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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 10195
Acessos: 328   |  Postado em: 08/06/2025

Capítulo 21

 

O mar subiu-me pelos tornozelos com uma familiaridade que quase doía. Deixei que a espuma fria me subisse pelas pernas enquanto caminhava pela margem, a atenção presa na casa que arrendara. Desde o encontro com Grace, aquela estrutura moderna transformara-se num confessionário silencioso, testemunha dos meus pensamentos em rodopio constante.

 

A noite anterior escorrera sem sono. Deitara-me cedo, exausta do peso emocional que Grace inadvertidamente depositara sobre os meus ombros, contudo as pálpebras recusaram-se a ceder. Cada vez que a consciência tentava mergulhar no descanso, a imagem da exposição ressurgia como uma maré teimosa, arrastando consigo fragmentos de possibilidades que não ousava nomear.

 

"Fragmentos de Proximidade". Conexões interrompidas. O que persiste quando as pessoas se afastam.

 

Seria coincidência, ou estaria Chloe, depois de todos estes anos, ainda a processar o mesmo passado que me trouxera de volta?

 

A areia fria cedeu sob os meus pés descalços, cada grão uma pequena âncora que me prendia ao momento presente. Continuei a caminhar, permitindo que a água me abraçasse até aos joelhos, como se pudesse purificar algo que há muito se instalara nas camadas mais profundas da minha pele. Mesmo depois do divórcio, até mesmo antes, quando Leonardo já dormia no escritório absorvido nos relatórios médicos, eu ficava acordada a imaginar como seria telefonar-lhe, nunca tive coragem suficiente.

 

Depois de três anos presa numa vida feita de idas ao hospital, de afazeres domésticos que se multiplicavam como ervas daninhas, de sorrisos ensaiados em jantares com os colegas dele onde eu me sentia como uma atriz a interpretar o papel de esposa satisfeita, tomei uma decisão que me salvou da asfixia total. Após a morte do meu pai e finalmente do meu divórcio. Priorizei os estudos. Ingressei na faculdade de marketing, não por vocação imediata, mas por uma necessidade urgente de me distrair, de encontrar uma estrutura onde pudesse me reconstruir.

 

O curso tornou-se o esconderijo perfeito. Cada aula era uma barricada erguida contra as memórias que teimavam em regressar como ondas persistentes. Cada projeto, cada deadline, cada análise de comportamento do consumidor era mais uma camada de distração entre mim e o buraco que Chloe deixara no centro do meu peito. Havia algo perversamente reconfortante em dissecar as motivações humanas de forma tão clínica, tão distante das minhas próprias contradições que se recusavam a ser catalogadas.

 

Os professores elogiavam a minha dedicação com um brilho nos olhos que eu não sabia como interpretar. Os colegas comentavam, entre admiração e espanto, como eu conseguia entregar sempre tudo antes do prazo, como parecia ter uma capacidade infinita para projetos extra. O que não sabiam era que o trabalho se tornara o meu vício mais eficaz. Cada campanha criada, cada análise de mercado concluída, era mais uma dose de morfina aplicada diretamente na ferida que teimava em não cicatrizar.

 

As noites em claro multiplicaram-se. Não por insónia, mas por escolha deliberada. Preferia a luz azulada do computador, o ruído constante do teclado, a sensação ilusória de produtividade, à quietude perigosa do quarto escuro onde os pensamentos tinham espaço para respirar e crescer como plantas venenosas. O café tornou-se o meu companheiro mais fiel. O cansaço, um preço que pagava alegremente para manter a mente ocupada, sempre em movimento, sempre fugindo.

 

Contudo havia fissuras naquela armadura aparentemente impenetrável.

 

Nos braços de outras mulheres, encontrava um conforto passageiro que durava apenas o tempo de uma noite, talvez duas se tivesse sorte e conseguisse prolongar a ilusão de proximidade. Sempre mulheres inteligentes, ambiciosas, com vidas próprias suficientemente preenchidas para não exigirem mais do que eu estava disposta a dar. Relacionamentos que começavam com conversas estimulantes sobre arte ou literatura, evoluíam para jantares casuais onde partilhávamos histórias cuidadosamente editadas, e terminavam em manhãs onde o café era bebido depressa demais e as despedidas carregadas de promessas vagas de "falamos depois" que ambas sabíamos serem mentiras gentis.

 

Quando ele se foi, quando as correntes que me prendiam a um papel que nunca escolhera finalmente se partiram, descobri uma liberdade estranha e amarga. Sem a sua voz constante a sussurrar julgamentos, sem os seus olhos a medirem cada gesto contra um padrão impossível de pureza, permiti-me finalmente abraçar o que sempre soubera sobre mim mesma. A atração que sentia por mulheres deixou de ser um segredo envergonhado para se tornar uma verdade que podia viver abertamente, mesmo que de forma quebrada e discreta.

 

Era como se a sua morte tivesse libertado não apenas a minha sexualidade, mas a memória do que fora possível na Austrália. Naqueles momentos com ela, descobrira que o meu corpo não era um campo de batalha entre o sagrado e o profano, mas simplesmente meu. E, anos depois, tentava recriar essa sensação de completude através de encontros que eram, no fundo, tentativas desesperadas de preencher o vazio que ela deixara.

 

Contudo a libertação vinha sempre acompanhada de uma melancolia profunda.

 

Nenhuma durava. Não por falta de interesse da parte delas, pois havia qualidade suficiente nelas para sustentar relacionamentos duradouros, no entanto eu não conseguia parar. Especialmente mais tarde, mesmo quando acreditava que era diferente, que estava apaixonada, que finalmente conseguira encontrar alguém capaz de me fazer esquecer. Mesmo quando estava fisicamente presente, mentalmente já havia regressado aos projetos por terminar, às apresentações por preparar, às análises por concluir. Acabavam sempre por perceber que competiam não com outra pessoa, contudo com uma obsessão que me consumia como fogo lento.

 

"Nunca estás realmente aqui, Maya", dissera-me Ana numa das últimas vezes que nos vimos. Estava sentada na beira da cama, o cabelo escuro ainda desalinhado pelo que partilháramos momentos antes, aquela pupila castanha carregada de uma tristeza que eu reconhecia, porem não sabia como corresponder. "Mesmo quando estás aqui, estás longe. Como se houvesse uma parte de ti que pertence a outro lugar."

 

Tinha razão. Eu estava sempre distante. Daquela cama, daquele momento delicado, daquela possibilidade real de construir algo verdadeiro sobre alicerces sólidos. Porque construir exigia tempo, atenção, vulnerabilidade. E eu aprendera que era infinitamente mais fácil manter-me em movimento constante do que arriscar parar e descobrir o que realmente me assombrava nas horas silenciosas.

 

A formatura chegou com honras académicas, acompanhada por uma proposta de trabalho nos Estados Unidos que aceitei sem hesitar. A transição para o mundo corporativo foi quase impercetível, as noites em claro continuaram com a mesma intensidade, apenas com projetos diferentes. Campanhas para clientes cada vez mais exigentes. Apresentações que determinavam o futuro de marcas inteiras. Prazos que se atropelavam uns aos outros numa corrida infinita onde a linha de chegada se movia constantemente.

 

Durante cinco anos, vivi assim. Numa velocidade que não permitia reflexão, numa corrente que me arrastava para longe de qualquer possibilidade de auto-exame. Convenci-me de que era feliz, ou pelo menos satisfeita com aquela versão funcional de existência. O apartamento no centro da cidade. O carro novo que cheirava a couro e possibilidades. As viagens de trabalho que me levavam a lugares onde ninguém me conhecia. Os prémios de produtividade que se acumulavam sobre a secretária como troféus de uma guerra que não recordava ter declarado.

 

Porém, de noite, quando finalmente a exaustão me forçava a abrandar, havia sempre um momento. Breve, inevitável, impiedosa. Entre fechar as pálpebras e adormecer. Quando a guarda baixava e ela regressava. Com contornos definidos, como uma ausência que tinha forma própria, peso próprio, temperatura própria. Como o eco de uma voz que ainda me fazia estremecer quando o vento soprava numa determinada direção.

 

Era sempre a mesma sequência, como um ritual que o meu subconsciente executava sem permissão nem pudor. O quarto mergulhado em penumbra. O lençol frio contra a pele cansada, testando a minha solidão como uma lâmina subtil. E então, sem aviso nem lógica, uma sensação que me atravessava como corrente elétrica, o roçar de dedos que já não existiam, porém que o meu corpo recordava com uma precisão cruel, deslizando pela curva do pescoço, descendo pela clavícula, despertando terminações nervosas que teimavam em manter-se vivas para ela.

 

O sussurro de palavras que o tempo apagara, contudo que deixaram marcas invisíveis, ecoava contra mim como se os seus lábios ainda estivessem próximos do meu ouvido. A temperatura exata de um abraço que ficara suspenso no ar como fumo de cigarro, mas que o meu corpo reconstituía célula por célula, fazendo-me arquear involuntariamente contra o vazio.

 

Era nesses momentos que a ausência se tornava presença física, quando o calor se acumulava entre as minhas pernas como uma memória persistente, insistente. As mãos tremiam contra o lençol, divididas entre a necessidade de tocar e a culpa de ainda desejar algo que havia escolhido abandonar. Entre a vontade de me entregar àquela lembrança sensorial e a consciência de que seria render-me a um fantasma.

 

Perguntei-me, naqueles momentos de lucidez cruel, se ela se lembraria de mim da mesma forma. Se também carregaria assombrações.

 

Fechei as pálpebras, permitindo que o som ritmado das ondas dispersasse os pensamentos que ameaçavam formar-se. O sol mergulhava lentamente no horizonte, tingindo o céu de laranjas e rosas que ardiam contra as nuvens baixas com uma intensidade quase violenta. Era aquela hora mágica em que a praia se despedia do dia, quando as famílias recolhiam as suas alegrias barulhentas e só restavam os solitários como eu.

 

Foi então que o som cortou a quietude.

 

Primeiro, um ruído abafado na areia, irregular, urgente. Depois, um latido estridente, frenético, carregado de uma alegria desgovernada que contrastava brutalmente com a melancolia do momento. Abri as pálpebras no instante preciso em que um vulto dourado disparou na minha direção. Um cão. Grande. Exuberante. Corria com a língua de fora numa expressão de felicidade absoluta, as patas a escavarem pequenas crateras na areia molhada, o corpo inteiro vibrando com uma energia que parecia capaz de iluminar a praia inteira.

 

E antes que o meu reflexo conseguisse reagir, antes que a minha mente processasse o perigo iminente, já era tarde demais.

 

O impacto foi seco, inevitável.

 

Perdi o equilíbrio numa fração de segundo que se estendeu como eternidade. O mundo inclinou-se. Céu. Areia. Mar. Tudo girou numa sucessão caótica de imagens borradas. Caí de costas com um baque surdo que ecoou através da minha coluna como um gongo, e o ar escapou-se-me do peito num soluço mudo de surpresa que roçou o ridículo.

 

A água fria infiltrou-se pela roupa como dedos gelados e impiedosos, escorrendo pelas costas, abraçando a pele com uma crueldade quase violenta que me arrancou de qualquer vestígio de dignidade. Era como se o mar tivesse decidido invadir o meu corpo sem pedir licença, cada gota uma pequena agulha gelada a perfurar-me os sentidos, a lembrar-me do quão exposta me encontrava, não apenas ao frio, mas a tudo o que estava prestes a acontecer. Um arrepio cortou-me de alto a baixo, não apenas físico, mas premonitório. A areia húmida colava-se às palmas das mãos, ao casaco, ao cabelo, enquanto eu tentava recuperar o fôlego que se perdera algures entre a queda e o choque de perceber que o universo possuía, afinal, um sentido de humor particularmente cruel.

 

E então ouvi.

 

Passos. Corridos. Descalços. Urgentes.

 

E uma voz que me fez gelar mais do que toda a água do Pacífico.

 

— Meu Deus! Desculpa! Ele ficou animado demais e eu...

 

A frase morreu ali.

 

Como se tivesse embatido contra uma parede invisível, estilhaçando-se em pedaços de reconhecimento que caíram sobre nós como vidro partido. A quietude que se instalou não era ausência de som, era presença concentrada, densa como névoa antes da tempestade, carregada de uma eletricidade que fez todos os pelos do meu corpo eriçarem-se em alerta máximo.

 

Senti antes de ver.

 

O corpo reagiu como uma sinfonia de alarmes mudos, cada músculo contraído numa tensão que roçava a paralisia, cada nervo em alerta máximo, cada célula a vibrar com o reconhecimento primitivo de algo que a mente ainda se recusava a processar. O ar tornou-se viscoso, quase sólido, como se respirar fosse atravessar água espessa. Como se o próprio tempo tivesse decidido abrandar para saborear aquele momento com uma crueldade quase deliberada.

 

Levantei a cabeça.

 

Devagar.

 

Como quem caminha de olhos fechados em direção ao abismo, sabendo que cada movimento a aproxima do inevitável, todavia incapaz de parar.

 

E vi.

 

Chloe.

 

O nome não apenas atravessou o pensamento, ele explodiu dentro de mim como uma granada emocional, despedaçando uma década de defesas cuidadosamente construídas. O corpo inteiro se revoltou em espasmo involuntário, as mãos transformaram-se em tremor incontrolável, a garganta fechou-se num nó que ameaçava sufocar-me. Dez anos de distância calculada evaporaram-se num segundo, como se nunca tivessem existido.

 

Permanecia imóvel a três metros de mim, os pés descalços enterrados na areia dourada, no entanto nem isso importava. O que me atravessou foi aquele reconhecimento instantâneo, visceral, que ultrapassava qualquer lógica. A mesma presença magnética que sempre me desarmara por completo, agora intensificada por uma década de afastamento forçado, de saudade negada, de amor enterrado vivo.

 

O cabelo loiro estava mais curto, preso num coque descuidado que deixava mechas rebeldes moldarem as maçãs do rosto bronzeado pelo sol australiano. As sardas, aquelas que eu costumava beijar uma por uma, mapeando-lhe a pele como quem descobre constelações secretas, pareciam mais intensas sob a luz dourada que se despedia do dia. Porém foi quando o meu olhar chegou àquela íris que o mundo desmoronou completamente.

 

Azul-turquesa.

 

Devastadoramente familiar.

 

Oceano em fúria e céu de verão fundidos numa cor que conhecia de memória, no entanto que agora carregava camadas novas, estratos de experiências que eu não partilhara. Profundidade onde antes havia transparência cristalina. Contenção onde outrora brotava espontaneidade selvagem. Território familiar transformado em paisagem desconhecida.

 

Por um instante, apenas um, contudo suficiente para me despedaçar, vi tudo ali. O choque cru rasgando-lhe a compostura como um relâmpago silencioso. A dor que me atingiu em ricochete, tão aguda que quase me fez cambalear na areia molhada. A surpresa genuína, como se também ela não esperasse que aquele momento chegasse assim, sem aviso, sem preparação. E depois algo mais complexo, mais profundo: uma tristeza antiga e pesada que parecia carregar mais do que apenas a nossa história partilhada.

 

Todavia durou apenas segundos.

 

Vi-a inspirar fundo, os ombros a endireitarem-se numa recomposição que era quase militar na sua precisão. A máscara da serenidade deslizou sobre as suas feições com a mesma graciosidade de sempre, embora eu conseguisse captar as fissuras na superfície pequenas falhas que apenas alguém que a conhecera intimamente poderia detetar. Os dedos contraíram-se brevemente contra a coxa, um gesto tão subtil que quase me escapou. O movimento quase impercetível da sua garganta ao engolir. A forma como mordeu discretamente o canto inferior do lábio antes de se recompor por completo, como quem coloca uma armadura invisível.

 

— Maya.

 

O meu nome deslizou pelos seus lábios, reconhecimento inevitável que não pedia confirmação. Sem surpresa nem questionamento. Era aceitação pura, como se dissesse "então chegou o momento que sempre soubemos que viria". A voz carregava uma maturidade nova, um peso que não existia antes, esculpida por experiências que eu não partilhara, por dores que eu não testemunhara, por alegrias que me foram negadas.

 

Ficámos ali fixadas num segundo que se estendeu como eternidade perversa. Observava-me, não com raiva nem recriminação. Isso teria sido mais fácil de suportar. Mas com uma serenidade tão profunda, tão inexplicavelmente madura, que me dilacerou mais que qualquer confronto poderia. Era como se já soubesse. Como se aquele encontro tivesse sido ensaiado em sonhos durante uma década.

 

Não havia praia. Nem animal ofegante. Nem brisa salgada.

 

Apenas aquele azul turquesa cravado em mim.

 

A água gelada continuava a escorrer pelas minhas costas, infiltrando-se pela roupa como uma segunda pele molhada e desconfortável, contudo eu só conseguia processar aquela presença devastadora. A forma como preenchia o espaço sem se mover. Como me atravessava sem tocar. Como me desmontava com a mesma facilidade de antes, como se uma década fosse apenas um intervalo, uma pausa entre atos do mesmo drama que nunca terminara verdadeiramente.

 

Quis falar.

 

Dizer qualquer coisa. Pronunciar o seu nome. Explicar a minha presença como se fosse possível justificar dez anos de ausência com palavras. Pedir desculpa por ter escolhido a separação quando deveria ter lutado, por ter sido cobarde quando deveria ter sido corajosa. Todavia a garganta transformara-se em pedra sólida, e a mente num emaranhado de emoções que se atropelavam como animais em pânico, incapazes de se organizarem em palavras coerentes ou sequer humanas.

 

— Não esperavas encontrar-me aqui.

 

Não era uma pergunta, era uma constatação fria como gelo. A sua voz mantinha aquela cadência arrastada, aquele sotaque australiano que me fazia estremecer até aos ossos, contudo com uma gravidade nova que falava de transformações que eu não presenciara.

 

Abanei a cabeça lentamente, incapaz de articular uma mentira convincente porque era verdade e mentira ao mesmo tempo. Não esperava encontrá-la assim, tão subitamente, tão sem aviso. Esperava sim, encontrá-la amanhã, na sua exposição, num território neutro onde pudesse controlar a minha própria vulnerabilidade, onde pudesse fingir alguma compostura.

 

Algo lhe passou pelo rosto como nuvem rápida, uma sombra fugaz, tão veloz que quase a perdi, mas que me disse que ela também estava a processar, também estava a lutar contra algo. Vi-a desviar brevemente a atenção para o golden retriever que permanecia do seu lado, agora sentado na areia numa obediência súbita, como se também ele sentisse a densidade do momento.

 

Foi nesse exato instante que outra presença se fez sentir, cortando o ar pesado entre nós.

 

— Oh.

 

O simples som carregava algo entre surpresa e reconhecimento, como se quem o pronunciara tivesse acabado de assistir ao desfecho de uma história cujo final já previa. Virei a cabeça para além do ombro de Chloe e ali estava ela.

 

A ruiva.

 

A poucos metros de distância, braços cruzados sobre o peito, peso do corpo deslocado para um dos lados numa pose que era puramente caraterística, como se tivesse acabado de chegar e já soubesse exatamente o que estava a acontecer. Aquela pupila castanho-dourada avaliou a cena com uma calma estudada, como quem assiste ao clímax de um drama que acompanhou desde o primeiro ato.

 

— Piper. — A voz de Chloe saiu controlada, contudo percebi como o maxilar se contraiu ligeiramente. Um aviso mudo, ou talvez apenas o desconforto de ter plateia para um momento tão íntimo, tão carregado de história.

 

Contudo o que mais me inquietou não foi o facto de ela estar ali, mas o que vi na sua expressão. Entendimento. Como se sempre soubesse que esse momento viria, que essa história não poderia simplesmente ficar inacabada como um livro com páginas em branco.

 

— Parece que o passado resolveu fazer uma visita surpresa. — Proferiu arqueando uma sobrancelha com aquela precisão teatral, fingindo um ar de tédio, porém os seus olhos brilhavam com algo mais afiado. Perspicácia, provocação, talvez até um traço de satisfação perversa.

 

A loira endireitou-se com uma fluidez felina, e por um momento vi a máscara deslizar completamente para o lugar. A provocadora que eu conhecia emergiu à superfície como uma segunda natureza, aquela capacidade inata de transformar qualquer situação em terreno controlado, de reivindicar poder mesmo quando vulnerável.

 

— Sempre com o timing perfeito, não é verdade? — Havia ironia na sua voz, mas também algo mais denso. Proteção, talvez. Como se quisesse blindar aquele momento de comentários demasiado afiados, preservar alguma dignidade no meio do caos.

 

— Então? — A ruiva persistiu, alternando a atenção entre mim e Chloe como uma espectadora impaciente. — Alguém vai dizer alguma coisa ou vão continuar nesse duelo mudo?

 

A outra deu um passo em frente, e o movimento foi tão espontâneo, tão naturalmente dela, que por um instante foi como se os anos nunca tivessem passado. Como se fôssemos apenas duas pessoas na praia, sem o peso de uma década de silêncio entre nós.

 

— Que tal deixarmos o teatro para depois, sim? — A sua voz recuperou aquela cadência familiar, aquela forma de falar que era mais sussurro que afirmação. — Maya veio até aqui por uma razão. E eu gostaria de a ouvir. — Fez uma pausa deliberada, aquela íris oceânica cravada na minha com uma intensidade que me roubou o fôlego. — Sozinhas.

 

O meu coração saltou uma batida. Ou talvez duas. Ou talvez tenha parado completamente por um segundo antes de retomar um ritmo desgovernado. Porque naquelas palavras havia um reconhecimento tácito que me atingiu como uma onda. Que havia algo entre nós que precisava de ser dito. Que este encontro não era acidental, pelo menos não da minha parte.

 

Piper suspirou dramaticamente, porém captei o leve sorriso que tentava esconder nos cantos da boca.

 

— Está bem, está bem. — Acenou para a loira com um gesto vago, depois dirigiu-me um olhar que era pura avaliação. — Algumas conversas não podem ficar eternamente adiadas.

 

E então, minutos depois ficámos sozinhas.

 

O cão, cansado da espera e do drama humano, deitou-se na areia aos pés de Chloe com um suspiro que parecia ecoar o meu próprio cansaço existencial. O som das ondas voltou a ganhar presença, preenchendo a quietude que se instalava entre nós como uma melodia melancólica. No entanto desta vez era expectante, carregada de possibilidades que não ousava nomear.

 

Cruzou os braços, não de forma defensiva, porém como quem se prepara para ouvir uma verdade que já intuía há muito tempo. A sua atenção não se desviou da minha, e nela vi algo que me desarrumou completamente por dentro.

 

Paciência.

 

Como se tivesse todo o tempo do mundo para me ouvir. Como se fosse capaz de esperar o tempo que fosse necessário para que eu encontrasse as palavras certas, as únicas palavras que poderiam justificar uma década de silêncio.

 

— Então — disse finalmente, a voz suave como areia movendo-se ao vento, mas com uma firmeza de ferro por baixo — o que te trouxe de volta?

 

Antes que pudesse formar qualquer palavra, qualquer esboço de explicação, Chloe deu um passo lateral, criando uma distância subtil entre nós. Não era recuo, era reposicionamento estratégico, como se soubesse instintivamente que precisaríamos de espaço para respirar através do que estava prestes a ser dito.

 

— Não — corrigiu-se, a voz ganhando uma nova firmeza. — Deixa-me reformular isto. — Aquele azul-turquesa fixou-se no meu com uma intensidade que me fez estremecer. — O que realmente queres saber é se ainda tens o direito a estar aqui.

 

A precisão cortante daquelas palavras acertou-me como uma bofetada gelada, cruel na sua exatidão. Porque era exatamente isso. Não se tratava apenas de explicar a minha presença física naquela praia, naquele momento. Era sobre explicar o meu direito de regressar depois de ter escolhido partir, de interromper uma vida que eu própria escolhera abandonar, de reclamar um lugar que talvez nunca mais me pertencesse.

 

— Chloe. Eu... — comecei, a voz falhando-me como sempre falhava nos momentos cruciais. — Precisava de te ver.

 

As palavras saíram cruas, sem ornamentos, despidas de qualquer eloquência. Observei como a atingiram, um piscar mais demorado, um ligeiro inclinar da cabeça como se estivesse a processar não apenas o que eu dissera, porém, todas as camadas de significado enterradas por baixo.

 

— Depois de dez anos. — Não era acusação, era uma afirmação fria como gelo ártico. — Por quê agora?

 

O sol tocava o horizonte, tingindo-nos de dourado como personagens numa fotografia antiga. O animal suspirava na areia numa resignação quase humana. E eu, ali de pé, encharcada e tremendo não apenas de frio, mas de algo muito mais profundo, percebi que todas as respostas que ensaiara durante uma década se tinham dissolvido naquele azul turquesa implacável.

 

Como explicar que o "agora" chegara porque o "antes" se tornara insustentável? Como dizer que regressara não para reclamar o passado, mas para finalmente conseguir enterrá-lo com a dignidade que merecia?

 

— Tu nunca foste boa com as palavras nos momentos difíceis — expôs finalmente, a observação carregava uma intimidade dolorosa, como se ainda me conhecesse melhor do que eu mesma depois de todos aqueles anos. — Sempre preferiste evitar ou fugir a explicar.

 

O comentário cortou fundo, mais pela verdade cirúrgica que continha do que pela crueldade. Senti o sangue subir-me ao rosto numa onda de calor, não de vergonha, contudo de reconhecimento brutal da minha própria natureza.

 

— Vi uma fotografia. — As palavras escaparam-me antes que a prudência as travasse, cruas e honestas como uma confissão arrancada à força. — Tu... de vestido branco.

 

A quietude que se seguiu foi ensurdecedora, densa como neve que abafa todos os sons. Vi o momento exato em que a compreensão atravessou as suas feições como uma sombra, lenta e inevitável. A sua expressão estreitou-se ligeiramente, não com raiva, isso teria sido mais simples, mas com algo mais perigoso. Avaliação fria, calculada.

 

— Ah. — O som saiu baixo, quase um sussurro carregado de um conhecimento amargo. — Então foi isso.

 

Vi-a franzir ligeiramente o sobrolho, mais um gesto que sempre fazia quando processava informações dolorosas, quando tentava organizar internamente algo que resistia à lógica. A sua atenção não se desviou da minha, porém algo mudou na profundidade daquele azul, como se uma cortina transparente, todavia impenetrável tivesse descido.

 

— Uma fotografia do meu casamento te trouxe até aqui.

 

Mais uma vez uma constatação pronunciada com aquela precisão cirúrgica que sempre usara quando queria que eu enfrentasse a verdade crua sobre mim mesma, sem ornamentos nem piedade.

 

A brisa mudou de direção, trazendo consigo o cheiro a sal e algo mais, a sua fragrância, ainda familiar depois de todos estes anos, agora misturada com uma mágoa que eu não conseguia decifrar.

 

— Sabes o que é mais interessante nisso? — Continuou dando mais um passo lateral, sempre mantendo aquela distância intencional como uma dança coreografada. — Durante dez anos, tive tempo para imaginar todos os cenários possíveis para o teu regresso. Mas nunca pensei que seria essa a razão.

 

Havia uma dor contida naquelas palavras, embrulhada em ironia defensiva como um presente envenenado. Como se estivesse simultaneamente magoada e quase divertida com a previsibilidade da situação, com a minha incapacidade de surpreendê-la mesmo depois de tanto tempo.

 

Nesse instante, vi-a ajustar algo no dedo anelar da mão esquerda. Um movimento subtil, quase distraído, que me fez baixar involuntariamente a vista. O ouro capturou a luz do pôr do sol por uma fração de segundo, brilhando contra a pele bronzeada como uma pequena constelação de pertenças. Uma aliança. Simples, elegante, mas inequivocamente presente, inequivocamente real.

 

O estômago contraiu-se-me numa dor surda que irradiou pelo corpo inteiro.

 

Dez anos. Dez anos em que ela construíra uma vida da qual eu não fazia parte, uma vida inteira tecida de manhãs partilhadas, de decisões tomadas a dois, de uma intimidade quotidiana que eu nunca chegara a conhecer verdadeiramente. E ali estava a prova física dessa vida, abraçando-lhe o dedo como uma promessa cumprida, como um juramento honrado.

 

— Maya — pronunciou o meu nome como costumava fazer quando queria que eu parasse de me esconder de mim mesma, quando me forçava a enfrentar verdades que preferia ignorar — se vieste aqui porque viste uma fotografia, se vieste porque finalmente percebeste o que perdeste, então vieste pelas razões erradas.

 

O cão ergueu a cabeça como se sentisse a tensão no ar tornar-se quase palpável. Chloe baixou a mão automaticamente para lhe fazer um carinho, um gesto tão natural, tão fluido, que me fez perceber quantos pequenos rituais, quantas intimidades quotidianas eu nunca chegara a conhecer dela. Quantos universos privados se construíam quando duas pessoas escolhem partilhar uma vida. Mas a forma como os seus dedos se demoraram no pelo dourado captou a minha atenção, uma necessidade quase urgente de toque reconfortante, como se procurasse âncora em algo simples e incondicional.

 

— Eu não sou a mesma pessoa que deixaste para trás — afirmou, e a certeza na voz deveria soar absoluta, porém captei uma fissura quase invisível, um ligeiro tremor nas bordas que falava de convicções testadas. — E tu... tu ainda és exatamente a mesma. Chegando quando é tarde demais.

 

As palavras saíram-lhe demasiado rápidas, como se quisesse convencer-se a si própria tanto quanto a mim. Comprimi os lábios, enquanto a vi-a dirigir brevemente a atenção para o horizonte onde o sol se despedia em tons de fogo. O movimento pareceu mais uma fuga momentânea do que contemplação.

 

— Construí uma vida, Maya. — A voz suavizou ligeiramente, não com ternura, mas com a delicadeza reverente de quem fala sobre algo que não deve ser profanado. — Com alguém que me escolheu quando eu estava disponível para ser escolhida.

 

Não mencionou nome. Não disse "esposa" ou "mulher" ou qualquer outro rótulo. Apenas "alguém", porém a forma como o expôs carregava um peso que transcendia as palavras. Notei uma oscilação breve passar-lhe pelo rosto, uma sombra ténue, como se aquela afirmação lhe custasse mais energia do que deveria.

 

— E a minha esposa — a palavra saiu-lhe mais baixa, quase sussurrada, como se fosse demasiado preciosa para ser pronunciada em voz alta — merece que eu proteja o que construímos. — Vi como a sua mão involuntariamente se moveu em direção à aliança. — Merece que eu não deixe fantasmas do passado perturbarem...

 

A frase ficou suspensa no ar. Vi-a engolir em seco, os olhos desviando-se brevemente dos meus pela primeira vez desde que começáramos a falar. Quando voltou a fixar-me, havia uma intensidade nova naquele azul-turquesa, como se estivesse a lutar contra algo que ameaçava escapar-lhe ao controlo.

 

— Perturbarem a nossa paz. — Terminou finalmente, mas as palavras saíram demasiado ensaiadas, como se as tivesse repetido para si mesma até se convencerem de que eram verdade.

 

E mesmo assim a palavra "fantasmas" cortou mais fundo do que qualquer acusação direta poderia. Porque era isso que eu era agora, um espectro do que podia ter sido, regressando para assombrar uma felicidade que ela provavelmente conseguira construir sem mim, apesar de mim, para além de mim.

 

O cão do seu lado mexeu-se inquieto, como se captasse as ondas emocionais que se chocavam entre nós. Chloe baixou-se para ficar na mesma altura dele, e o sorriso que lhe ofereceu foi tão terno, tão íntimo e protetor, que me fez perceber quanto dessa ternura eu perdera o direito de testemunhar. Quantos sorrisos como aquele ela oferecia agora a outra pessoa, quantas manhãs começavam com aquela delicadeza que um dia me pertencera.

 

— Não quero magoar-te. Nem te castigar. Isso seria fácil demais. — Comentou ainda com a sua atenção dividida entre mim e o animal, os dedos deslizando pelo dourado numa carícia automática. — Mas se queres começar por algum lado, Maya...

 

Quando ergueu a cabeça, aquele azul turquesa cravou-se na minha direção com uma intensidade que me fez cambalear, não fisicamente, mas em todas as outras formas possíveis.

 

— Começa por não esperar muito de mim.

 

As palavras ficaram suspensas no ar salgado entre nós, definitivas como uma porta que se fecha. Não com violência ou dramatismo, mas com uma firmeza serena que não deixava espaço para interpretações ou negociações. Era um limite traçado com a precisão de quem aprendera a proteger-se, de quem pagara o preço de ser demasiado generosa com o coração.

 

Fiquei ali, petrificada numa paralisia que não era apenas física.

 

O corpo transformou-se em estátua, cada músculo contraído numa rigidez que me prendia àquele momento impossível. Como se todas as células tivessem decidido em uníssono parar de funcionar, deixando-me suspensa num presente que se recusava a passar. A respiração prendeu-se-me algures entre os pulmões e a garganta, e o mundo reduziu-se àquelas palavras ecoando em espiral infinita dentro do meu crânio.

 

Não esperes muito de mim.

 

Vi Chloe passar a mão pelo cabelo, os dedos deslizando pelas mechas loiras num gesto que conhecia demasiado bem, que me transportava instantaneamente para outros locais. Era o que fazia quando a paciência chegava ao limite, quando as palavras se esgotavam e só restava a exaustão. O movimento carregava uma fadiga profunda, como se aquela conversa lhe tivesse custado mais energia do que estava disposta a gastar, como se cada palavra tivesse sido retirada de uma reserva quase vazia.

 

— Alf. — A voz saiu firme, cortando o ar com uma autoridade que não admitia hesitação. — Vamos.

 

O cão ergueu-se de imediato, sacudindo a areia do pelo numa chuva de cristais, posicionou-se ao lado dela com uma obediência que falava de rotinas estabelecidas. Chloe não me dirigiu um último olhar. Não procurou uma palavra final, um gesto de despedida. Simplesmente virou costas e começou a caminhar em direção a Piper, os passos firmes deixando marcas temporárias na areia húmida que as ondas logo apagariam.

 

Observei-a afastar-se, incapaz de me mover, ainda presa naquele estado de paralisação emocional que me roubara todas as funções básicas. A forma como o vento lhe agitava o cabelo. A elegância natural dos movimentos que o tempo não conseguira alterar. A aliança que continuava a brilhar discretamente, prometendo outras manhãs, outras conversas que não me incluiriam.

 

Quando chegou junto da ruiva, vi-as trocar palavras rápidas, sussurradas. Palavras que não consegui ouvir, porém cujo tom adivinhei pela linguagem corporal, Chloe falava baixo, a cabeça ligeiramente inclinada, enquanto Piper assentiu com uma seriedade rara nela. Houve um momento em que a ruiva dirigiu a vista na minha direção, e nesse breve cruzamento de olhares captei algo que me fez estremecer. Não era pena, era avaliação, como se estivesse a medir o dano causado e as possibilidades de reparação.

 

Depois, a loira afastou-se pela praia, o cão trotando do seu lado como uma sombra dourada, deixando-me ali sozinha com o peso de uma década de escolhas erradas a pressionar-me os ombros.

 

Foi só quando a brisa fria me atingiu que me apercebi do estado ridículo em que me encontrava. A roupa encharcada colava-se-me ao corpo como uma segunda pele gelada, cada movimento um lembrete físico do absurdo da situação. Ali estava eu, a pingar água salgada, ainda atordoada pelo embate emocional, parecendo uma náufraga que chegara à costa errada.

 

Virei-me lentamente e comecei a caminhar em direção à casa que arrendara. Cada passo na areia era um esforço hercúleo, como se as pernas tivessem esquecido a sua função básica. A temperatura do corpo começava a descer perigosamente, e com ela uma lucidez fria ia-se instalando como gelo nos meus ossos.

 

O que esperava que acontecesse? Que ela me visse e tudo se resolvesse magicamente? Que dez anos de ausência se apagassem com um pedido de desculpas bem formulado? Que o tempo fosse reversível e as feridas cicatrizassem sozinhas?

 

Estava tão perdida nos meus pensamentos autodestrutivos que não ouvi os passos atrás de mim. Foi só quando uma mão me segurou o pulso com firmeza que parei, o coração saltando numa batida irregular que quase me fez desmaiar.

 

— Espera.

 

Virei-me e encontrei Piper ali, mais próxima do que esperava, o rosto sério de uma forma que contrastava brutalmente com a sua personalidade habitual. Não havia ironia, nem aquele sorriso provocador que lhe era tão característico. Havia algo mais denso, mais direto, mais perigoso.

 

— Não podes simplesmente ir-te embora assim — afirmou, a voz carregada daquela franqueza brutal que sempre a definira. — Não depois de dez anos. Não depois de teres aparecido do nada e teres destruído a tranquilidade de um final de tarde.

 

Puxei delicadamente o braço, libertando-me do seu toque, todavia sem hostilidade, apenas com o cansaço de quem já não tem energia para mais confrontos.

 

— O que é que queres, Piper? — A minha voz saiu mais rouca do que esperava, carregada de uma fadiga existencial que pesava como chumbo.

 

— Quero saber se alguma vez planeaste contar a verdade toda, ou se vieste aqui apenas para te sentires melhor contigo própria antes de desapareceres outra vez.

 

A acusação atingiu-me como um soco certeiro no estômago. Abanei a cabeça incrédula. Por um momento, quis defender-me com palavras indignadas, explicar que não era assim tão simples. Cruzei os braços, enquanto esta me encarava, com uma intensidade que me dizia que ela já sabia mais do que eu imaginara, que sempre soubera.

 

— Queres ouvir a minha versão agora? — disparei, sentindo uma raiva antiga despertar como brasa soprada. — Depois de todos estes anos a julgar-me à distância, sem realmente conheceres os factos?

 

Ela não recuou nem sequer pestanejou perante a minha explosão defensiva.

 

— Sim — respondeu com uma simplicidade desarmante. — Quero.

 

Avaliei-a por alguns segundos tensos, tentando decifrar se aquela seriedade súbita era genuína ou apenas mais uma das suas estratégias para me desestabilizar. O vento frio atingiu-me novamente, fazendo-me estremecer dentro da roupa encharcada que começava a aderir à pele de forma desconfortável. A água salgada secava lentamente, deixando cristais microscópicos que ardiam ligeiramente, lembrando-me de que precisava de sair daquelas roupas antes de apanhar uma pneumonia.

 

— Vem comigo — disse finalmente, indicando com um aceno de cabeça a direção da casa que se erguia como um refúgio moderno contra o caos emocional. — Preciso de me trocar. Podemos tomar um café enquanto... enquanto conversamos.

 

Não era propriamente um convite caloroso. Estava mais para uma rendição, como se soubesse que esta conversa seria inevitável, que ela não me deixaria simplesmente desaparecer outra vez sem explicações.

 

Assentiu sem comentários supérfluos, e começámos a caminhar lado a lado pela areia.

 

— Bonita casa — comentou quando a estrutura contemporânea se materializou diante de nós, as linhas limpas contrastando com a selvajaria natural da paisagem costeira.

 

— Estrategicamente escolhida — admiti, procurando as chaves no bolso molhado com dedos que já mal sentiam o frio. — Queria estar perto o suficiente para que isto acontecesse.

 

— Então estava tudo planeado? — Perguntou, arqueando uma sobrancelha.

 

— Mais ou menos — murmurei, empurrando a porta com mais força do que necessário. — Entra.

 

O interior ofereceu-nos um contraste súbito e bem-vindo com o ambiente exterior. Ar aquecido, cheiro a madeira tratada e produtos de limpeza, uma quietude que apenas o rumor distante do oceano quebrava através das janelas. Deixei um rasto de gotas no chão polido enquanto me dirigia para a cozinha com movimentos automáticos.

 

— Café? — questionei, já a mexer nos armários com gestos mecânicos que não exigiam pensamento.

 

— Por favor.

 

A ruiva instalou-se numa das banquetas altas da bancada de mármore, os cotovelos apoiados na superfície fria, observando-me com aquela atenção penetrante que sempre me fazia sentir como um espécime sob um microscópio. Não era exatamente desconfortável, apenas intensa.

 

— Vou tomar um duche rápido — anunciei quando a máquina de café começou a fazer o seu trabalho ritmado. — Não te importas de esperar?

 

— Tenho todo o tempo do mundo — respondeu, fazendo-me perceber que aquela conversa seria muito mais longa e dolorosa do que eu imaginara.

 

— Certo. — Murmurei, mordendo o interior da bochecha antes de lhe virar as costas numa retirada estratégica.

 

Subi ao quarto com passos pesados que ecoavam pela escada como uma marcha fúnebre. O corpo finalmente registava a fadiga acumulada, não apenas físico, era emocional, mental, existencial. Como se todas as defesas que construíra ao longo dos anos tivessem desmoronado numa única tarde, deixando-me nua e vulnerável.

 

Debaixo do duche, deixei que a água quente lavasse o sal e a areia, mas sabia que não conseguiria lavar a memória daquele azul-turquesa cravado em mim como uma lança, nem o eco daquelas palavras finais que continuavam a reverberar nos meus ossos. Não esperes muito de mim. Como se fosse assim tão simples. Como se eu pudesse simplesmente desligar uma década de saudade como quem apaga uma luz. Como se pudesse ignorar os ligeiros indícios que detetei, aquela fissura momentânea no azul turquesa que me disse que até ela parecia lutar contra si mesma.

 

Fechei as pálpebras, encostando as costas contra os azulejos frios, deixando que a água deslizasse pelo meu corpo numa carícia que não conseguia aquecer o frio que se instalara no meu peito. Porque talvez, apenas talvez, a Chloe que me ordenara para não esperar muito fosse a mesma que ainda travava uma batalha silenciosa entre o que construíra e o que nunca conseguira enterrar por completo.

 

No entanto eram apenas fragmentos. Migalhas de esperança que eu não tinha o direito de recolher. E mesmo que tivesse razão, mesmo que houvesse uma parte dela que ainda lutava contra o que sentia, isso não mudava a realidade, ela tinha uma vida, uma esposa, compromissos que transcendiam qualquer nostalgia do passado.

 

Desliguei a água e permaneci ali por um momento, envolta do vapor que se dissipava lentamente, como os últimos vestígios de uma ilusão.

 

Agora precisava de enfrentar Piper.

 

Quando regressei à cozinha, vestida com jeans secos e uma camisola de lã macia que me abraçava como um casulo protetor, encontrei a ruiva exatamente na mesma posição. Duas xícaras fumegavam sobre a bancada como oferendas de paz. E claro, o pacote de bolachas já estava aberto, meio devorado, alguns hábitos nunca mudavam.

 

— Estava a ver que tinhas decidido fugir outra vez — comentou, empurrando uma das porcelanas na minha direção com um gesto que tentava parecer casual. — Pela janela do quarto, talvez. Não seria a primeira vez que escolhes a saída menos corajosa.

 

Sentei-me sem dizer nada, o mármore frio sob os antebraços a lembrar-me de que não havia forma de suavizar aquilo que estava prestes a acontecer. Piper não era o tipo de pessoa que permitia floreios ou evasivas.

 

— Tu sempre soubeste — comecei, com a voz mais baixa do que gostaria, as palavras saindo como confissão arrancada — que um dia eu ia voltar.

 

Arqueou uma sobrancelha numa expressão que misturava surpresa e algo parecido com satisfação. Depois bebeu um gole do café, como se ponderasse se valia a pena gastar saliva com verdades óbvias.

 

— Soube que um dia ias ter de enfrentar isto — corrigiu, com uma naturalidade que contrastava com a densidade do momento. — A única dúvida era quando. E se, quando o fizesses, já seria tarde demais para mudar alguma coisa.

 

— E foi? — questionei, sem conseguir encará-la diretamente, a vista perdida no líquido escuro da minha xícara.

 

Piper pousou a peça devagar, com um leve tinido contra a bancada que ecoou no silêncio. Aquela pupila castanho-dourada manteve-se fixa em mim, intensa e impiedosa.

 

— Queres mesmo que seja eu a responder a isso? — A sua voz era cortante, contudo não fria, com um certo tom de compaixão. — Tu sabes perfeitamente que sim. Ou não tinhas demorado uma década inteira para aparecer.

 

Apertei a xícara entre as mãos, embora o café já estivesse apenas morno.

 

— Por que me colocas nesta posição? — murmurei, num fio de voz que mal conseguiu atravessar o espaço entre nós.

 

— Porque às vezes — disse ela, com aquele meio sorriso que era tudo menos divertido — ouvir a verdade da tua própria voz dói mais do que quando vem de outros. E é disso que precisas agora. Não de consolo barato. Nem de desculpas bem formuladas. Precisas de ouvir, em voz alta e clara, o que escolheste calar durante anos.

 

Endireitei-me na banqueta, o peito erguendo-se num suspiro que mais parecia um grito abafado. Pousei a bebida sob a bancada com força desnecessária, o som ecoando como uma pequena explosão.

 

— Achas que não sei? — O tom saiu mais alto do que pretendia, repleto de uma dor que há muito tentava conter. — Achas que não repito isso todas as noites em que não consigo dormir? Que não imagino mil versões diferentes daquilo que poderia ter feito, daquilo que deveria ter escolhido? — O volume subiu ainda mais, anos de frustração a jorrar como água de uma represa rebentada. — Tu falas como se fosse simples. Como se bastasse regressar, encarar as consequências, dizer 'aqui estou' e pronto, tudo resolvido como num filme romântico barato.

 

Piper não se mexeu. Nem sequer pestanejou perante a minha explosão emocional.

 

— Sim, porque isso seria demasiado fácil, não é? — retrucou com uma calma irritante que contrastava brutalmente com o meu estado. — E tu sempre preferiste a versão difícil, aquela onde te sacrificas tanto que te esqueces de que também tens direito a viver.

 

— Eu fiz o que era preciso! — disparei, sentindo a vista arder com lágrimas de raiva. — O meu pai estava a morrer, Piper. E a Chloe, ela queria que eu lutasse, sim, mas ela não fazia ideia do que aquilo implicava realmente. O que significava ser filha ali, naquele lugar, naquelas circunstâncias. Ser... eu ali. Não é tão simples como imaginas que seria se fosse contigo, com a tua família.

 

A ruiva encostou-se para trás na banqueta, permitindo, finalmente, a existência de um pequeno espaço físico entre nós. Porém a atenção nunca vacilou, nunca me deu trégua.

 

— Claro. Porque eu nunca me esconderia atrás do que os outros esperam de mim, não é verdade? — A voz dela tinha uma aridez que cortava mais fundo que qualquer grito.

 

Essas palavras foram mais devastadoras do que qualquer confronto direto. Doeram porque eram verdadeiras, porque vinham de alguém que me conhecia o suficiente para acertar em cheio. Porque, vindas dela, soavam como espelhos partidos refletindo os meus próprios estilhaços.

 

— Tu não sabes o que eu vivi — sussurrei, a voz baixando até ser quase inaudível, todo o meu sistema nervoso subitamente exausto. — Não sabes o que custou escolher aquilo. Deixá-la. Deixar tudo o que finalmente fazia sentido na minha vida.

 

Inclinou-se para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, e por um momento houve algo de quase terno na forma como me contemplou. Quase.

 

— Não, não sei — admitiu com uma honestidade que me apanhou desprevenida. — Mas sabes o que vi hoje? Vi-te ali, imóvel diante dela, com o mundo inteiro a tremer dentro dos teus olhos, e não disseste nada do que realmente importava. Para alguém que tem tanto por dizer, que carrega tanto peso, parecias absurdamente calada.

 

A vergonha colou-se à pele como roupa húmida. Tentei responder, justificar-me, mas tudo o que surgiu foi um soluço mudo, uma confusão de palavras que não chegaram a nascer porque não havia defesa possível.

 

Ela esticou o braço e empurrou-me delicadamente a bebida mais para perto, como se me lembrasse de que respirar e beber eram funções básicas necessárias à sobrevivência.

 

— Conta-me o que aconteceu depois. — Pediu, a voz agora mais baixa, contudo ainda firme que antes. — Conta-me a parte que realmente importa.

 

Ergui a cabeça lentamente, confusa pela mudança de rumo.

 

— Depois de quê?

 

Não piscou. Não suavizou a intensidade do olhar.

 

— Depois de teres partido. Depois de teres escolhido o dever sobre o amor. Ou até mesmo o antes. Conta-me como foi construir uma vida sobre uma mentira.

 

Respira, Maya. Organiza os pensamentos. Uma década resume-se a quê, exatamente?

 

Endireitei as costas na cadeira e fechei as pálpebras lentamente, passando os dedos pela testa numa tentativa fútil de organizar uma década de história numa narrativa coerente.

 

Por onde começar?

 

— Quando soube sobre o estado de saúde do meu pai, a doença ainda não estava nem pela metade do seu curso devastador. Parecia que o universo estava apenas à minha espera para que, subitamente, tudo piorasse. — A voz saiu-me áspera, como se as palavras tivessem de ser arrancadas de algum lugar fundo, onde as mantivera enterradas. — Eu tinha decidido que não valeria a pena manter a relação. Não seria justo para ela, seria? Se eu não sabia quando voltaria ou por quanto tempo ficaria lá? Mas naquela noite...

 

Parei. O café esfriava entre as minhas mãos, as palavras suspensas no ar como pedaços que recusavam juntar-se numa exposição coerente.

 

A ruiva inclinou-se para a frente, os cotovelos pousados na mesa, aquela intensidade familiar no olhar que me dizia que não me deixaria escapar com meias verdades.

 

Respirei fundo. O cheiro da bebida misturava-se com o aroma salgado que chegava da janela aberta, transportando-me de volta àquela praia, ao som das ondas, ao seu perfume.

 

— Ela disse que me amava. — As palavras escaparam-me num sussurro quebrado. — Não como tinha dito antes. Foi diferente. Crua. Como se estivesse a entregar-me a alma dela sem defesas. Eu não sou boa a expressar-me — Admiti com um riso seco. — Já ela é extremamente incisiva.

 

Parei novamente, sentindo o peito apertar-se com a memória que se materializava com uma nitidez cruel. O silêncio instalou-se entre nós como uma presença viva, densa. A ruiva não disse nada, apenas esperou com aquela paciência implacável, e eu percebi que tinha de continuar.

 

A lembrança materializou-se diante de mim com uma precisão fotográfica que me cortou a respiração.

 

 

 

***

 

O ar noturno vibrava com uma tensão elétrica que parecia nascer do próprio oceano. Chloe caminhava do meu lado, os pés descalços afundando-se na areia ainda morna do dia que morria, o silêncio entre nós denso como névoa. Não falava, mas sentia a sua presença como uma corrente constante, captava-lhe os olhares furtivos pelo canto do olho enquanto tentava decifrar a tempestade que se formava na minha cabeça.

 

Quando parámos junto às rochas onde tantas vezes nos tínhamos sentado para observar as estrelas, foi ela quem rasgou o silêncio como quem rasga um tecido delicado.

 

— Diz-me que não é o que estou a pensar. — Sussurrou, tensa. — Por favor, Maya. Não és capaz.

 

Não consegui responder de imediato. As palavras que havia ensaiado durante horas de insónia, que tinha repetido mentalmente até as decorar como uma oração terrível, dissolveram-se como sal na água.

 

— O meu pai... — comecei, no entanto ela cortou-me com uma urgência que me atingiu como uma bofetada física.

 

— O teu pai não te pediu para escolheres entre ele e eu. — A firmeza na voz dela contrastava brutalmente com o tremor que lhe sentia nas mãos quando me tocou o braço. — És tu quem está a fazer essa escolha. És tu.

 

Afastei-me do toque porque sabia que se a deixasse tocar-me, se sentisse o calor familiar da sua pele, não conseguiria dizer o que tinha de dizer. Não conseguiria manter a determinação que me custara semanas a construir.

 

— Não é uma escolha, é a realidade. — As palavras saíram mais duras do que pretendia, mais frias do que sentia. — Eu tenho de voltar. Tenho de cuidar dele. Não sei por quanto tempo, não sei se ele vai melhorar, não sei nada sobre o futuro. E não posso arrastar-te comigo para essa incerteza.

 

Ficou em silêncio por um momento que se estendeu como eternidade. A sua respiração tornou-se audível, entrecortada, como se estivesse a lutar contra algo que crescia no peito e ameaçava explodir. Vi-a passar a mão pelos cabelos naquele gesto que fazia quando tentava reorganizar-se internamente.

 

— E se eu quiser ser arrastada? — A pergunta saiu-lhe quase inaudível, porém carregada de uma desesperança que me atravessou como uma lâmina gelada.

 

O impacto atingiu-me como uma onda gigante, roubando-me o fôlego e o equilíbrio emocional. Virei-me na sua direção, finalmente, e vi nos seus olhos algo que raramente deixava transparecer. Não era a Chloe segura e provocadora de sempre. Era uma versão despida, crua, vulnerável de uma forma que me partia o coração.

 

Deu um passo em frente, e depois outro, até que consegui sentir o calor que irradiava da sua pele, o perfume que se misturava com a brisa noturna numa combinação que me embriagava os sentidos. As mãos ergueram-se, pairando no ar entre nós hesitantes, como se não soubesse se tinha permissão para me tocar, se ainda podia reivindicar esse direito.

 

— Maya. — O meu nome saiu-lhe quebrado, mais exalação que palavra, uma prece sussurrada. — Eu... — Parou, inspirou fundo como quem se prepara para mergulhar em águas perigosas. — Eu amo-te de uma forma que me assusta. De uma forma que não sabia que existia.

 

O mundo contraiu-se num ponto impossível. O som das ondas desvaneceu-se como se alguém tivesse baixado o volume do universo. Só havia ela, só havia aquela confissão que me cortava ao meio e me curava ao mesmo tempo.

 

— Eu não o digo porque é bonito ou romântico, ou porque soa bem numa praia sob o luar. — A voz dela ganhou uma urgência visceral, uma necessidade crua. — Amo-te porque... — a fala falhou-lhe por um segundo — porque quando estou contigo, não preciso de ser mais nem menos do que sou. Posso ser imperfeita, complicada, assustada, e mesmo assim sei que me vês. Que me reconheces.

 

As lágrimas queimavam-me os olhos como ácido, subindo do mais fundo do peito. Senti-me comprimir numa dor que era física, como se algo dentro de mim estivesse a partir-se ao meio, uma fissura irreparável a abrir-se entre o que queria e o que acreditava dever fazer.

 

— Chloe... — tentei, mas ela abanou a cabeça com desespero, as mãos finalmente chegando ao meu rosto com dedos trémulos.

 

— Não. Deixa-me terminar. Por favor. — As palmas dela moldaram-se às minhas faces como se quisesse garantir que eu não fugiria das suas palavras. — Quando te vejo com as crianças, quando te vejo a lutar contra ti própria para encontrares quem realmente és, quando te vejo a escolher coragem mesmo estando aterrorizada... — A voz partiu-se numa emoção crua. — Eu amo-te mais. Mais do que deveria ser possível amar outra pessoa.

 

Um soluço escapou-me antes que o conseguisse conter, violento e involuntário. Aproximou-se ainda mais, a testa dela tocando na minha numa intimidade que doía pela sua perfeição, as respirações misturando-se numa dança que era pura comunicação.

 

— Por favor... Não vás. — A voz despedaçou-se completamente, como vidro contra pedra, cada sílaba uma pequena morte. — Não assim. Não me digas que isto que temos, tudo o que descobrimos juntas, tudo o que construímos, não vale a pena lutar por ele.

 

Fechei as pálpebras com força, sentindo as lágrimas escorrerem quentes pelas faces numa libertação que há semanas tentava conter. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor, povoado apenas pelo som do meu próprio coração a despedaçar-se numa sinfonia lenta. O mar continuava a quebrar contra a costa, mas tudo o que conseguia ouvir era o eco daquelas palavras reverberando no meu peito.

 

— Não é sobre não valer a pena. — As palavras saíram num sussurro estrangulado, arrancadas do lugar mais fundo onde as escondera. — É sobre eu não ter nada para te oferecer neste momento. Nada além de dor, incerteza...

 

— Então deixa-me escolher. — Havia uma força nova na voz dela, uma determinação feroz que contrastava brutalmente com a vulnerabilidade crua dos olhos. — Deixa-me decidir se quero ficar do teu lado, mesmo que seja difícil. Mesmo que seja impossível. Deixa-me decidir se o que sinto por ti é forte o suficiente para sobreviver à distância.

 

— Eu não sei se conseguirei sustentar uma relação à distância, Chloe. Não sei se sou forte o suficiente para isso.

 

As suas mãos deslizaram até às minhas, entrelaçando os dedos numa ligação que parecia querer soldar-nos uma à outra, fundi-nos numa única entidade capaz de resistir a qualquer tempestade.

 

— Eu faço com que funcione. — A certeza na voz dela era absoluta, gravada em pedra, impossível de questionar. — Não me importa o fuso horário. Não me importa a distância. Não me importam as chamadas a meio da madrugada quando não souberes o que dizer, ou as ausências quando estiveres ocupada demais a cuidar dele. — O seu tom desceu até ser apenas um murmúrio desesperado. — Eu atravesso oceanos se for preciso. Aprendo a amar-te à distância se for o que tens para me oferecer agora.

 

Algo dentro de mim cedeu como uma represa que finalmente não aguenta a pressão acumulada. Os meus dedos apertaram os dela com uma força que roçava o desespero, como se pudesse transferir toda a minha dor através do toque.

 

— E se eu não conseguir? — A pergunta saiu-me rasgada, sangrenta. — E se eu te dececionar? E se não conseguir ser o que precisas quando estiver lá, sozinha, a ver o meu pai definhar dia após dia?

 

— Então eu espero. — A simplicidade devastadora da resposta desfez-me completamente, como se cada palavra fosse uma chave que abria fechaduras que eu nem sabia ter construído. — Espero até conseguires. Espero até estares pronta. Porque isto — os seus dedos apertaram os meus com uma intensidade que me cortou a respiração — Já te disse, isto que temos não tem prazo de validade. Não tem condições. Só tem amor. Amor suficiente para sobreviver a qualquer coisa.

 

A última muralha dentro de mim desmoronou-se como um castelo de areia atingido por uma onda gigante. Atirei-me para os seus braços, envolvendo-a com uma urgência que beirava o pânico, como se pudesse fundi-la comigo, como se pudesse garantir que nunca mais teríamos de nos separar, que nunca mais teria de escolher entre duas partes fundamentais de mim mesma.

 

— Eu também te amo. — As palavras saíram abafadas contra o pescoço dela, molhadas de lágrimas que não conseguia mais conter. — Amo-te tanto que dói fisicamente. Amo-te tanto que tenho medo de não conseguir respirar sem ti.

 

Senti-a tremer contra mim, as mãos agarrando-se às minhas costas como se eu fosse a única coisa sólida num mundo que se desfazia. O abraço apertou-se até nos transformar numa única entidade que respirava em uníssono.

 

— Fica comigo, Maya. — A voz partiu-se no final, como se cada palavra arrancasse um pedaço do seu coração. Os olhos brilhavam, não apenas pela luz fraca da lua, mas pelo choro que ela segurava com a mesma determinação com que segurava tudo o resto. — Fica comigo no que importa. No que somos uma para a outra.

 

Naquele momento, eu acreditei que seria possível. Que o amor seria suficiente para construir pontes sobre oceanos, para transformar distância em proximidade, para fazer com que dois corações batessem em sincronia mesmo separados por continentes.

 

 

 

***

 

 

 

— Mas não foi suficiente, pois não? — A voz de Piper cortou a memória como uma lâmina, trazendo-me de volta ao presente com uma brutalidade necessária.

 

Abri os olhos lentamente, sentindo o peso pressionar-me sob os ombros. A cozinha moderna da casa arrendada materializou-se à minha volta, fria e impessoal, contrastando brutalmente com a intimidade dourada daquela última noite.

 

— Não. — A palavra saiu como confissão final, carregada de tudo o que não conseguira sustentar. — Não foi.

 

— Então, continua. Conta-me o que realmente aconteceu já estando lá. — Insistiu, a voz mais suave agora, porém ainda implacável. — Eu sei que vocês tentaram. Houve telefonemas, mensagens e promessas cumpridas até deixarem de ser.

 

O silêncio instalou-se entre nós. Senti o peso das suas palavras assentar-se sobre os meus ombros como uma manta molhada, carregada de memórias que preferia manter enterradas.

 

Eu sabia que não havia mais espaço para rodeios. Não depois de ter vindo de tão longe, de ter enfrentado aqueles olhos azul-turquesa na praia e percebido quanto tinha perdido por não conseguir ser corajosa quando importava.

 

Fechei os olhos por um momento, deixando que a memória daquela última noite na praia se desvanecesse lentamente, substituída pela realidade muito mais cruel do que veio depois. Das promessas que fiz e não consegui cumprir. Do amor que jurei ser forte o suficiente para sobreviver a qualquer distância que se revelou mais frágil do que imaginara.

 

— Durante as primeiras semanas — comecei, a voz hesitante como quem testa a temperatura da água antes de mergulhar — foi exatamente como ela prometeu que seria.

 

A frase ficou suspensa no ar, carregada de tudo o que viria a seguir, de todas as formas como a realidade se revelou mais cruel do que os nossos sonhos românticos na areia.

 

Sabia que uma vez que começasse a contar, não haveria forma de parar.

 

Respirei fundo, preparando-me para abrir a ferida que nunca cicatrizara direito.

Fim do capítulo

Notas finais:

Vamos aprofundando um pouco mais nesta história.

O que será que nos reserva o próximo capítulo?

Obrigada a quem continua desse lado. Espero, sinceramente, que estejam a gostar.

Até breve!! **

 


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Comentários para 22 - Capítulo 21:
Socorro
Socorro

Em: 08/06/2025

Que capítulo !!

Reencontrar alguém que amamos é perceber que a distância e o tempo não são capazes de mudar uma conexão verdadeira. ...

.....

 Mtas mágoas,dores e emoções ....


sabia que choe estava casada e sua mulher é a Grace;

Maya, vai precisar lutar mto 
piper afiada como smp

quero logo o próximo kkkk

 


asuna

asuna Em: 14/06/2025 Autora da história
Há reencontros que não obedecem ao tempo, mas, às vezes, esses reencontros chegam tarde demais, mesmo quando tudo ainda pulsa.
Quanto à Grace...
Espero que gostes do seguimento que tenho preparado!


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