 anos.
E mesmo que eu tenha te respeitado em cada segundo... o que sinto não é certo.
Não posso nem te olhar.
Mas sinto sua falta como se fôssemos parte da mesma dor.
E essa falta me devora.
Eu queria que você sumisse da minha cabeça.
Mas também queria você aqui.
Com a cabeça no meu colo, me pedindo pra ficar.
E eu juro, Valentina... eu ficaria.”
Ela parou.
Estava suando. As mãos tremiam.
Fechou os olhos com força e pressionou o celular contra a testa. O peso daquela mensagem era insuportável. Como podia sentir tanto por alguém que nunca tocou de verdade?
Verena respirou fundo, segurando as lágrimas.
Depois, bloqueou a tela. Não salvou. Nem apagou. Apenas deixou ali, na aba dos recentes. Sabia que voltaria a ler. Sabia que não ia conseguir esquecer.
Levantou-se devagar. Passou a mão pelo rosto. O corpo inteiro doía.
No quarto, Silvia já dormia. Verena sabia disso. E, de certo modo, agradecia. Porque naquele momento, se a esposa a olhasse nos olhos, ela descobriria tudo. E talvez Verena mesma não sobrevivesse à verdade.
Apartamento Castilho-Alencar – Quinta-feira, 7h02
O sol mal havia nascido completamente, mas o relógio biológico de Verena Castilho já pulsava alto. Acordou de súbito, como se tivesse perdido uma reunião urgente — mas era só o próprio coração que insistia em lembrá-la: amanhã. Amanhã ela estaria diante de Valentina. Amanhã seria o fim da fuga.
Ficou deitada por alguns segundos, em silêncio, os olhos fixos no teto do quarto. Ao lado, Silvia ainda dormia, o corpo encolhido sob o edredom leve. O rosto sereno, quase infantil, contrastava com o turbilhão dentro da deputada. Verena a observou com um misto de carinho e culpa. Desejou que aquilo bastasse. Que aquele amor, aquela história, aquela promessa… fossem suficientes pra calar o que rugia dentro dela.
Levantou devagar. Vestia apenas a camisa social branca da noite anterior, agora levemente amarrotada. Desceu até a cozinha, pés descalços no piso frio. Colocou água na chaleira, prendeu os cabelos com um coque desajeitado e pegou duas canecas. Começou o dia como fazia quando as coisas entre elas ainda funcionavam — um pequeno gesto de cuidado que não custava tanto, mas que há semanas ela vinha deixando de lado.
Silvia apareceu pouco depois, ainda de robe, os olhos semicerrados. Verena virou-se para ela com um sorriso contido.
— Fiz chá — disse, tentando soar natural. — Aquele de camomila com limão que você gosta.
Silvia assentiu com um murmúrio, puxando a cadeira com delicadeza. Sentou-se à mesa. O silêncio ainda era o mais presente entre elas.
...
O aroma do chá ainda preenchia a cozinha. A luz da manhã entrava tímida pelas janelas amplas, filtrada pelas cortinas brancas de linho. Verena lavava as duas canecas com gestos mecânicos, enquanto Silvia ainda permanecia sentada à mesa, em silêncio. Observava a esposa de costas — o coque frouxo, os ombros ligeiramente curvados, o jeito contido de quem estava tentando demais.
Verena desligou a torneira, enxugou as mãos e ia saindo da cozinha quando ouviu, atrás de si, a voz suave, mas firme:
— Eu preciso te dizer uma coisa.
Virou-se com um leve arquejo, meio surpresa. Silvia estava séria. Os olhos castanhos, fundos, fixos nela.
— Eu quero muito ser mãe, Verena. Você sabe disso. Mas… eu não quero que você faça isso por mim.
Verena não respondeu de imediato. Sentiu a garganta fechar um pouco. Silvia continuou, a voz embargando discretamente:
— Não é justo. Não se trata de me dar algo pra compensar a dor. Ou pra salvar a gente. Se for assim… melhor nem começar.
Houve um segundo de silêncio denso. E então Verena se aproximou, devagar. Cada passo medido, como se pisasse sobre vidro. Sentou-se à frente da esposa. Olhou-a com cuidado — e, por um momento, pareceu genuinamente despida de defesas.
— Eu sei o que você tá dizendo — disse, com o tom mais suave do dia. — E eu não quero que você pense nem por um segundo que isso é… uma moeda de troca. Ou um gesto de culpa.
Silvia desviou os olhos, desconfiada. Verena estendeu a mão sobre a mesa, cobrindo a dela com firmeza.
— O seu sonho é o meu também — falou, baixo. — Talvez não tenha sido sempre. Talvez eu tenha demorado a entender. Mas agora é.
Um breve silêncio.
— Vai ser. Porque eu escolhi estar com você. E eu quero ver você realizada. Quero dividir isso com você. Com tudo o que isso significa.
Silvia mordeu o lábio, emocionada. Os olhos brilharam. Verena sorriu, de canto, e apertou de leve os dedos da esposa.
— E vamos combinar — completou, com aquele charme castilhiano que amolecia qualquer armadura — se for pra vir um bebê com seu temperamento e o meu... acho bom a gente já ir contratando uma terapeuta.
Silvia riu. Baixo. Íntimo. Mas genuíno.
O silêncio entre elas ainda era espesso. Silvia continuava sentada à mesa, os olhos baixos, tentando conter a emoção. Verena ficou ali, parada por um segundo, olhando a esposa como quem enfim entendia a extensão do vazio entre elas — e o risco real de perdê-la.
Sem dizer mais nada, contornou devagar a mesa. E então, num gesto inesperado, mas natural, se agachou ao lado da cadeira da esposa. Puxou-a com delicadeza, envolvendo sua cintura com os braços e encostando o rosto no colo dela, como quem pede abrigo, mas também oferece.
Silvia hesitou… e depois passou as mãos devagar pelos cabelos soltos da esposa. O gesto a desmontou por dentro.
Verena ergueu o rosto, olhos fixos nos dela.
— Eu quero tudo com você — disse baixo, com sinceridade crua. — Quero dar esse passo com você. Porque... Eu te amo Silvia.
Silvia ainda tentava se conter. Mordeu o lábio, como quem queria acreditar.
Verena se ergueu apenas o suficiente pra roçar os lábios nos dela. Um selinho calmo, cheio de uma ternura nova. Depois outro. E outro.
Silvia fechou os olhos, se permitindo.
E, quando os braços de Verena a puxaram com mais firmeza, ela desceu da cadeira devagar, sentando no colo da esposa, como uma criança cansada de resistir. Um abraço longo, apertado. O cheiro familiar, o calor da pele, o coração ainda apertado — mas batendo ali, junto.
— Eu te amo — sussurrou Silvia, com a voz abafada contra o pescoço da esposa.
Verena apertou os olhos, sentindo aquele momento como se fosse o último.
— Eu sei, amor. E isso… ainda me salva todos os dias.
Ela não disse que havia sonhado com outra pele.
Com outros olhos.
Com outra voz dizendo seu nome.
Mas naquela manhã de quinta-feira, Silvia era tudo o que ela precisava proteger. Mesmo que não soubesse mais como.
Fim do capítulo
Boa noite psssoal. Ou bom dia, boa tarde rsrs.
Bom, primeiro, quero agradecer por todos os comentários, vocês são incríveis, mesmo. E mesmo que não comenta. Obrigada por terem dado uma chance a esse romance.
E segundo. Bem, devido um compromisso pessoal, eu não vou conseguir atualizar por uns 20 dias. É ruim, eu sei, mas realmente não vai dar. Peço que me perdoem desde já. Vou compensar depois rs. Mais uma vez peço desculpas.
Fiquem bem!
Abraços! S2
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Hanna28
Em: 19/07/2025
O posicionamento da deputada é lastimável!. Na posição dela é extremamente delicado assumir está apaixonada por uma adolescente, mas,é injusto manter a Sílvia presa ao um sonho que só tem sentido apenas por parte dela...Eu conheço pessoas iguais que não solta o outro por conveniência e não por medo real.
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Joh olliveira
Em: 12/07/2025
Porque você sumiu assim?
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Oiie! Boa noite!
Eu precisei resolver uns assuntos pessoais! Mas já tô de volta!
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Joh olliveira
Em: 12/07/2025
Próximo autora. Ta demorando muito.
Precisamos do próximo capítulo por favor. ????????
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Vou te pedir só mais um pouqinho de paciência, que já venho com o próximo já já! Rs
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Hanna28
Em: 09/07/2025
Engraçado que tanto a Verena quanto a Rafaela quando estão num momento "vulneráveis" e frágeis aparece gente com um ar solidário e compreensivo...
Foi bom pra Rafa essa distração? Foi. Mas,algo me diz que terá consequências caso venha mudar sua postura diante da amiga
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
É, você teve uma boa percepção!
Coincidência né? Rsrsrrs
Vamos ver o que vai dar essa "amizade" da Rafa com a Jéssica vai dar.
Hanna28
Em: 23/07/2025
Não existe coincidências mocinha! Espero de verdade que tudo tenha saído bem na sua vida durante sua pausa aqui. Precisando de ajuda pode sempre me contatar!
Se tiver vontade claro rsrsr
Sinto que o cap 28 será explosivo
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Kkkkkkkkk, tá certa! Mas nem um pouquinho de coincidência rsrsrs?
Ahh obrigada pelo carinho! Saiu tudo bem sim! :)
Espero que esteja bem tbm! :)
Hanna28
Em: 23/07/2025
Aqui está tudo certo
General!
anonimo2405
Em: 24/07/2025
Autora da história
Fico muito feliz em saber disso! :)
De mocinha pra General, acho que evolui hein rsrsrsr.
Hanna28
Em: 24/07/2025
Toda engraçadinha... kkkk
Sei não hein talvez rebaixe para tenente
Mocinha combina mais com sua energia. : )
anonimo2405
Em: 26/07/2025
Autora da história
Kkkkkkkkkkk
:)
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Sem cadastro
Em: 04/07/2025
20 dias.... oh my god!!!! Kkkkk
Eu amo muito tua história
Aguardarei ansiosamente.
Vou até colocar um lembrete
Por mais que você tem o dia certo pra postar, todo dia eu entro na esperança ter um novo capítulo.
Histórias como a tua precisam ser finalizadas, senão a gente sofre demais.
Abraços e se cuida!
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Zanja45
Em: 01/07/2025
A Jéssica é como um gavião que ficou rondando a presa até conseguir o momento certo de se aproximar? Porque ela chegou perto de Rafa num momento em que ela estava mais fragilizada e cheias de dores.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Pois é! Coincidência né rsrsrsrs?
Deu a impressão de que ela tava só esperando o momento certo pra aparecer. Mas... vamos esperar pra ter certeza.
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Zanja45
Em: 01/07/2025
O rascunhos poéticos de Verena são as manifestações mais singelas, podem se dizer mais pura até o momento, porque revela, a vontade de realiza - los, mas vê as impossibilidades desse amor proibido, em vista as diferenças de idade, de ser comprometida. Entretanto há um choque de desejos entre o que não pode e o que ela quer. Os versos a seguir contrasta bem isso quando fala "Eu queria que você sumisse da minha cabeça".
"Mas também queria você aqui.". Isso é muito bonito, pois o que elas estão partilhando, tem contribuido para que o que estava escondido dentro dela, venha a tona. - Tem feito ela lembrar como foi lá no inicio. - Ela luta para resgatar uma Verena que ela foi.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Ahh que lindo comentário!
Sua análise foi precisa!
Concordo que foi a primeira vez que a Verena expôs tudo o que sente, sem filtro, sem mentira. Falando o que sente de verdade. Os conflitos internos.
Uma tentativa de sentir algum alívio. Buscar de volta o equilíbrio.
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Zanja45
Em: 01/07/2025
O caus interior que Verena está passando, faz com que ela tenha uma postura mais dura, uma verdadeira demolidora que aparenta idestrutível, tornando aliados em inimigos, fazendo com que caminhe sozinha em direção a queda. Porém, o mais admirável é que ela tenta manter - se firme quando tudo está ruindo a volta dela. - Ela está remando só, mesmo,pois está com muito medo de afundar, por isso ela tomou a responsabilidade para si.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Siim. É bem isso. Apesar de todos os erros, a resiliência da Verena é admirável. O mundo pode tá desabando que ela não joga a toalha.
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Zanja45
Em: 01/07/2025
Essas palavras não ditas, essa comunicação silenciosa entre as duas. Essas palavras jogadas, de forma indireta, imprevisível,para que o ser amado consiga decifrar seu significado, está conseguindo transmitir a mensagem. - Porém até pessoas que não conhecem a história por trás do jogo de palavras estão se infiltrando - porém, o mais lindo disso tudo é o surgimento da criatividade, o driblar das regras sociais, os desejos proibidos, manifestando - os, através da troca de palavras, sem se revelar completamente, só para aqueles que estão sitonizados entenderem. - Isso é poesia viva, desejo latente. - Compartilhamento de sentimentos. - É como dizer : "Só os entendedores entenderão".
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Nossa, vc foi certeira nas palavras. É exatamente isso. Elas conseguem se comunicar de uma forma até então inocente, porém. A gente sabe que a Verena tem bastante oposição né e o que elas acham que tá sendo bem escondido, pode não estar tão escondido assim.
Mas eu acho fofinho a forma delas trocarem mensagens de forma indireta rsrs.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Nossa, vc foi certeira nas palavras. É exatamente isso. Elas conseguem se comunicar de uma forma até então inocente, porém. A gente sabe que a Verena tem bastante oposição né e o que elas acham que tá sendo bem escondido, pode não estar tão escondido assim.
Mas eu acho fofinho a forma delas trocarem mensagens de forma indireta rsrs.
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Zanja45
Em: 01/07/2025
Foi muito insana essa atidude de Vê. - Foi uma ataque camicase -, porque o que se viu a partir dai foi uma consequência catastrofica, Rafaela se distanciando e o inimigo se aproveitando do momento para colocar mais lenha na fogueira.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Exatamente. A Verena precisa aprender a controlar os próprios impulsos. Ela se arrisca demais e abre brecha. E nesse meio que ela tá, gente pra se aproveitar é o que não falta. Tomara que a Rafa não se afaste dela.
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Zanja45
Em: 01/07/2025
Rafa acreditou que Verena ia ficar na dela depois de saber que o convite rejeitado seria da escola que Valentina estuda? Ela presenciando todos os rompantes da Deputada por conta da menina. - Ainda jogar uma dessas no colo dela. - Foi mesmo que dizer vá.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Kkkkkkk não é? Ou ela já fez de caso pensando mesmo ou foi bem ingênua.
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Sem cadastro
Em: 01/07/2025
Muito linda essa decisão de Verena, deixou Silvia sem saber como reagir. - Mas a custo de proteger as próprias mentiras dela. - Porque ela sabe que não pode perder a peça mais importante da vida dela. Senão ele vai desmoronar de vez.
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Oiee, boa noite!
Pois é! Foi uma escolha bonita, mas vamos ver até quando ela vai conseguir sustentar os dois mundos. Porque fácil não vai ser.
Mas você percebeu bem, quem dá sustentação à vida da Verena é a Silvia né, como já vimos antes.
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N@ty
Em: 01/07/2025
20 dias.... oh my god!!!! Kkkkk
Eu amo muito tua história
Aguardarei ansiosamente.
Vou até colocar um lembrete
Por mais que você tem o dia certo pra postar, todo dia eu entro na esperança ter um novo capítulo.
Histórias como a tua precisam ser finalizadas, senão a gente sofre demais.
Abraços e se cuida!
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Oiee! Boa noite!
Ahhh, obrigada pelo carinho S2!
Pode deixar que agora eu tô de volta e já venho com a continuação! Espero que tenha aguentado firme e continue aqui! Bjs!
N@ty
Em: 24/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
Sem cadastro
Em: 25/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
anonimo2405
Em: 26/07/2025
Autora da história
Kkkkkkkkkkk.
Vai valer a pena a espera.
;)
Sem cadastro
Em: 27/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
Sem cadastro
Em: 28/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
Sem cadastro
Em: 29/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
Sem cadastro
Em: 29/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
Sem cadastro
Em: 29/07/2025
Firme e forte... e ansiosa!
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Hanna28
Em: 01/07/2025
Uma pena poucos conhecerem está autora extraordinária e tão profunda em suas divagações em forma de escritas.
Agora eu que irei chorar de saudade e olha que dificilmente solto essa palavra por aí...mas,a senhorita merece seguir com seus compromissos sem culpa.
Irei reler cada capítulo novamente pois existe várias coisas na entrelinhas que irão servir para montar o quebra cabeças
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Gente! Que maravilhoso ler isso!
Não tenho como agradecer o suficiente pelo carinho! S2
Obrigada pela compressão! Espero que a saudade não tenha apertado muito. Mas logo logo já vem os próximos acontecimentos !! Bjs
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Zanja45
Em: 01/07/2025
Bom dia, Autora!
Vá na paz, e volte pra gente o mais breve possível.
PS . : Vou anotar na folia! (20 dias)
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Oiee, boa noite!!
Ahh obrigada pela paciência! S2
Já tô de volta rsrs. Passou rapidinho viu rsrs
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Zanja45
Em: 01/07/2025
Já vou ficar com saudades,Autora!
Espero que esses 20 dias passem rápido.
PS. Só vou ler a partir de amanhã
anonimo2405
Em: 23/07/2025
Autora da história
Também fiquei com saudades. Logo logo já sai a continuação! Bjs!
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anonimo2405 Em: 23/07/2025 Autora da história
Oiee, boa noite!
Pois é, ela tá numa situação muito complicada e ainda acaba envolvendo a Silvia na confusão. Ficar num relacionannrto dessa forma é bem difícil, principalmente quando a outra pessoa gosta de verdade.