• Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Cadastro
  • Publicar história
Logo
Login
Cadastrar
  • Home
  • Histórias
    • Recentes
    • Finalizadas
    • Top Listas - Rankings
    • Desafios
    • Degustações
  • Comunidade
    • Autores
    • Membros
  • Promoções
  • Sobre o Lettera
    • Regras do site
    • Ajuda
    • Quem Somos
    • Revista Léssica
    • Wallpapers
    • Notícias
  • Como doar
  • Loja
  • Livros
  • Finalizadas
  • Contato
  • Home
  • Histórias
  • O Peso do Azul
  • Capítulo 24

Info

Membros ativos: 9525
Membros inativos: 1634
Histórias: 1969
Capítulos: 20,495
Palavras: 51,977,381
Autores: 780
Comentários: 106,291
Comentaristas: 2559
Membro recente: Azra

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Notícias

  • 10 anos de Lettera
    Em 15/09/2025
  • Livro 2121 já à venda
    Em 30/07/2025

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Recentes

  • Entrelinhas da Diferença
    Entrelinhas da Diferença
    Por MalluBlues
  • A CUIDADORA
    A CUIDADORA
    Por Solitudine

Redes Sociais

  • Página do Lettera

  • Grupo do Lettera

  • Site Schwinden

Finalizadas

  • A  ladra
    A ladra
    Por ROBERSIM
  • Dia dos Namorados em Tempos de Quarentena -  Se Reinventando
    Dia dos Namorados em Tempos de Quarentena - Se Reinventando
    Por Rosa Maria

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

O Peso do Azul por asuna

Ver comentários: 1

Ver lista de capítulos

Palavras: 9018
Acessos: 269   |  Postado em: 06/07/2025

Capítulo 24

 

O Uber deslizava pelas ruas noturnas como um fantasma silencioso, os faróis dos carros em sentido contrário criando listras de luz que se desfaziam contra o vidro embaçado. Estava encostada ao banco traseiro, o corpo rígido contra o tecido frio, o olhar perdido no tecido líquido da noite que passava. O motorista tentara conversar nos primeiros minutos, no entanto desistira quando as minhas respostas se reduziram a monossílabos vazios.

As luzes da cidade desfocavam-se numa aguarela de néon e sombras. Cada semáforo, cada esquina, parecia marcada por uma lentidão deliberada, como se o tempo conspirasse para prolongar aquele limbo entre a revelação e o que viria depois.

Casadas.

A palavra voltava como onda persistente, batendo contra a consciência com uma regularidade hipnótica. Cada vez que pensava ter absorvido o impacto, uma nova camada de compreensão me atingia como pedras geladas, cada sílaba um peso que se instalava entre as costelas. Não eram apenas duas pessoas que se tinham encontrado após eu sair de cena. Eram duas pessoas que se tinham escolhido. Que tinham construído algo deliberado. Algo oficial. Algo que incluía cerimónias e anéis e promessas feitas diante de outros.

Quando o veículo finalmente parou diante da casa alugada, demorei um momento antes de sair. As pernas pareciam-me chumbo, cada movimento uma negociação consciente entre o que o corpo queria fazer e o que a mente exigia.

A residência recebeu-me com a quietude característica dos espaços vazios. As janelas estavam abertas, a brisa marítima circulando pelos compartimentos com uma liberdade que contrastava brutalmente com a sensação de claustrofobia que me apertava o peito. O som do mar chegava como presença constante, um murmúrio baixo que se misturava com o zumbido dos eletrodomésticos e o tique-taque abafado do relógio.

Dirigi-me diretamente à cozinha, os saltos a ecoarem contra o soalho polido num ritmo descompassado. A garrafa de vinho tinto que tinha comprado estava onde a tinha deixado, ainda por abrir.

O abre-garrafas resistiu por um momento, os meus dedos trémulos a lutarem contra o metal. Quando finalmente consegui abrir a garrafa, o som do cortiço a sair ecoou como pequena vitória patética. Servi um copo generoso, o líquido escuro a dançar contra o cristal como sangue líquido.

O primeiro gole queimou-me a garganta seca. O segundo já não. O terceiro trouxe uma espécie de dormência abençoada, um véu que se instalava entre a dor e a consciência.

Voltei para a sala, não consegui sentar-me no sofá. Parecia demasiado civilizado, demasiado composto para o estado em que me encontrava. Em vez disso, deixei-me escorregar até ao chão, as costas apoiadas contra a parede fria, as pernas estendidas sobre o tapete macio. O vestido que escolhera naquela noite, elegante, sofisticado, agora sentia-se como mortalha.

Grace sempre soube.

A certeza instalou-se como lâmina gelada entre as costelas. Claro que sabia. Desde o primeiro momento no café, quando me abordou com aquela casualidade estudada. A forma como falou sobre fotografia, sobre coisas que se desvanecem. Não tinha sido coincidência. Tinha sido reconhecimento.

Fechei as pálpebras, tentando reconstruir a conversa daquela manhã. Cada palavra, cada pausa, cada observação calculada. Não fora apenas simpática com uma desconhecida. Fora o quê? Curiosa? Protetora? Manipuladora?

"As fotografias são como fragmentos, pedaços soltos de algo muito maior."

Tinha estado a falar sobre mim. Sobre o que eu representava na vida de Chloe. Uma porção do passado que se recusava a desvanecer completamente.

E eu, como uma idiota, falara sobre ela. Revelara a minha vulnerabilidade, a minha busca, a razão pela qual tinha voltado. Oferecera cada pedaço da minha alma numa bandeja para a mulher que agora partilhava a mesma cama que a dela.

A humilhação espalhava-se como tinta derramada, tingindo cada memória de vermelho. O café, o aroma ainda colado à garganta como evidência da minha própria ingenuidade.

O vinho começava a fazer efeito, uma névoa suave a instalar-se nas extremidades do pensamento. Porém não era suficiente para apagar aquela sensação de ter sido dissecada em vida, analisada e catalogada como espécime curioso.

Chloe refizera a sua vida. Não apenas refizera, prosperara. Tornara-se uma artista, casara com uma mulher que a apoiava, que a compreendia, que estava presente nos momentos importantes. A outra estivera naquela galeria como esposa orgulhosa, não como espetadora casual.

E eu? Eu aparecera como sombra mal resolvida do passado, esperando o quê exatamente? Perdão? Encerramento?

A ironia era tão cruel que quase me fez rir. Uma exposição inteira dedicada a conexões interrompidas, e eu passara a noite rodeada por imagens da minha própria intimidade perdida, na presença da mulher que ocupara o meu lugar. As fotografias das minhas costas nuas, das nossas mãos entrelaçadas, dos momentos que uma vez pensei serem sagrados, agora expostas como artefactos de um amor morto.

Reduziu-me a isso. A uma modelo. A uma colaboração artística. Como se o que tivéramos sido pudesse ser catalogado em termos estéticos, despido de alma e significado.

A raiva chegou como onda súbita, quente e violenta. Apertei o copo entre os meus dedos, travando a vontade de o atirar contra a parede.

— Merda — murmurei para a quietude carregada.

Permaneci no chão. O som do mar tornou-se mais presente na pausa que se seguiu. As ondas batiam contra as rochas com uma persistência quase hipnótica, um ritmo antigo que existia muito antes de eu nascer e continuaria muito depois de morrer. Havia algo de consolador nessa perspetiva, a minha dor era insignificante comparada com a eternidade daquele movimento.

E ao mesmo tempo frustrante. O mundo continuava. As ondas continuavam. A vida continuava. E eu estava ali, sentada no chão como uma criança, a lamentar escolhas que fizera há uma década.

Ir embora seria repetir o padrão.

A voz da consciência chegou baixinha, quase sussurrada. Era a mesma que me perseguia há anos, lembrando-me de todas as vezes que escolhera a saída mais fácil. O hospital. O casamento com Leonardo. A carreira em marketing como fuga dos sonhos mais arriscados.

Sempre a preferir segurança à coragem.

Peguei no celular, os dedos a oscilarem sobre a tela. A tentação de fazer uma chamada para as companhias aéreas era quase irresistível. Podia estar num voo de regresso em poucas horas. Voltar para a vida ordeira e previsível que construíra, onde as emoções eram controláveis e o passado permanecia na maior parte das vezes enterrado.

Segundos depois lembrei das palavras de Grace sobre o centro. A situação desesperada. As crianças que dependiam daquele espaço. E, mais importante, a perceção lenta e dolorosa de que ir embora agora seria confirmar tudo o que Chloe sempre pensara sobre mim.

Com um suspiro, procurei pela conversa com Olivia, consultei rapidamente o relógio, calculando mentalmente a diferença do fuso horário. Quase certa de que não a iria acordar, pressionei a opção de chamada de vídeo e esperei.

Tocou três vezes antes de ser atendida.

— Maya! — A sua voz soou animada através do pequeno altifalante. — Como está a correr a... oh.

Esta tinha o rosto inclinado sobre algo que não conseguia ver, uma expressão de concentração enquanto pincelava as unhas com esmalte vinho. Claramente distraída.

— Está tudo bem? — questionei, tentando manter o tom controlado.

— Sim, sim, desculpa. Estava só a terminar isto... — Soprou sobre as unhas, ainda sem observar diretamente o ecrã. — Então como tem corrido a viagem? Vi que ligaste no outro dia, desculpa não consegui atender na altura. Que horas são aí? Não devias estar a dormir?

Não respondi de imediato. Em vez disso examinei o teto, como se as respostas estivessem escritas nos padrões das sombras. A minha demora deve ter despertado a sua curiosidade pois quando voltei para o telefone vi que finalmente erguera a cabeça. O tom caramelo dos seus olhos fixou-se em mim com uma expressão que transitou rapidamente da distração para algo mais atento. Os lábios entreabriram-se ligeiramente enquanto me examinava através da câmera.

— O que aconteceu?

Pousei o vinho ao lado do meu corpo, inspirei fundo, passando a mão pelo cabelo.

— Ela casou — confirmei por fim, as palavras saindo como confissão arrancada à força. — A Chloe. Casou com uma mulher chamada Grace.

Vazio do outro lado.

— E o pior é que eu a conheci. Sem saber quem ela era. Desabafei sobre a Chloe, contei sobre o porquê de ter voltado. Foi ela que me contou sobre a exposição. Ela sabia. Sabia quem eu era e simplesmente não disse nada. — A raiva queimou-me por dentro como ácido.

— Oh, Maya.

— Eu sei. É patético. E o pior é que ter estado naquele lugar rodeada por fotografias minhas, nossas, que significam tanto, transmitem tanto. Expostas como se eu fosse apenas material para a sua visão artística. Vim aqui para encerrar o passado e agora sinto que estou mais enredada do que nunca.

— Maya... — Olivia inclinou-se ligeiramente, e nesse movimento, nessa expressão específica de preocupação misturada com algo mais profundo, fui transportada subitamente para outra noite, outro momento de vulnerabilidade.

O casamento da sua prima. O hotel. Os dois copos de champanhe a mais que bebera durante a receção, a forma como ríamos no elevador, cambaleando ligeiramente uma contra a outra. O quarto que partilhávamos, com as suas duas camas separadas.

Estava sentada na margem da minha cama, a tentar descalçar os sapatos que me magoavam os pés, quando esta se sentou do meu lado. Mais próxima do que o necessário. O vestido verde-esmeralda que usara na cerimónia estava ligeiramente amarrotado, testemunha silenciosa das horas de dança e champanhe, o cabelo desalinhado de tanto girar na pista, no entanto havia algo na intensidade do seu olhar, um brilho que não era apenas do álcool.

— Estavas linda hoje — sussurrou, o som que escapou dos seus lábios numa cadência mais baixa que o habitual, os dedos encontrando os meus para me ajudar com os atacadores complicados.

O toque das suas mãos nas minhas foi elétrico. Ergui o olhar e encontrei-a a estudar-me com aquela mesma expressão que via agora na tela, intensa, carinhosa, carregada de algo não dito. Vi o momento em que se inclinou ligeiramente, o corpo a curvar-se na minha direção, a doçura dourada do seu olhar a descer brevemente até aos meus lábios.

A súbita compreensão do que estava prestes a acontecer atingiu-me como choque elétrico. Levantei-me abruptamente, cambaleando ligeiramente.

— Eu... preciso de água — balbuciei, dirigindo-me apressadamente para o minibar, as mãos a tremer enquanto abria uma garrafa. Quando me virei, Liv tinha-se recomposto, o momento desfeito como bolha de sabão.

Nunca mais falámos sobre isso. Dois meses passaram fingindo que nada acontecera, que não houvera aquele instante onde ambas percebíamos que algo fundamental quase mudara entre nós. Contudo a verdade era que eu sabia, sempre soube, que podia explorar aquela possibilidade. Olivia oferecia-se como território seguro, terra firme onde podia aterrar sem medo de me despedaçar contra as rochas.

Era essa possibilidade que mais me assustava.

Porque onde Chloe fora tempestade emocional que me arrastava para profundidades desconhecidas, Olivia era abrigo silencioso, porto onde podia descansar sem questionar as marés.

Era a diferença entre ser constantemente provocada a crescer e ser aceite exatamente como era.

No entanto não era apenas isso. Olivia merecia mais do que ser o segundo lugar, a escolha segura quando a tempestade se tornava demasiado intensa. Merecia alguém que a escolhesse não por refúgio, mas por querer genuinamente explorar cada camada da pessoa extraordinária que era.

E eu sabia, com a clareza cruel da autoconsciência, que enquanto Chloe ainda habitasse os cantos escuros da minha alma como espectro insatisfeito, nenhuma relação seria justa. Nem mesmo para Olivia, que me conhecia suficientemente bem para perceber quando eu estava presente e quando estava perdida pelas memórias de outra pessoa. Nem para mim, que viveria sempre dividida entre o que tinha e o que perdera.

— Maya? — A sua voz no presente trouxe-me de volta, vi que me observava com preocupação renovada. — Perdeste-me por um momento.

— Desculpa, eu... — Abanei a cabeça, tentando focar-me, lutando contra a culpa que me subia pela garganta como bile. — Foi só muito intenso, estar lá. E depois tem a crise no centro que está prestes a fechar.

Vi-a franzir ligeiramente a sobrancelha.

— E isso afeta-te porque...?

Baixei a cabeça, massageando as têmporas onde uma dor surda se instalara. Os pensamentos agitavam-se como tempestade que se recusa a acalmar, fragmentos de emoção colidindo sem encontrar ordem.

— Porque me pediram para ajudar. Querem que eu as ajude, talvez numa campanha de angariação de fundos. — Fiz uma pausa, sentindo o peso do que vinha a seguir. — Com a Chloe.

O silêncio que se instalou foi denso. Esta absorveu a informação como quem processa uma equação complexa.

— E vais aceitar? — questionou finalmente, o tom cuidadosamente neutro, mas eu conhecia-a suficientemente bem para captar a tensão subjacente.

— Não sei. — A honestidade da resposta surpreendeu-me pela sua crueza. — Ou melhor, de certa forma já aceitaram por mim. Para ser sincera uma parte de mim quer ajudar. O centro significa muito para muita gente, especialmente para jovens que...  — Parei, percebendo que estava prestes a desviar-me do que realmente importava. — Mas trabalhar com ela...

As palavras dissolveram-se no ar entre nós, incompletas, contudo eloquentes na sua hesitação. Como explicar que a simples ideia de passar tempo na presença de Chloe me fazia sentir simultaneamente terror e antecipação?

— Maya — Olivia inclinou-se ligeiramente para a frente, a voz ganhando uma qualidade mais séria, mais íntima. — O que realmente esperas desta viagem, deste reencontro? — A palavra saiu com um peso particular, carregada de um conhecimento que ela nunca verbalizara, porém que sempre estivera ali. — E desta vez, por favor, sê honesta. Comigo. — Uma pausa breve, deliberada, os seus olhos fixos nos meus com uma intensidade que me fez sentir completamente exposta. — E contigo.

A ausência de som estendeu-se entre nós como confissão suspensa. As minhas mãos tremiam ligeiramente, os dedos contraindo-se involuntariamente sobre o colar que ainda usava.

A sua pergunta ecoou na minha mente como sino funeral, forçando-me a confrontar verdades que havia enterrado sob justificações racionais e propósitos nobres.

O que esperava realmente?

Encerramento, dizia a mim mesma. Paz. A capacidade de finalmente virar a página e seguir em frente. Todavia sentada ali, sob o olhar penetrante dela, as mentiras que me contara desmoronavam-se como castelos de areia.

— Eu não sei Liv. — Ruído que escapou dos meus lábios partiu-se, traindo toda a confusão que se agitava dentro de mim como tempestade subterrânea. — Pensei que soubesse. Eu... — comecei, a voz falhando como corda partida. Limpei a garganta, tentando novamente. — Eu acho que uma parte de mim nunca aceitou que acabou. Não da forma como acabou.

As palavras saíram como confissão arrancada à força, cada sílaba pesando como chumbo sobre a minha consciência.

— Continuo a sonhar com ela, a pensar nela — admiti, a voz pouco mais que sussurro vergonhoso. — Não romanticamente, necessariamente. Ou talvez sim, não sei. Mas... conversas que nunca tivemos. Explicações que nunca dei. Desculpas que nunca pedi. É como se houvesse esta ferida que nunca cicatrizou porque nunca foi adequadamente tratada.

Pausei, engolindo o nó que se formara na garganta.

— Ela construiu uma vida inteira sem mim, casou, seguiu em frente, e eu... eu continuo aqui, presa no mesmo lugar de há dez anos. — A amargura tingiu-me a voz como tinta escura. — Patético, não é?

Olivia não respondeu imediatamente. Estudou-me com aquela expressão sem julgamento, mas transmitindo uma compreensão profunda misturada com algo que parecia suspeitosamente próximo da dor.

— Não é patético — afirmou por fim, a voz suave, contudo firme, carregada de uma convicção que me fez questionar se merecia tanta compaixão. — É humano. Mas Maya... — Hesitou, como se pesasse cuidadosamente as próximas palavras numa balança invisível. — Talvez a pergunta não seja se deves ajudar o centro. Talvez não tenhas voltado para fechar um capítulo nem para escrever um novo. Talvez tenhas voltado para finalmente seres honesta sobre o que nunca conseguiste enfrentar.

Fez uma pausa, deixando que as palavras se instalassem entre nós.

— Tens consciência de que pode não existir encerramento que te satisfaça? Que talvez a resposta que procuras seja aceitar que algumas histórias simplesmente terminam sem resolução adequada, sem as conversas salvadoras que imaginamos?

A pergunta atingiu-me como bofetada, não por ser cruel, mas porque era verdadeira. Porque tocava exatamente no centro da minha obsessão, na necessidade desesperada de transformar o final abrupto e doloroso em algo que fizesse sentido, que tivesse propósito, que justificasse todo o sofrimento subsequente.

— E se eu não estiver pronta? — sussurrei, a vulnerabilidade crua na minha voz fazendo-me sentir como criança perdida. — Liv, ela está casada. Com uma mulher que parece ser boa pessoa, que obviamente a ama. Que direito tenho eu de aparecer e complicar isso?

— Há uma diferença entre respeitar a vida de alguém e fugir da verdade sobre os teus próprios sentimentos — respondeu com delicadeza implacável. — Talvez ela mereça saber por que realmente voltaste. E talvez tu mereças finalmente ser honesta contigo mesma, independentemente do resultado.

Observei-a, grata por ter alguém que me conhecia bem o suficiente para ver através da minha confusão, porém que também não tentava simplificar o que era irremediavelmente complexo. Que me oferecia verdade em vez de banalidades consoladoras.

— Tenho medo Liv. — A confissão saiu num sussurro desesperado. — Medo de descobrir que ainda sinto tudo. E medo de descobrir que ela não sente nada. Medo de ser apenas uma aparição de um passado que ela superou completamente.

— Eu sei. — Assentiu, compreensão pura na intensidade do seu rosto atento. — Mas, do meu ponto de vista, parece que vives com medo há demasiado tempo. Talvez esteja na altura de seres corajosa. Nem que seja por uma vez.

A conversa não se estendeu por muito mais tempo. Desliguei a chamada com o coração ainda em tumulto, porém com uma estranha clareza cristalizando-se dentro de mim como gelo que se forma devagar, mas inevitavelmente.

***

O fim de semana escorreu-se numa sucessão de horas vazias, cada momento arrastando-se como mel espesso. Segunda-feira chegou carregada de uma incerteza que se infiltrava pelos ossos como vestígio húmido de algo que nunca se dissipou. Tinha passado os dias a remoer a descoberta do casamento, oscilando entre a vontade de cancelar a reunião e a necessidade perversa de me castigar com a sua presença.

Um email de Grace chegara sábado à tarde, dados do centro, relatórios financeiros, cronogramas de eventos passados. Tudo meticulosamente organizado, como se a eficiência pudesse compensar a complexidade emocional do que estávamos prestes a enfrentar.

Cheguei no local vinte minutos mais cedo, os meus passos ecoando no corredor como metrónomo nervoso. Mia indicou-me a sala de reuniões, um espaço pequeno e funcional onde o aroma de café velho se misturava com o cheiro a madeira encerada. Mesa redonda de carvalho claro, cadeiras estofadas que conheciam dias melhores. Espalhei os documentos sobre a superfície com cuidado excessivo, organizando canetas que não precisavam de ser organizadas, verificando duas vezes o laptop que funcionava perfeitamente.

O som de passos familiares no corredor fez-me gelar. Reconheci o ritmo antes mesmo de a ver, aquela cadência particular, nem demasiado rápida nem demasiado lenta, mas sempre decidida.

A porta abriu-se com um movimento suave, quase receoso.

Chloe entrou carregando dois copos de Starbucks, bolsa com a câmera ao ombro, uma imagem de normalidade doméstica que contrastava violentamente com a tempestade que levantava dentro de mim. O cabelo loiro estava apanhado num rabo de cavalo firme, fios dourados escapando da prisão improvisada. Usava uma camisa branca simples, mangas arregaçadas até aos cotovelos revelando antebraços que eu conhecia de memória, e jeans escuros que lhe alinhavam perfeitamente. Como se o tempo não tivesse ousado tocar-lhe.

— Bom dia — anunciou, fechando a porta atrás de si com o pé, o movimento fluido revelando uma familiaridade com aquele espaço que me escapava.

Sem mais palavras, aproximou-se do lugar onde eu acabara de me sentar, depositando um dos copos ao meu lado. O braço passou a milímetros de distância do meu, o suficiente para sentir o calor familiar que emanava da sua pele, para apanhar um vestígio do perfume que usava, algo novo, mais maduro que o que recordava, porém com notas que ainda me faziam estremecer.

— Trouxe-te um latte. Sem açúcar, leite de aveia, com um extra de caramelo.

As palavras desabaram sobre mim como avalanche. Era exatamente como eu gostava. Cada gole seria uma punhalada revestida de ternura. Ela lembrava-se. O fato de ela se lembrar depois de uma década arrancou um pedaço do peito que nem sabia que ainda existia, uma ferida antiga que pensava ter cicatrizado, contudo que agora sangrava fresca.

— Como é que... — comecei, mas a pergunta morreu na garganta, engolida pelo peso do que aquela memória representava.

Ela não respondeu. Observou-me por alguns segundos, aquele oceano impossível lendo expressões que eu tentava esconder. Depois passou a mão pelos cabelos num gesto que conhecia bem, nervosismo disfarçado de casualidade, e sentou-se do lado oposto da mesa, mantendo a distância máxima possível entre nós.

— A Grace teve um imprevisto — explicou, os dedos a tamborilar nervosamente sobre a madeira. — Esperou que não te importasses que fosse só eu hoje.

— Claro, sem problema — balbuciei, agarrando-me à bebida como uma salvação. O líquido estava na temperatura perfeita, doce na medida exata, um eco de todas as manhãs que partilháramos.

Observou-me enquanto bebia, havia algo no seu olhar que me fez compreender que estávamos ambas a representar, fingindo que esta era uma reunião normal, entre duas pessoas normais, sobre um assunto perfeitamente profissional. Como se a eletricidade que vibrava entre nós fosse apenas imaginação.

A quietude instalou-se pesada como o aroma do café que ainda fumegava. Vi-a passar os dedos pela borda do copo num gesto distraído, aquele azul impossível fixo em qualquer ponto entre nós, como se procurasse palavras que não existiam.

— A Piper tem um talento especial para aparecer nos momentos mais delicados.

A frase caiu como sussurro, contudo o peso estava lá, suspenso no ar entre nós como confissão involuntária. O seu olhar manteve-se firme, porém menos blindado que na praia, como se algo tivesse mudado desde sexta-feira na galeria.

— Sobre o que aconteceu — continuou, a voz cuidadosa como quem atravessa terreno minado — não foi intencional. Nem da parte da Grace, nem da minha. Achei que ela te tinha reconhecido ali, naquele momento. Só mais tarde fiquei a saber que já se tinham encontrado.

Fez uma pausa. Genuína. Vi-a engolir em seco, a garganta contraindo-se ligeiramente.

— Devíamos ter dito algo. Devíamos ter evitado aquele tipo de cena. Tu não merecias ser apanhada desprevenida daquela forma.

O pedido de desculpa chegou-me como onda inesperada, arrastando consigo pedaços de defesa que nem eu sabia que ainda mantinha. A vulnerabilidade pura na sua voz transportou-me instantaneamente para outro lugar, outra época, quando éramos apenas duas pessoas que se encontraram e se reconheceram no meio do caos.

Estudei a forma como me analisava. Se prestasse atenção, conseguia sentir a energia no ar, aquela força magnética que mesmo depois de uma década me continuava a puxar na sua direção, como maré que ignora a resistência das rochas.

— Eu é que devia pedir desculpa — consegui articular finalmente, as palavras raspando a garganta como vidro moído. — Por ter aparecido sem aviso. Por ter invadido a tua vida quando claramente... — Parei, a aliança dela captando a luz da janela como recordação cruel.

A frase ficou suspensa no ar como confissão inacabada. Chloe não respondeu, apenas me examinou com aquela intensão que conhecia bem. A pausa estendeu-se até se tornar quase insuportável, no entanto ela manteve-se imóvel, esperando que eu terminasse uma frase que ambas sabíamos que não podia ser completada.

Finalmente, baixou o rosto para os papeis espalhados sobre a mesa, os dedos tamborilar uma vez mais contra a madeira antes de se recompor.

— Imagino que ela te tenha enviado todas as informações necessárias — começou, a voz recuperando aquele tom profissional. — Se tiveres alguma dúvida, posso ajudar. Apenas me afastei da parte administrativa por este mês para me concentrar na preparação da exposição.

A mudança de assunto foi tão abrupta que me deixou ligeiramente desorientada. No entanto reconheci a estratégia.

Inspirei fundo, forçando-me a acompanhar a sua necessidade de distância emocional.

— Não, está tudo muito claro — respondi, abrindo o laptop e adotando o tom que usava em reuniões corporativas. — Li os relatórios durante o fim de semana. A situação financeira é mais complexa do que Grace inicialmente me transmitiu.

Vi um lampejo de curiosidade atravessar aquele azul impossível, no entanto manteve-se calada, aguardando que eu continuasse.

— O défice operacional trimestral está em crescimento exponencial, principalmente devido à redução de 40% nos subsídios municipais — continuei navegando pelos documentos com a eficiência que desenvolvera ao longo dos anos. — Mas o problema mais grave é a dependência de duas fontes de financiamento principais que representam 65% do orçamento total. Isso cria uma vulnerabilidade estrutural significativa.

O seu corpo inclinou-se ligeiramente para a frente, a atenção completamente focada agora.

— A estratégia que ela mencionou — prossegui, sentindo-me mais firme neste território familiar — a exposição como forma de atrair compradores e reverter lucros em apoio direto ao centro, não é das abordagens mais eficazes.

— Não? — A pergunta saiu-lhe com genuína surpresa.

— Exposições tradicionais têm margens de lucro baixas — expliquei, notando como ela absorvia cada palavra com crescente interesse. — As galerias ficam com percentagens significativas, os custos operacionais são elevados, e o público-alvo que frequenta este tipo de eventos nem sempre está disposto a pagar valores que justifiquem o investimento.

Fiz uma pausa, organizando os pensamentos antes de continuar.

— Uma estratégia mais eficaz seria organizar um leilão exclusivo do teu trabalho — sugeri, observando a sua reação. — Eventos de leilão criam urgência, competição entre compradores, e permitem controlo total sobre percentagens e lucros. Além disso, poderíamos estruturar o evento como uma gala de caridade, atraindo um público com maior poder de compra e disposição filantrópica.

O silêncio que se seguiu foi diferente dos anteriores. Esta estudava-me com uma expressão que não conseguia decifrar completamente, uma mistura de surpresa, respeito profissional, e algo mais subtil que me fez compreender que estava a ser reavaliada.

— É uma sugestão interessante — admitiu finalmente, transmitindo uma nota de admiração legítima na sua voz que me fez sentir simultaneamente orgulhosa e vulnerável.

Comecei a fazer anotações, enquanto deixava que a quietude carregada nos absorvesse. Prestei atenção ao meu caderno relendo o que tinha acabado de escrever tentando garantir que nada fosse esquecido.

— Então, a tua fotografia exposta numa galeria causou escândalo — comentou, o tom aparentemente casual, porém carregado de intenção — mas estás disposta a deixar que seja vendida num leilão?

A pergunta despedaçou-me como vidro contra pedra. O sangue subiu-me às faces numa torrente de humilhação e raiva, contudo forcei-me a erguer o queixo, a enfrentar aquele oceano azul que me dissecava sem piedade. Cravei o olhar no dela com uma ferocidade que me surpreendeu.

— Qual é a diferença entre um leilão e aquela exposição? Corrigi-me se eu estiver errada, mas eu fiquei com a impressão de que todas aquelas fotos estavam à venda. Ah espera — Senti algo dentro de mim endireitar-se, uma vértebra emocional que finalmente encontrava coragem para sustentar o peso da verdade. — A minha opinião não vale de nada. Eu sou apenas a modelo, não é verdade?

A pergunta ficou suspensa entre nós como lâmina afiada. Vi o choque percorrer-lhe o rosto como onda sísmica, primeiro a surpresa nua, depois algo muito mais perigoso. Como se eu tivesse tocado num nervo que ela mantinha cuidadosamente sedado.

Chloe endireitou-se na cadeira, os braços cruzando-se sobre o peito numa barricada defensiva. Aquela imensidão azul estudava-me agora com uma intensidade que queimava. Por um momento, a máscara do profissionalismo escorregou, revelando a mulher por baixo, aquela que eu conhecera, que sabia exatamente como as minhas palavras podiam cortar quando escolhia usá-las.

— Então é isso que pensas? — A voz saiu-lhe baixa — Que te usei como objeto? Que te reduzi a mero material para o meu trabalho? — questionou transmitindo um ligeiro tom de incredulidade— Maya… — começou, no entanto, interrompi-a.

— Não. — A palavra ecoou na sala com uma violência que nos surpreendeu a ambas. — Não uses esse tom condescendente, como se me fosses explicar um conceito que a minha mente limitada não consegue processar.

Algo mudou na sua expressão, enquanto inclinava ligeiramente a cabeça para o lado.

A sala parecia ter encolhido ao nosso redor. O café esfriava intocado nas nossas mãos, os documentos espalhados sobre a mesa transformaram-se em meros adereços de uma peça que nenhuma de nós estava realmente a representar.

— Tu expuseste uma fotografia íntima minha numa galeria pública — continuei, cada palavra medida como pedra colocada com precisão. — Sem me perguntar. Sem sequer me avisar. E agora questionas se estou disposta a deixar que seja vendida, como se a hipocrisia fosse minha e não tua.

Chloe abriu a boca como se fosse responder, contudo fechou-a novamente. Vi a luta interna refletir-se-lhe no oceano impossível dos olhos.

O vazio que se instalou foi denso, carregado de tudo o que não conseguíamos dizer diretamente. Mordeu ligeiramente o lábio inferior. Observei-a processar as minhas palavras, vi o momento exato em que os dedos se contraíram sobre a mesa, depois relaxaram.

— Tens razão — admitiu, e foi a minha vez de me surpreender.

A confissão chegou sem defensivas, sem justificações elaboradas. Simples. Direta. Carregada de um peso que me fez perceber que ela também estava a lutar com camadas de culpa que preferia manter enterradas.

— Eu devia ter-te contatado — continuou, os dedos entrelaçando-se sobre a mesa numa tentativa de conter um tremor que já não conseguia disfarçar completamente. — Antes do evento. Antes de tomar essa decisão.

— Por quê? — A pergunta saiu-me mais crua do que pretendia. — Por que é que não o fizeste?

Vi-a hesitar, como se estivesse a pesar cada palavra antes de a pronunciar. Quando falou, som que escapou dos seus lábios carregava uma fragilidade que me desarrumou por dentro.

— Porque, te procurar — pausou, humedecendo os lábios num gesto inconsciente — Poderia significar abrir uma porta que passei dez anos a tentar manter fechada. — Confessou, o olhar fugiu finalmente do meu, buscando refúgio na superfície polida da mesa.

A honestidade brutal da resposta atingiu-me como soco no estômago. Não era o que esperava ouvir. Esperava defensivas, justificações artísticas, talvez até raiva. Não esta vulnerabilidade crua.

— E mesmo assim expuseste — murmurei, tentando manter a firmeza na voz apesar do turbilhão emocional que se instalara no meu peito.

— Mesmo assim expus — repetiu, voltando a olhar-me diretamente. — Porque precisava de entender se ainda significava alguma coisa. Se aquela memória, aquele momento, se ainda tinha poder sobre mim.

— E tem? — A pergunta escapou-me antes que pudesse travá-la.

O que vi no seu rosto foi devastador na sua transparência. Como se por um instante todas as defesas tivessem caído, deixando-me ver diretamente o interior da tempestade que ela carregava.

— Tu estás aqui. — O som que escapou dos seus lábios tremeu ligeiramente, uma fissura quase impercetível na armadura. — Sentada à minha frente depois de dez anos, questionando as minhas escolhas artísticas como se ainda tivesses direito a opinar sobre a nossa intimidade. O que é que achas que isso me faz?

O ar saiu-me dos pulmões numa expiração desesperada. O peito contraiu-se como punho fechado, e por um momento terrível pensei que fosse desmoronar ali mesmo. Quis atravessar aquela sala e tocar-lhe, não com desejo, com reverência.

Quis ajoelhar-me diante dela e confessar que nunca, nem por um segundo, deixara de me arrepender. Que cada dia dos últimos dez anos fora uma guerra silenciosa contra a saudade. Que viera buscar encerramento, mas descobrira que ainda a amava com a mesma intensidade devastadora de sempre.

As palavras acumulavam-se na minha garganta como chumbo derretido, queimando-me por dentro.

Mantive-me firme na cadeira, os dedos cravados na madeira da mesa até doerem, lutando contra o impulso de me expor completamente. Antes que pudesse encontrar palavras que não fossem tanto confissão quanto destruição mútua, algo começou a vibrar, quebrando aquele feitiço mortal. Chloe procurou o dispositivo no bolso, rapidamente observou a tela.

— Preciso de atender. — Anunciou, a voz ligeiramente embargada.

Levantou-se, inspirou fundo, começando a caminhar para fora da sala, observei-a enquanto esta abria a porta lentamente, contudo antes de sair, voltou-se novamente na minha direção.

— Só para que saibas, se havia algo naquela exposição que não estava á venda era aquela fotografia.

A porta fechou-se atrás dela com um click suave que ecoou na sala como pontuação final de uma frase incompleta. Fiquei ali, suspensa no vazio que ela deixara, as suas últimas palavras ricocheteando no meu peito como pedras atiradas numa superfície calma.

Encostei-me para trás na cadeira, fechando os olhos enquanto tentava organizar o caos de emoções que se agitavam no meu peito. A revelação não me trouxe alívio, trouxe uma confusão ainda mais densa, como nevoeiro que se recusa a dissipar-se.

Afastei os papéis da frente. Precisava de ver a madeira crua da mesa, de regressar a algo tangível que não fosse ela. Mas tudo ali carregava a sua marca. O aroma do café que trouxera, exatamente ao meu gosto. A cadeira ainda morna onde se sentara. O eco da sua voz a confessar medos que guardara durante uma década.

Olhei em volta, mas a sala de reuniões havia-se transformado num campo minado de memórias. Cada superfície refletia pedaços do que tínhamos sido. O som das ondas. O toque dos seus dedos a subir pelas minhas costas enquanto murmurava uma linha de Rilke que nunca cheguei a esquecer. "Ama e perde como quem beija água entre os dedos."

E, no entanto, ela ainda me observava como quem nunca deixou de tentar segurar essa água.

A minha respiração tornara-se superficial, irregular. Precisei de me levantar, de mover o corpo para quebrar o feitiço que se instalara. Dei dois passos na direção da janela, no entanto parei abruptamente. Havia qualquer coisa no reflexo do vidro, no modo como o meu rosto surgia entre camadas de luz e sombra, que me devolveu a pergunta que sempre tentava evitar

Será que realmente alguma parte de mim ainda quer que ela escolha?

A vergonha subiu devagar, viscosa, misturada com raiva. Não dela. De mim. Por estar ali depois de todos estes anos, por ter vindo procurá-la sabendo que estava casada, por me permitir acreditar que podia existir encerramento quando uma parte de mim procurava por recomeço.

Inspirei fundo, tentando desligar-me daquele pensamento perigoso. Tentara convencera-me de que viera buscar paz, encerramento, a possibilidade de perdoar e ser perdoada. Porém sentada naquela sala, com a sua presença ainda a vibrar no ar, compreendi com mais certeza que as minhas motivações eram muito mais complexas e egoístas do que admitira.

Queria saber se ainda significava alguma coisa para ela. Queria confirmar que o que tínhamos vivido não se dissolvera completamente no tempo. Queria, numa parte escura e inconfessável da alma, que ela estivesse tão perdida quanto eu.

Recolhi os documentos espalhados sobre a mesa, organizando-os com cuidado mecânico enquanto a mente processava as camadas de revelação dos últimos vinte minutos.

Aproximar-me ou recuar. Lutar por algo que talvez nunca devesse ter terminado ou respeitar a vida que ela construíra na minha ausência.

Contudo por agora, naquele silêncio carregado de possibilidades perigosas, uma certeza materializou-se, não importava o que decidisse fazer, nada voltaria a ser igual. Para nenhuma de nós.

O relógio na parede continuava a medir os segundos com precisão implacável. Cada tique-taque um lembrete de que o tempo não esperava por ninguém resolver os fantasmas do passado, mas também de que alguns fantasmas se recusam a ser exorcizados enquanto há vida nos corpos que os criaram.

E nós, claramente, ainda estávamos muito vivas.

Três pancadas secas na porta arrancaram-me violentamente do labirinto de pensamentos. O som ecoou na sala como tiro disparado no silêncio, fazendo-me sobressaltar na cadeira.

— Maya? — A voz de Mia filtrou-se através da madeira, carregada de uma urgência contida.

— Entra — consegui articular, a voz saindo mais rouca do que esperava.

A porta abriu-se e Mia apareceu no umbral, o rosto contraído numa expressão que misturava preocupação e constrangimento.

— Desculpa interromper — disse, hesitando no limiar como se não soubesse se devia entrar completamente. — A Chloe pediu-me para te avisar que teve uma emergência e teve de sair.

As palavras atingiram-me como balde de água fria. A chamada telefónica.

— Emergência? — repeti, tentando manter o tom neutro apesar do nó que se formava no estômago. — Está tudo bem?

Mia passou a mão pelos cabelos num gesto de cansaço que me fez perceber que havia muito mais por trás daquelas palavras simples.

— Não sei exatamente — admitiu, entrando finalmente na sala e fechando a porta atrás de si. — Ela só disse que era urgente e que te pediria desculpa mais tarde.

Fiquei a observa-la, procurando sinais, pistas sobre o que poderia ter acontecido. Havia qualquer coisa na forma como evitava o meu olhar direto, como se guardasse informações que não sabia se devia partilhar.

— Isso acontece com frequência? — questionei cuidadosamente, recolhendo os meus documentos numa tentativa de parecer casual.

Mia vacilou, mordendo ligeiramente o lábio inferior. Por um momento pareceu estar a pesar palavras, a decidir quanto podia ou devia revelar.

— Ultimamente sim — confessou finalmente, a voz carregada de uma preocupação genuína que me fez gelar. — Têm surgido situações que exigem a sua atenção imediata.

Situações. A palavra pairou no ar entre nós, deliberadamente vaga, contudo carregada de significado. Notei quando apertou os lábios, como se se arrependesse de ter dito tanto.

— Mas não é nada que... — começou, depois parou abruptamente, abanando a cabeça. — Desculpa, não me compete falar sobre isso.

O silêncio que se seguiu foi denso. Esta na me encarava, simplesmente fixou em qualquer lugar menos em mim, os dedos tamborilar nervosamente contra a coxa numa batida irregular que espelhava a minha própria ansiedade crescente.

— Claro, eu entendo. — Acabei por dizer. — Ela disse quando estaria disponível para remarcarmos? — perguntei, tentando manter alguma normalidade na voz.

— Não especificamente — respondeu. — Mas imagino que entre em contato assim que o imprevisto se resolver.

— Certo, eu vou terminar de arrumar as minhas coisas e já te encontro na receção.

— Claro.

Terminei de reunir os documentos que faltavam, guardei o laptop na mala com movimentos mecânicos. Foi então que reparei na bolsa de Chloe, esquecida na cadeira onde se sentara. O couro negro contrastava com a madeira clara, como uma mancha de tinta sobre papel virgem.

Aproximei-me instintivamente. Abri-a com cuidado, revelando o interior, no centro, a sua máquina fotográfica. O metal frio e familiar sob os meus dedos desencadeou uma avalanche de memórias, manhãs preguiçosas com ela a fotografar a luz a filtrar-se pelas cortinas, o ruído suave do obturador captando momentos que pensávamos eternos.

Suspirei, voltando a fechar a bolsa com reverência. Puxei a alça da minha própria mala e saí da sala, carregando também a dela como relíquia preciosa.

O corredor estendia-se vazio à minha frente, pontuado apenas pelo murmurar distante de conversas que escapavam dos gabinetes. Dirigi-me à receção, esperando encontrar Mia, mas o espaço estava deserto, a cadeira dela ainda a girar ligeiramente, como se tivesse acabado de se levantar.

Foi então que ouvi.

Vozes na entrada principal. Uma delas nitidamente a de Mia, contudo alterada, mais aguda, tensa como corda prestes a rebentar. A outra, masculina, carregada de uma agressividade que me fez acelerar o passo.

— ...sempre com desculpas. Eu quero a tua parte do dinheiro hoje.

Através das portas de vidro, a cena materializou-se diante dos meus olhos. Mia estava recuada contra a parede do edifício, o corpo encolhido numa postura defensiva que falava de medo familiar. Uma figura masculina alta, provavelmente nos seus vinte anos, invadia o seu espaço pessoal, uma mão apoiada na parede junto à sua cabeça, criando uma prisão de carne e osso.

— Por favor, não aqui — ouvi-a sussurrar, o olhar saltitando nervosamente pelo ambiente. — O meu trabalho...

— O teu trabalho? — O tom dele destilava desprezo seco.

Não hesitei. Empurrei as portas e emergi no exterior, os meus passos decididos ecoando no pavimento.

— Com licença — anunciei, aproximando-me com autoridade controlada. — Mia, está tudo bem?

O rapaz virou-se na minha direção, o rosto contraindo-se em irritação. Era atraente de uma forma que provavelmente explorava em seu favor, mas havia algo nos seus olhos que me fez gelar até aos ossos, uma frieza calculada, uma violência mal contida. Quando me viu, afastou-se automaticamente, como animal apanhado em flagrante.

— Já perdemos tempo suficiente — murmurou de forma áspera, a voz carregada de promessas não verbalizadas. — Espero que quando chegares a casa tenhas a tua parte contigo.

Observou-me uma última vez, avaliativo, antes de se afastar com passos largos que pareciam contar os segundos até ao próximo confronto.

Mia permaneceu encostada à parede, o corpo a tremer ligeiramente como folha ao vento. Fiquei ali, mantendo uma distância respeitosa, próxima o suficiente para oferecer apoio, longe o suficiente para não a fazer sentir-se encurralada. O instinto era abraçá-la, no entanto compreendi que naquele momento o espaço era mais valioso que o contato.

— Desculpa — murmurou, os olhos fixos no chão. — Desculpa teres visto isso. Ele... ele não costuma aparecer aqui.

— Não tens de te desculpar — assegurei, tocando-lhe levemente no braço, o contato breve como pergunta silenciosa. — O que quer que esteja a acontecer, não é culpa tua.

Vi-a inspirar fundo, os ombros subindo e descendo numa tentativa de recuperar compostura. O silêncio instalou-se entre nós, não desconfortável, mas carregado de tudo o que ela não conseguia ainda verbalizar.

Consultei discretamente o relógio. Meio-dia e quinze. A hora de almoço oferecia-se como escapatória natural, território neutro onde conversas difíceis podiam ser tidas sem a pressão de espaços formais.

— Bem — comecei adotando um tom casual que mascarava a preocupação — ainda não tive oportunidade de explorar os restaurantes da área. Que tal almoçarmos juntas?

A sugestão ficou suspensa no ar como convite sem pressão. Vi algo mudar na sua expressão, um alívio quase inexistente, como se tivesse estado a afogar-se e eu lhe tivesse estendido uma bóia de salvação disfarçada de simples cortesia.

— Eu... — hesitou. — Não quero incomodar. Tens certeza?

— Tenho — respondi com firmeza genuína. — E além disso, detesto almoçar sozinha. Seria um favor para mim.

A mentira piedosa deslizou facilmente, criando espaço para que ela aceitasse ajuda sem se sentir fardo. Observei-a processar a oferta, a luta interna refletindo-se-lhe no rosto, entre o desejo de aceitar e o medo de se tornar inconveniente.

Finalmente, acenou com a cabeça, um movimento pequeno, porém decisivo.

— Obrigada — sussurrou. — Isso seria... isso seria bom.

Sorri, estendendo-lhe a bolsa de Chloe.

— Podes por favor guardar isto num local seguro? A Chloe deixou na sala de reuniões.

— Sim, claro — respondeu, aceitando a bolsa com cuidado reverente. — Só um minuto, aproveito e aviso que irei sair para almoçar.

— Eu espero.

Observei-a desaparecer no interior do edifício, os ombros ainda ligeiramente tensos. Quando regressou poucos minutos depois, havia algo diferente na sua postura, como se a simples perspetiva de sair daquele ambiente lhe tivesse devolvido uma parcela de controlo sobre a própria vida.

— Pronta? — perguntei.

— Mais do que pronta — respondeu, e pela primeira vez desde que a revera, vi um lampejo genuíno de expectativa nos seus olhos.

Caminhamos lado a lado pelas ruas que se estendiam a partir do centro, o sol do meio-dia filtrando-se através das copas das árvores e criando padrões de luz e sombra no pavimento. O silêncio entre nós era confortável, pontuado apenas pelos sons da cidade em movimento.

— Há um restaurante maravilhoso aqui perto — comentou, indicando uma rua lateral. — A comida é simples, mas o ambiente é acolhedor. E não é caro — acrescentou rapidamente, como se o custo fosse preocupação constante.

— Perfeito — assenti. — Guia-me.

O restaurante revelou-se exatamente como ela descrevera: pequeno, familiar, com mesas de madeira desgastada e o aroma de especiarias a pairar no ar. Uma empregada simpática reencaminhou-nos para uma mesa junto à janela, onde a luz natural criava uma atmosfera calorosa e acolhedora.

Observei o menu rapidamente, optando por uma salada mediterrânica que parecia equilibrada e leve. Mia estudou as opções com mais atenção, finalmente decidindo-se por um prato de frango frito que fez os seus olhos brilharem ligeiramente.

Quando a empregada se afastou com os nossos pedidos, o silêncio instalou-se sobre nós como manta pesada. Mia percorria o restaurante com o olhar, os dedos tamborilar nervosamente sobre a mesa, a inquietação irradiando dela em ondas quase visíveis.

Esperei. Dei-lhe tempo e espaço para encontrar as palavras, para decidir se queria partilhar o peso que claramente carregava. Mas os minutos passaram, e ela manteve-se perdida nos próprios pensamentos, presa num labirinto de ansiedade que não conseguia verbalizar.

— Mia — comecei suavemente, tentando abordar o assunto de forma delicada — o que aconteceu lá fora, se quiseres falar sobre isso, estou aqui para ouvir. Sem julgamentos.

Vi-a contrair-se ligeiramente, como se as palavras fossem golpes físicos. Os olhos desceram para as próprias mãos, que se entrelaçaram sobre a mesa numa tentativa de conter um tremor subtil.

— Ele... — começou, a voz pouco mais que um sussurro — aquele é o meu namorado. Bem, espécie de. É complicado.

Parou, engolindo em seco antes de continuar.

— Partilhamos casa — confessou, cada palavra custando-lhe esforço visível. — Depois que o meu pai foi preso, não tinha para onde ir. A minha mãe faleceu quando eu era mais nova… não tinha condições de suportar sozinha a renda da casa onde morava com ele.

Senti o coração apertar-se no peito. Instintivamente, lembrei-me do quão importante o centro comunitário era para crianças e jovens como ela, em situações precárias, sem rede de apoio familiar, vulneráveis a relacionamentos que prometiam segurança, mas entregavam controlo.

— Lamento muito — disse sinceramente. — Deve ter sido muito difícil lidar com tudo isso sozinha.

Ela acenou com a cabeça, os olhos brilhando com lágrimas contidas.

— O Ryan foi… gentil no início — continuou, a voz ganhando uma qualidade distante. — Ofereceu-me um lugar para ficar quando soube da minha situação. Parecia que finalmente tinha alguém que se preocupava comigo.

A forma como pronunciou a palavra “gentil" carregava camadas de ironia amarga que me fizeram compreender que a bondade inicial havia sido máscara cuidadosamente construída.

— E agora? — questionei cuidadosamente. — Como está a vossa relação?

Vi Mia ficar visivelmente tensa, os ombros enrijecendo como se preparando para impacto. Os dedos apertaram-se sobre a mesa até os nós embranquecerem.

— Ele... — começou, mas parou, lutando claramente com as palavras. — Às vezes fica irritado. Especialmente quando precisa de dinheiro para... coisas. E eu trabalho, tenho um part-time, contribuo com o que posso, mas nunca é suficiente.

Observei-a enquanto falava, notando cada hesitação, cada palavra cuidadosamente escolhida para minimizar uma realidade que provavelmente era muito mais sombria do que admitia. Uma menina de dezasseis anos, órfã, dependente de um homem que claramente a explorava, a situação fez-me sentir uma raiva fria e controlada.

Instintivamente, percebi que uma jovem da sua idade não deveria estar a passar por aquela situação. Não deveria ter de escolher entre abrigo e dignidade, entre segurança e autonomia. Não deveria conhecer a cor do medo nos olhos de alguém que supostamente a protegia.

— Mia — disse suavemente — sabes que não tens de aguentar isso sozinha, certo? Há pessoas que podem ajudar, recursos disponíveis...

Ela ergueu o olhar rapidamente, e por um momento vi pânico genuíno nos seus olhos.

— Por favor, não — sussurrou urgentemente. — Não posso... não tenho outro lugar para ir. E ele não é uma má pessoa, não é. Só fica stressado às vezes.

A forma como se apressou a defender alguém que claramente a maltratava partiu-me o coração. Era o padrão clássico, o ciclo que tantas mulheres conheciam, racionalizar, minimizar, proteger o agressor para proteger a ilusão de segurança.

Fiquei ali, analisando aquela garota que mal saíra da adolescência, tentando processar formas de a ajudar sem a afugentar. A minha mente correu através de possibilidades, abrigos, serviços sociais, linhas de apoio, no entanto todas pareciam distantes e institucionais para alguém que claramente já perdera a confiança nos sistemas que deveriam protegê-la.

Algo em mim suspeitava que Chloe não sabia daquela situação, pois se soubesse já teria intervindo, mesmo sabendo que a resposta seria negativa decidi tentar.

— Mia — comecei cuidadosamente — já falaste com a Chloe sobre isto? Ela parece preocupar-se muito contigo, e talvez...

— Não! — A interrupção foi rápida, quase desesperada. — Não posso. A Chloe já está sobrecarregada com... com certos problemas. Não quero ser mais um fardo para ela.

A resposta despertou uma curiosidade intensa em mim. Havia claramente algo acontecendo na vida da loira que eu desconhecia completamente. Contudo agora não era o momento de indagar sobre isso. Naquele momento o foco era sobre Mia.

O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de tudo o que nenhuma de nós conseguia verbalizar. Foi interrompido pela chegada da empregada, que depositou os nossos pratos na mesa com eficiência alegre, inconsciente da densidade emocional da conversa que interrompera.

— Bom apetite — disse, afastando-se com um sorriso.

Observei-a enquanto esta pegava no garfo, porém notei que as suas mãos ainda tremiam ligeiramente. A comida parecia ter perdido o encanto que tivera quando a encomendara, transformando-se em mera necessidade biológica.

Respirei fundo, tomando uma decisão que talvez fosse impulsiva, mas que se sentia certa.

— Olha — comecei, a voz firme, mas gentil — tenho uma proposta. Aluguei uma casa aqui perto, só para mim. É demasiado grande, e bem, se quiseres, podes ficar comigo até melhorares a tua situação. Sem pressão, sem compromissos. Apenas um lugar seguro onde possas dormir sem medo.

Vi o choque atravessar-lhe o rosto, seguido rapidamente por uma mistura de esperança e descrença.

— Maya, eu não posso... — começou abanando a cabeça vigorosamente. — Mal te conheço. Não seria justo para ti, e eu não tenho como pagar...

— Não estou a pedir pagamento — interrompi suavemente. — Estou a oferecer ajuda. Há uma diferença.

— Mas...

— Não tens de decidir agora — disse, vendo a luta interna refletir-se-lhe nos olhos. — Apenas... pensa nisso, está bem?

Mia acenou lentamente, mas conseguia ver a resistência ainda firmemente instalada. Era demasiado orgulhosa, ou talvez demasiado assustada, para aceitar ajuda tão facilmente. Não a queria pressionar mais, mas também não podia simplesmente deixá-la regressar àquela situação sem lhe dar uma forma de escapar.

Procurei na mala, encontrando uma caneta. Rasguei uma página do meu caderno de notas e escrevi rapidamente — o meu número de telemóvel e o endereço da casa que alugara.

— Toma — disse, estendendo-lhe o papel. — Se mudares de ideias, podes ligar ou simplesmente aparecer a qualquer altura. Não importa a hora. A oferta mantém-se.

Pegou no papel com dedos indecisos, dobrando-o cuidadosamente antes de o guardar no bolso como se fosse documento precioso.

— Obrigada — sussurrou, e havia uma emoção crua na sua voz que me fez compreender que talvez ninguém lhe tivesse oferecido uma saída sem esperar algo em troca há muito tempo.

Continuámos a comer em silêncio relativo, cada uma perdida nos próprios pensamentos. Ela parecia estar a processar a oferta, enquanto eu refletia sobre o que acabara de fazer. Havia algo de impulsivo na decisão, a ao mesmo tempo algo que se sentia profundamente certo.

Quando terminámos, a empregada chegou com a conta, depositando-a discretamente no centro da mesa. Na minha frente vi-a observar o recibo, a expressão contraindo-se ligeiramente ao ver o total. Começou a remexer na carteira, retirando algumas moedas com movimentos cuidadosos, contando e recontando como se cada cêntimo fosse precioso.

Instintivamente, coloquei a minha mão sobre a dela, impedindo-a de continuar.

— Guarda o teu dinheiro, por favor — pedi, retirando o cartão de crédito da carteira. — Eu pago.

— Maya, não — protestou. — Já fizeste demais. Pelo menos deixa-me pagar a minha parte.

— Não — repeti, sinalizando para a funcionaria. — Foi ideia minha almoçarmos juntas. E além disso — acrescentei com um sorriso pequeno — considero isto um investimento na nossa amizade.

Mia olhou-me por um longo momento, como se tentasse decifrar os meus motivos. Finalmente, guardou as moedas, mas conseguia ver a luta interna, entre gratidão e orgulho ferido, entre necessidade e independência.

— Obrigada — disse finalmente, a voz carregada de tudo o que não conseguia expressar.

Enquanto esperávamos que a trans*ção fosse processada, reparei que esta dobrava e redobrar o papel com o meu contato. Sabia que havia acabado de alterar o curso das nossas vidas de forma irrevogável. Não tinha a certeza se fora a decisão certa, porém tinha a certeza de que fora uma decisão humana. E naquele momento, percebi o quão devastadoramente mais simples era salvar outros do que enfrentar os próprios problemas.

Mia precisava apenas de um lugar para dormir, de distância física de quem a magoava. Eu precisava de coragem para desarmar uma bomba emocional que carregava há uma década, de enfrentar a possibilidade de que ainda amava alguém que construíra uma vida inteira sem mim.

A diferença era brutal, a salvação dela era concreta, tangível. A minha exigia que me despisse de todas as defesas que construíra tão cuidadosamente, que admitisse verdades que poderiam destruir-me ou libertar-me. E eu ainda não sabia se estava preparada para descobrir qual das duas.

 

 

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Nem sempre o que procuramos é o que acabamos por encontrar. Às vezes, tropeçamos em verdades que não sabíamos estar à procura. Outras vezes, o que encontramos é apenas o reflexo do que ainda não estamos prontas para enfrentar.

Seja como for, agradeço-te por teres caminhado comigo até aqui.

O próximo capítulo será postado em breve.


P.S. Nas próximas duas semanas estarei a receber familiares em casa, e a minha rotina poderá ficar um pouco mais corrida. Vou fazer o possível para que isso não afete a regularidade das publicações.

Obrigada pela compreensão e, acima de tudo, pela presença. **

 


Comentar este capítulo:
[Faça o login para poder comentar]
  • Capítulo anterior
  • Próximo capítulo

Comentários para 25 - Capítulo 24:
Mmila
Mmila

Em: 06/07/2025

Situações complicadas e conflitos emocionais mais complicados ainda.

Acredito que a partir desse ponto a vida da Maya, Chloe e Mia, terão outros contornos.

Grandes possibilidades de viradas ...


asuna

asuna Em: 12/07/2025 Autora da história
Vamos ver o que acontece nos próximos capítulos.
O novo sai amanhã!!

Obrigada por estares desse lado e continuares a acompanhar :)


Responder

[Faça o login para poder comentar]

Informar violação das regras

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:

Logo

Lettera é um projeto de Cristiane Schwinden

E-mail: contato@projetolettera.com.br

Todas as histórias deste site e os comentários dos leitores sao de inteira responsabilidade de seus autores.

Sua conta

  • Login
  • Esqueci a senha
  • Cadastre-se
  • Logout

Navegue

  • Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Ranking
  • Autores
  • Membros
  • Promoções
  • Regras
  • Ajuda
  • Quem Somos
  • Como doar
  • Loja / Livros
  • Notícias
  • Fale Conosco
© Desenvolvido por Cristiane Schwinden - Porttal Web