O Peso do Azul por asuna
Capítulo 22
Levantei-me, caminhei até à bancada. O café escorreu pela pia num riacho escuro. A máquina sibilou enquanto preparava uma nova dose, o som cortante ecoando no espaço como um lamento mecânico.
Encostei-me ao balcão de mármore, a pedra gelada contra as minhas costas penetrando através da camisola até me morder a pele. A ruiva permanecia imóvel na mesa, a respiração dela o único som além do gotejamento regular. Cada gota que caía media o tempo que eu precisava para encontrar coragem.
— Ela ligava-me todos os dias.
A frase saiu como confissão arrancada, carregada do peso de quem carrega culpas antigas enterradas tão fundo que já faziam parte dos ossos. O vapor da máquina subiu entre nós como fumo de incenso numa igreja vazia.
— Por vezes duas vezes. Acordava de madrugada para coincidir com a minha noite. Mandava fotografias. — A voz falhou-me, rachada como porcelana antiga. — Das crianças do centro, de livros que sabia que me fariam sorrir, do pôr-do-sol que conhecia suficientemente bem para saber que me faria suspirar com saudade.
O café terminou de escorrer. Segurei a porcelana entre as palmas, deixando que o calor me atravessasse os dedos como uma âncora ao presente, uma forma de me manter inteira enquanto voltava àqueles meses que preferia manter selados.
— E eu? — Engoli em seco. O líquido quente queimou-me a garganta, contudo não tanto quanto a memória. — Tentava corresponder. Mas estava... estava a despedaçar-me por dentro.
Pausei. Como explicar aquela sensação de estar a quebrar lentamente, célula por célula, até não restar nada reconhecível?
— O hospital com aquele cheiro a estéril que grudava na roupa, na pele, no cabelo. Que me seguia para casa como uma sombra. Os tratamentos que se prolongavam até de madrugada. As noites passadas numa cadeira do lado da cama dele, as minhas costas curvadas em ângulos impossíveis, os músculos gritavam protestos que eu ignorava. As contas que se empilhavam como montanhas intransponíveis, cada envelope branco uma nova humilhação.
Uma pausa. Longa. O tipo de quietude que engole palavras antes de nascerem, que mastiga verdades até as transformar em feridas.
— E ela, do outro lado do mundo — a voz tremeu-me — tentando manter-me firme com palavras através de uma tela. Como se o amor pudesse atravessar oceanos e curar fraturas que nem eu conseguia expressar.
— Quando começou a ficar insustentável? — A questão de chegou suave, cuidadosa.
O vapor embaciou-me a vista por um instante. Pisquei devagar, tentando organizar a cronologia do desastre.
— Na sua primeira internação grave. — As palavras saíram como oração dolorosa, cada sílaba extraída do lugar onde guardava as memórias que mais doíam. — Três semanas a viver entre corredores brancos e máquinas que apitavam a cada segundo. Não conseguia atender as chamadas. Não havia energia nem espaço mental para mais nada que não fosse sobreviver àquele pesadelo clínico.
Bebi um gole. O líquido queimou-me a língua, mas foi bem-vindo, uma dor física que me distraía da emocional.
— As mensagens acumulavam-se como dívidas emocionais. Cada notificação não vista era mais um peso sobre o peito. Mais culpa a fermentar no escuro. — Fechei os dedos em volta da xícara até os nós ficarem brancos. — Quando finalmente consegui falar com ela...
As palavras morreram na garganta, engolidas por aquela memória específica. A ruiva esperou, paciente como uma confessora experiente que já ouviu todas as variações possíveis de arrependimento humano.
— Ela percebeu que te estavas a afastar. — Completou. Não era pergunta. Era diagnóstico cirúrgico.
— Claro que percebeu. — Soltei uma risada seca, sem humor, cortante como vidro partido. — A Chloe sempre teve essa capacidade. Ver através das mentiras, mesmo as que contamos a nós mesmas. Percebeu que eu já não estava presente mesmo quando falávamos. Mesmo quando dizia que a amava, uma parte de mim tinha-se desligado. Tinha emigrado para um lugar onde a dor era mais suportável.
A admissão ficou suspensa entre nós.
— A pior parte? — Continuei, a voz mais baixa, como se sussurrar tornasse a confissão menos real. — Ela nunca reclamou. Nunca me fez sentir culpada. Simplesmente... começou a dar-me espaço. Espaço que eu nunca pedi explicitamente, mas que secretamente implorava.
— E tu deixaste que isso acontecesse.
— Sim. — A palavra saiu, cortando tudo o que restava de justificações. — Porque era mais simples do que admitir que não conseguia ser duas pessoas ao mesmo tempo. Filha e namorada. Cuidadora e apaixonada. Era mais fácil escolher uma e deixar a outra morrer lentamente. — A respiração prendeu-se-me no peito. — Foi então que simplesmente deixei de responder. Deixei de atender. Deixei… que o vazio falasse por mim.
Piper cruzou os braços, a cabeça inclinada. Estudava-me como quem decifra um puzzle complexo, procurando as peças que faltavam para completar o retrato da minha cobardia.
— E o Leonardo? — A pergunta veio afiada, precisa. — O teu ex-marido. Quando entrou na história?
A questão atingiu-me como um punho no estômago. Pousei a bebida no balcão, precisando de ambas as mãos para me segurar. O mármore gelado queimou-me as palmas.
— A sua família era conhecida do meu pai. Idolatrada, até. — Comecei, a voz mais rouca, como se as palavras me arranhassem a garganta ao sair. — Uma família devota, com os princípios certos, o tipo de linhagem que era mencionada com reverência.
Fiz uma pausa, os dedos a traçarem distraidamente o rebordo da porcelana, como se pudessem mapear a memória e encontrar um caminho menos doloroso através dela.
— Ele era alguns anos mais velho. Lembrava-me dele dos encontros do grupo de jovens. — A sua imagem materializou-se na minha mente, nítida e indesejada. — Era aquele rapaz que carregava as cadeiras sem que ninguém pedisse, que citava versículos com precisão, mas sem parecer vaidoso. Sempre com uma palavra amável, um sorriso medido. Prestável. Equilibrado. O tipo de presença que tranquilizava os adultos. Que fazia os pais contemplarem com admiração e os pastores assentirem com aprovação.
Nas primeiras semanas depois do regresso, eu vivia numa espécie de descanso impossível. Acordava de madrugada para falar com Chloe, quando os fusos horários finalmente se alinhavam, escondendo-me no quarto. De dia, transformava-me na filha que levava o pai às consultas, que memorizava diagnósticos médicos, que sorria aos enfermeiros e fingia compreender prognósticos que me aterrorizavam.
Mas naquela representação. Pequenas falhas começaram a aparecer principalmente quando a exaustão se acumulou. O meu pai notava. Claro que notava.
Leonardo apareceu numa dessas tardes, depois de uma consulta particularmente devastadora. O meu pai descansava numa cadeira de rodas emprestada, a respiração trabalhosa, as mãos trémulas segurando papéis com instruções médicas que nenhum de nós sabia interpretar.
— Maya — chamou-me, a voz chegando como alívio inesperado no meio do caos clínico. — Posso ajudar com isso.
Vestia o jaleco branco impecável, com aquela autoridade natural. Em vinte minutos, tinha organizado tudo o que eu lutara para compreender durante horas. Qual enfermeira procurar, que porta abrir.
— És uma bênção, meu rapaz — disse o meu pai, com um brilho que não via há dias. — Uma verdadeira bênção.
Aquela palavra ficou suspensa no ar. Como se o Leonardo não fosse apenas uma pessoa útil, mas uma resposta divina.
Desviei a atenção para longe, como se as palavras me acendessem uma lembrança que preferia manter desfocada.
— O meu pai gostava dele. Muito. — A confissão custou-me. — Quando voltei para casa, ele apresentou-nos formalmente. Leonardo não era o médico designado para o seu tratamento, contudo trabalhava no mesmo hospital. Visitava-o com frequência, trazia jornais, explicava-nos os termos clínicos que eu não entendia com aquela paciência infinita que parecia demasiado perfeita para ser real.
Lentamente, ele tornou-se parte da nossa rotina. Aparecia nas consultas mais difíceis, oferecendo-se para traduzir relatórios complexos. Trazia comida caseira quando sabia que eu não tinha tempo para cozinhar. Ficava até tarde quando o meu pai tinha crises, ajudando-me a navegar pelas emergências médicas que me deixavam em pânico.
A gratidão transformou-se em dependência sem que eu percebesse. Cada gesto de bondade era uma pequena dívida que se acumulava. Cada vez que me salvava de uma situação impossível, eu sentia-me mais presa numa rede de obrigações que não sabia como desfazer.
— É um bom homem — dizia o meu pai, sempre que estamos sozinhos. — O tipo de homem em quem se pode confiar. Que sabe o valor da família.
As palavras vinham carregadas de subtexto que eu fingia não compreender. Mas compreendia. Cada elogio era uma sugestão. Cada comentário sobre o seu carácter era um convite disfarçado para que eu considerasse possibilidades que eu não queria.
Foi numa dessas noites, depois de ter ficado até tarde para nos ajudar com mais uma crise médica, que a pressão se tornou insuportável.
— Este rapaz tem uma visão muito madura sobre o matrimónio — comentou o meu pai, depois de Leonardo se despedir. — Compreende que o casamento é mais do que sentimentos passageiros. É compromisso diante de Deus.
A palavra 'matrimónio' ficou suspensa no ar como armadilha invisível.
— Pai...
— É um jovem de carácter, Maya. — Prosseguiu, como se eu não tivesse falado. — Alguém que conhece o valor da responsabilidade. Da estabilidade. Qualidades que se tornam cada vez mais importantes quando... — parou, a mão tocando instintivamente no peito, a dor lhe visitava com frequência crescente.
— Não precisas de arranjar um namorado para mim, muito menos um marido.
A firmeza na minha voz surpreendeu-nos a ambos. Era raro eu o contestar diretamente, especialmente sobre assuntos que este considerava da sua jurisdição pastoral.
— Não estou a arranjar nada — respondeu, porém, no seu tom eu conseguia perceber que era exatamente essa a sua intenção. — Estou apenas a observar. E a notar que talvez precises de orientação. De alguém que te ajude a encontrar o caminho certo.
— Que caminho é esse?
— O caminho da retidão, Maya. — As palavras saíram-lhe com aquela autoridade inabalável que conhecia desde criança. — O caminho que Deus traçou para ti. Às vezes, quando estamos demasiado próximos de uma situação, não conseguimos ver claramente. Precisamos da sabedoria de quem nos ama.
Houve algo naquele momento que me fez lembrar da conversa que tivéramos quando eu era mais nova, na igreja vazia, quando ousara perguntar sobre o amor de Deus. A mesma certeza absoluta. A mesma incapacidade de imaginar que eu pudesse ter uma perspetiva válida diferente da sua.
— E se eu tiver uma visão diferente sobre o que Deus quer para mim?
O silêncio que se seguiu foi denso como neblina. Analisou-me com uma expressão que oscilava entre surpresa e preocupação.
— Maya — começou, a voz carregando daquele tom pastoral que usava quando sentia que alguém estava a desviar-se — há apenas um caminho correto. As Escrituras são claras sobre o papel da mulher, sobre os propósitos divinos para o casamento, sobre...
— E se as Escrituras puderem ser interpretadas de formas diferentes?
A pergunta saiu antes que eu conseguisse travá-la, carregada de exasperação que eu tentava conter.
O seu rosto endureceu. Por um momento, vi não o pai amoroso, mas o pastor inflexível que conhecia dos púlpitos de domingo.
— A palavra de Deus não é questão de interpretação pessoal, Maya. É verdade absoluta. E quando começamos a questionar verdades fundamentais... — parou, respirou fundo — é sinal de que estamos a ser influenciados por forças que não são de Deus.
— Pai...
— O Leonardo — continuou, autoritário, como se eu não tivesse falado — representa estabilidade. Representa uma vida construída sobre alicerces sólidos. Sobre princípios que não mudam com os ventos da modernidade.
Percebi naquele momento que aquela conversa começava a tomar um rumo que não era apenas sobre Leonardo. Era sobre mim. Era sobre os receios que o meu pai tinha quanto à pessoa em que me tornara. Era sobre o controlo que sentia estar a perder.
— Quero que penses nisso. Quero que ores sobre isto. E quero que confies na orientação de alguém que te ama mais do que tu própria te amas.
Naquelas palavras finais, reconheci a estratégia que ele sempre usara, transformar amor em domínio, fazer-me sentir culpada por questionar, usar a própria mortalidade como argumento final. E funcionou. Como sempre funcionava.
Nessa altura, Chloe ligava-me todas as noites. Mas cada conversa tornava-se mais difícil. Como explicar-lhe que estava a afogar-me? Como lhe dizer que cada dia me sentia mais distante daquela que tinha sido quando estava com ela?
— Como te estás a sentir? — perguntava sempre, com uma ternura que me partia o coração.
— Bem — mentia, porque era mais simples que explicar a complexidade sufocante da minha realidade. — Está tudo... controlado.
Porém não estava. Nada estava controlado. E quanto mais Leonardo aparecia para "ajudar", mais eu sentia que estava a perder-me numa versão de mim que não reconhecia. Uma versão que sorria agradecida, que aceitava jantares por cortesia, que fingia não notar a forma como ele me olhava.
O pior… eu não conseguia falar sobre isso com ela. Como explicar que havia alguém a ocupar espaços na minha vida que deviam ser apenas dela? Como confessar que estava a deixar-me envolver numa dinâmica que traía tudo o que construíramos juntas?
A memória aflorou, indesejada, porém persistente.
— Com o tempo, o meu pai começou a insistir. A sugerir que eu lhe deveria dar uma oportunidade. — A voz falhou-me como corda esticada até ao ponto de rutura. — Especialmente quando observava a forma como ele se sentava do meu lado nas consultas. Como me trazia livros diferentes a cada semana. Os jantares para os quais me convidava com uma delicadeza que parecia ensaiada.
Havia um padrão naqueles convites. Sempre depois de dias particularmente difíceis. Sempre quando eu estava mais vulnerável, mais grata pela ajuda que ele oferecia. Ele tinha um dom para aparecer exatamente quando eu mais precisava, com uma explicação médica que me acalmava, com um contato útil, com uma solução para problemas que me pareciam insuperáveis.
— Maya — começou numa daquelas noites, depois de me ter ajudado a lidar com mais uma crise — gostaria de te convidar para jantar. Nada formal. Apenas... conversar fora do hospital.
O convite chegou embrulhado por tanta delicadeza que recusar parecia crueldade. Especialmente depois de tudo o que havia feito por nós. Especialmente quando sentia aquele brilho de esperança nos olhos do meu pai enquanto nos observava que eu não via há semanas.
— Seria... seria bom para ti sair um pouco daqui filha — comentou ele, a voz fraca, no entanto determinada. — Distraíres-te.
Foi assim que comecei a aceitar os seus convites… Não por desejo, mas por uma combinação tóxica de gratidão e pressão familiar. Cada jantar era um passo mais fundo numa armadilha que eu própria ajudava a construir.
Ele era genuinamente atencioso. Perguntava sobre como me estava a adaptar ao regresso, mostrava interesse pelos meus estudos interrompidos. Nunca forçava intimidade que eu não estava preparada para dar. Era... seguro. Previsível. O tipo de homem que qualquer pai aprovaria para a filha.
E o meu pai aprovava. Completamente.
— Estás diferente — analisou numa daquelas noites, depois de Leonardo me ter acompanhado a casa. — Mais leve. Mais como a menina que costumavas ser.
Aquela observação cortou-me como lâmina. Porque não era verdade. Eu não estava mais leve. Estava mais dividida. Mais perdida. Representava ser mais leve porque era isso que ele precisava de ver.
Piper não disse nada. Esperou, paciente como uma confessora que sabe que as piores verdades precisam de tempo para emergir.
— Ele estava presente quando tive o primeiro ataque de pânico por causa das dívidas. — Engoli seco. O som ecoou na cozinha como um tiro. — Estava lá quando descobri que o seguro não cobria todos os tratamentos. Quando me apercebi de que ia ter de escolher entre medicamentos e alimentação, entre dignidade e sobrevivência.
Naquele dia, desmoronei. Sentei no chão do escritório médico, entre papéis de seguros e faturas impagáveis, comecei a chorar. Não conseguia manter a aparência da filha competente, da pessoa que tinha tudo sob controlo.
Leonardo encontrou-me assim. Ajoelhou-se do meu lado sem dizer uma única palavra, simplesmente estendeu um lenço e esperou que o choro parasse. Depois, com aquela calma que era tão dele, ajudou-me a organizar os papéis, explicou-me as opções, ofereceu-se para falar com a administração do hospital.
— Não tens de enfrentar isto sozinha — expôs com uma sinceridade que doía. — Há pessoas que se importam contigo.
Naquele momento, quando me ajudou a levantar do chão aconteceu. As suas mãos pousaram nos meus ombros, o gesto supostamente reconfortante, contudo eu senti, algo mudou no ar entre nós. Vi a diferença nos seus olhos, uma intensidade que me fez recuar internamente. Lentamente, inclinou-se na minha direção, o rosto aproximou-se do meu como se aquele momento de vulnerabilidade fosse um convite.
Recuei instintivamente, o movimento tão súbito que quase tropecei nos papéis espalhados pelo chão. Lembro que o meu coração disparou, mas não de desejo, foi de pânico.
— Desculpa — murmurou, afastando-se imediatamente, deixando as mãos a caírem dos meus ombros. — Eu... desculpa. O momento... pensei que...
Ficámos ali parados, envolvidos por uma tensão constrangedora. Ele com a face ligeiramente ruborizada, eu ainda atordoada pela proximidade não desejada. Pelo eco do perfume masculino que não era o perfume que me fazia sonhar. Pelo toque que não era das mãos que eu ansiava sentir.
— Está tudo bem — consegui articular, embora não estivesse. Nada estava bem. — Eu... obrigada pela ajuda. Mas preciso de ir ver como está o meu pai.
Naquele instante percebi como tinha chegado longe demais. Como tinha permitido que a gratidão se transformasse em algo que parecia compromisso. Como tinha deixado que ele se instalasse na minha vida de forma tão natural que rejeitá-lo agora seria difícil. O pior era que Leonardo não tinha feito nada verdadeiramente errado… apenas interpretara sinais que eu inconscientemente enviava ao aceitar a sua ajuda, ao deixá-lo aproximar-se, ao não definir limites claros.
Nessa noite, quando tentei ligar para Chloe, ela não atendeu. Pensei que talvez já tivesse começado a desistir de esperar pelas minhas chamadas cada vez mais irregulares.
A humilhação daquele momento regressou.
— Não me orgulho disso… fiquei ali, sentada na escuridão do meu quarto, a tentar encontrar palavras para uma mensagem que nunca enviei. Eu queria explicar, queria lhe contar o que realmente se passava... Como confessar que o Leonardo não era competição, mas um símbolo de uma rendição que começava a parecer inevitável? Como confessar que um homem me tinha tentado beijar e que, em vez de sentir culpa pela traição, sentia apenas vazio, um vazio tão profundo que me aterrorizava mais do que qualquer paixão? Eu não tinha condições para trabalhar e estar simultaneamente disponível para cuidar do meu pai. Ele... ofereceu estabilidade quando tudo à minha volta desabava como um castelo de cartas.
— Foi a partir daí que começou? — questionou, a voz cuidadosa como quem manuseia explosivos.
— Não foi amor. — Apressei-me a esclarecer, porque precisava que ela compreendesse. — Nunca foi amor. Foi... conveniência. Conforto. Cobardia disfarçada de pragmatismo.
A proposta veio algum tempo depois, numa noite em que o meu pai tinha tido uma recaída particularmente grave. Leonardo tinha ficado connosco no hospital durante toda a madrugada, organizando tratamentos, falando com os médicos, abraçando com agrado o papel de filho que o meu pai nunca teve.
— Maya — chamou-me, quando finalmente voltámos para casa de madrugada — preciso de falar contigo.
Senti o estômago apertar-se. Sabia o que vinha a seguir. Tinha sentido aquela expectativa crescente ao meu redor, aquela esperança que se alimentava de cada gesto de Leonardo, de cada momento que passávamos juntos.
— Sei que este não é o momento ideal — continuou, a voz cuidadosa — mas... quero que saibas que as minhas intenções são sérias. Quero cuidar de ti. De vocês dois.
Não falou sobre "amor". Falou sobre "cuidar". E de alguma forma, aquela honestidade tornou tudo pior. Porque era exatamente isso. Não era paixão, nem desejo ardente. Era cuidado. Responsabilidade. Dever.
— O teu pai... — parou, escolhendo as palavras — deu-me a sua bênção. Se tu quiseres, claro.
Claro que tinha dado. Claro que o meu pai aprovava. Leonardo era tudo o que sempre quisera para mim. Médico, religioso, de uma família respeitável. Alguém que podia cuidar de mim quando ele já não estivesse lá.
— Eu... preciso de tempo para pensar — era a única resposta que conseguia dar.
— Eu entendo, vou esperar — respondeu, com aquela paciência infinita que me irritava e comovia ao mesmo tempo. — Todo o tempo que precisares.
No entanto o tempo revelou-se um luxo que eu não tinha. O estado do meu pai piorava a cada semana. E cada melhoria temporária era atribuída à felicidade que sentia ao ver-me "bem encaminhada". Cada sorriso seu quando via Leonardo comigo era uma corrente invisível que me prendia mais.
— Ele estava ali quando eu precisava, e eu... eu estava tão cansada de carregar tudo sozinha. — A confissão rasgou-me a garganta.
— E a Chloe? — A pergunta veio suave, quase sussurrada. — Onde ficou nisso tudo?
A questão pairou no ar, queimando-me os pulmões. Fechei os dedos contra o mármore até me doerem, tentando encontrar âncora física para a tempestade emocional.
— A Chloe ficou do outro lado do mundo... — As palavras saíram arrastadas como quem atravessa um terreno minado, cada sílaba uma explosão controlada. — A amar alguém que escolheu sobreviver em vez de lutar por nós. E, mesmo assim... — A voz quebrou-se. — Três meses depois da minha última mensagem, apareceu no hospital. Porque tu lhe disseste onde me encontrar.
— Não poderia permitir que ela continuasse daquela forma, sem notícias, porque tu decidiste não ser honesta com ela. — A resposta da ruiva veio firme, sem desculpas.
O vazio que se seguiu foi diferente dos anteriores. Pesado. Definitivo. Como o som que uma porta faz quando se fecha para sempre, o eco ecoando em corredores vazios.
Piper recostou-se na cadeira, os braços cruzados, esperando que eu continuasse. Porém as palavras tinham-se evaporado, deixando apenas o gosto metálico do medo na boca. Porque aquela memória em particular era território proibido. O lugar onde guardava a imagem de Chloe parada na receção do hospital, mochila às costas, o cabelo loiro desalinhado pela viagem, aquela imensidão azul-turquesa procurando-me entre rostos desconhecidos.
— Conta-me. — Insistiu a ruiva, a voz mais suave agora, quase maternal. — Preciso de saber o que aconteceu naquele dia.
Fechei as pálpebras, sentindo o peso familiar da culpa a descer sobre os ombros como uma manta de chumbo. As imagens começaram a emergir, nítidas e implacáveis, transportando-me de volta àquele corredor branco que cheirava a desinfetante e desespero mudo.
***
A fadiga colava-se-me aos ossos como uma segunda pele, pesada e persistente. Três noites seguidas numa cadeira de plástico do lado da sua cama tinham transformado o meu corpo numa coleção de dores surdas. As costas protestavam cada vez que me movia, o pescoço estava rígido como madeira antiga, as vistas ardiam pela falta de sono como se tivesse areia por baixo das pálpebras.
Caminhava pela receção do hospital em direção à máquina de café, os passos arrastados ecoando no chão polido, quando a vi.
Chloe.
O mundo partiu-se ao meio.
Parada junto do balcão de informações, uma mochila pendurada num ombro como se fosse apenas uma turista perdida. O cabelo loiro estava despenteado, desalinhado como se tivesse dormido mal durante o voo, as roupas amarrotadas. Mas era aquela vastidão azul que me paralisou. Aquela cor que conhecia tão bem, agora carregada de uma exaustão que espelhava a minha, de uma determinação que me aterrorizou.
O tempo estilhaçou-se.
Literalmente partiu-se em pedaços cortantes. O barulho dos passos apressados, as conversas abafadas, o eco metálico dos anúncios pelo sistema de som, tudo se desvaneceu numa quietude ensurdecedora que zumbiu nos meus ouvidos como uma sirene distante. Ficámos apenas nós duas, separadas por alguns metros que pareciam quilómetros, presas num momento que eu havia tentado evitar durante meses, que havia empurrado para o reino das impossibilidades.
Ela viu-me antes que eu pudesse fugir. Antes que pudesse esconder-me atrás de uma coluna ou desaparecer num corredor lateral. As nossas vistas encontraram-se através do espaço estéril, vi o reconhecimento a despoletar no seu rosto como uma explosão muda, como uma bomba que deflagra sem som, mas devasta tudo no seu raio.
Instintivamente, cada fibra do meu corpo quis correr para ela. Ser abraçada pelos braços que achei que não iria nunca mais sentir, inalar aquele perfume que me assombrava em sonhos. Contudo forcei o meu cérebro a ser racional. Depois de três meses sem lhe contatar, não poderia esperar que fosse ser recebida de braços abertos. E mesmo assim, mesmo tendo ficado aquele tempo todo sem lhe retornar uma única mensagem, ela estava ali. Tinha atravessado o oceano para me ver.
As lágrimas começaram a queimar antes mesmo de se formarem, ácidas contra as pálpebras. Tentei manter a compostura, morder o interior da bochecha até sentir o gosto metálico do sangue. Ela começou a caminhar na minha direção. Passo a passo. Como quem recusa deixar que a dor seja o ponto final, como quem sempre soube que este momento chegaria.
Parou. Não demasiado perto, respeitando o espaço que eu havia criado, no entanto também não longe o suficiente para ser apenas uma visitante casual.
— Hey! — Disse simplesmente, levantando a mão como uma saudação contida.
A palavra chegou até mim carregada de tudo o que não conseguíamos dizer. De meses de vazio. De mensagens não respondidas. De chamadas que deixei tocar no abismo.
Engoli em seco, a garganta seca como papel, sem saber exatamente o que fazer com as mãos, com a atenção, com o espaço entre nós que parecia pulsar com eletricidade.
— Estás aqui. — As palavras saíram ainda desacreditadas, como se verbalizar tornasse a sua presença mais real, mais impossível de negar.
Um pequeno sorriso surgiu nos seus lábios, porém não largo o suficiente para dissipar a tensão que vibrava entre nós como uma corda esticada até ao ponto de rutura.
— Eu disse que, se precisasses, atravessaria o oceano para ficar do teu lado. — A sua voz carregava aquela cadência familiar, mas havia algo novo. Uma gravidade que falava de noites sem dormir, de decisões tomadas na escuridão.
Comprimi os lábios, ainda lutando contra a vontade insuportável de me atirar para os braços dela, de desfazer aqueles meses de distância num único abraço desesperado.
— Estás... mais magra. — Murmurou, não havia acusação na observação. Apenas um registo delicado do que via, dos danos que o tempo havia esculpido no meu corpo.
Contemplei-me, tomando consciência das suas palavras. Há quanto tempo não me observava no espelho? Há quanto tempo sobrevivia apenas de café e ansiedade?
Ela ajeitou a alça da mochila no ombro, o gesto familiar, quase inconsciente, que me transportou de volta a todas as manhãs em que a vi fazer o mesmo movimento. Aquela vastidão azul, aquela cor impossível, fixou-se novamente em mim. Transparecendo uma cautela. Como quem se aproxima de um animal ferido e não quer assustá-lo com movimentos bruscos.
— O teu pai... — Começou, a voz hesitante. Parou. Passou os dedos pelos cabelos desalinhados pela viagem, deixando-os ainda mais despenteados. — Como está?
— Estável. — Consegui articular, a voz mais rouca que deveria. — Por agora.
Mentira e verdade. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Estável era o que os médicos diziam quando não queriam usar palavras mais assustadoras. Quando queriam dar esperança sem prometer nada, quando caminhavam na corda bamba entre honestidade e crueldade.
Vi-a assentir devagar, os dedos a brincarem nervosamente com a correia da mochila. Havia qualquer coisa de quebrado no modo como me observava, como se estivesse a tentar decifrar o que restava de mim, como se procurasse a Maya que conhecera entre os destroços da que encontrava agora.
— Vou voltar para o seu quarto. Só vim pegar um café. — A frase saiu-me facilmente, automática. — Queres acompanhar-me?
Não pensei racionalmente. Uma parte de mim queria que ela ficasse comigo, precisava dela ali do meu lado como uma âncora num mar revolto.
— Claro.
A palavra simples carregava o peso de oceanos atravessados.
Suspirei, tentando orientar-me naquela nova realidade onde Chloe estava a metros de distância depois de meses de ausência. Caminhei até à máquina de café, retirando dois copos. A sua presença intensificou-se nas minhas costas, conseguia sentir a sua atenção em mim a cada gesto, avaliando-me, memorizando as mudanças que o tempo havia inscrito na minha postura.
Assim que o motor terminou, estendi o café na sua direção, os nossos dedos roçando-se brevemente no momento da transferência. O pulsar familiar disparou pela minha pele como sempre acontecia.
— Vem comigo.
Caminhamos no vazio pelos corredores brancos, os nossos passos sincronizados numa dança que os nossos corpos ainda lembravam. Quando parei em frente do elevador, as portas abriram-se lentamente. Entramos sem dizer nada, o espaço minúsculo amplificando cada respiração, cada movimento.
Assim que as portas se fecharam, percebi que estávamos sozinhas naquele cubículo suspenso entre andares. A eletricidade familiar envolveu-nos como uma nuvem carregada, o tremor subiu pela minha pele como mercúrio num termómetro, o calor familiar do seu corpo alcançou o meu como sempre acontecia quando estávamos perto o suficiente para partilharmos o mesmo ar. Apertei o punho, tentando manter o controlo sobre as reações automáticas do meu corpo. Do canto da vista, percebi que ela também sentia o mesmo pela sua postura tensa, pelos dedos contraídos contra a alça da mochila.
Fitei a pequena tela mostrando o andar em que estávamos pedindo mentalmente para que aquelas portas se abrissem antes que eu fizesse algo irremissível.
Quando finalmente chegamos ao terceiro andar, respirei com um alívio que me envergonhou. O corredor estendia-se diante de nós, uma sucessão de portas brancas numeradas que guiavam a quartos onde outras famílias viviam os seus próprios pesadelos mudos.
— É aqui. — Murmurei, parando em frente ao 105, a mão hesitando sobre a maçaneta.
Bati suavemente na porta antes de a abrir. O quarto estava mergulhado numa penumbra suave, as cortinas meio fechadas filtrando a luz dourada da tarde que se derramava pelas janelas como mel líquido. O cheiro a desinfetante misturava-se com algo mais subtil, mais humano, o aroma de pele cansada, medicamentos, e aquela fragrância indefinível de lugar onde o tempo se move de forma diferente.
Ele estava deitado na cama, o corpo magro quase perdido entre os lençóis brancos. As pálpebras fechadas, a respiração regular, porém laboriosa, cada inspiração parecendo um esforço consciente. Uma floresta de tubos e fios ligava-o às máquinas que monitorizavam cada batimento do seu coração, cada inalação dos seus pulmões, traduzindo a sua vida em linhas piscantes e números digitais. A pele, outrora bronzeada pelo sol, tinha adquirido uma palidez cerosa que me apertava o peito sempre que a via.
— Pai? — Chamei suavemente, aproximando-me da cama como quem se aproxima de algo sagrado.
Ele abriu lentamente aquela cor castanha, agora embaciada pela medicação, contudo ainda capaz de sorrir quando me viu. O sorriso chegou-lhe aos lábios como aurora lenta.
— Minha filha... — A voz saiu rouca, mais fraca que na véspera, cada palavra custando-lhe energia preciosa.
— Trouxe alguém para te conhecer. — Expus, fazendo sinal para que ela se aproximasse, o coração martelando contra as costelas. — Esta é Chloe, uma... — hesitei, subtilmente — amiga da Austrália.
Ele tentou endireitar-se ligeiramente na cama, os braços tremendos com o esforço. Vi-a aproximou-se devagar, com aquela elegância natural que nunca a abandonava, mesmo nas situações mais delicadas, mesmo quando pisava em território emocional desconhecido.
— Olá, senhor. — Proferiu em português, as palavras pronunciadas com aquele sotaque que sempre me fazia sorrir, que me lembrava de tardes na praia quando ela praticava frases que eu lhe ensinava.
Durante o tempo que estivemos juntas, havia insistido em aprender algumas frases básicas, determinada a comunicar comigo na minha língua materna, determinada a habitar o meu mundo de todas as formas possíveis.
O meu pai sorriu, surpreso, claramente tocado pelo esforço.
— Ela fala português? — Perguntou-me, a voz carregada de admiração, como se aquilo fosse a coisa mais bela que havia ouvido em semanas.
— Um pouco. — Traduzi para Chloe, que assentiu modestamente. — Ela diz que está muito feliz por te conhecer.
— Diz-lhe... — Ele parou para tossir, o som seco ecoando no quarto como galhos partindo. — Diz-lhe que qualquer amiga tua é família para mim.
Traduzi as palavras, vendo o sorriso genuíno que se espalhou pelo rosto da loira. Ela aproximou-se mais da cama, aquela cor azul fixada no rosto cansado do meu pai com uma ternura que me surpreendeu, que me fez lembrar por que me havia apaixonado por ela.
— Muito obrigada. — Agradeceu em português, estendendo cuidadosamente a mão. — É... honra para mim.
Vi-o apertar os seus dedos com a pouca força que lhe restava, e por um momento presenciei lágrimas a formarem-se naquela tonalidade castanha como orvalho matinal, como se a ternura daquele momento simples fosse bálsamo para toda a dor acumulada.
Por um momento permiti-me explorar aquela imagem como quem contempla um quadro impossível. O contraste entre as mãos enrugadas, marcadas por décadas de trabalho e agora pela doença, envolvendo os dedos lisos de Chloe. A forma como ela se inclinava ligeiramente para ele, genuinamente interessada, sem pressa nem desconforto. A sua voz suave pronunciando palavras numa língua que não era sua, contudo que escolhera aprender por mim. Por nós.
Observei atentamente cada nuance daquela interação. O sorriso que se alargava no rosto pálido do meu pai. A luz que regressava aos seus olhos como se a loira trouxesse consigo uma memória de vitalidade. A facilidade com que ela navegava aquele momento.
Será que a fragilidade daquele instante mudaria alguma coisa se eu finalmente confessasse que o meu coração lhe pertencia? As palavras formaram-se na minha garganta como bolhas de ar presas no fundo do mar. Ou será que revelar a verdade pioraria o seu estado? O terror instalou-se-me no peito como gelo. Mordi o interior da bochecha, mentalmente analisando cada forma de abordar aquele assunto sem desencadear o pior cenário possível. Será que seria possível? Alguma vez seria possível viver sem mentir, sem me dividir no meio?
— É muito educada. — Comentou comigo, puxando-me de volta, a voz carregada de aprovação que me aqueceu e aterrorizou simultaneamente. — E bonita. Os olhos... têm a mesma cor que tu sempre gostaste de pintar quando eras pequena.
O calor subiu-me pelo pescoço como chama viva. Como é que ele conseguia, mesmo naquele estado, fazer essas observações que me desarmavam por completo? Que me lembravam de quem eu havia sido antes de tudo se complicar? Traduzi apenas a parte sobre ela ser educada, omitindo o resto.
— Pai, não podes esforçar tanto para falar. O médico disse que precisas de descansar.
— Está bem, está bem. — Murmurou, as pálpebras já a fecharem-se novamente. — Mas... Maya?
— Sim?
— Não deixes a tua amiga ficar num hotel. Ela pode ficar lá em casa. Aproveita para lhe mostrar a cidade. — Fez uma pausa, abrindo apenas uma fenda para me examinar. — Irá fazer-te bem filha. Gosto de te ver assim, com esse brilho leve… faz tempo que não te via tão animada por rever alguém.
As palavras atingiram-me como uma bofetada emocional. Fingi que não as tinha ouvido completamente, contudo senti a atenção familiar sobre mim, questionador. Ela não compreendera as palavras exatas, mas tinha quase a certeza de que havia lido nas entrelinhas, de que o tom do meu pai havia transmitido mais do que as palavras.
Estava prestes a responder quando a porta do quarto se abriu e Leonardo entrou, vestindo o jaleco branco impecável, um sorriso profissional nos lábios que se alargou quando me viu. O ar no quarto mudou, tornando-se subitamente mais denso.
— Maya, querida. — Aproximou-se, beijando-me levemente a testa com aquela familiaridade possessiva que sempre me deixava desconfortável, que me fazia sentir como propriedade marcada. — Como está o nosso pai hoje?
Nosso pai. As palavras fizeram-me estremecer como unhas raspando quadro, como se cada sílaba arranhasse algo fundamental dentro de mim. O som ecoou no quarto como blasfémia, contudo engoli a reação automática, forçando os músculos faciais a manterem-se neutros.
— Melhor. — Respondi automaticamente, a palavra saindo oca. — Leonardo, esta é Chloe, uma amiga da Austrália que me veio visitar.
Senti-me como traidora de mim mesma. Amiga. A palavra queimou-me a língua como cinza quente. Como se pudesse reduzir oceanos atravessados, corações partidos e amor enterrado vivo a uma categoria tão simples, tão mentirosa.
Ele estendeu a mão com aquele sorriso que reservava para situações sociais, polido, porém visivelmente calculado.
— Muito prazer. Espero que estejas a gostar da estadia na cidade, mesmo que as circunstâncias do encontro não sejam as melhores.
A loira correspondeu ao aperto de mão, no entanto percebi a forma como a sua postura enrijeceu ligeiramente. Vi os seus olhos azuis estreitarem-se tenuemente, aquela inteligência afiada a processar nuances que escapariam a outros.
— O prazer é meu. — Retorquiu em inglês, a voz controlada como lâmina polida. Depois acrescentou em português quebrado — Cidade é... muito bonita.
— Ah, fala português! — Leonardo pareceu genuinamente impressionado. — Maya não me contaste que tinhas uma amiga tão internacional.
Havia algo no seu tom que me fez querer desaparecer, que me fez sentir como se estivesse a ser avaliada.
O meu pai, que até então tinha estado a escutar a conversa de pálpebras fechadas, abriu-as novamente, e nelas vi uma determinação que sempre me aterrorizou.
— Leonardo, meu filho. — Disse, a voz ganhando uma força que não demonstrava há dias. — Vem cá.
Vi-o aproximou-se da cama, inclinando-se ligeiramente para ouvir melhor, assumindo automaticamente a postura solícita que usava com todos os pacientes.
— O que precisa, senhor?
— Quero que conheças bem esta moça. — Começou acenando na direção de Chloe, senti o momento em que tudo começou a desmoronar-se. — É amiga da Maya da Austrália. Veio de muito longe só para visitá-la.
— Já me apresentei para ela, não se preocupe. — Leonardo respondeu, lançando-me uma expressão que não consegui decifrar.
— Bom, bom. — Assentiu, depois estendeu a mão na minha direção. — Maya, vem cá.
Aproximei-me como quem caminha para o próprio julgamento, pegando na sua mão frágil. Os dedos dele, outrora fortes e seguros, agora pareciam galhos secos no inverno.
— Leonardo. — A sua voz ganhou uma solenidade que transformou o quarto hospitalar numa capela improvisada. — Tu também, filho. Quero vocês dois aqui.
Senti o sangue gelar nas veias, transformar-se em mercúrio pesado que me pesava os membros. Conhecia aquele tom, aquela determinação nos olhos mesmo quando estava doente. Era a mesma voz que usava quando tomava decisões irrevogáveis, quando decidia o rumo de nossas vidas com a autoridade patriarcal que nunca questionara.
Leonardo obedeceu, posicionando-se do outro lado da cama com aquele ar solene que assumia em momentos que considerava importantes.
— Deem as mãos. — Ordenou, o sorriso fraco, contudo decidido, como se estivesse a oficiar uma cerimónia sagrada.
— Pai... — Comecei, mas ele apertou os meus dedos com uma força que eu não sabia que ainda possuía, cortando o meu protesto pela raiz.
— Por favor, Maya. Deixa-me ter este momento. — Aquela tonalidade castanha suplicou, carregada de tudo o que não conseguia dizer sobre mortalidade e legados. — Pode ser um dos últimos.
Leonardo estendeu a mão na minha direção, aquele sorriso compreensivo nos lábios que sempre usava quando queria parecer paciente e virtuoso. Não havia forma de recusar sem parecer cruel diante do meu pai agonizante, sem destruir aquilo que podia ser uma das suas últimas alegrias.
Engoli em seco. Peguei na sua mão, sentindo a palma quente e ligeiramente húmida contra a minha. O toque era familiar, todavia vazio, como apertar a mão de um desconhecido, como simular intimidade onde só existia conveniência.
— Pronto. — Anunciou, colocando as suas mãos trémulas sobre as nossas mãos entrelaçadas como se nos abençoasse. — Leonardo, quero que saibas que a Maya é o que tenho de mais precioso neste mundo. É a minha luz, a minha razão para continuar a lutar. E Maya, minha filha, o Leonardo é um homem bom. Médico dedicado. Alguém que pode cuidar de ti quando eu já não estiver aqui para te proteger.
As palavras caíram sobre mim como pedras, cada uma deixando uma marca dolorosa. Senti o rosto queimar, a garganta apertar-se como se alguém me estrangulasse lentamente. Do canto da vista, vi Chloe observar a cena, o rosto cuidadosamente neutro, porém aquela vastidão azul, aquela cor traía tudo. A compreensão lenta e dolorosa do que estava a presenciar, a forma como todas as peças do puzzle se encaixavam numa imagem que ela nunca havia imaginado.
— Davi, o senhor vai ficar bem. — Leonardo respondeu. — Mas prometo que sempre cuidarei da Maya como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Vi-o sorrir, as pupilas húmidas de emoção genuína, e por um momento odiei-me por não conseguir sentir pelo meu pai o mesmo que ele claramente sentia por esta farsa que eu havia ajudado a construir.
— Eu sei, meu filho. Por isso é que fico tranquilo. — Apertou as nossas mãos com mais força, como se pudesse soldar-nos numa unidade inquebrantável. — Vocês são o meu maior orgulho. O meu genro e a minha filha.
Genro.
A palavra ecoou no quarto como um tiro, reverberando pelas paredes estéreis até me atingir no peito como uma bala. Senti a mão de Leonardo apertar-se ligeiramente sobre a minha, uma pressão quase inexistente que parecia marcar território, que parecia dizer "agora é oficial".
Quis puxar a minha mão com brutalidade, encerrar aquele contato que me queimava a pele, no entanto o rosto do meu pai, a forma como brilhava enquanto observava aquele toque, impediu o gesto. Não podia destruir aquela alegria. Não se aquele momento podia ser um dos últimos que ele experimentaria.
Pelo canto, examinei a loira. Ela estava imóvel, as mãos cruzadas atrás das costas, o rosto uma máscara de polidez que não conseguia esconder completamente a tempestade que se passava por trás daquela imensidão azul. Vi o momento exato em que compreendeu, quando o maxilar se contraiu subtilmente. Que todas as peças se encaixaram numa imagem que revelava a extensão total da minha traição. Que percebeu que eu não estava apenas a cuidar. Que havia mais alguém na minha vida. Alguém que o meu pai considerava família. Alguém que futuramente iria ter o direito a me tocar, me chamar de querida, de ocupar o lugar que um dia havia sido dela.
O vazio que se seguiu foi ensurdecedor. Apenas o som rítmico das máquinas de monitorização e a respiração laboriosa do meu pai preenchiam o espaço, marcando os segundos como gotas de ácido que corroíam tudo o que restava da minha dignidade.
— Preciso... preciso de ar fresco. — Murmurei, soltando suavemente a minha mão das mãos deles, cada dedo que se separava parecendo arrancar um pedaço da minha alma. — Vou só... dar uma volta. Pegar um café. — Acrescentei, tropeçando nas palavras, como se cada sílaba exigisse uma força que eu já não tinha. — Isso... isso mesmo. Um café. Já volto.
A minha visão embaciava-se, não sabia se do choro contido ou do pânico silencioso que ameaçava rebentar-me o peito.
— Maya... — Leonardo começou, no entanto eu já estava a dirigir-me para a porta como uma fugitiva. — Fico aqui com o senhor. — Ouvi-o dizer, dirigindo-se ao meu pai. — Maya, não demores muito.
Saí do quarto sem olhar para trás, sem conseguir enfrentar aquela vastidão azul, sem conseguir suportar mais um segundo naquele espaço onde todas as minhas mentiras por omissão tinham acabado de explodir como granadas mudas, estilhaçando tudo o que restava de honestidade entre nós.
O corredor parecia infinito, estendendo-se como um túnel branco que me sugava para o seu ventre. Cada passo ecoava como uma acusação, como uma confissão de cobardia que finalmente vinha à tona depois de meses enterrada.
Conseguia ouvir passos atrás de mim. Sabia, sem me virar, que era ela. Que me havia seguido para fora daquele teatro doentio. Que finalmente íamos ter a conversa que eu havia evitado durante meses, a confrontação que havia adiado até se tornar inevitável.
As passadas pararam.
Virei-me lentamente, preparando-me para enfrentar a fúria, as acusações justas, o desprezo que merecia. Todavia quando encontrei aquela cor, não vi raiva.
Vi algo muito pior.
Vi uma ferida tão profunda que parecia vazar luz pelas bordas, misturada a uma frieza controlada que me gelou até aos ossos. Como se parte dela já esperasse este momento, como se reconhecesse algo familiar e doloroso na situação.
— Faz quanto tempo? — A pergunta saiu como sussurro, mas cortando o ar entre nós como lâmina afiada.
Engoli em seco, a garganta seca como pergaminho antigo.
— Chloe...
— Quanto tempo, Maya? — Repetiu, a voz ganhando uma firmeza que me aterrorizou. — Há quanto tempo estás com ele?
As palavras morreram-me na garganta. Como explicar que não estava "com" ele no sentido que ela pensava? Como dizer que era mais prisão, mais sobrevivência que amor?
— Não é o que pensas. — As palavras saíram patéticas, fracas.
Ela riu. Um som seco, sem humor, que ecoou pelo corredor como vidro a partir-se.
— Não é o que penso? — Aquela cor brilhou, porém não de lágrimas. De forma mais perigosa. De uma lucidez cortante que me despiu de todas as desculpas. — O teu pai chamou-lhe de genro, Maya. Genro. Ele toca-te como se tivesse o direito. A intimidade com que se aproxima. Como... como é que não é o que penso?
O corredor girou à minha volta. Encostei-me à parede, precisando do apoio físico para não desabar ali mesmo.
— Casaste com ele? — A questão saiu num tom que misturava incredulidade e algo mais fundo. Como se precisasse ouvir da minha boca aquilo que já temia.
— Não. — respondi, contudo, a palavra parecia não bastar.
Ela avaliou-me por um segundo, cruzando os braços. Não suportei aquela vastidão e desviei o rosto, escondendo-me.
— Ainda não — murmurou, mais para si. — Mas irás. — Constatou apenas pelo que leu na minha expressão. — Porque é sempre assim, não é? Sempre há uma razão perfeitamente válida para escolher o caminho mais seguro.
Havia algo na forma como proferiu aquelas palavras, uma amargura que parecia vir de um lugar muito fundo, como se já tivesse visto esta história desenrolar-se antes.
— Eu não o amo. — A confissão saiu desesperada, como se isso explicasse tudo. — Tu tens de acreditar em mim.
— Mas irás casar com ele na mesma. — Não era pergunta. Era constatação fria, cirúrgica. — Mesmo sem o amar. Mesmo sabendo que... — A voz dela quebrou-se por uma fração de segundo antes de se recompor. — Mesmo sabendo que eu estava do outro lado do mundo à tua espera.
A verdade dela atingiu-me como punho no estômago, roubando-me o ar dos pulmões. Porque era isso. Era exatamente isso que eu iria fazer. Não existia "hipoteticamente", iria mesmo. A certeza queimou-me a garganta como ácido.
Havia escolhido o caminho seguro, o conveniente, o abençoado pelos que importavam. Mesmo sabendo que ela estava lá, do outro lado do oceano, mantendo viva uma chama que eu havia decidido extinguir por cobardia disfarçada de devoção filial.
— O meu pai está a morrer! — A desculpa saiu como grito abafado, desesperado. — Tu viste-o ali. Tu viste a forma como sorriu quando nos viu de mãos dadas. Tu viste como os seus olhos brilharam pela primeira vez em semanas. — A voz rachava-se como vidro sob pressão. — Ele fala do Leonardo como se fosse o filho que nunca teve. Fala de nós como se fôssemos a sua única razão para continuar a lutar contra esta doença maldita.
Encostei-me à parede com mais força, o frio do azulejo penetrando através da roupa.
— Eu não preciso de justificações. — A sua voz cortou-me como lâmina gelada. — Não preciso de conhecer os motivos, Maya. Esses eu conheço de cor.
Havia uma frieza terrível nas suas palavras, como se tivesse assistido a esta peça antes e soubesse exatamente como terminava.
— Não, não conheces! — As lágrimas queimavam-me as faces como trilhos de fogo. — Ouve-me, por favor! Como é que eu lhe digo que não? Como é que olho para aquele homem que me criou sozinho e destruo o último sonho que lhe resta?
A voz subiu de tom, descontrolada, carregada de uma culpa que me sufocava.
— Talvez ele tenha meses, Chloe. Meses! E passar esses últimos momentos preciosos sabendo que o dececionei, que escolhi... — parei, engolindo as palavras que não conseguia pronunciar — que escolhi outra coisa que não fosse o que ele sempre idealizou para mim... isso matá-lo-ia mais depressa. Eu não tenho outra escolha! Não tenho!
Chloe ficou em silêncio por um longo momento, e nesse silêncio vi algo a mudar nos seus olhos. Uma compreensão dolorosa, como se estivesse a processar as camadas de significado que eu nem sequer percebia estar a revelar.
— Tens sim. — A resposta veio firme, implacável, mas havia uma qualidade diferente na sua voz. Uma tristeza profunda que substituíra a raiva inicial. — Sempre tens uma escolha, Maya. E tu escolheste. — Parou, respirou fundo como se reunisse forças para o golpe final. — Escolheste a aprovação. Escolheste a segurança. Escolheste o medo em vez de mim. Tu escolheste quando decidiste que era mais fácil mentir-me por omissão do que lutar pelo que sentias.
As palavras ficaram suspensas no ar entre nós como fumo tóxico. Porque eram verdade. Cada sílaba era verdade crua, sem adornos nem justificações.
Abri a boca para tentar explicar, para tentar fazer com que compreendesse as pressões, as circunstâncias, a impossibilidade de escolher diferente. Contudo as palavras não vieram. Porque, no fundo, sabia que ela tinha razão. Que havia tido escolhas. E que havia escolhido mal.
— Chloe, por favor... — Estendi a mão na sua direção, mas ela recuou como se o meu toque a queimasse.
— Não. — A palavra saiu cortante. — Não faças isso. Não tornes isto mais difícil do que já é.
Vi-a recuar mais um passo, criando uma distância que parecia quilométrica. Havia algo na sua postura agora, uma resignação que me assustou mais que a raiva. Passou a mão pelo cabelo.
— Vim até aqui... — A voz dela tremeu, por um momento deixando vislumbrar a vulnerabilidade por trás da frieza controlada. — Atravessei o oceano porque pensei... porque acreditei que ainda havia algo por salvar entre nós. Que talvez tu precisasses apenas de tempo, de espaço para lidar com tudo isto.
Fez uma pausa, engolindo com dificuldade.
— Mas não é isso, pois não? — Continuou, agora com lágrimas naquela imensidão, finalmente. — Tu não precisavas de tempo. Tu precisavas de coragem. E eu não te posso dar isso. Isso tens de encontrar por ti própria.
As palavras atingiram-me como lâminas, cada uma abrindo uma ferida nova.
— Não me deixes. — A súplica saiu-me como sussurro desesperado. — Por favor, não me deixes agora.
Ela parou. Por um momento, vi o dilema naquela cor, a luta entre o amor e a necessidade de se proteger. No entanto quando voltou a falar, havia uma maturidade estranha na sua voz, como se tivesse envelhecido anos naqueles minutos.
— Diz-me o que queres que eu faça, Maya? — A pergunta veio carregada de uma exaustão que me partiu o coração. — O que realmente queres de mim? Que eu fique do outro lado do mundo á esperar que isto termine? Ou melhor ainda, que tu vivas esta mentira enquanto outra parte de ti mantém uma vida dupla comigo. — A crueza das palavras atingiu-me como bofetada. — Que eu me torne cúmplice da tua atitude? Que eu ajude a construir esta prisão dourada que tu estás a escolher? Tu já me deixaste primeiro. — A resposta veio suave, quase terna, e isso doeu mais que qualquer grito. — Há meses. Quando paraste de responder às minhas mensagens. Quando decidiste que era mais fácil deixar-me no limbo que ser honesta comigo.
Afastou-se mais um passo, e eu vi o momento em que tomou a decisão final.
— Espero... — Parou, respirou fundo. — Espero que sejas feliz, Maya. Verdadeiramente feliz. Mesmo que não seja comigo.
Virou-se e começou a afastar-se pelo corredor, cada passo dela ecoando como batimentos do meu próprio coração a partir-se.
— Chloe! — Gritei, mas ela não parou. — Chloe, espera! Por favor!
Ela parou junto dos elevadores, porém não se virou. Vi os ombros a tremerem ligeiramente, a única indicação de que aquela despedida lhe custava tanto quanto a mim.
— Cuida-te. — Disse, sem se virar. — Ah e um último conselho. Da próxima vez que te permites amar alguém e for recíproco... não fujas.
As portas do elevador abriram-se. Ela entrou sem olhar para trás. As portas fecharam-se lentamente, engolindo-a, levando-a para longe de mim para sempre.
Fiquei ali, sozinha no corredor, com o eco dos meus próprios passos e o som das máquinas médicas ao longe. Encostei-me à parede e deslizei até ao chão, finalmente permitindo que as lágrimas viessem.
Porque sabia que tinha perdido. Não apenas Chloe, mas uma parte de mim que nunca mais conseguiria recuperar. A parte que sabia amar sem medo, que sabia escolher a felicidade em vez da segurança.
***
O café entre as minhas mãos esfriara completamente, transformando-se numa âncora gelada que me puxava de volta ao presente. Pisquei lentamente, deixando que a memória daquele corredor hospitalar se desvanecesse como fumo, substituída gradualmente pela realidade da cozinha onde me sentava.
Dez anos. Uma década inteira havia passado desde aquele momento devastador, e ainda assim conseguia sentir o frio do azulejo nas costas, o eco metálico das máquinas médicas, o peso esmagador da minha própria covardia.
Piper não disse nada durante a minha viagem mental. Simplesmente esperou, como quem compreende que certas memórias precisam de ser revividas por completo para finalmente poderem ser libertadas.
— Maya. — A voz saiu-lhe mais baixa, mais cuidadosa.
Ergui a cabeça, ainda perdida nos pedaços daquela memória hospitalar que se recusava a desvanecer-se por completo.
— Sobre aquele dia. — Continuou, os dedos a tamborilar nervosamente sobre a mesa. — Quando a Chloe voltou.
— Tu foste buscá-la ao aeroporto — murmurei, lembrando-me vagamente de porções daquela conversa telefónica anos atrás.
— Fui. — Assentiu, mas o gesto era pesado, carregado de algo que custava articular. — E... Maya, pela primeira vez em todos os anos que a conhecia, não a reconheci.
As palavras atingiram-me como um punho no peito. Passou os dedos pelos cabelos, o gesto revelando uma inquietação que raramente lhe via.
— Ela estava devastada. Completamente destruída. — Pausou, contemplando um ponto indefinido na parede atrás de mim. — Mas não da forma que imaginas. Não chorava, não gritava. Ela estava... furiosa. Uma fúria fria, controlada, que me apavorou mais do que qualquer explosão emocional.
Fechei as pálpebras, tentando processar aquela imagem. A Chloe que eu conhecia podia ser intensa, mas raramente raivosa.
— No início, ela nem sequer falou. — Continuou, a voz ganhando uma qualidade distante, como se estivesse a reviver aquele momento. — Ficámos quase uma hora no carro, paradas no estacionamento, em completo silêncio. Ela apenas observava pela janela, mas eu conseguia ver nos seus ombros toda a tensão acumulada.
O estômago revirou-se-me ao imagina-la assim, reduzida àquele silêncio que gritava mais alto que qualquer palavra.
O ar na cozinha tornou-se mais denso, carregado de expectativa.
— Quando finalmente se pronunciou, as primeiras palavras que disse foram "Sabes, durante estes dois anos que estivemos juntas, só houve uma vez que eu esperei que ela fugisse." — As palavras surgiram lentas, precisas, como se estivesse a citar palavra por palavra. — "Engraçado. Naquela altura eu estava preparada. Era previsível que ela o fizesse. Até faltei às aulas para lhe dar espaço. Mas logo que me viu... ela simplesmente veio até mim."
O ar saiu-me dos pulmões como se tivesse levado um murro no estômago. O beijo. Claro.
Aquela festa. O momento em que finalmente cedera, quando provei os seus lábios e o mundo inteiro se despedaçara em porções de desejo e terror, tentando tocar Chloe com aquela fome desesperada, aquela necessidade cega de descarregar nela tudo o que me magoava o que sentia. A vibração da chamada do meu pai. As palavras da pastora Collins. A conversa com Piper. A sua ausência durante três dias e a vontade imensa de a alcançar.
— "Eu observava a dinâmica dela com o Ethan, esperava que ela se afastasse de mim, quanto mais eu achava que ela o ia fazer, mais ela se aproximava." — Continuou a ruiva, os dedos a traçar círculos nervosos no balcão de mármore. — "Fui ingénua por pensar que o progresso que ela tinha feito aqui seria suficiente para quando tivesse de enfrentar o pai."
A menção do meu pai atingiu-me como uma pedra atirada contra vidro. Porque havia verdade naquelas palavras. Aqui, na Austrália, longe das expectativas familiares e da pressão religiosa, eu tinha sido diferente. Tinha sido mais corajosa. Mais... eu mesma.
— "Provavelmente ela ainda não percebeu, mas ela está a fazer exatamente como a minha mãe fez." — Fez uma pausa, respirando fundo. — Eu não entendi o que queria dizer, mas antes que pudesse perguntar...
Levantei-me bruscamente, interrompendo-a, precisando de movimento para processar aquela revelação. Caminhei até à janela, no entanto a vista do oceano apenas amplificou a tempestade emocional que se formava dentro de mim. Durante o tempo em que estivemos juntas, Chloe havia-me contado pedaços da sua infância. Eu estava tão consumida pela minha própria dor que nunca fizera a ligação, nunca compreendi a semelhança entre as histórias.
A comparação atingiu-me como uma bofetada física. Porque era verdade. Eu havia usado exatamente as mesmas justificações que a mãe dela usara durante anos enquanto mantinha um relacionamento abusivo antes de finalmente encontrar força para mudar. Arregalei os olhos.
— Não posso deixá-lo agora... ele precisa de mim. — As palavras saíram-me num sussurro rouco, mais para mim mesma que para Piper, ecoando as desculpas. — Não é o momento certo... depois, quando as coisas melhorarem...
Encostei a testa ao vidro frio da janela, sentindo o peso esmagador daquela compreensão.
— Tenho responsabilidades. Não posso ser egoísta. — Continuei a murmurar, reconhecendo cada frase que havia usado ou pensado para me justificar, cada ressonância que provavelmente eram repetidas incansavelmente no seu núcleo familiar.
A ironia impiedosa atravessou-me com precisão, eu estava a replicar exatamente o padrão que se tornara trauma na infância dela.
Ouvi a ruiva aproximar-se atrás de mim, os passos suaves contra o chão da cozinha.
— Maya...
— Ela deve ter sentido... — A voz quebrou-se-me. — Ela deve ter sentido como se estivesse a reviver um pesadelo.
Virei-me lentamente para a encarar, as lágrimas finalmente a queimarem-me as faces, humedeci os lábios antes de prosseguir.
— Durante anos, ela viu a mãe encontrar mil e uma razões para não deixar um homem que a estava a matar lentamente. "É pelo bem das crianças", "ele não é má pessoa", "ele disse que vai mudar", "as coisas vão melhorar". E depois... eu fiz exatamente a mesma coisa.
Piper ficou em silêncio por um momento, enquanto processava o que eu dizia, aquela intensidade castanha queimando-me com uma honestidade brutal que me fez recuar instintivamente.
— Tens razão. — A voz saiu cortante, sem piedade. — Pensando bem era exatamente a mesma merd*. Diferente em desculpas, definitivamente o mesmo destino, escolher uma prisão porque é mais confortável que lutar pela liberdade. — Cruzou os braços, implacável. —Tu transformaste covardia em virtude e convenceste-te de que eras uma mártir.
As palavras saíram-lhe cortantes, mas vi o momento em que a própria revelação a atingiu. Piper passou a mão pelo rosto, uma exalação longa escapando-lhe pelos lábios entreabertos, como se finalmente compreendesse a extensão total da tragédia.
— Eu estava numa situação que me sufocava, que me forçava a negar quem era verdadeiramente. E em vez de encontrar forças para mudar, encontrei justificações para ficar. Para escolher a versão "aceitável" de mim mesma.
Caminhei de volta para a mesa, as pernas tremendo ligeiramente.
— A diferença é que a sua mãe tinha medo de violência física. Eu tinha medo de... de quê exatamente? De conversas difíceis? De não corresponder ás expectativas? De ter de explicar quem eu realmente era?
Piper ficou em silêncio, permitindo-me processar.
— Ela deve ter pensado que estava condenada a repetir os padrões familiares para sempre. — Parei, engolindo o nó que se formara na garganta — Eu apareci na vida da Chloe. Alguém que ela pensou que fosse diferente. Alguém que ela acreditou ter coragem suficiente para quebrar padrões. — A voz rachava-se como vidro sob pressão. — Mas quando chegou o momento de ser testada... Eu provei que nem mesmo o amor mais profundo era suficientemente poderoso para inspirar bravura. Que as expectativas de mortos eram mais importantes que os sonhos dos vivos.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado do peso daquela verdade recém-descoberta.
— Ela atravessou oceanos para te dar uma última oportunidade de escolheres diferente.
Vi o impacto das suas próprias palavras refletir-se no seu rosto. Engoliu em seco, os olhos brilhando com uma emoção que custava a conter. Pela primeira vez desde que começáramos a falar, pareceu genuinamente abalada pela crueldade da situação que estava a dissecar.
— No aeroporto, quando disse que estavas a fazer como a mãe dela... — Piper continuou, a voz cuidadosa — acrescentou algo mais. Algo que ainda me assombra.
— O que disse?
— "A diferença é que a minha mãe pelo menos admitia que estava com medo. A Maya convenceu-se de que era nobre." — Vi-a hesitar antes de pronunciar as palavras. Quando finalmente falou, a voz saiu mais baixa, como se custasse fisicamente verbalizar aquela memória. Um músculo contraiu-se-lhe no maxilar. — "E isso torna tudo mais trágico, porque ela realmente acredita que está a fazer a coisa certa."
A observação atingiu-me como um punho no estômago. Porque era verdade. Eu havia transformado covardia em virtude, medo em devoção.
Piper estudou-me por um longo momento, aquela intensidade perscrutando cada canto da minha alma como um scanner emocional.
Foi então que a vi notar o papel dobrado sobre o balcão. O desdobrável que eu deixara ali desde que Grace me entregara, como se fosse uma bomba silenciosa aguardando o momento certo para explodir.
Estendeu a mão, pegando no papel com uma curiosidade cautelosa.
Observei-a esticar o papel, os olhos percorrendo as palavras com uma velocidade que demonstrava familiaridade imediata. Uma curvatura pequena surgiu nos seus lábios.
Levantou os olhos, cravando-os em mim com uma intensidade renovada.
— Onde conseguiste isto?
— No centro comunitário. — As palavras saíram mais pequenas do que pretendia. — A exposição inaugura amanhã.
Assentiu voltando a examinar o folheto. O silêncio que se seguiu foi diferente. Não vazio, mas carregado de desafio.
— Ainda não entendi exatamente o que procuras ao ter voltado, Maya. — Declarou finalmente, a voz perdendo parte da fúria, mas mantendo toda a franqueza. — Se é encerramento, ou apenas a necessidade masoquista de reviver a tua própria estupidez.
Respirei fundo, sentindo o peso de toda aquela conversa assentar sobre os ombros como neve molhada.
— Preciso de saber se ela é verdadeiramente feliz. — A confissão saiu como sussurro desesperado, carregado de uma vulnerabilidade que me assustou. — Se aquele sorriso na fotografia era genuíno ou se eu consegui ver algo que mais ninguém vê. Se ela realmente construiu uma vida que vale a pena.
Pausei, limpando as lágrimas com as costas da mão, o gesto áspero contra a pele húmida.
— E se ela for feliz, se realmente encontrou o que merece, então eu preciso de fechar este ciclo. Preciso de parar de viver numa versão fantasiosa do passado e começar a construir uma vida real no presente. — A voz falhou-me como corda partida. — Depois do que me contaste, eu preciso de me desculpar. Preciso de lhe dizer que finalmente compreendo. Que percebo agora o que não consegui ver há dez anos.
Piper inclinou-se para a frente, a expressão transformando-se em algo mais suave, mais compreensivo.
— E o que é que não conseguiste ver?
— Que ela não estava apenas a oferecer-me uma escolha entre ela e o meu pai. — As palavras saíram carregadas de uma dor que eu havia enterrado durante anos como um cadáver. — Estava a oferecer-me uma oportunidade de quebrar um ciclo. De provar que o amor podia ser mais forte que o medo, que a felicidade era possível mesmo quando parecia impossível. — Fechei os punhos sobre a mesa até os nós ficarem brancos. — E eu fracassei. Não só com ela, mas com todas as gerações de mulheres da família dela que nunca tiveram a oportunidade de escolher diferente.
O vazio que se seguiu foi diferente dos anteriores. Menos carregado de culpa, mais carregado de compreensão dolorosa, mas necessária.
— Por isso é que estou aqui, Piper. — Concluí, finalmente encontrando clareza na confusão emocional. — Para descobrir se ainda há alguma coisa que possa fazer. Não para reconquistar o que perdi, mas para finalmente fazer as pazes com quem fui e com quem me tornei.
Piper assentiu lentamente, e nos seus olhos vi algo que não esperava encontrar: um vestígio de respeito. Não pelo que eu havia feito, mas pela honestidade brutal com que finalmente o estava a enfrentar.
— Maya — disse suavemente, a voz carregando um peso novo — há coisas sobre a vida da Chloe nos últimos meses que talvez necessites de saber antes de tentares fazer seja o que for.
— Que coisas?
Os seus olhos encontraram os meus, carregados de uma gravidade que me fez gelar até aos ossos.
— Coisas que mudam tudo o que pensas saber sobre aquele sorriso na fotografia, mas que tem de ser ela a te contar.
Fim do capítulo
Até agora, este capítulo foi, sem dúvida, um dos mais difíceis de escrever...
Obrigada por terem lido até aqui!
Espero que tenham gostado.
Até ao próximo ***
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asuna Em: 29/06/2025 Autora da história
Fico muito feliz :)
Obrigada
Espero que goste do próximo!!