O Peso do Azul por asuna
Capítulo 23
A galeria respirava numa quietude expectante quando entrei, os meus passos absorvidos pelo tapete espesso, como se o próprio chão quisesse proteger o silêncio.
O aroma impregnava-se na minha garganta, madeira encerada, papel fotográfico ainda virgem de dedos curiosos, e algo mais subtil que demorei a identificar. Verniz. O cheiro doce e químico de verniz fresco, como se o espaço tivesse sido recentemente remodelado.
"Fragmentos do Invisível: Jovens Olhares sobre a Intimidade Contemporânea"
O título principal pairava sobre a entrada numa tipografia elegante, contudo foi a subsecção que me fez parar, as letras gravadas numa placa menor, douradas sobre fundo negro que captavam a luminosidade como promessas não cumpridas.
"Fragmentos de Proximidade" por Chloe Harper Montgomery
Respirei fundo, permitindo que o ar carregado de expectativa enchesse os pulmões até ao limite. O perfume do ambiente envolveu-me como um abraço hesitante, preparando-me para um encontro que havia adiado durante uma década. As paredes brancas pareciam vibrar com uma energia contida, como se aguardassem que eu me aproximasse.
Não a tinha visto ao entrar. Talvez estivesse noutro patamar, ou ocupada com visitantes, preenchida por toda essa coreografia social que acompanha inaugurações. Parte de mim agradecia essa ausência temporária. Precisava destes minutos para me preparar, para absorver o impacto das suas imagens antes de enfrentar a sua presença física, a sua voz, aquele azul turquesa que ainda me fazia cambalear.
— Estás bem? — A voz de Piper chegou como um sussurro, carregada de uma delicadeza que me fez perceber o quanto o meu estado deveria ser visível.
Acenei com a cabeça, embora não tivesse a certeza se era verdade. As palmas das mãos estavam húmidas, o coração batia numa cadência irregular que ecoava nos meus ouvidos como tambores distantes.
A primeira fotografia atingiu-me como uma confissão muda.
Mãos entrelaçadas contra lençóis amarrotados, captadas em preto e branco uma delicadeza devastadora. O enquadramento era íntimo sem ser invasivo, sugerindo proximidade sem revelar identidades. Contudo eu conhecia aquelas mãos. Conhecia a forma como os dedos se curvavam, a cicatriz quase invisível no dedo mindinho esquerdo onde uma vez me cortara descascando uma maçã na cozinha dos Walsh.
Eram as minhas mãos. E as dela.
O ar saiu-me dos pulmões numa expiração lenta. A ruiva aproximou-se discretamente, os seus dedos tocando-me levemente no braço numa pergunta silenciosa. Abanei a cabeça num gesto tão leve que mal chegou a existir.
Caminhei pela galeria como quem atravessa um cemitério de memórias. Cada fotografia era um pedaço do que tínhamos sido, uma arqueologia visual do nosso amor perdido. Havia imagens que não me recordava, momentos que ela capturara sem que eu percebesse, instantes roubados ao sono, ao riso, à vulnerabilidade mais crua.
Parei diante de uma imagem que me fez estremecer por razões completamente diferentes.
Uma criança, talvez de cinco ou seis anos, sentada de costas numa praia ao amanhecer. O enquadramento mostrava apenas a silhueta pequena contra o horizonte infinito, os ombros ligeiramente curvados para a frente, as pernas cruzadas sobre a areia. Sem rosto, apenas a sugestão de solidão e contemplação numa idade em que isso deveria ser impossível. A luz dourada do nascer do sol transformava os seus contornos numa aura etérea, como se fosse um anjo perdido entre dois mundos.
Havia algo de profundamente melancólico, uma tristeza madura que não deveria habitar um corpo tão pequeno. A forma como os braços se envolviam em volta das pernas, criando um casulo protetor. A inclinação da cabeça, ligeiramente voltada para o mar, como se aguardasse por algo que nunca viria.
Continuei a caminhar, encontrando mais fragmentos desta série infantil dispersos entre as minhas próprias memórias fotografadas. Duas mãos pequenas estendidas em direção a uma janela embaciada, as palmas abertas contra o vidro numa tentativa desesperada de alcançar algo do outro lado. O reflexo fantasmagórico criado pela condensação transformava as mãos em sombras espectrais, etéreas e frágeis como borboletas presas.
Noutra parede, uma imagem que me fez parar completamente, pés descalços de criança sobre tábuas de madeira velha, os dedos pequenos curvados como se agarrassem o chão para não cair num abismo invisível. A madeira estava gasta pelo tempo, cicatrizes e riscos contando histórias que apenas ela poderia decifrar. A luz lateral criava fissuras profundas entre as tábuas, transformando o chão numa geografia acidentada onde cada passo parecia uma decisão corajosa.
E então encontrei-a.
A fotografia estava posicionada no centro da parede principal, iluminada por um foco discreto que a transformava no coração pulsante da exposição. Era diferente das outras. Maior. Mais íntima. Mais devastadora.
As minhas costas nuas, curvadas sobre lençóis desarrumados, o cabelo espalhado como seda clara sobre o tecido escuro. A luz filtrava-se através de cortinas que eu reconheci. A luz criava um jogo de sombras que transformava a minha pele numa paisagem de desejos, cada curva e depressão esculpida com uma precisão que falava de conhecimento íntimo, de mãos que tinham memorizado cada centímetro.
A imagem irradiava uma ternura tão profunda que quase doía. Não era apenas nudez. Era entrega. Era confiança. Era o momento exato do depois, quando os corpos ainda guardam o eco do prazer partilhado e o mundo se reduz ao peso das pálpebras pesadas e ao som sincronizado das respirações enquanto abrandam.
As pernas falharam. Apoiei-me discretamente numa parede próxima, o peito contraindo-se numa mistura de dor e reconhecimento que me deixou sem ar. Ela guardara aquilo. Durante todos estes anos, preservara a memória visual do nosso primeiro momento íntimo como se fosse um tesouro sagrado, um relicário de algo que julgávamos morto.
Piper aproximou-se, a sua presença uma âncora no meio da tempestade emocional que me ameaçava arrastar.
— Maya? — Sussurrou, a voz carregada de preocupação.
Engoli em seco, lutando contra as lágrimas que insistiam em acumular-se no canto dos olhos. Consegui apenas acenar vagamente, incapaz de articular palavras que fizessem sentido.
— Vou pegar uma água. — Murmurou, os seus dedos tocando-me brevemente no ombro antes de se afastar, desaparecendo discretamente entre os outros visitantes.
Agradeci mentalmente, pela forma como compreendeu que eu precisava daqueles minutos sozinha. A parede fria contra as minhas costas tornou-se no meu único suporte enquanto contemplava aquela imagem que me desarmava completamente.
O mundo dissolveu-se enquanto me deixava arrastar pela corrente da memória, pelas ondas do tempo que me puxavam de volta àquele primeiro momento, quando éramos apenas duas pessoas que se descobriam naquele quarto repleto por livros.
Os ruídos do lugar, conversas sussurradas, passos sobre o soalho encerado, o tilintar discreto de copos de vinho desvaneceram-se até se tornarem num murmúrio distante, como se chegassem de outro mundo.
***
Estava sentada na biblioteca, presa num exercício de matemática que não fazia qualquer sentido. Os números embaralhavam-se, deslizavam como areia entre os dedos, e a minha concentração já se desvanecera há muito.
Estava prestes a desistir, ou, no mínimo, a fingir que desistia com certa dignidade, quando o aroma familiar me encontrou. Depois, uma sombra dobrou-se sobre mim e, sem sequer a ver, o meu corpo ficou em alerta. Reconheci-lhe a presença antes mesmo de a ouvir.
— Isso parece doloroso — murmurou uma voz grave, baixa, arrastada com aquela entonação de provocação velada. Os seus dedos pousaram no encosto da cadeira, perto, contudo não o suficiente para tocar.
Ergui o olhar. O cabelo dourado caía-lhe desordenado sobre os ombros. Uma mecha fugidia fazia-lhe sombra sobre o olho esquerdo.
— É matemática. Claro que é doloroso — murmurei, baixinho, para que só ela ouvisse.
Esta inclinou-se, apoiando uma das mãos na borda da mesa, o corpo a curvar-se perigosamente na minha direção. Os meus sentidos aguçaram-se, o leve roçar de tecido contra tecido, a respiração dela, próxima demais da minha nuca.
— Sabes que estás a fazer isto ao contrário, não sabes? — A sua voz deslizou como água morna, o tom misturando ironia e ternura em doses iguais.
Endireitei-me de imediato. Apontei para a folha com fingida frustração.
— Isto é um pesadelo. Como é que a multiplicação de probabilidades conjuntas faz algum sentido? Sinto que estou a tentar traduzir um idioma desconhecido.
Ela sorriu, sentando-se na cadeira do meu lado, tão perto que os nossos joelhos quase se tocavam. Os seus olhos turquesa vaguearam sobre os meus apontamentos com atenção. O calor do seu corpo era uma presença tranquila, porém intensa, como se o mundo inteiro estivesse contido na distância mínima que nos separava.
— Probabilidades conjuntas têm tudo a ver com interseção, sabias? — disse, encostando-se ligeiramente à cadeira. — Com o que acontece quando duas coisas são verdade ao mesmo tempo. Por exemplo, tu estares na biblioteca e eu estar a observar-te com essa expressão adoravelmente perdida.
Revirei os olhos, embora o rubor me traísse.
— Isso não ajuda.
Chloe inclinou-se mais, os seus cabelos dourados roçando-me o ombro, a voz agora próxima do meu ouvido.
— Então pensa assim: se o evento A é tu estares desesperada com estatística, e o evento B é eu aparecer e sentar-me aqui, a probabilidade de ambos acontecerem ao mesmo tempo é extremamente elevada. Porque eu sei onde te encontrar quando estás prestes a explodir.
— Ainda não entendi como isso me ajuda com o exercício cinco. — Murmurei, contudo já sorria, quase contra vontade.
A loira endireitou-se, pegando na caneta. O toque dos seus dedos sobre os meus fez-me prender o fôlego por um segundo demasiado longo.
— Olha — começou apontando para uma linha do exercício, a sua voz próxima demais, envolvendo-me como se fosse tecido quente. — Aqui, tens duas variáveis dependentes. O truque é perceber o que é que uma influência na outra. Não é tão diferente do que acontece na nossa vida. Algumas coisas só fazem sentido quando acontecem em conjunto.
As palavras flutuaram entre nós com mais peso do que deviam, carregadas de uma intimidade que me fez engolir em seco. Observei a linha do maxilar, o contorno da clavícula que escapava por entre os fios dourados do seu cabelo solto, a respiração lenta que fazia o tecido da sua blusa subir e descer num ritmo hipnótico. Desejei que ela não estivesse tão perto. Ou estivesse mais perto ainda.
Fiquei em silêncio, observando-a escrever com movimentos firmes, precisos. A ponta dos seus dedos roçava o papel com delicadeza, quase reverência, como se cada número traçado fosse um segredo depositado ali só para mim. Foi a curva leve do seu pescoço exposta quando prendeu o cabelo atrás da orelha que me fez perder completamente a concentração. A forma como os lábios se entreabriam ligeiramente quando se concentrava, mordendo por instinto o lábio inferior, sem o saber. Havia algo de brutal na beleza dela quando estava absorta, uma intensidade que me deixava simultaneamente fascinada e aterrorizada.
O seu aroma chegava-me em ondas subtis, algo doce e suave. Demasiado próximo. Demasiado real. O meu corpo reagiu antes que a mente conseguisse impedir, um calor líquido desceu pelo meu peito, instalando-se no baixo-ventre com uma urgência que me assustou. Fechei os olhos por um segundo, tentando recuperar o controlo, contudo quando os abri novamente, estava a ser observada.
— Faz sentido agora? — perguntou, os olhos cravados nos meus com uma intensidade que fazia o exercício parecer completamente irrelevante.
Não sei quanto tempo se passou. A minha atenção oscilava entre os números que se alinhavam com súbita clareza e a sua proximidade impossível de ignorar, a temperatura ténue do seu braço quase a tocar no meu, a leveza com que parecia pertencer ali, como se aquele espaço tivesse sido criado especificamente para ela. Cada movimento que fazia enviava pequenas ondas de tensão através do meu corpo, como se ele estivesse sintonizado numa frequência que só ela conhecia.
Chloe prosseguiu com a explicação, o movimento a pronunciar termos como "variável dependente" com aquela suavidade que me fazia esquecer a rigidez matemática da expressão. Fixei-me naqueles lábios, na forma como se moviam com uma precisão que parecia estudada para me desarmar. Como se cada palavra fosse escolhida não apenas para ensinar matemática, mas para me lembrar de quantas formas diferentes ela podia ocupar a minha mente.
O ar entre nós tornou-se espesso, carregado de uma eletricidade que me fazia querer aproximar-me mais e fugir ao mesmo tempo. Senti a pele a arder onde o seu hálito quente me tocava quando se inclinava para apontar algo no caderno. O meu corpo traía-me a cada segundo, reagindo a cada gesto dela com uma intensidade que me envergonhava e me excitava em igual medida.
Quando, num impulso quase involuntário, olhei em redor para me certificar de que ninguém reparava na forma como o meu interior se expunha à sua proximidade, captei o seu sorriso discreto pelo canto do olho. Como se soubesse exatamente o efeito que estava a provocar.
— Maya — sussurrou, e o meu nome na sua voz soou como uma promessa perigosa, como se fosse a primeira vez que alguém o pronunciava verdadeiramente. — Estás a conseguir acompanhar?
Assenti, incapaz de confiar na minha própria voz. Porque a verdade era que não estava a acompanhar matemática nenhuma. Estava completamente perdida na forma como a luz da tarde fazia brilhar os seus olhos, na curva do seu pescoço quando se inclinava sobre o caderno, no fato de que cada respiração dela parecia sincronizada com o bater acelerado do meu coração.
Ela voltou a aproximar-se, fingindo ajustar o meu caderno, porém os seus dedos demoraram-se na página mais tempo do que necessário. Tempo suficiente para eu sentir a vibração ténue da sua pele, para perceber que estava a segurar a respiração, para me dar conta de que naquele momento queria muito mais do que aqueles toques casuais e aparentemente inocentes.
A loira não se afastou. Pelo contrário. Inclinou-se mais um pouco, o cotovelo apoiado na mesa, o queixo descansando na palma da mão, os olhos fixos nos meus com uma intensidade tranquila que me fazia esquecer onde estava.
— Sabes, estava a pensar numa coisa — começou traçando distraidamente círculos invisíveis sobre o tampo da mesa com a ponta da caneta.
— Hmm? — murmurei, tentando manter o foco na folha, embora cada célula do meu corpo se concentrasse nela.
— O teu aniversário é este sábado, certo?
O meu coração tropeçou uma batida.
Assenti devagar.
— Como é que sabes isso? Não era suposto saberes.
Os aniversários nunca foram importantes para mim. Desde pequena que via aquela data como mais um dia no calendário, uma marcação arbitrária. Na verdade, sempre preferi que passasse despercebido. Menos atenção.
Ela deu de ombros, com aquele sorriso de canto que era só dela.
— Digamos que tenho boas fontes. — Fez uma pausa breve, os olhos a deslizarem dos meus para os meus lábios com deliberada lentidão. — E uma memória excelente para datas importantes.
Engoli em seco.
— Estava a pensar — continuou, o tom aveludado — e se viesses passar a tarde lá em casa? Só nós duas. Uma espécie de celebração privada. Sem confusões. Sem multidões. Com uma boa playlist, podemos pedir comida e talvez um ou dois episódios de séries duvidosas que prometo fingir que gosto.
Franzi o sobrolho, tentando disfarçar o sorriso que se formava sem permissão.
— E isso faz parte de algum plano maquiavélico?
Ela inclinou a cabeça ligeiramente, os olhos a semicerrar-se como quem avalia uma jogada estratégica.
— Na verdade, é uma experiência de estatística. Quero testar uma hipótese.
— Qual hipótese? — desafiei, fingindo inocência.
Chloe aproximou-se mais, até o seu hálito me tocar a pele com a suavidade de um segredo.
— Que a probabilidade de te beijar aumenta exponencialmente quando estamos num raio inferior a dois metros, sem interrupções.
As palavras ficaram suspensas entre nós, como partículas de calor. O ar parecia mais denso, saturado de possibilidades.
— Isso não está nos manuais de Estatística. — Sussurrei, sentindo a minha voz trémula a trair-me.
— Não? — sorriu, com falsa surpresa. — Então precisamos mesmo do experimento. Pelo bem da teoria.
Os nossos olhares entrelaçaram-se. E naquele instante, todos os cálculos se tornaram insignificantes. Porque entre variáveis e desvios padrão, havia uma constante imutável, o modo como ela me fazia sentir, como se cada gesto seu desafiasse as fórmulas que eu sempre usara para manter o mundo sob controlo.
— Mas — acrescentei, a voz saindo mais pequena que pretendia — não era suposto haver um jantar? A Piper disse...
O seu sorriso alargou-se, ganhando um ar travesso que me fez suspeitar que havia mais nesta história.
— Ah, isso. — Acenou com a mão como se fosse um pormenor insignificante. — Digamos que houve uma pequena alteração de planos. O jantar ficou para domingo.
— Domingo? — Franzi o sobrolho. — Mas tu não tinhas dito que...
— Maya — interrompeu, inclinando-se ainda mais próximo, a voz baixando para um sussurro conspirativo. — Achas que foi coincidência?
O mundo parou por um momento. Olhei para ela, tentando decifrar o que estava a dizer.
— Tu planeaste isto?
— Não foi fácil — admitiu, o sorriso tornando-se mais suave, quase tímido. — Tive de usar todo o meu charme e habilidade persuasiva com a Piper. E alguns segredos constrangedores que guardei por anos de amizade.
Não consegui conter o riso.
— Chantageaste a Piper?
— Negociei — corrigiu, fingindo indignação. — Há uma diferença. E funcionou. Consegui com que ela falasse com os pais e mudasse o jantar para domingo porque — A voz baixou novamente, os olhos fixos nos meus com uma intensidade que me fez esquecer como de respirar. — Porque queria passar o teu primeiro aniversário aqui só contigo.
As palavras atingiram-me como uma onda morna. Primeiro aniversário aqui. Como se fosse o primeiro de muitos. Como se eu pertencesse a este lugar, a esta vida, a ela.
— Chloe
— Então? — insistiu, a voz agora mais baixa, como se temesse que a resposta quebrasse o feitiço. — Aceitas o convite?
A tensão no meu corpo tornou-se quase insuportável. Cada fibra minha gritava por mais proximidade, por um toque real, por qualquer coisa que aliviasse aquela fome silenciosa que crescia a cada segundo que passava ao lado dela. Era como se o meu corpo tivesse descoberto uma linguagem nova, uma necessidade que eu nem sabia que existia, e agora não conseguia parar de a sentir.
— Vou pensar. — disse primeiro, embora já soubesse a resposta. E depois, antes que o silêncio se tornasse evasivo — Mas a tua teoria tem mérito.
Chloe arqueou uma sobrancelha, divertida.
— Então admites que posso estar certa?
— Admito que as probabilidades não estão contra ti.
O seu sorriso não foi de quem ganhou, mas de quem sabia que já tinha vencido há muito tempo.
***
A campainha ecoou dentro da casa, um som claro que pareceu reverberar através do meu nervosismo. Respirei fundo, esfregando as mãos nas calças, tentando acalmar o martelo que o meu coração se tornara.
A porta abriu-se, todavia não foi Chloe que apareceu.
A mulher à minha frente era elegante de uma forma subtil, o cabelo escuro preso num coque baixo que sugeria sofisticação sem esforço. Os olhos castanhos avaliaram-me com uma curiosidade gentil, e um sorriso genuíno espalhou-se pelo seu rosto quando me reconheceu.
— Tu deves ser a Maya — afirmou, estendendo a mão. — Sou a Lucy, a madrasta da Chloe.
A palavra "madrasta" ainda soava um pouco estranha nos meus ouvidos, carregada de histórias familiares que eu desconhecia. Apertei-lhe a mão, sentindo o calor da sua palma contrastando com o frio súbito que me percorreu.
— É um prazer conhecê-la — consegui articular, tentando não demonstrar a inquietação que me consumia por dentro.
— Lucy, por favor. Nada de formalidades. — Fez-me sinal para entrar, e segui-a através de um corredor decorado com fotografias que captaram a minha atenção imediatamente. Eram imagens artísticas, jogos de luz e sombra que transformavam momentos quotidianos em poesia visual. — Estas são suas? — perguntei, genuinamente fascinada.
— Algumas sim — respondeu com modéstia. — A Chloe herdou o olho artístico de várias fontes, não é verdade?
Parámos na sala de estar, onde uma outra mulher se levantava de uma poltrona, fechando um livro que segurava nas mãos. Era mais alta que Lucy, com cabelos loiros grisalhos presos numa trança lateral, e olhos com aquele mesmo azul impossível que me atravessara o corpo na primeira vez que os vi.
— Maya — disse, aproximando-se com um sorriso aberto. — Finalmente. Sou a Isabel, mãe da Chloe. Ela não para de falar sobre ti.
O meu rosto aqueceu instantaneamente. A forma como disse "não para de falar sobre ti" carregava uma implicação que me fez corar ainda mais.
— É um prazer conhecê-la, dona... — comecei.
— Isabel — interrompeu, com a mesma informalidade de Lucy. — Por favor nada de formalismos. Somos uma família pouco convencional, mas muito unida.
Lucy aproximou-se da esposa, pousando a mão delicadamente nas suas costas numa carícia íntima e natural. O gesto foi tão espontâneo que por um momento esqueci-me de respirar. Nunca tinha visto dois adultos do mesmo sex* demonstrarem afeto de forma tão casual, tão normal.
— Estávamos mesmo de saída — explicou, pegando numa mala pequena que estava pousada no sofá. — Eu tenho um jantar de trabalho. A Lucy tem uma exposição para preparar e depois ainda preciso de rever algumas das provas antes de segunda-feira.
— Vai ser uma daquelas noites intermináveis — murmurou Lucy com um sorriso cúmplice. — Perfeita para deixar vocês as duas em paz.
Corri o olhar entre as duas, o rubor a subir-me pelo pescoço, já elas riram com uma cumplicidade que me deixou ainda mais constrangida.
— Chloe! — chamou Isabel, subindo ligeiramente a voz em direção às escadas. — A Maya chegou!
O som de passos apressados ecoou pelo piso superior, seguido pelo ruído de alguém a descer as escadas de dois em dois degraus. Quando apareceu no final da escadaria, o ar pareceu escapar-se dos meus pulmões.
Vinha descalça, com uns jeans gastos e uma sweater azul-clara demasiado larga nos ombros. O cabelo caía-lhe solto sobre os ombros, ainda húmido como se tivesse acabado de sair do duche. Quando os nossos olhares se encontraram, um sorriso se espalhou pelo seu rosto.
— Chegaste — comentou, como se tivesse duvidado que eu viesse.
— Cheguei — respondi, sentindo-me subitamente tímida na presença das suas mães.
Lucy e Isabel trocaram um olhar que não passou despercebido a nenhuma de nós.
— Bem — anunciou a sua mãe, pegando nas chaves do carro. — Vamos indo. Maya, querida, fica à vontade. E Chloe... — fixou a filha com um olhar maternal que carregava mil advertências não ditas. — Porta-te bem.
Chloe revirou ligeiramente os olhos, um sorriso contido a curvar-lhe os lábios.
— Sempre — respondeu, com aquela neutralidade estudada que dizia tudo e nada ao mesmo tempo.
— Se quiserem pedir algo para comer, fiquem à vontade — acrescentou Lucy, dirigindo-se à porta. — E Maya, foi um prazer conhecer-te. Espero que voltes mais vezes.
— Muito mais vezes — ecoou Isabel, piscando o olho antes de sair.
A porta fechou-se atrás delas, deixando-nos sozinhas num silêncio que de repente se tornou carregado de possibilidades. Chloe permaneceu na base das escadas, as mãos enfiadas nos bolsos traseiros dos jeans, observando-me como se ainda estivesse a decidir o que fazer com a minha presença.
— Então — disse por fim, descendo. — Casa vazia, como prometido.
— As tuas mães são... — comecei procurando as palavras certas.
— Embaraçosas? — sugeriu, já a poucos passos de mim.
— Adoráveis — corrigi. — E muito óbvias.
Ela sorriu com mais intenção, chegando suficientemente perto para que o seu perfume me envolvesse, colocando as mãos na minha cintura puxando-me para ela.
— Elas gostaram de ti — afirmou. — Consegui ver nos seus olhos.
— Como é que tens tanta a certeza?
Esta desviou o olhar por um segundo, apenas o suficiente para parecer honesta, depois voltou a fixar-me.
— Porque normalmente elas fazem... perguntas. Muitas. De todos os tipos às pessoas que convido para cá virem. Contigo foram quase respeitosas.
O peso das suas palavras assentou em mim. "Às pessoas." Quantas teriam sido? E por que razão eu era diferente?
— Tu és a primeira pessoa que elas realmente queriam conhecer — acrescentou rapidamente como se lesse os meus pensamentos.
O meu coração tropeçou numa batida e, sem pensar, abri ligeiramente os lábios para responder, no entanto nada saiu.
— Vá — disse ela, estendendo-me a mão. — Quero mostrar-te uma coisa.
Segui-a até à sala de estar, contudo em vez de se sentar, parou em frente a uma estante de livros que cobria toda uma parede. Tirou um álbum de fotografias e sentou-se no sofá, dando palmadinhas no lugar ao seu lado.
— O que é isso? — perguntei, sentando-me com uma distância que me pareceu prudente. Mas o sofá parecia encolher ao nosso redor.
— A minha infância em fotografias — abriu o álbum. — Pensei que gostarias de ver.
As páginas revelaram uma Chloe sempre perto do mar, sempre em movimento. Luz, água, sal. Sorrisos largos, cabelos ao vento, e olhos que, mesmo quando mais nova, pareciam ver mais do que deviam.
— Esta foi quando aprendi a surfar — comentou, apontando para uma fotografia onde se equilibrava numa prancha, o rosto vincado pela concentração. — A Lucy disse que eu parecia um pinguim a tentar voar.
Ri-me, tentando imaginar aquela sua versão, tão destemida a dominar as ondas.
— E esta — virou a página — foi quando elas se casaram oficialmente.
A fotografia mostrava Isabel e Lucy numa cerimónia simples na praia, com Chloe entre elas, segurando um ramo de flores silvestres e Jayden do seu lado. Todos vestiam branco, e o sol poente pintava tudo em tons dourados.
— Parece perfeito — murmurei, quase sem dar por isso.
— Nem sempre foi assim — respondeu, a voz a adquirir uma gravidade suave. — Houve alturas difíceis. Antes da Lucy. Mas elas ensinaram-me que o amor pode ter muitas formas. E que família é quem escolhemos, não apenas quem partilha o nosso sangue.
Fechou o álbum com um gesto leve, no entanto definitivo. Como se me tivesse deixado entrar até onde conseguia e agora bastasse. Não fiz perguntas, apenas a observei enquanto a sua atenção se mantinha fixa no objeto em suas mãos.
— Obrigada por partilhares isto comigo — sussurrei.
— Obrigada por estares aqui — respondeu, os seus olhos encontrando os meus. — Honestamente, não tinha a certeza que virias.
— Por quê?
Ela encolheu os ombros, de repente parecendo mais nova, mais vulnerável.
— Às vezes tenho a impressão de que assusta as pessoas. A intensidade... a minha. Das minhas mães. A nossa forma de ser família. Há quem ache demais.
— Não me assusta — disse, e percebi que era verdade. — É diferente do que conheço, mas é belo.
Ficou em silêncio. No entanto os seus olhos, aquele azul líquido que nunca desviava, estudavam-me como se procurassem a origem exata da minha sinceridade. O espaço entre nós encolhia com cada respiração.
Inclinou-se. Sem pressa, sem promessas. Como se esperasse a resposta do meu corpo. O calor da sua pele antecipou o toque antes de ele acontecer. Quando aconteceu, foi apenas um dedo a desenhar a linha da minha mandíbula, leve como brisa. Fechei os olhos. Senti-a inclinar-se. A sua respiração encontrando a minha pele num sussurro sem som.
E então, os nossos lábios tocaram-se.
Um beijo que se desdobrou como se já existisse desde sempre e só agora se tivesse tornado real. Aprofundou-se gradualmente, camada por camada, como ondas que ganham força. Senti as suas mãos nos meus cabelos, os dedos entrelaçando-se entre os fios. Um arrepio percorreu-me. O ar entre nós tornou-se mais denso. Mais íntimo. Mais inevitável.
Quando nos afastámos, foi por falta de ar. No entanto os olhos não se afastaram. O rosto dela, corado, parecia mais exposto que nunca. O meu também, imagino. Ficámos assim, ofegantes, a meio caminho entre o que era seguro e o que ainda não sabíamos como nomear.
— Maya?
— Sim?
— Queres ver a minha biblioteca pessoal? — A pergunta saiu casual, porém havia algo nos seus olhos, uma profundidade que transformava a sugestão em algo muito mais significativo. — Fica no meu quarto.
O meu coração bateu mais rápido, mas sem pressa. Apenas com a consciência de que algo estava a mudar. Não lá fora. Aqui. Em mim.
— Eu... — comecei, sem saber como terminar.
— Só se quiseres, sem pressão — acrescentou rapidamente, porém havia uma vulnerabilidade na sua voz que me partiu e reparou ao mesmo tempo. — Ou então podemos apenas ver um filme.
Os meus olhos desceram até à sua boca, para os lábios que me distraíam desde que a conhecera, para as suas mãos, voltando ao seu rosto.
— Quero — sussurrei, a voz saindo mais rouca que pretendia. — Leva-me até aos teus livros.
Ela pegou na minha mão, entrelaçando os nossos dedos, e guiou-me para fora da sala, pelas escadas. Cada passo parecia uma pequena eternidade. Os degraus de madeira rangiam de leve sob os nossos pés. No entanto era o silêncio entre nós que mais fazia barulho.
Quando chegámos ao seu quarto, parei na soleira da porta, momentaneamente esquecendo a respiração. As paredes estavam cobertas de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, repletas de livros organizados com um cuidado que revelava verdadeira devoção. A luz filtrava-se através de cortinas de linho branco, criando um ambiente dourado e íntimo.
— Virginia Woolf, Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski — murmurei, aproximando-me das estantes como se estivesse num santuário. Os meus dedos deslizaram pelas lombadas, reconhecendo os títulos.
— A minha mãe influenciou-me bem — comentou, encostando-se à ombreira da porta, braços cruzados, olhos a acompanharem cada gesto meu. — Algumas paixões são hereditárias.
Voltei-me para ela, com um livro nas mãos.
— E tu... aprendeste a transformar desejo em linguagem.
Ela sorriu. Um daqueles sorrisos que não pedem resposta porque já sabem o efeito que causam.
Retirei um outro exemplar das prateleiras, o peso familiar do livro aquecendo-me as palmas. Era uma edição antiga, com páginas amarelecidas e anotações nas margens escritas numa caligrafia que reconheci como sendo dela.
— Leste isto tudo? — perguntei, folheando as páginas marcadas.
— Pelo menos três vezes — respondeu, aproximando-se. — Cada vez que o leio, encontro algo novo. Como se as palavras crescessem comigo.
— É magnífico — murmurei, tocando com adoração as páginas, genuinamente impressionada. — Toda esta coleção é como ter uma biblioteca pessoal de sonho.
— Podes deitar-te e ler — sugeriu, indicando a cama com uma naturalidade que contrastava com a tensão elétrica que pairava entre nós. — Ficarás mais confortável.
Vacilei apenas um segundo antes de me acomodar sobre o colchão, deslizei para trás, até ficar com as costas apoiadas contra a cabeceira almofadada. O livro abriu-se numa página qualquer, contudo as palavras dançavam diante dos meus olhos sem fazer sentido. A presença de Chloe transformava-se numa distração tão intensa que ler se tornava impossível.
Ela deitou-se do meu lado com uma facilidade medida. O colchão cedeu com o seu peso e a respiração dela tornou-se parte do ambiente, pairando entre nós. Fingia interesse numa revista que pegara da mesinha, mas não a lia. Eu sabia. Sentia o seu olhar percorrer-me com a precisão de quem não está apenas a observar, mas a memorizar.
— Interessante o capítulo? — murmurou ao fim de longos minutos, a voz rouca de diversão mal contida.
— Fascinante — menti, sem conseguir fixar numa única linha.
Num movimento fluido e inesperado, estendeu o braço e retirou-me o exemplar das mãos. O gesto foi suave, contudo decidido, como quem remove um obstáculo desnecessário entre duas forças magnéticas.
— Chloe — protestei, tentando manter a compostura, o tom mais tímido do que convincente.
Ergueu-o acima da cabeça, aquele sorriso provocador dançando nos lábios como uma promessa perigosa.
— Tens de o conquistar.
O que se seguiu foi uma brincadeira que rapidamente se transformou em algo mais intenso. Tentei alcançar o livro, enquanto ela o desviava com graciosidade felina. Aos poucos, os nossos corpos foram-se aproximando, o jogo transformando-se numa dança de proximidade crescente.
Estiquei-me sobre ela, tentando alcançar o exemplar que mantinha fora do meu alcance, mas em vez disso encontrei-me numa posição que fez o mundo parar. Uma das minhas pernas ficara entre as suas, metade do meu corpo cobrindo o dela, as nossas faces a escassos centímetros de distância.
Foi então que vi. As íris que antes pareciam água clara escureceram, o azul-turquesa transformando-se em oceano noturno. A respiração tornou-se irregular, pude sentir o calor que irradiava do ponto onde os nossos corpos se tocavam.
A consciência da nossa posição atingiu-me como uma onda. O livro, esquecido, escorregou das suas mãos e caiu no chão com um som abafado que ecoou no silêncio carregado do quarto.
Sem me desviar daquela imensidão, ergui a mão até ao seu rosto. Os meus dedos traçaram a linha da sua bochecha, desceram pela curva da mandíbula, observei-a render-se ao meu toque. Segundos depois Chloe moveu-se sob mim, como se a dança tivesse apenas mudado de ritmo. Quando dei por mim, estava de costas, e o seu peso sobre mim não era esmagador, mas firme, como se tudo tivesse encontrado o seu lugar.
O seu cabelo caiu em redor do meu rosto como véu, aquele turquesa profundo fixo em mim com uma intensão que me desarmou.
— Diz-me para parar se for demasiado — murmurou com uma ternura embargada, quase implorante, como se a coragem de continuar dependesse do meu silêncio.
Mas eu não queria silêncio.
Queria isto.
Queria-a assim, real, presente, vulnerável sobre mim.
A sua sweater roçava-me os braços, o tecido macio com o calor do seu corpo ainda preso nas fibras. A ponta dos seus dedos desenhou o contorno do meu quadril, por cima da roupa, e mesmo assim o meu corpo estremeceu. Os jeans ásperos encontraram o tecido justo das minhas calças, criando uma fricção ténue entre nós, um sussurro de contato que bastou para o meu coração perder o compasso.
Inclinei a cabeça, os nossos rostos agora a milímetros. A respiração dela embaciava a minha pele. E então, sem mais perguntas, os nossos lábios voltaram a encontrar-se.
Desta vez, com decisão.
Foi com a ponta dos dedos que me encontrou o rosto, puxando-me mais para si, senti-a ajustar-se sobre mim, as pernas de cada lado da minha, a pressão do seu peso distribuída com uma intimidade estudada.
O seu quartil moveu-se uma vez. Senti o atrito dos tecidos entre nós como faísca a rasgar a tensão. Soltei um som baixo, involuntário. As suas pálpebras cerraram-se por um instante, e quando as abriu, havia neles uma promessa que transmitia que aquilo era só o início.
As mãos deslizaram pelos meus braços, encontrando as minhas. Entrelaçámo-las.
Por um momento, ficámos assim, mãos unidas, corpos colados apenas pelos tecidos, mergulhadas no reflexo uma da outra. Era tão simples e tão intenso que me fez compreender que a intimidade não estava apenas no contato físico, mas naquela entrega mútua, naquele reconhecimento silencioso.
Inclinou-se e beijou-me novamente, desta vez com uma doçura que contrastava com a urgência crescente entre os nossos corpos.
O seu toque explorou os meus braços, dedos a desenharem padrões invisíveis na pele, subindo e descendo com uma delicadeza calculada que me deixava expectante. Cada gesto era uma pergunta silenciosa, cada pausa uma oportunidade para eu dizer não.
Os seus lábios desceram pelo meu queixo, encontrando o ponto sensível logo abaixo da mandíbula. Quando os senti ali, quentes e húmidos, um arrepio percorreu-me a espinha. A língua dela traçou uma linha delicada até ao meu pescoço, fazendo o meu corpo arquear involuntariamente.
— Chloe... — suspirei, o nome escapando-se-me numa exalação entrecortada.
Senti o seu sorriso tocar-me junto ao maxilar antes de me morder suavemente o lóbulo da orelha. A sensação enviou uma nova onda de calor direta ao meu centro, fazendo-me gem*r baixinho.
— Gosto dos sons que fazes — murmurou contra o meu ouvido, a voz rouca e carregada de algo que me fez tremer.
Os seus lábios voltaram aos meus, no entanto desta vez o beijo era diferente. Mais profundo. Mais necessário. Senti os seus dentes mordiscarem levemente o meu lábio inferior, puxando-o com uma suavidade que fez o estômago contrair-se. Quando se afastou, vi nos seus olhos um desejo que espelhava o meu próprio.
— Estás a provocar — acusei, tentando soar indignada, contudo falhando completamente.
— Estou? — perguntou com falsa inocência, enquanto as suas carícias desciam pelo meu pescoço até ao início da clavícula. — E estás a gostar?
Não consegui responder com palavras. Em vez disso, puxei-a para mim, os nossos lábios voltando a encontrar-se com uma urgência que me surpreendeu. Desta vez, fui eu quem aprofundou o beijo, a língua a procurar a dela numa dança que parecia instintiva.
As suas mãos deslizaram até aos meus ombros, polegar a traçar círculos pequenos na pele exposta pelas alças da camisola.
Em vez de me despir imediatamente, os seus dedos continuaram a brincar com o tecido, erguendo-o apenas uns milímetros antes de o deixar cair novamente. O movimento repetitivo era simultaneamente frustrante e excitante, fazendo-me perceber que ela sabia exatamente o efeito que tinha sobre mim.
— Com pressa? — perguntou, sorrindo ao ver a expressão no meu rosto.
— Não é pressa — murmurei, tentando manter algum controlo sobre a minha voz. — É... necessidade.
Vi o prazer contido a desenhar-se no rosto, e finalmente, com uma deliberação que me estava a matar, começou a erguer a camisola. Centímetro por centímetro, revelando primeiro a minha barriga, depois as costelas, fazendo uma pausa quando chegou ao top que cobria os meus seios.
— Podes mudar de ideias — comentou suavemente. — A qualquer momento.
— Não vou mudar — respondi, surpreendida pela firmeza na minha própria voz. — Quero isto.
Foi só então que deixei com que removesse completamente as peças, deixando-me nua da cintura para cima sob o seu olhar admirativo.
Quando os tecidos desapareceram, o ar frio do cómodo deslizou sobre os contornos expostos. Tremi ligeiramente, mais por vulnerabilidade do que por frio, e ela notou.
— Estás bem? — questionou, a sua atenção procurando a minha.
— Estou — respondi, e era verdade. Havia nervosismo, sim, porém também uma sensação de estar exatamente onde deveria estar.
Ela engoliu em seco, enquanto observava a nudez dos meus seios. As suas mãos pousaram-se delicadamente sob eles, o primeiro contato arrancou-me um suspiro. O toque era leve, explorativo, os polegares traçando círculos que enviavam ondas de calor pelo meu corpo.
— És linda — sussurrou, com uma admiração genuína que me fez acreditar nelas.
Ergui as mãos até à sua roupa, dedos trémulos a procurarem a barra, o tecido macio entre os meus dedos como uma fronteira prestes a desaparecer. Chloe percebeu, e ajudou-me, com um gesto calmo, sem pressa, deixando que fosse eu a orientar. Quando finalmente a peça se soltou do seu corpo, vi-a. Por inteiro.
E durante um segundo, só olhei.
A luz filtrada pelas cortinas desenhava-lhe a pele em tons de ouro pálido. O contorno dos seios, a clavícula acentuada, o ventre a subir e descer com a respiração. Ela era bela, não no sentido exato da palavra, mas como uma visão que nos deixa sem fôlego.
Toquei-a, então.
Primeiro com os olhos. Depois com as mãos. As palmas deslizaram pela curva dos seus flancos, sentindo a textura quente da sua pele, aproximei-me até que os nossos peitos se roçaram. A sensação dos seus seios contra os meus era suave e aquecida, criando um contato íntimo que me fez perceber como os corpos femininos podiam se encaixar com uma perfeição natural.
Voltou-se a mover ligeiramente, criando um atrito subtil através dos tecidos que ainda nos separavam da cintura para baixo. O movimento enviou uma onda de prazer através do meu corpo, concentrando-se exatamente onde mais precisava de ser tocada.
— Chloe... — gemi baixinho, o seu nome escapando-se-me como uma prece.
— Diz-me o que queres — sussurrou contra o meu pescoço, o sopro quente fazendo-me estremecer.
— Quero... quero sentir mais — consegui articular, surpreendida pela minha própria coragem.
Com movimentos cuidadosos, deslizou as palmas pela minha barriga até ao cós da minha calça. Quando assenti, esta desapertou o botão, arquei o corpo ajudando-a, esta retirou a peça com cuidado, beijando cada centímetro revelado com uma devoção crescente.
Quando fiquei apenas com o pedaço de tecido que me impedia de ficar completamente nua diante dela, senti uma vulnerabilidade que era simultaneamente aterrorizante e libertadora.
Vi-a explorar cada nova extensão do meu corpo, acariciando, a sua respiração desenhando um trilho enquanto descia os lábios sobre a minha textura. Os seus dedos desceram até aquela última peça que ainda me cobria, hesitaram um segundo e esperaram. O compasso desordenado do peito, o silêncio tenso, o gesto a pedir permissão sem a verbalizar.
Inclinei o rosto até ao dela, deixei que me visse. Que visse o sim nos meus olhos.
Ela a retirou como quem desembrulha algo frágil.
Nunca me tinha exposto assim para alguém, nunca tinha permitido que me vissem tão completamente.
— Tu és perfeita — expôs, a voz embargada de emoção. — Absolutamente perfeita.
O modo como me estudava, não com luxúria, mas com reverência, fez-me sentir verdadeiramente bela pela primeira vez na vida.
Quis vê-la da mesma forma, com gestos igualmente cuidadosos, transpareci as minhas intenções, esta não recuou apenas permitiu, retirei-lhe a roupa restante, explorando cada nova parte de pele que se revelava. A sua palidez luminosa contrastava belamente com os cabelos dourados, toquei-a como se estivesse a descobrir uma nova linguagem.
Quando voltou a deitar-se sobre mim, a proximidade crua entre nós foi avassaladora. Cada ponto onde nos tocávamos enviava pequenos choques de prazer através dos meus nervos.
— Vou devagar — prometeu, os olhos fixos nos meus. — Se quiseres que pare, em qualquer momento...
— Não vou querer — sussurrei.
Sorriu posicionando novamente, uma das suas pernas entre as minhas. O seu corpo moveu-se nesse intervalo íntimo, estabeleceu um ritmo constante, o quadril balançando suavemente contra mim. A pressão era exatamente o que precisava, nem demasiado forte nem demasiado leve, a cada movimento, no ponto certo originando efeito imediato. Uma pulsação quente renasceu entre as coxas, um latejar que já não conseguia ignorar.
O meu corpo enrijeceu sob o dela, não por medo, mas por puro instinto.
Ela puxou os quadris para trás, uma fração apenas, e voltou a pressionar-se contra mim. Senti tudo. A fricção entre nós, a humidade a formar-se, o calor a espalhar-se como fogo. Os meus olhos fecharam-se, as pálpebras a tremer, mordi o lábio para não me perder ali mesmo.
Agarrei-me às suas costas, os dedos afundando-se na pele quente. Chloe gem*u contra a minha boca, e esse som despertou em mim algo novo, uma vontade feroz de lhe dar o mesmo que ela me estava a dar. Comecei a mover em resposta, criando um ritmo conjunto que nos fez gem*r em uníssono.
— Assim — sussurrou, a voz rouca. — Exatamente assim.
O prazer construía-se em camadas, cada uma mais intensa que a anterior. Sentia crescer dentro de mim algo que não conhecia, uma tensão deliciosa que ameaçava explodir. Entreguei-me completamente àquelas sensações, deixando que o meu instinto reagisse. O mundo contraiu-se até sermos apenas nós duas, movendo-nos numa dança íntima.
— Ch–Chloe... — consegui murmurar, a minha voz uma súplica rouca, um aviso à beira do colapso.
— Eu sei — sussurrou. — Está tudo bem.
E foi com essas palavras, com a certeza da sua presença, que me permiti finalmente cair naquela onda de prazer que me varreu completamente. O orgasmo atravessou-me como relâmpago, fazendo-me ver estrelas enquanto me segurava nela como se fosse a única coisa real no mundo.
Ficámos assim por longos minutos, respirações a acalmarem-se gradualmente, corpos ainda entrelaçados, suor a secar sobre a pele aquecida. O quarto voltou a adquirir contornos, as prateleiras de livros, a luz dourada das cortinas, o mundo real a reclamar o seu lugar.
***
— Se eu soubesse que vinhas, teria sido mais seletiva na escolha das fotografias.
A voz arrancou-me violentamente do passado. Virei-me com movimentos de quem desperta de um transe, encontrando Chloe a poucos metros de distância. A mesma mulher que encontrara na praia no dia anterior, agora envolta noutra pele, noutra luz. Um conjunto preto colava-se-lhe ao corpo como uma segunda intenção, realçando uma maturidade que lhe emprestava uma beleza quase cruel na sua precisão. O cabelo, preso com descuido estudado, emoldurava os traços que eu começava a reaprender, lentamente, com o cuidado de quem toca em vidro rachado.
Segurava uma taça de vinho tinto que tremia quase impercetivelmente. O líquido escuro oscilava dentro do cristal, refletindo as luzes difusas da galeria. O aroma adocicado do Syrah misturava-se com o odor discreto do espaço e o eco distante de passos e murmúrios, vozes abafadas de conversas que não nos pertenciam.
A aliança no seu dedo captava a luz com insistência, um brilho metálico que se recusava a ser ignorado. A lembrança física de uma vida que construiu longe de mim.
— Mais seletiva? — A pergunta saiu-me mais controlada, lembrando-me das suas palavras na praia "Começa por não esperar muito de mim." Um dia não era suficiente para curar uma década de silêncios, porém era suficiente para me fazer compreender que ela já não era a adolescente que amara. — Referes-te à fotografia das minhas costas nuas? Aquela em particular pareceu uma escolha muito deliberada.
Aquela intensidade turquesa avaliou-me por alguns segundos, como se não esperasse a minha franqueza. Vi o movimento subtil na curvatura dos seus lábios, e um sentimento de déjà vu percorreu o meu corpo. Era exatamente a mesma expressão que fazia quando eu finalmente explodia, quando a minha paciência chegava ao fim e eu me impunha. Como se, de alguma forma perversa, isso a agradasse.
— Deliberada — repetiu, o tom a roçar o divertido. — Interessante escolha de palavras.
Aproximou-se, os passos silenciosos sobre o pavimento polido ressoando como um compasso contido. A galeria, embora viva, parecia suspensa no tempo. Parou diante da imagem, o olhar fixo como se tentasse vê-la de fora pela primeira vez.
O silêncio entre nós era denso. A textura do ar mudara. O cheiro do vinho, agora mais presente, misturava-se com o leve aroma do seu perfume. Algo que me conhecia por dentro.
— A luz vem da esquerda — murmurou, quase distraída, como se analisasse uma imagem que não lhe pertencesse. — Final de tarde, julgo eu. As sombras denunciam isso. As cortinas filtram o calor, mas há um tom dourado, quase líquido, a recortar os teus ombros.
Pausou. Sorveu um gole do vinho com a lentidão de quem arrasta o tempo consigo. O vidro tocou os lábios tingindo-os de vermelho escuro.
— Tecnicamente, é perfeita. Mas não foi apenas isso que me fez escolhê-la.
— Então o que foi? — Dei um passo em frente, aproximando-me da imagem que me expunha de forma tão íntima. — O que te fez pensar que era aceitável expor a nossa intimidade numa galeria pública? Que direito tinhas de transformar os meus momentos mais vulneráveis em... arte?
A última palavra saiu-me carregada de uma amargura que não esperava sentir.
A sua mandíbula contraiu-se. Chloe virou-se na minha direção com aquela lentidão estudada que eu conhecia tão bem, como se cada movimento fosse coreografado para máximo impacto.
— Este não é o local ou momento apropriado para termos esta conversa.
— Não? — Inclinei-me ligeiramente para a frente, baixando a voz para que apenas ela ouvisse. — Então quando será apropriado? Agora eu fiquei intrigada. Quando é que pudemos falar sobre a forma como me transformaste numa peça de museu?
Vi o choque das minhas palavras refletir-se nos seus olhos. Por um momento, a sua compostura desapareceu completamente.
Antes que pudesse responder, uma outra voz surgiu.
— Desculpem interromper.
Ambas nos virámos, senti Chloe dar um passo quase inexistente para longe de mim.
Uma mulher elegante, de meia-idade, aproximava-se com um sorriso polido e inquisidor. Vestia um blazer cinzento claro, estruturado como um escudo, e segurava um pequeno caderno de capa preta contra o peito.
— Sou jornalista do Arts Weekly — anunciou, estendendo a mão na direção da loira. — Sarah Chen. Estava a admirar o seu trabalho e gostaria muito de fazer algumas perguntas sobre esta série em particular.
Chloe hesitou. Vi-a olhar para mim por uma fração de segundo.
— Claro — disse finalmente, recompondo-se com uma facilidade que me lembrou dolorosamente de como sempre conseguira esconder as suas emoções quando necessário. — Seria um prazer.
— Ótimo. — Sarah abriu o caderno, a caneta suspensa no ar. — Esta fotografia específica — apontou para a imagem das minhas costas — tem uma qualidade quase cinematográfica. Pode falar sobre o processo criativo por trás dela?
Senti o corpo contrair-se instintivamente. O vestido, que até então mal sentia sobre a pele, tornou-se apertado na cintura, como se o tecido se enrijecesse junto ao estômago. O ar que respirava sabia a metal. A voz da jornalista parecia ecoar de um lugar distante, como se estivesse a falar sobre outra pessoa. Sobre outra intimidade. Estar ali, prestes a ouvir Chloe dissecar artisticamente um momento tão íntimo, era uma tortura que não tinha previsto.
Esta inspirou devagar. O seu olhar encontrou o meu brevemente antes de se desviar, e naquele momento vi algo que me partiu, ela estava tão desconfortável quanto eu.
— É — começou, e a pausa breve soou como uma rachadura. — É uma exploração da vulnerabilidade. O momento em que alguém se permite ser completamente visto. Sem máscaras. Sem defesa.
A caneta arranhava o papel com um som seco, ritmado. Quase hostil.
— Fascinante — murmurou Sarah, sem levantar os olhos. — E a modelo? Houve alguma colaboração no conceito, ou foi puramente sua a visão artística?
Modelo.
A palavra caiu como vidro no chão.
Senti o estômago contrair-se, o calor subir-me à garganta com a violência de um vómito emocional. O corpo falava antes de mim, os ombros enrijeceram, os dedos cerraram-se. Estava ali, parada diante da imagem do meu corpo, reduzida a função. A ferramenta de uma ideia. Um corpo exposto ao olhar de outros, sem nome, sem voz.
Chloe vacilou. A taça tremendo ligeiramente na sua mão.
— A modelo — proferiu com cuidado. — Digamos que a colaboração foi muito pessoal.
O seu olhar voltou ao meu, como quem tenta pedir desculpa sem ruído. Como quem sabe que já disse demasiado, ou não o suficiente.
— Ah, entendo. — A outra sorriu, com cumplicidade fácil. — Relações pessoais podem realmente adicionar camadas de autenticidade ao trabalho. E estas outras peças da série? Seguem a mesma abordagem íntima?
— Sim, todas exploram diferentes aspetos de conexões interrompidas.
A frase atingiu-me sem misericórdia. Não como uma facada. Como algo mais subtil, mais cruel.
Conexões interrompidas.
Era assim que ela nos via.
Não como amor. Ou perda. Apenas matéria-prima. Conceito. Arte.
Um riso curto escapou-me antes que o pudesse conter. Nem sequer o reconheci como meu. Soou mais como um soluço travado a meio. Senti os olhares girarem na minha direção, contudo não os sustentei. O meu corpo já se movia antes que a minha mente tivesse decidido.
Afastava-me.
Um garçom passou por mim com uma bandeja de bebidas. Sem pensar, retirei um copo. Gin, talvez, o líquido fresco escorreu-me pela mão como uma lembrança. Continuei a andar.
Procurei o vermelho vivo da cabeleira de Piper no meio da multidão, entre flashes de vestidos de seda, vozes graves e o tilintar de copos.
Porém antes de a encontrar, uma mão pousou no meu ombro. Suave. Firme.
O toque despertou-me uma esperança instantânea. Instintivamente achando que era Chloe virei-me bruscamente, sendo surpreendida pelo pequeno sorriso de Grace.
— Maya — disse com aquela voz etérea que reconheci imediatamente, embora agora carregasse uma pontada de preocupação. — Que bom te encontrar aqui.
O desapontamento foi tão súbito que me deixou ligeiramente tonta. Tentei recompor-me, forçando um sorriso que não passou da superfície.
— Grace. — A voz saiu-me mais rouca que esperava. — Não esperava encontrar-te aqui.
Ela estava vestida de forma mais formal, com um vestido azul-marinho simples que realçava a palidez da sua pele, mas o lenço delicado ao pescoço permanecia, como uma assinatura visual.
— Estás bem? — perguntou, os olhos estudando o meu rosto com uma atenção que me fez perceber o quanto o meu estado devia ser visível. — Pareces abalada.
Passei a mão pelos cabelos, tentando encontrar palavras que não expusessem demasiado.
— Sim. Quero dizer. Ver as fotografias... — Pausei, engolindo o nó que se formara na garganta. — É mais difícil do que esperava.
Esta assentiu com uma compreensão que parecia ir além das minhas palavras. Os seus olhos desviaram-se discretamente para onde Chloe continuava rodeada por visitantes e jornalistas, depois voltaram para mim com uma expressão pensativa.
— Sabes — disse hesitante, como se estivesse a tomar uma decisão no momento — lembrei-me da nossa conversa sobre trabalho. Sobre marketing.
Franzi o sobrolho, confusa pela mudança de rumo.
— Sim?
— Bem, não mencionei isto na nossa última conversa, porque o foco estava em ti. Fiz questão de não o desviar. Mas agora, vendo-te aqui, pensando na situação do centro...
Fez uma pausa, os dedos brincando nervosamente com o lenço
— O centro está numa situação muito grave, Maya. — A sua voz ganhou uma urgência que me forçou a prestar atenção. — Perdemos o nosso principal financiador há seis meses. Temos fundos para mais dois meses, talvez três, apenas para o básico. Para ser sincera temos passado cada mês com bastante dificuldade.
A gravidade da situação atingiu-me com força inesperada. Não era apenas uma crise financeira. Era a possível extinção de um lugar que significara tanto para tantas pessoas. Para a Chloe. Para crianças como a Mia. Para mim, que encontrara ali uma nova versão minha.
— Que tipo de apoio perderam?
— Praticamente tudo. Financiamento para os programas, manutenção do espaço, salários da equipa reduzida que ainda temos.
Senti algo apertar no peito. O centro comunitário. Aquele lugar. A possibilidade de o perder era como se uma parte essencial da minha própria história estivesse sob ameaça de extinção.
— A Chloe tem uma ideia — continuou, a voz ganhando esperança. — Uma campanha integrada. Marketing, angariação de fundos, envolvimento da comunidade. Mas precisamos de alguém com experiência real, alguém que compreenda tanto a parte técnica como o impacto emocional.
Parou, estudando a minha reação.
— Desculpa a pergunta Maya, mas em que área do marketing é que trabalhas exatamente? É mais voltado para o digital? Corporativo?
— Trabalho na área educacional, mas também tenho experiência em área comercial.
Os seus olhos iluminaram-se com um interesse genuíno que me apanhou desprevenida. Foi como se tivesse ativado um interruptor, transformando aquela mulher etérea numa pessoa subitamente focada e determinada.
— Já que essa é a tua área. Imagino que escolas e universidades enfrentem constantemente questões de financiamento, não é verdade? Têm de equilibrar responsabilidade social com sustentabilidade económica. — Grace hesitou, como se receasse estar a pedir demasiado.
Era verdade. E mais do que isso, esse era exatamente o tipo de situação complexa que me desafiava e entusiasmava profissionalmente. O tipo de problema que exigia criatividade, estratégia e uma compreensão profunda tanto das partes interessadas como da comunidade.
Instintivamente o meu cérebro, mesmo em meio ao tumulto, começou a desenhar hipóteses, estratégias, soluções, contudo forcei-me a travar aquelas ideias, pois colocar-me nessa posição também era perigosa. Envolver-me significaria aprofundar ainda mais a minha ligação a este lugar, a este passado que eu viera enfrentar e, esperava, deixar para trás.
— Grace... — comecei, no entanto ela interrompeu-me com um gesto suave da mão.
— Sei que é pedir muito. Especialmente a alguém que está aqui apenas temporariamente. — A palavra carregava um peso específico. — Não estou a pedir uma decisão agora — continuou, a voz recuperando aquela qualidade etérea. — Apenas se pudesses pensar nisso. Talvez dar algumas sugestões, apontar-nos na direção certa. Qualquer coisa que possa ajudar. Esta exposição, por exemplo, foi pensada com esse fim, não apenas para mostrar o talento da Chloe, mas para atrair compradores, criar visibilidade, e reverter o lucro das vendas em apoio direto ao centro. Foi a forma mais imediata que encontrámos para tentar salvar o que ainda pode ser salvo.
Olhei através da galeria, as obras nas paredes ao nosso redor contavam histórias de ligações perdidas, de fragmentos de intimidade preservados na eternidade da arte. E ali estava eu, a ser convidada a ajudar a preservar um dos lugares onde essas ligações haviam começado.
— Posso pensar nisso — anunciei finalmente, as palavras saindo antes que pudesse ponderá-las completamente.
Grace sorriu, e pela primeira vez desde que a conhecera, o sorriso chegou verdadeiramente aos olhos.
— Obrigada, Maya. Isso significa mais do que podes imaginar. — A sua voz soou com uma leveza que contrastava com o peso da conversa que acabáramos de ter, no entanto captei algo mais nos seus olhos, uma compreensão que transcendia as palavras que trocáramos.
Antes que conseguisse articular uma resposta adequada, uma presença familiar materializou-se na minha visão periférica. Chloe aproximava-se com aquele passo controlado que eu reconhecia bem, nem demasiado rápido nem demasiado lento, apenas medido.
A expressão no seu rosto mantinha-se cuidadosamente neutra, quase serena, porém aquele azul penetrante que eu conhecia melhor que o meu próprio reflexo oscilava entre mim e Grace com uma nitidez inquietante, como quem tenta ler entrelinhas de uma conversa que ainda não foi totalmente revelada.
A outra virou-se para a loira com um movimento fluido, e por um instante fugaz vi algo atravessar-lhe o rosto.
Chloe parou a poucos passos de nós. O zumbido da galeria parecia mais distante agora, como se o mundo tivesse abrandado só naquele pequeno círculo. Os seus olhos encontraram primeiro os de Grace, um olhar que durou apenas um segundo, mas que carregava camadas de comunicação silenciosa que eu não conseguia decifrar completamente.
— Ah, chegaste no momento certo — anunciou Grace com entusiasmo genuíno, embora eu captasse uma nota quase impercetível de cuidado na sua voz. — A Maya e eu estávamos a conversar sobre o centro.
Observei-a enquanto processava aquelas palavras. O seu rosto permaneceu impassível, contudo algo na sua expressão se estreitou, um franzir quase inexistente que qualquer outra pessoa talvez não captasse, no entanto que eu reconheci de imediato. Era aquele recuo silencioso característico, aquela forma de tatear o terreno antes de entrar que sempre antecedia os seus momentos de maior atenção.
— O centro? — repetiu lentamente, agora fixa em mim, como se tentasse reconstruir, peça a peça, uma ligação que não sabia que existia.
A outra entrelaçou os dedos com uma delicadeza estudada, vi-a trocar um olhar rápido com Chloe, tão breve que quase passou despercebido, mas carregado de uma intimidade que me apertou o peito de forma inesperada.
— Sim — respondeu, a animação na voz agora temperada com algo mais cauteloso. — Estava a explicar-lhe a situação em que nos encontramos. E ela ofereceu-se para ajudar.
Entreabri os lábios, revertendo mentalmente a nossa conversa, tentando lembrar-me do exato momento em que tinha confirmado, de fato, que iria ajudar. Não encontrei, pois apenas tinha aberto a possibilidade sem realmente aceitar.
A presença de Chloe fixou-se novamente em mim, fazendo-me esquecer totalmente a linha de raciocínio. Não havia julgamento. No entanto também não era neutro. Era ponderado. Demasiado ponderado.
— A Maya? — A forma como disse o meu nome soou quase como uma pergunta, carregada de surpresa genuína misturada com algo mais complexo.
Grace observou a troca com uma atenção crescente. A forma como os seus lábios se contraíram ligeiramente traiu uma tensão súbita.
— Ela tem experiência na área de marketing — explicou, a voz adquirindo um tom profissional, mas agora com uma qualidade mais medida. — Pensei que, talvez vocês pudessem colaborar no projeto de sustentabilidade.
Não respondeu de imediato. A pausa esticou-se até se tornar desconfortável, vi o momento exato em que se compôs a expressão, como quem escolhe uma resposta entre várias opções possíveis. Os seus olhos encontraram brevemente os de Grace novamente, uma troca silenciosa que durou menos de um segundo, mas que transmitia volumes, desta vez despertando ainda mais a minha curiosidade.
— Claro — declarou finalmente, a voz baixa e medida. — Faz sentido procurar ajuda profissional.
A palavra demorou-se um pouco mais do que o necessário. Não havia desdém, mas havia surpresa. E algo cauteloso que apenas eu pareci captar completamente. Grace, porém, franziu ligeiramente o sobrolho, como se captasse as correntes subterrâneas sem conseguir nomeá-las.
— Na verdade — continuou Grace, e vi como escolhia as palavras com cuidado cirúrgico — achei que seria uma combinação interessante. Tu conheces o centro, a comunidade, as necessidades reais. Tens a sensibilidade artística e a ligação emocional ao trabalho. A Maya traz a perspetiva técnica, o planeamento estratégico.
A frase caiu como uma peça mal encaixada num puzzle antigo. Senti o peso da atenção de Chloe sobre mim, porém algo na forma como a outra falava, com aquela delicadeza excessiva, aquela cautela que não existia antes fez-me perceber que ela compreendia mais do que deixava transparecer.
Grace virou-se na minha direção, e por um momento os seus olhos encontraram os meus com uma intensidade que me fez gelar. Havia ali conhecimento. Reconhecimento. E uma espécie de desafio silencioso.
— Não sei se isso seria prudente — murmurei finalmente, sem conseguir evitar que a minha voz traísse a incerteza que me corroía. Observei Chloe, procurando algo nos seus olhos que me pudesse guiar. — O que achas?
Esta manteve-se imóvel por um segundo a mais. Quando finalmente respondeu, o olhar que me devolveu não foi duro nem ferido, contudo intransponível. Um muro de serenidade construído ao longo dos anos.
Grace observava-nos com uma atenção que transcendia a curiosidade profissional. Havia algo de doloroso na forma como a sua atenção se moviam entre nós, como se estivesse a presenciar o despertar de algo que preferia que permanecesse adormecido.
— Acho — começou por fim, com aquele encolher subtil de ombros que eu recordava bem, e uma curva ensaiada nos lábios que não encontrou reflexo na profundidade do seu olhar — que seria interessante.
E nesse interessante, havia tudo. O que foi. O que restou. O que ainda não sabemos nomear.
Grace deixou cair o foco para as próprias mãos, e por um instante a compostura habitual esmoreceu. Havia algo de vulnerável naquele gesto, uma fragilidade que contrastava com a força silenciosa que emanava dela. Quando ergueu novamente a cabeça, o sorriso que nos dirigiu era genuíno, porém carregado de uma melancolia que me apertou o coração.
— Então está decidido — expôs suavemente. — Podemos reunir-nos na próxima semana para discutir os detalhes.
Porém as suas palavras soaram como alguém que acabara de aceitar participar numa dança cujos passos desconhecia, sabendo apenas que alguém que amava estava prestes a recordar-se de como dançar com outra pessoa.
Antes que qualquer uma de nós pudesse responder, uma voz familiar cortou o ar carregado.
— Maya! Finalmente te encontrei.
A ruiva aproximou-se com dois copos nas mãos, o cabelo ligeiramente desarrumado e uma expressão de alívio genuína no rosto. Ainda trazia nas faces o rubor de quem tinha corrido pela galeria à minha procura.
— Pensei que tinhas desaparecido — comentou, estendendo-me um dos copos.
Aceitei a água, agradecendo-lhe com um aceno silencioso. O líquido fresco desceu pela garganta como um alívio.
Piper observou-nos às três, uma expressão divertida a formar-se no seu rosto enquanto processava a cena diante dela.
— Este é definitivamente um trio que não esperava encontrar junto — comentou com aquele sorriso de quem faz uma piada para desanuviar o ambiente, mas que, sem saber, estava prestes a incendiar tudo.
Franzi a testa, absorvendo aquela observação que parecia solta demais para o momento. Olhei para Chloe, a sua postura reagiu antes dela, mudando ligeiramente de posição, o braço recuando como se afastar-se um centímetro pudesse esconder uma década. Depois voltei-me para Grace, que desviou o olhar para o chão, a expressão demasiado neutra para ser confortável.
Foi então que reparei.
O dedo de cada uma. As alianças.
Tão evidentes. Tão expostas. Como é que não tinha visto antes?
O ar escapou-me do peito como se me tivessem dado um murro invisível. A frase de Piper, que inicialmente me parecera apenas uma provocação ligeira, ressoou agora com a gravidade de uma revelação.
Trio.
Não era sobre a conversa casual. Era sobre nós três. A dinâmica. A tensão que ela captara sem compreender completamente.
Elas.
Casadas.
A troca de olhares íntimos. A cautela medida na escolha das palavras. O modo como Grace falava sobre Chloe com um afeto que ia muito além do profissional. Estava tudo ali. E eu, eu não quis ver.
— Maya? — A voz da ruiva perdeu o tom leve, encheu-se de dúvida. Só então percebeu o que o meu rosto já gritava. — Estás bem? Ficaste pálida de repente.
Olhei para ela, sem saber que expressão tinha, no entanto devia ser o suficiente. Vi o momento exato em que a compreensão a atingiu como um relâmpago.
— Oh, merd* — sussurrou, levando a mão à boca. — Desculpa. Eu achei que, que tu sabias. A sério que isso não surgiu durante a conversa? — a incredulidade na sua voz era tão crua quanto sincera, como se não conseguisse conceber que uma verdade tão óbvia para ela tivesse permanecido oculta para mim.
O silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Chloe não disse nada, o rosto uma máscara de controlo absoluto. Grace continuava dispersa fixa no chão. E Piper, Piper parecia ter percebido tarde demais o estrago que fizera.
— Eu… esta tarde, eu preciso de ir embora — murmurei, sem reconhecer a minha própria voz.
Contudo antes de conseguir mover-me, senti o peso de todos aqueles olhares sobre mim. Grace, com uma expressão de dor genuína no rosto. Chloe, imóvel como estátua. E Piper, com os olhos cheios de remorso por ter sido a mensageira involuntária de uma verdade que eu ainda não estava preparada para enfrentar.
— Vemo-nos na segunda-feira? — questionou Grace, a voz baixa, carregada de uma incerteza que contrastava com a leveza habitual.
Acenei, ou pelo menos acho que acenei. E depois, sem olhar para trás, obriguei as minhas pernas a moverem-se, como se sair dali fosse a única decisão que ainda tinha ao meu alcance.
E, claro, para coroar tudo com a elegância que o momento pedia, eu meio que me tinha comprometido a trabalhar com as duas.
Fim do capítulo
Às vezes, a vida toma um estranho rumo no sentido da ironia.
Obrigada a quem continua desse lado.
Até ao próximo ***
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asuna Em: 06/07/2025 Autora da história
Pois é...
Agora vamos descobrir como, ou se, elas vão conseguir trabalhar juntas