O Peso do Azul por asuna
Capítulo 20
O brilho azul do oceano estendia-se diante de mim, visível através das grandes janelas da varanda. O vento soprava leve, arrastando consigo o sal do mar e o aroma amadeirado do café que repousava, intocado, à distância de uma mão.
A residência que alugara, tinha sido estrategicamente escolhida para me colocar no seu caminho. De dois andares, arquitetura moderna e minimalista. As paredes brancas contrastavam com os móveis de madeira rústica, criando um equilíbrio entre o sofisticado e o acolhedor.
O piso de cimento queimado conferia um ar contemporâneo ao espaço, enquanto as persianas de bambu filtravam a claridade, projetando sombras suaves sobre o sofá creme da sala. Na cozinha, a bancada de mármore e os eletrodomésticos modernos completavam o ambiente. Porém, o que mais me atraia era a enorme varanda, que se estendia até um deck de madeira encarando o oceano.
Daqui, podia observar as ondas a quebrarem suavemente na areia dourada, escutar o chamado das gaivotas e sentir a brisa salgada a envolver-me o corpo. Se Chloe finalmente aparecesse, iria vê-la. Mais do que isso, estaria pronta para a enfrentar. Não como a garota assustada que fui, mas com a lucidez de quem entende que certas histórias precisam ser revisitadas para serem libertadas.
No entanto, três dias se tinham passado, dias esses procurando por vestígios dela, sem sucesso. No início, acreditei que seria simples. Que bastaria refazer os passos de outros tempos, os cafés onde partilhávamos silêncios, as livrarias onde nos perdíamos por horas, os locais onde ela fotografava sem parar. Chloe, porém, tinha-se dissolvido. Como se tivesse sido apagada com cuidado. Como se quisesse, de propósito, não ser encontrada.
Afastei uma mecha rebelde dos cabelos presos num rabo de cavalo improvisado.
O que eu esperava, afinal?
Que ela estivesse à minha espera?
Que a sua vida tivesse ficado suspensa, congelada no exato ponto onde a minha parou?
Deixei escapar um riso amargo. A loira nunca foi do tipo que ficava à margem. Talvez estivesse noutra cidade. Ou talvez estivesse exatamente onde sempre esteve, contudo sem qualquer vontade de me ver.
Devia desistir?
Ou será que ainda havia um recanto, um último local onde não a tinha procurado?
Fechei os olhos, tentando que o peito recuperasse um ritmo natural.
Não. Ainda não.
Ela estava aqui. Em algum lugar.
A vontade de sair crescia gradualmente, a casa começava a sufocar-me. Peguei no livro que iniciara na noite anterior e guardei-o na bolsa. A porta abriu-se sob os meus dedos, libertando-me para a rua onde o ar fresco me acolheu como um abraço necessário.
Os meus passos levaram-me, sem destino certo, até um pequeno café junto à costa. Ao transpor a entrada, a atmosfera envolveu-me de imediato, mesas de madeira desgastada pelo tempo, janelas amplas que se rendiam à vastidão oceânica, como molduras vivas de um quadro em constante mutação.
Escolhi um canto discreto, onde pudesse contemplar a dança hipnótica das ondas sem me expor ao escrutínio alheio. Em volta, as conversas teciam-se em murmúrios, pontuadas pelo tilintar das porcelanas e pelo ronronar constante da máquina de café. Abri o livro sem compromisso, deixando que as páginas deslizassem entre os dedos sem que uma única frase se fixasse na minha mente dispersa.
Nesse instante, um movimento periférico captou a minha atenção. Uma mulher aproximava-se da mesa vizinha, a mão estendida na direção dos sachês de açúcar dispostos entre nós. Num impulso inexplicável, quase telepático, ergui também a minha mão para o mesmo objetivo, como se os nossos gestos tivessem sido coreografados pelo acaso.
Os dedos roçaram-se brevemente.
— Perdão — murmurei, afastando-me num movimento brusco deixando o pacotinho no mesmo lugar. Um ligeiro constrangimento subiu-me às faces enquanto procurava o seu rosto.
O seu sorriso surgiu sereno
— Não tem importância — a voz escorreu macia. — Há mais ali. — Indicou o pequeno cesto onde descansavam outros sachês.
Porém, o seu foco persistiu para além do protocolo social, como se tentasse desvendar algo familiar.
— Esse livro é bom? — perguntou finalmente, quebrando o silêncio de forma amena.
Demorei um instante para entender que ela se referia ao exemplar que eu ainda segurava entre as mãos, com as páginas já gastas e a capa dobrada pelo tempo.
— Ah, sim — respondi com um leve esboço nos lábios, pousando os dedos com cuidado sobre a lombada do exemplar. — É um livro sobre fotografia, mas não apenas isso. Também fala sobre a forma como percebemos as memórias e sobre as histórias que contamos através das imagens.
Ela anuiu pensativa, levando a xícara aos lábios num gesto quase ausente.
— Interessante. Gosto dessa ideia… — murmurou, dirigindo brevemente a atenção para o mar antes de regressar a mim. — As fotografias são como fragmentos, pedaços soltos de algo muito maior. Contudo nem sempre mostram a verdade completa, pois não?
A observação encontrou em mim uma vulnerabilidade que eu própria desconhecia.
— Suponho que não. — Fechei o livro vagarosamente. — O que escolhemos enquadrar e o que optamos por excluir também molda a narrativa.
Uma expressão melancólica desenhou-se-lhe no rosto.
— Precisamente — A sua presença deslocou-se novamente para as águas, perdendo-se em contemplações mudas. — E, por vezes, até as imagens que preservamos acabam por se desfazer.
A forma como pronunciou aquelas palavras, num timbre suave, porém impregnado de uma gravidade oculta, levou-me a estudá-la com mais cuidado. Só nesse momento reparei no lenço delicado que lhe abraçava o pescoço, ocultando discretamente a base do cabelo. O seu rosto possuía uma beleza sublime, embora pálida demais, e agora, observando-a mais atentamente, percebi uma fragilidade quase transparente sob a superfície.
— Trabalhas com fotografia? — questionou, interrompendo as minhas reflexões.
Soltei uma risada contida.
— Não, nada disso. Sou do marketing. A fotografia sempre me intrigou, mas nunca ultrapassei a curiosidade amadora.
Ela brincou com a colher, mexendo distraidamente o líquido dourado.
— Vender histórias, então.
O modo como articulou aquilo fez-me hesitar.
— Suponho que se pode colocar nessa perspetiva — respondi, incerta se concordava ou contestava.
Vi-a inclinar ligeiramente a cabeça, como se ponderasse.
— Deve ser interessante. Criar algo que convence os outros, escolher quais partes da verdade realçar ou esconder.
Havia um peso estranho naquela última palavra.
— Suponho que, de certa forma, é semelhante com a fotografia. Ambos trabalham com perspetiva, não é verdade?
A mulher deixou escapar um traço breve de leveza, porém algo na sua expressividade parecia distante.
— E tu, trabalhas com o quê? — Perguntei
Vi-a vacilar brevemente antes de colocar a colher com cuidado excessivo.
— Não trabalho. Pelo menos, não neste momento.
— Ponderando sobre o próximo passo?
Um suspiro quase inaudível escapou-lhe enquanto pousava a mão sobre a mesa num gesto que denunciava cansaço.
— Algo assim.
As palavras evasivas guardavam camadas de sentido para além do que fora dito. O modo como abraçava a xícara, procurando-lhe o calor como quem se agarra a uma âncora, denunciava uma fragilidade comovente. Antes que eu pudesse explorar aquela brecha emocional, o dispositivo sobre a madeira reclamou-lhe a atenção. Observou a tela rapidamente e suspirou, como se a mensagem a trouxesse de volta à realidade.
— Bom — depositou algumas moedas sobre a mesa, alcançando a bolsa. — Foi um prazer a conversa, mesmo que só por uns minutos.
Vi-a erguer-se com uma lentidão que parecia pesada.
Ofereceu-me um último sorriso antes de se dirigir à saída, no entanto desta vez pareceu mais um automatismo do que um gesto genuíno. O tilintar da porta ao fechar-se ecoou com uma intensidade desproporcional. Acompanhei-a com a vista através do vidro, vendo-a afastar-se pela rua com passos medidos, quase cerimoniais.
E, por mais que tentasse dissipar a impressão, uma intuição persistente sussurrava-me que aquele encontro fora tudo menos fortuito.
Permaneci ali por alguns minutos após a sua partida, a xícara de café esfriava entre as minhas mãos.
O relógio no pulso marcava o início da tarde quando uma memória súbita me atravessou como um relâmpago tardio. Como uma peça que finalmente encontra o seu lugar, um destino óbvio irrompeu na minha consciência, o centro comunitário. Como pudera ignorar o primeiro lugar onde deveria ter procurado?
A realização chegou acompanhada de uma urgência renovada. Ergui-me com determinação, guardando o livro cuidadosamente na bolsa, e dirigi-me ao balcão. Enquanto aguardava que o funcionário processasse o pagamento, senti o coração acelerar com uma expectativa que misturava esperança e apreensão.
Observei as outras pessoas ao redor, conversas sussurradas, risos abafados, o tinir constante das porcelanas e por um instante fugaz questionei-me se também elas carregavam memórias não resolvidas, lugares para onde regressar em busca de respostas.
O funcionário devolveu-me o troco com um sorriso mecânico. Guardei as moedas sem pressa, prolongando deliberadamente aquele último momento de normalidade antes de me lançar numa jornada que suspeitava poder transformar-me irreversivelmente.
Ao transpor a porta, a brisa costeira acolheu-me como uma cumplicidade antiga.
O trajeto desenrolou-se como uma viagem no tempo invertida. Cada esquina, cada rua, cada porção da paisagem urbana despertava ecos de uma versão mais jovem de mim mesma. Era como se as passadas seguissem pegadas fantasmagóricas, deixadas por uma Maya que caminhara por estas mesmas artérias uma década antes.
Quando finalmente avistei o edifício, o mundo pareceu contrair-se num suspiro nostálgico.
Ali estava ele, porém transformado pelo tempo e pela inevitabilidade da mudança. A fachada mantinha o azul característico, embora agora mais desbotado, como uma memória que se esmaece gradualmente na retina. As janelas, outrora sempre abertas, exibiam agora vidros novos e modernos, selando hermeticamente o interior. O som de vozes infantis e gargalhadas que antes se derramava livremente para a rua havia sido substituído por um silêncio institucional, apenas quebrado pelo murmúrio distante do trânsito e das ondas.
O letreiro permanecia no mesmo lugar, contudo as palavras tinham mudado. Onde antes se lia "Pequenos gestos, grandes mudanças", agora uma placa metálica e impessoal anunciava: "Centro de Desenvolvimento Comunitário — Horário de Funcionamento: 9h às 17h".
Aproximei-me da entrada principal, as pernas súbita e inexplicavelmente pesadas. Através dos vidros, vislumbrei um interior completamente renovado. As paredes coloridas e os murais infantis que recordava haviam dado lugar a superfícies brancas e assépticas.
Outro pensamento assaltou-me antes de ultrapassar a soleira. Os meus pés, movidos por um instinto mais poderoso que a lógica, começaram a desviar-se, procurando um caminho alternativo. Contornei o edifício com passos que pareciam conhecer o destino antes da minha consciência o aceitar.
A vegetação rasteira ondulava sob a brisa, serpenteando até à beira da estrada de areia batida que descia suavemente em direção ao mar. Era como se um fio invisível me puxasse, desfazendo os anos, dissolvendo as camadas de tempo que se acumularam sobre aquela geografia da memória.
A praia surgiu diante de mim, mais selvagem do que recordava, menos domesticada pela presença humana. A areia estava virgem de pegadas, as ondas quebravam numa cadência hipnótica contra a costa, e o ar carregava aquele sabor salino que sempre me fazia sentir simultaneamente pequena e infinita.
Parei. Respirei. O vento trouxe-me algo mais do que maresia, trouxe-me ecos.
Sem resistir ao impulso, caminhei até um ponto específico do areal, como se seguisse um mapa gravado na pele. Ali, onde a areia se tornava mais macia, onde as ondas chegavam com menos fúria, sentei-me devagar, cruzando as pernas.
E então, como se a postura fosse um gatilho, tudo regressou.
***
A leitura com as crianças deixara um rastro de ternura em mim, vozes ainda ecoando como melodias esquecidas, risos pequenos suspensos no ar, dedos minúsculos que se agarravam aos livros como se as páginas fossem talismãs capazes de preservar a magia do mundo.
Enquanto arrumava as almofadas com gestos mecânicos, fui invadida por aquela sensação inconfundível que só ela sabia emitir. Como uma corrente elétrica que me percorria a pele antes mesmo de erguer a cabeça.
Chloe moldava-se à ombreira da porta com aquela elegância caraterística, braços cruzados numa pose estudadamente casual, uma sobrancelha arqueada num ângulo que prometia provocação. A íris turquesa varriam o espaço com a precisão de quem já decifrara todas as respostas e aguardava apenas que eu articulasse a pergunta certa.
— Vens caminhar um pouco comigo? — A sugestão deslizou com uma suavidade enganadora, acompanhada por uma inclinação quase impercetível da cabeça.
Era a segunda vez que me estendia esse convite antes do fim do expediente. A primeira surgira disfarçada de acaso, mas agora, vendo a forma como me estudava, aquele sorriso contido a dançar-lhe no canto da boca, percebi que se tratava de algo deliberadamente orquestrado.
— Com essa eloquência irresistível, como poderia recusar? — retorqui, deixando que um sorriso cúmplice me traísse os lábios.
— Perfeito. Porque, de qualquer forma, "não" nunca foi uma opção válida. — O piscar de olho que me lançou carregava uma arrogância tão descarada que me fez querer rir e estremecer em simultâneo.
Reprimi a gargalhada que ameaçava irromper e abanei a cabeça numa rendição teatral. Dirigi-me lentamente até à mochila, erguendo-a ao ombro enquanto a observava avançar à minha frente, o cabelo dourado a ondular como seda líquida ao sabor do movimento.
O percurso familiar desenrolou-se diante de nós até chegarmos à areia macia. Num ritual silencioso, descalçámo-nos, deixando que os pés nus se afundassem na textura granulosa ainda aquecida pelo sol.
Caminhamos mais um pouco, os nossos braços roçavam-se ocasionalmente. Até que esta se sentou com naturalidade, pernas estendidas, braços apoiados atrás do corpo, o rosto virado para o mar. Imitei-a, mantendo a proximidade que agora se fazia habitual entre nós.
— Sabes o que mais me fascina neste lugar? — A sua voz deslizou pelo ar como seda, arrastada e pausada. — O sossego. O facto de não haver passos em excesso. Dá para observar o pôr-do-sol com atenção, sem distrações.
— Então é isso? Costumas atrair garotas para praias desertas e misteriosas com promessas de silêncio e pôr-do-sol? Sinto-me como uma vítima fácil.
Chloe sorriu, não foi uma gargalhada, foi aquele som baixo, grave, cheio de ironia e doçura amarga, que vibrava entre os lábios antes de se transformar num sorriso torto. Inclinou-se ligeiramente na minha direção, a intensidade fixa em mim.
— Definitivamente, nada em ti é fácil. — A sua voz desceu uma oitava, rouca como o murmúrio do mar.
Os seus dedos encontraram os meus na areia, não por acidente. Foi deliberado, testando, perguntando silenciosamente se eu recuaria. Não recuei. Entrelaçámos os dedos numa ligação que me fez esquecer de como respirar regularmente.
— Quero saber uma coisa — murmurou, o polegar a desenhar círculos preguiçosos sobre o dorso da minha mão. — Como foram os teus relacionamentos passados? — A pergunta saiu casual, quase distraída, no entanto havia uma precisão cirúrgica no modo como me estudava. — Porque, confesso, tenho uma curiosidade mórbida sobre quem conseguiu captar a tua atenção antes de mim.
Comprimi os lábios. O calor subiu-me às faces com uma força que não consegui disfarçar.
— Relacionamentos passados? — repeti, fingindo não compreender, embora ambas soubéssemos exatamente do que falava.
Chloe arqueou uma sobrancelha, aquele gesto que era pura provocação vestida de inocência.
— Sim, sabes, aquele fenómeno fascinante em que duas pessoas percebem que sentem algo uma pela outra e decidem fazer algo a respeito. — A ironia pingava-lhe da voz como mel envenenado. — Namoros, encontros, beijos, corações partidos. O drama adolescente clássico que toda a gente teve.
Fez uma pausa, inclinando-se ainda mais, a voz descendo para um sussurro conspirador.
— Ou será que conseguiste escapar ilesa a tudo isso?
— Eu... — A palavra ficou presa na garganta. — Não houveram muitas oportunidades.
— Oportunidades? — repetiu, saboreando a palavra. — Interessante escolha de vocabulário. Como se o amor fosse uma questão de calendário e circunstâncias.
O seu polegar imobilizou-se sobre a superfície quente do meu pulso, a atenção intensificou-se.
— Maya, já alguma vez te permitiste beijar alguém de quem gostasses verdadeiramente? Antes do nosso beijo claro.
A pergunta caiu entre nós como uma pedra num lago silencioso. Senti o sangue latejar-me nos ouvidos, a respiração tornar-se superficial.
— Por que há uma diferença, sabes? — continuou, o tom agora mais suave, menos provocadora. — Entre beijar porque se deve, porque é esperado, porque toda a gente o faz e beijar porque é impossível não o fazer.
Desviei o olhar para o mar, procurando refúgio na imensidão azul.
— Não da forma que imaginas — admiti finalmente, a voz mal audível sobre o murmúrio das ondas.
Vi-a inclinar-se ainda mais, tentando capturar a minha expressão fugitiva.
— O que significa isso?
— Significa que cresci num lugar onde esse tipo de proximidade não era exatamente encorajada. — As palavras saíram fragmentadas, como cacos de vidro. — Especialmente quando o que sentia não correspondia ao que se esperava que eu sentisse. Então, mesmo quando aconteceu, não foi bem-vindo dentro de mim.
Uma quietude densa instalou-se entre nós, pontuada apenas pelo ritmo constante das ondas. Senti o calor da sua presença intensificar-se, como se ela se debatesse entre respeitar a minha vulnerabilidade ou quebrar a barreira que eu acabara de erguer com as minhas palavras.
Então, num gesto que me apanhou completamente desprevenida, os seus dedos deslizaram suavemente até ao meu queixo. O toque foi delicado, porém firme o suficiente para me guiar, obrigando-me gentilmente a erguer a cabeça e encontrar os seus olhos. Não foi possessivo nem invasivo, foi como se ela soubesse que eu precisava de uma âncora para não me perder na correnteza das minhas próprias confissões.
O azul-turquesa do seu olhar encontrou o meu com uma intensidade que me fez estremecer. Ali, suspensa entre os seus dedos e a força magnética da sua atenção, senti-me simultaneamente exposta e protegida.
— Maya — chamou suavemente, a voz carregada de uma ternura que me desarrumou por completo. — Já alguma vez te permitiste imaginar como seria poder simplesmente ser? Sem explicações, sem culpa?
A pergunta atingiu-me num local tão desprotegido que quase me fez recuar fisicamente.
— Constantemente — confessei, surpreendida pela sinceridade que me escapou sem filtros. — Imagino como seria segurar a mão de alguém sem verificar quem está a observar. Ou sorrir para essa pessoa num café sem calcular o ângulo dos meus ombros.
O sorriso que apareceu nos seus lábios foi diferente. Suave. Real. Numa decisão súbita, ergueu-se com fluidez, sacudindo os grãos de areia que se tinham colado às suas pernas. A luz dourada da tarde filtrava-se através dos cabelos soltos, criando um halo quase etéreo à sua volta. Estendeu-me a mão com uma determinação que me fez o coração tropeçar.
— Vem comigo.
Sem conseguir resistir àquela determinação silenciosa, segurei os seus dedos. O contacto irradiou pelo meu braço como fogo líquido. Caminhamos lado a lado pela areia fofa, os nossos passos sincronizando-se naturalmente, até chegarmos perto da linha onde as ondas morriam em espuma branca.
— Agora — disse, parando de forma abrupta, os dedos ainda entrelaçados com os meus — quero que feches os olhos e te transportes para outro lugar. Talvez uma avenida movimentada da tua cidade, um parque ao final de tarde, ou mesmo o centro comercial. Qualquer lugar aqui ou na tua cidade.
Algo na minha expressão deve ter traído a perplexidade que me invadiu, porque Chloe soltou uma gargalhada baixa, musical, que vibrou no espaço entre nós como uma nota suspensa.
— Confia em mim.
A simplicidade do pedido carregava um peso que me surpreendeu. Não era apenas sobre fechar os olhos, era sobre me entregar a um exercício cujo propósito desconhecia, guiada apenas pela certeza de que ela sabia exatamente o que fazia.
Suspirei, rendendo-me àquela estranha alquimia. As pálpebras desceram lentamente, encerrando o mundo visual e amplificando os sentidos restantes. O universo contraiu-se numa sinfonia sensorial, o seu perfume misturado com a maresia, o calor da sua mão como um farol na escuridão voluntária, o murmúrio hipnótico das ondas que gradualmente se transformou num zumbido distante.
Forcei a mente a viajar, a criar outra realidade. Aos poucos, as imagens formaram-se. Uma rua movimentada, pessoas caminhando apressadas, algumas com café na mão, outras perdidas nos seus próprios mundos.
— Diz-me quando tiveres a imagem nítida na tua mente — sussurrou, a sua voz uma âncora no meio da minha imaginação flutuante.
Acenei quando o cenário se cristalizou, cada detalhe ganhando textura e movimento. Instantes depois, senti-a apertar delicadamente a minha mão, o polegar traçando um pequeno círculo reconfortante sobre a minha pele.
O impulso de abrir os olhos nasceu e morreu no mesmo segundo, sufocado pelo seu sussurro que me chegou como uma carícia sonora. O hálito quente deslizou pela curva da minha orelha, despertando um arrepio que percorreu cada vértebra da minha coluna como uma melodia silenciosa.
— Não abras os olhos, apenas caminha comigo.
Entregámo-nos a uma coreografia instintiva. Passos medidos, deliberados, como se dançássemos ao som de uma música que apenas os nossos corpos conseguiam decifrar. A areia cedia sob os pés descalços, ainda morna dos últimos suspiros solares, guardando o calor do dia que se preparava para morrer no horizonte.
Quando uma onda mais audaciosa se estendeu até nós, lambendo-nos os tornozelos com línguas geladas, os meus dedos contraíram-se instintivamente em torno dos dela.
— Agora — a sua voz chegou envolta numa intimidade conspiratória, como se partilhássemos um segredo que o mundo não estava preparado para ouvir — imagina que estamos nessa rua que criaste. Há pessoas à nossa volta, conversas sobrepostas, o zunido distante dos carros, vida a pulsar em todas as direções.
A sugestão infiltrou-se na minha mente como tinta na água, alterando gradualmente a paisagem mental. O som rítmico das ondas transformou-se no murmúrio urbano, os grãos de areia sob os pés metamorfosearam-se no asfalto irregular de uma calçada vivida.
— E nós estamos simplesmente a caminhar — continuou, a sua mão ajustando-se na minha, os dedos entrelaçando-se com uma constância que me atracava tanto ao presente quanto à fantasia que tecíamos. — Duas pessoas que se escolheram, que gostam uma da outra, sem se esconderem, sem vergonha, sem medo.
O meu peito contraiu-se numa mistura de dor e alívio. Na geografia da minha imaginação, vislumbrei-nos. Duas silhuetas que se moviam com naturalidade orgânica, a nossa ligação evidente e despreocupada. Ninguém nos olhava com desaprovação. Éramos apenas normalidade. Apenas amor quotidiano.
— Como te sentes? — perguntou, e percebi que a sua voz se aproximara, como se também ela tivesse entrado nesse mundo paralelo que construíamos juntas.
— Como se... — hesitei, a garganta subitamente árida — como se pudesse respirar.
Paramos em uníssono. Senti os seus passos interromperem-se numa sincronia perfeita, como se fôssemos um único organismo a pulsar no mesmo compasso. O mundo imaginário que arquitetara começou a esbater-se nas margens, mas mantive as pálpebras seladas, agarrando-me àquela sensação de liberdade que me percorria como eletricidade benevolente.
— Agora imagina que paramos numa pequena pastelaria — sussurrou, e detetei o seu movimento, posicionando-se diante de mim, embora a escuridão voluntária me impedisse de a contemplar. — Enquanto escolhemos algo para partilhar, essa pessoa observa-te.
A sua mão livre ascendeu até ao meu rosto. Um toque de pluma, os dedos mapeando a linha da minha mandíbula com uma delicadeza que me fez vibrar interiormente como corda dedilhada.
— Contempla-te como se fosses uma descoberta rara. Como se não conseguisse acreditar na sorte que tem.
O ar tornou-se escasso. O meu corpo reconhecia a sua proximidade antes da minha mente conseguir processar. Uma aura densa instalara-se entre nós, transformando o espaço numa câmara de ressonância onde cada respiração ganhava peso.
— E tu sorris — prosseguiu, o polegar percorrendo a curvatura da minha bochecha como quem lê braille — porque pela primeira vez na existência, não há medo na transparência. Nem terror na possibilidade de seres reconhecida, aceite, amada na tua integralidade imperfeita.
A emoção subiu-me à garganta como maré viva. As lágrimas queimaram por detrás das pálpebras cerradas, não nascidas da tristeza, mas de um alívio tão abissal que se confundia com dor física.
— Sentes isso? — perguntou, a voz transformada num murmúrio áspero que me atravessou como vento quente. — Essa ausência de peso?
Assenti, as cordas vocais recusando-se a cooperar. Porque sentia, sim. Naquele território construído pela imaginação, era livre. Era inteira. Era amada sem condições.
— Agora — a sua respiração beijou-me os lábios, tão íntima que cada célula do meu ser estremeceu em reconhecimento — ela inclina-se para ti.
O universo cristalizou-se. O tempo se suspendeu numa bolha opalescente onde apenas nós existíamos, onde as leis da física cediam lugar às leis do coração. O seu aroma envolveu-me como incenso sagrado, aquela assinatura olfativa que era exclusivamente sua, que me embriagava os sentidos.
O meu coração martelava com tal intensidade que me surpreendi por ela não comentar a sinfonia que ecoava no meu peito.
— E beijam-se — sussurrou contra os meus lábios — porque é a respiração mais natural do mundo.
O contato foi como a primeira gota de chuva depois de uma seca prolongada. Os seus lábios roçaram os meus numa pergunta muda, numa pressão tão delicada que poderia ter nascido da minha própria imaginação febril, mas que incendiou cada terminação nervosa como se o meu corpo fosse palha seca tocada por chama viva.
Não foi voracidade nem desespero. Foi como uma promessa sussurrada contra a minha alma.
Correspondi sem pensar, os meus lábios movendo-se contra os dela numa dança instintiva, como se os nossos corpos partilhassem uma linguagem secreta que transcendia palavras. A mão que segurava a minha apertou-se, os dedos entrelaçando-se com uma força quase desesperada, enquanto a outra deslizou pela minha nuca, os dedos enroscando-se nos cabelos, puxando-me para mais perto com uma necessidade que ecoava a minha própria.
O beijo aprofundou-se gradualmente, camada por camada, como ondas que crescem antes de quebrar. Ela sabia exatamente como me guiar, como me fazer sentir simultaneamente protegida e perdida, segura e à deriva, enquanto me levava para territórios onde cada respiração era partilhada, cada suspiro uma confissão muda. As nossas línguas encontraram-se com uma suavidade que contrastava brutalmente com a intensidade que crescia entre nós, um contraste que me fazia tremer contra ela.
A minha mão livre, movendo-se por vontade própria, deslizou até à sua cintura, os dedos encontrando a pele quente onde a peça de roupa se tinha levantado. O contacto enviou uma descarga elétrica pelo meu braço, puxei-a para mim, eliminando qualquer vestígio de espaço entre nós até os nossos corpos se moldarem um ao outro como fragmentos há muito perdidas de um quebra-cabeça ancestral.
Degustei-a, memorizei cada nuance do seu sabor, algo inebriante que era só dela. O gosto de liberdade. Permiti-me derreter completamente, entregando-me de forma tão absoluta que me assustava e libertava simultaneamente.
As minhas mãos tremiam onde a tocavam, não de medo, mas de uma intensidade que me ultrapassava. Era demasiado e não suficiente.
Quando ela mordeu suavemente o meu lábio inferior, um som escapou-me, metade gemido, metade suspiro, vindo de um lugar dentro de mim que pensava não existir. Senti-a sorrir contra a minha boca, e quando se afastou apenas o suficiente para me olhar, vi nos seus olhos um oceano revolto onde me podia afogar com prazer.
Procurei-a novamente, desta vez com uma intensidade que me surpreendeu, as mãos agarrando-se aos seus ombros como se ela fosse a única coisa sólida num mundo que se desfazia e reconstruía a cada segundo. O beijo tornou-se mais urgente, mais faminto, como se tivéssemos apenas este momento antes do mundo real nos reclamar de volta.
Ela respondeu com uma entrega que espelhava a minha, puxando-me até que o espaço entre nós se tornasse uma impossibilidade física. Os nossos corpos encontraram um ritmo próprio, colando-se e separando-se numa dança que era pura comunicação, cada movimento uma frase, cada toque uma confissão.
Quando finalmente nos separámos, permanecemos ali suspensas, testas unidas, respirações fragmentadas dissolvendo-se na brisa salgada. O coração galopava-me no peito como se quisesse saltar para as suas palmas abertas. O pulso dela vibrava contra a minha pele, irregular, espelhando o meu próprio descompasso.
— Maya — sussurrou o meu nome como uma oração, como se fosse sagrado nos seus lábios.
Contemplei-a, ainda perdida na vertigem do que acabara de acontecer. O mundo voltou gradualmente. O som das ondas. O cheiro a sal. A luz dourada que se espalhava sobre nós como uma bênção. Mas nada disso importava. Chloe permanecia próxima, aquele azul-turquesa cravado em mim com uma intensidade que me fazia sentir vista.
— Como te sentes agora? — perguntou, a voz rouca, os dedos ainda enroscados nos meus cabelos.
— Bem. Foi... — Procurei palavras capazes de conter a vastidão do que me inundava. — Foi como se o mundo finalmente fizesse sentido.
Um sorriso nasceu devagar nos seus lábios. Límpido, luminoso, despido de artifícios.
— Assim deve ser — murmurou, o polegar desenhando constelações invisíveis na minha bochecha. — É assim que espero que te sintas sempre que estás comigo.
O peso daquelas palavras assentou sobre mim como promessa e abismo. Sempre. A possibilidade de que aquilo, aquela sensação de plenitude absoluta, pudesse transcender o momento roubado parecia simultaneamente impossível e fatal.
— Chloe — comecei, mas ela selou os meus lábios com um dedo que tremia quase impercetivelmente.
— Não — sussurrou. — Ainda não. Deixa isto pertencer-nos por mais um instante. Antes que a realidade volte a intrometer-se com as suas exigências.
Entendi. Porque também sentia aquela urgência de preservar. Aquela bolha dourada onde existíamos suspensas no tempo, onde éramos apenas Maya e Chloe, duas pessoas que se encontraram e se reconheceram. Sem juízos, sem receios.
Voltei a fechar os olhos, entregando-me àquele momento como quem se rende a uma corrente inevitável. As suas mãos mantinham-se sobre mim, faróis que me impediam de me perder na vastidão daquela revelação. Senti-a aproximar-se novamente, a testa poisando contra a minha numa intimidade que era pura transparência.
— Quando conseguires — sussurrou contra a minha pele, as palavras vibrando como uma profecia — quando conseguires imaginar esta liberdade não apenas numa praia deserta, mas em qualquer lugar, sob qualquer olhar... aí saberás que és verdadeiramente livre.
Abri os olhos e encontrei-a a estudar-me com a devoção de quem tenta memorizar, memorizar cada traço do meu rosto.
— E se eu nunca conseguir? — A pergunta brotou de mim carregada de um medo que desconhecia possuir.
— Então eu espero — respondeu sem incerteza, com uma simplicidade que me desarrumou inteira. — Porque isto, Maya, não tem prazo de validade.
O sol começava a sua descida majestosa, tingindo o céu com ouro derretido e rosa antigo que se espelhava nas águas inquietas. O momento perfeito aproximava-se do fim, mas algo fundamental em mim sabia que havia mudado irrevogavelmente. Que atravessara uma fronteira invisível e já não existia caminho de volta.
Entrelaçou os seus dedos nos meus e começámos a caminhar de volta, os nossos passos deixando marcas temporárias na areia húmida. Nenhuma de nós falou, como se as palavras pudessem profanar a delicadeza do que acabáramos de tecer.
Mas enquanto caminhávamos, apercebi-me de algo. Havia apenas eu, ela, e o reconhecimento crescente de que talvez, apenas talvez, o amor fosse exatamente isto, simples, natural, inevitável como o respirar.
***
A brisa levantou-me os cabelos, mais curtos agora, domesticados pelo peso da respeitabilidade e por um momento, tão breve que poderia ter sido imaginação, senti a sua presença do meu lado. Não fisicamente, mas como um eco de possibilidades que nunca explorara.
Abri os olhos e contemplei o horizonte infinito. O sol começava a declinar, pintando o céu com os mesmos tons dourados que recordava. Todavia desta vez estava sozinha, carregando o peso do tempo perdido e de todas as escolhas que me trouxeram até ali.
Pensei no meu ex-marido, nas palavras gentis que trocáramos durante o divórcio. "Sempre soube que uma parte de ti estava em outro lugar", comentara ele, sem amargura, apenas com a tristeza de quem reconhece uma verdade óbvia. Tivera razão. Eu estivera sempre em outro lugar. Nesta praia. Naquele momento. Com ela.
Pensei no meu pai, nas palavras que nunca conseguira dizer-lhe antes da morte. No perdão que me oferecera nos últimos dias, quando já não tinha forças para manter as muralhas da doutrina. "Só quero que sejas feliz, filha. Da forma que conseguires ser." Demasiado tarde para mudar tudo, porém não demasiado tarde para honrar.
Mas sobretudo pensei em Chloe. Nos olhos azul-turquesa que me liam como um livro aberto. Na forma como me fizera sentir que podia ser inteira. Na promessa que fizera de esperar até eu estar pronta.
Ergui-me devagar, sacudindo os grãos de areia dos jeans. O sal marinho ainda me impregnava a pele, misturando-se com o peso melancólico daquela peregrinação ao passado. Inspirei profundamente, enchendo os pulmões com o ar oceânico, e virei costas ao mar. Os meus passos dirigiram-se ao centro comunitário, desta vez firmes, carregados de propósito.
As portas automáticas deslizaram com um sussurro mecânico, revelando o interior exatamente como vislumbrara através do vidro, limpo, eficiente, despido de qualquer vestígio da magia que habitara as minhas recordações. O aroma familiar de giz de cera e histórias partilhadas havia sido substituído por um cheiro asséptico de detergente industrial e ar condicionado.
O balcão de receção, outrora uma mesa de madeira acolhedora onde a Sra. Henderson nos recebera com sorrisos cúmplices, fora substituído por uma estrutura moderna de linhas geometricamente impecáveis.
Uma jovem vestida com um uniforme discreto ergueu a cabeça quando me aproximei, os dedos suspensos sobre o teclado num gesto de pausa profissional.
— Posso ajudá-la?
O mundo oscilou por um segundo. A garota que me contemplava possuía olhos escuros e expressivos, profundos como poços antigos, cabelo loiro escuro preso num rabo-de-cavalo descontraído. Havia algo na inclinação da cabeça, na forma pensativa como me avaliava, que me fez tropeçar numa memória visceral.
Era a mesma intensidade silenciosa. O mesmo jeito de inclinar ligeiramente a cabeça, como se estivesse a medir se podia confiar.
— Eu... — As palavras evaporaram-se. — Costumava fazer voluntariado aqui. Há muitos anos. Queria apenas ver como estava o espaço.
Ela consultou algo no computador, franzindo ligeiramente o sobrolho numa expressão que me transportou instantaneamente para tardes de leitura, quando uma menina pequena fazia a mesma careta ao tentar decifrar palavras difíceis para a sua idade.
— O programa de voluntariado foi reestruturado em 2019. Agora funciona mediante agendamento prévio e formação certificada. Se tem interesse, posso fornecer-lhe os formulários.
Observei o momento em que o seu rosto se voltou novamente para mim, demorando-se, estudando-me com uma atenção que transcendia a cortesia profissional. Naquele gesto, tão familiar, tão saturado de memória, o reconhecimento atingiu-me como uma onda inesperada.
— Mia? — A pergunta escapou-me num sussurro carregado de incredulidade.
A transformação foi instantânea. Os seus olhos arregalaram-se, a expressão metamorfoseando-se da cortesia profissional para algo muito mais profundo, mais verdadeiro. A mão voou até à boca num reflexo de quem não acredita no que vê, e naquele movimento reconheci a criança que outrora ganhara chocolates de Chloe.
— Maya? — A voz tremeu, carregando uma década de crescimento condensada num nome pronunciado com reverência. — Meu Deus, és mesmo tu.
Sorri, sentindo uma emoção inesperada a expandir-se no peito como tinta a alastrar na água. A menina pequena que costumava procurar histórias para escapar à realidade, que procurava por Chloe quando o mundo se tornava pesado demais, era agora uma jovem mulher. Contudo, os seus olhos permaneciam os mesmos, profundos, atentos, carregados de uma sensibilidade que o tempo não conseguira alterar.
— És tão parecida com... — Iniciei, mas detive-me. Como explicar que ela crescera exatamente como eu imaginara? Que alguns rostos ficam gravados na memória com tal nitidez que o tempo parece incapaz de os transformar?
— Tu não mudaste nada — disse ela, contornando o balcão para encurtar a distância entre nós, os passos ligeiros ecoando no piso polido como notas musicais. — Quer dizer, estás diferente, mais madura, obviamente. Mas o olhar é exatamente o mesmo.
Havia uma familiaridade estranha naquele momento, como se os anos não tivessem passado.
— Trabalhas aqui?
— Estágio profissional — respondeu com um orgulho discreto que me aqueceu o coração. — Último ano do secundário. Escolhi vir para cá como parte do programa vocacional. Achei que fazia sentido voltar ao lugar onde aprendi tanto.
O sorriso que lhe iluminou o rosto era pura luminosidade, contudo havia ali algo mais, uma compreensão tácita, como se soubesse exatamente por que eu estava ali, como se pudesse ler nas entrelinhas da minha presença a busca silenciosa que me trouxera de volta.
Por um momento ficámos em silêncio. Aproveitei para observar o espaço renovado, sentindo o contraste cortante entre o local moderno e o calor humano das minhas recordações. Quando voltei a encará-la, Mia observava-me com aquela atenção penetrante que eu recordava tão bem.
— Estás à procura dela, não estás? — perguntou baixinho, como se receasse que alguém pudesse ouvir, a voz carregada de uma maturidade nova, porém ainda tingida pela doçura da criança que fora.
O meu coração disparou num galope descontrolado. Não precisei de perguntar a quem se referia. Algumas ligações transcendem as palavras.
— Ela ainda... ainda participa do programa?
O seu rosto ensombrou-se ligeiramente, uma nuvem passageira a obscurecer aquela luminosidade.
— Mais do que imaginas. Coordena um projeto de narrativa visual com as crianças. Fotografias, vídeos, coisas assim. — Fez uma pausa breve, mordendo o lábio inferior numa hesitação que me era familiar. — Elas adoram-na. Mas estará ausente por uma semana. Anda envolvida num projeto profissional importante.
O desapontamento abateu-se como um peso físico, uma pedra a afundar-se no estômago. Algumas semanas. O universo parecia possuir um sentido de humor particularmente cruel.
— Ah — foi tudo o que consegui articular, o som mais exalação que palavra.
— Mas posso dar-te o número — apressou-se a dizer, captando a expressão que devia estar estampada no meu rosto.
Antes que pudesse responder, antes que conseguisse processar completamente o que ela acabara de oferecer, uma voz reverberou atrás de nós.
— Mia, querida, conseguiste encontrar os documentos de que falámos?
Virei-me instintivamente e senti algo estranho apertar-me o peito. A mulher que se aproximava era a mesma do café dessa manhã, o lenço delicado ao pescoço, a palidez etérea que me intrigara, os olhos claros que pareciam carregar um peso invisível.
Ela deteve-se abruptamente ao ver-me, a expressividade transitou de profissional para surpresa, depois para algo muito mais complexo, reconhecimento misturado com uma emoção que não consegui decifrar, como se o destino tivesse decidido revelar as suas cartas de forma particularmente dramática.
— Grace — anunciou Mia, o tom carregando uma deferência respeitosa que me fez perceber que esta mulher ocupava uma posição importante. — Esta é a Maya. Ela estava à procura da Chloe, talvez a possas ajudar.
A mulher recompôs-se com rapidez, mas não sem que eu visse uma sombra atravessar-lhe o rosto mais próximo do cansaço do que irritação, como se estivesse acostumada a ser procurada quando outras pessoas não estavam disponíveis.
— Claro — respondeu, estendendo-me a mão com um gesto de cortesia, que, embora não chegasse completamente aos olhos, transmitia uma genuína disponibilidade para ajudar. — A… — começou clareando rapidamente a garganta. — Chloe estará ausente na próxima semana, mas eu posso certamente ajudar.
— Achei que tinha entendido durante a nossa conversa desta manhã que não trabalhavas — comentei, aceitando o cumprimento.
A sua mão estava fria, contudo o aperto foi firme, duradouro.
— Não trabalho oficialmente — explicou, percebi que havia uma história por trás daquela distinção. — Mas o centro neste momento está com falta de pessoal, e eu ofereci-me para coordenar os projetos especiais. — Havia algo no modo como me fitava. — Concentro-me principalmente nos programas artísticos e terapêuticos. É onde me sinto mais útil.
A forma como disse "útil" carregava um peso que me tocou de forma inesperada. Como se servir fosse não apenas uma escolha, mas uma necessidade profunda de encontrar propósito.
Mia olhava entre nós duas, uma expressão ligeiramente confusa a formar-se-lhe no rosto.
— Vocês conhecem-se?
— Encontrámo-nos brevemente num café esta manhã — esclareceu a mulher antes que eu pudesse responder. — Uma daquelas coincidências que fazem a vida parecer menor do que realmente é.
Mais uma vez, a forma como o disse, uma melancolia subtil, como se coincidências fossem para ela lembretes dolorosos de como o mundo podia ser simultaneamente vasto e claustrofobicamente pequeno.
— O mundo é mesmo pequeno — murmurei, tentando decifrar as correntes subterrâneas que sentia circular entre nós.
— Especialmente quando se partilham... — Fez uma pausa, os olhos estudando-me com uma delicadeza que era quase carinhosa — interesses comuns. Pessoas que importam às mesmas pessoas.
O silêncio que se seguiu foi carregado de algo que não consegui nomear. Mia franziu ligeiramente o sobrolho, como se captasse a corrente silenciosa que fluía entre nós.
— Grace, estavas à procura daqueles relatórios? — ofereceu, a voz um pouco mais firme, como quem tenta quebrar uma atmosfera demasiado densa.
— Sim, claro. — Piscou, como se tivesse momentaneamente esquecido a razão pela qual viera. — Os relatórios trimestrais. Preciso deles para a reunião da próxima semana.
Porém o seu foco voltou na minha direção, transmitindo uma certa curiosidade que não era intrusiva, porém profundamente empática. Observei-a retribuindo a mesma indiscrição crescente, tentando compreender a dinâmica estranha que se desenrolava diante de mim.
Mia desapareceu atrás do balcão, deixando-nos numa quietude estranha. Grace permaneceu imóvel por um instante, os dedos repousando levemente na superfície de mármore, como se estivesse a tomar uma decisão silenciosa. Depois, dirigiu-se para mim com um movimento fluido, quase dançado.
— Maya, podemos conversar num local mais reservado? — questionou, indicando com um aceno subtil da cabeça um corredor que se estendia para lá da receção. — Talvez consiga ajudar-te melhor do que inicialmente pensei.
Algo na modulação da sua voz fez-me hesitar. Não era apenas cortesia profissional. Havia uma urgência contida, uma necessidade que vibrava por baixo das palavras polidas.
— Claro
Esperei enquanto a vi dar instruções breves a Mia, a voz baixa e eficiente, antes de me fazer sinal para a seguir. O corredor estendia-se diante de nós como um túnel para território desconhecido.
Os nossos passos ecoavam suavemente no linóleo, um ritmo abafado que se misturava com o zumbido distante do ar condicionado. As paredes estavam decoradas com fotografias de crianças em atividades variadas. Sorrisos capturados em movimento, mãos pequenas pintadas de tinta, semblantes concentrados sobre livros abertos. Reconheci alguns daqueles rostos, e a memória tocou-me com uma suavidade inesperada.
Grace parou diante de uma porta discreta, a mão pairando sobre a maçaneta por uma fração de segundo antes de a girar. O gabinete revelado era pequeno, dominado por uma secretária de madeira clara onde a luz da janela se espalhava em poças douradas. Exemplares alinhavam-se nas prateleiras como soldados ordeiros, intercalados com plantas que pareciam prosperar sob a luz filtrada.
— Senta-te, por favor — ofereceu, o braço estendido numa curvatura elegante em direção a uma das cadeiras.
Acomodei-me no assento, sentindo o tecido macio ceder ligeiramente sob o meu peso. Ela moveu-se até à secretária com uma graciosidade estudada. Observei-a enquanto arrumava alguns papéis, as mãos deslizando sobre os documentos com uma precisão quase hipnótica. Havia algo na forma como os seus dedos se curvavam, na maneira como a luz se refletia no anel simples que usava, que contrastava com a fragilidade aparente da sua constituição. O lenço que lhe cobria parte da pele estava atado com um cuidado meticuloso.
— Então conheces bem a Chloe? — interroguei, tentando soar casual, embora um pormenor dentro de mim se contraísse numa antecipação inexplicável.
A face suavizou numa expressão que era quase afetuosa. Os ombros desceram ligeiramente, a postura relaxou, e os seus olhos ganharam um brilho caloroso que transformou completamente a sua aparência.
— Conheço-a há alguns anos — respondeu, o tom carregando uma ternura que me apanhou desprevenida. As suas mãos entrelaçaram-se sobre a superfície, os dedos entrecruzando-se numa dança quase nervosa. — É uma mulher extraordinária. Brilhante, apaixonada pelo que faz. Às vezes demasiado dedicada ao trabalho, mas... — fez uma pausa, um sorriso genuíno a formar-se nos lábios — é impossível não admirar alguém que se entrega tanto aquilo em que acredita.
O meu peito apertou-se com uma dor estranha. A forma como falava sobre Chloe era ao mesmo tempo familiar e completamente nova.
— Ela sempre foi assim — murmurei, as palavras escapando antes que pudesse contê-las. Os meus dedos contraíram-se involuntariamente no colo.
Inclinou a cabeça, os olhos estreitando-se ligeiramente numa expressão de curiosidade aguçada. O movimento fez o tecido do lenço deslizar uma fração.
— Sempre? — perguntou, a voz ganhando uma textura aveludada. — Falas como quem a conheceu bem.
Senti as faces aquecerem, o sangue subindo numa vaga de calor que me tingiu desde o pescoço até às têmporas.
— Conheci-a quando éramos mais novas. Há muito tempo.
— E eram próximas?
A pergunta foi feita com um cuidado cirúrgico. Capturei quando o seu corpo se inclinou ligeiramente para a frente, os cotovelos pousando na madeira clara, as mãos servindo de apoio ao queixo.
— Sim — admiti, a voz diminuindo até ser quase um sussurro. — Muito próximas.
Esta assentiu lentamente, um movimento quase ritual. As suas pestanas desceram por um momento, escondendo os olhos, antes de se erguerem novamente.
— Esperava poder falar com ela pessoalmente — continuei, a garganta subitamente seca como areia. — É importante.
— Importante como?
A interrogação foi proferida num tom casual, contudo havia uma agudeza por trás dela que me fez hesitar. Como se estivesse a avaliar não apenas as minhas palavras, mas as minhas intenções.
— Questões pessoais — respondi finalmente, optando pela ambiguidade. — Coisas que ficaram por resolver.
Um flash de algo atravessou o seu rosto. Dor? Reconhecimento? Foi demasiado rápido para ter a certeza, porém deixou-me com a sensação inquietante de que tinha acabado de confirmar algo que já suspeitara.
— Sim, o passado tem uma forma peculiar de regressar quando menos esperamos.
A ausência de som que se seguiu foi repleta de tensões não ditas. Senti-me como se estivesse a caminhar por território minado, cada palavra uma potencial explosão.
— Faz quanto tempo que não a vês?
— Dez anos.
A confissão saiu mais crua do que pretendia. Grace deixou o rosto ceder num ângulo atento. O tecido do lenço deslizou novamente, revelando mais da linha delicada do seu pescoço.
— Dez anos é muito tempo. As pessoas mudam. — Expôs, com uma gentileza na modulação que suavizava o impacto das palavras.
— Eu sei — murmurei, sentindo o peso da verdade naquelas palavras. — Mas existem coisas, que preciso de lhe dizer.
O silêncio instalou-se entre nós como uma presença viva, carregado de expectativa. Esta recostou-se na cadeira, as mãos encontrando repouso no colo num gesto que irradiava serenidade. Não exerceu pressão nem apressou o momento, simplesmente habitou aquele espaço de espera, como se possuísse toda a eternidade para acolher as palavras que eu ainda lutava para formar.
Foi essa paciência contida, que me desarrumou completamente.
— Ela era importante para mim — as palavras finalmente romperam a superfície, carregando consigo uma vulnerabilidade que me assustou. — Mais importante do que qualquer outra pessoa jamais foi ou voltará a ser. — A voz começou a tremer nas bordas, cada sílaba uma pequena fissura na armadura que construíra ao longo dos anos. — E eu... — humedeci os lábios, procurando coragem numa respiração profunda — simplesmente desapareci da vida dela.
A expressão de Grace transformou-se subtilmente, como água que muda de cor ao receber uma nova luz. Nos seus olhos, pela primeira vez desde que a encontrara, reconheci algo genuinamente compassivo.
— Isso deve ter sido muito difícil para ti — murmurou, cada palavra pesada de significado. — Para ambas.
— Foi. É. — A confissão escapou-me fragmentada, como vidro partido refletindo luz. — Eu tinha dezoito anos e estava aterrorizada. A minha vida transformava-se tão rapidamente, eu não conseguia acompanhar. Chloe era o presente, o futuro, a liberdade que eu mal tinha começado a aceitar. Mas quando o meu pai adoeceu...
Grace permaneceu imóvel, a respiração compassada como uma meditação silenciosa, oferecendo-me o espaço que eu precisava para desenterrar verdades.
— Quando ele adoeceu, foi como se o chão desaparecesse sob os meus pés. — As palavras vinham agora numa torrente controlada. — Tudo o que tinha começado a construir, a coragem, a liberdade, a versão de mim que finalmente respirava, colapsou de uma vez. Ele era a única família que me restava, e eu era tudo o que o ligava ainda a este mundo. Não podia abandoná-lo. Não como a minha mãe fez.
— E a Chloe? — A pergunta deslizou pelo ar como uma carícia dolorosa.
Fechei os olhos, permitindo que as memórias me inundassem sem resistência.
— Chloe... — A voz falhou-me, quebrando-se nas arestas da saudade. — Ela enviava mensagens. Esperava com uma paciência que me partia o coração. Acreditava. Era compreensiva. Tentava gerir a distância, o fuso horário, transformava ausências em presenças através de palavras que eu lia e relia até as decorar. Eu... — por um segundo, os olhos embaciaram. — Eu não sabia como responder. Eu amava-a. Amava-a com uma intensidade que me assustava. Mas não soube escolher esse amor. Não porque fosse falso, mas porque não sabia como amar alguém e simultaneamente ver o meu pai a desvanecer-se lentamente diante dos meus olhos.
Grace permaneceu em contemplação, o peito erguendo-se e descendo num ritmo que parecia sincronizado com as ondas invisíveis da minha dor. Quando finalmente falou, as palavras emergiram carregadas de uma sabedoria que transcendia a sua aparente fragilidade.
— Às vezes as decisões mais cruéis são aquelas que tomamos por amor, mesmo quando parecem contradizer a própria essência do que sentimos.
Ergui o rosto, capturada pela profundidade daquela observação. Uma sombra atravessou-lhe as feições, um lampejo de dor pessoal que me fez questionar se as suas palavras nasciam apenas da compaixão ou de feridas similares.
— Eu a magoei — confessei, a culpa derramando-se como tinta na água.
— Provavelmente. — A honestidade dela cortou como uma lâmina necessária. — E ela provavelmente magoou-te também, mesmo involuntariamente. É isso que acontece quando duas pessoas se amam, mas não conseguem encontrar uma forma de estar juntas.
Esta deslocou-se na cadeira, o corpo recuando ligeiramente enquanto as mãos subiam para ajustar o lenço que lhe ocultava o pescoço.
— Às vezes pergunto-me se fiz a escolha certa — admiti, sentindo a voz quebrar. — Se havia sequer uma escolha que não dilacerasse alguém que eu amava.
Grace inclinou-se delicadamente, os cotovelos pousando na superfície polida da secretária, os dedos entrelaçando-se numa arquitetura frágil. A luz filtrada pela janela esculpia-lhe o rosto, realçando simultaneamente a delicadeza dos traços e a força silenciosa que irradiava dela como um campo magnético invisível.
— Acreditas que ela alguma vez te perdoou? — A pergunta emergiu tão suavemente que quase se perdeu no murmúrio mecânico do ar condicionado.
O impacto foi imediato e brutal, como se um punho invisível me tivesse atingido o diafragma. Durante uma década inteira, aquela possibilidade permanecera enterrada tão profundamente que nem nas madrugadas mais insones me permitira considerá-la. As mãos contraíram-se no meu colo, as unhas encontrando as palmas numa pressão que beirava a dor física.
— Não sei — A confissão escapou-me como um sussurro fantasmagórico. — Não sei se mereço o seu perdão. Mas para ser sincera, eu não vim aqui para me intrometer na sua vida, ainda mais se ela já seguiu em frente enquanto eu fiquei presa no passado. — Observei os meus dedos entrelaçados, engolindo em seco enquanto a imagem dela no vestido branco surgia na minha mente como uma aparição dolorosa. — Espero que ela esteja feliz. Espero que a minha vinda me permita fechar de uma vez por todas este ciclo e seguir em frente.
Vi-a fechar os olhos por um momento, as pestanas formando sombras delicadas sobre as faces. Quando os reabriu, havia uma tristeza profunda neles, como poços de águas escuras que me fizeram questionar se estava a projetar as minhas próprias emoções ou se havia algo mais escondido por baixo.
— Isso não anula a realidade do que viveram — murmurou, a voz carregada de uma gravidade quase carinhosa. — Nem diminui o valor do amor que partilharam.
O silêncio que se seguiu foi denso. Então, numa decisão que parecia ter amadurecido naqueles segundos de contemplação, ela moveu-se. O ranger suave da madeira pontuou a quietude enquanto se inclinava para abrir uma gaveta da secretária. Cada movimento era medido, deliberado, como se estivesse a romper um pacto silencioso consigo mesma.
— Aqui — disse finalmente, a voz mal audível, estendendo-me algo entre os dedos trémulos. — Creio que isto responderá a algumas das tuas inquietações.
Quando baixei a atenção, descobri que me oferecia um desdobrável. A textura revelava sinais de manuseamento frequente. Estendi a mão com cuidado para o aceitar.
Baixei a atenção para o papel entre os meus dedos. Grace observava-me com uma intensidade quase física, os olhos seguindo cada micro-expressão que atravessava o meu rosto. As suas mãos voltaram a entrelaçar-se sobre a secretária, os nós dos dedos embranquecendo ligeiramente pela pressão.
"Fragmentos do Invisível: Jovens Olhares sobre a Intimidade Contemporânea". O título percorreu-me como um arrepio premonitório, as palavras dançando na página como se tivessem sido escritas especificamente para este momento.
Abri o documento com movimentos deliberados, o papel crepitando suavemente na quietude do gabinete. As dobras desfizeram-se como pétalas relutantes, revelando secções organizadas com elegância minimalista.
Percorri rapidamente os nomes dos participantes, o coração disparando num ritmo descompassado.
E então, como um relâmpago na escuridão, vi.
Chloe Harper Montgomery
O nome materializou-se diante de mim com a força de uma revelação. Pisquei uma vez, duas, como se pudesse apagar aquelas sílabas familiares da realidade. Mas ali permaneciam, impressas em letras discretas que para mim brilhavam como faróis na noite.
Por baixo, uma fotografia miniatura, não sua, mas de uma das suas obras. Mãos entrelaçadas contra um fundo desfocado, captadas em preto e branco com aquela sensibilidade única que eu jamais esquecera. A composição, a forma como a luz acariciava a pele, era inconfundivelmente sua. Aquele dom raro de transformar o fugaz em permanente, de encontrar o sagrado no quotidiano.
— Chloe vai expor — sussurrei, as palavras escapando como confissão involuntária.
— Vai — confirmou, um orgulho discreto colorindo-lhe a voz. — É uma das peças centrais da mostra. Tem dedicado meses a este projeto.
Regressei ao desdobrável, faminta por detalhes. Encontrei uma descrição resumida da sua série: "Fragmentos de Proximidade", um estudo fotográfico sobre ligações humanas interrompidas.
O ar rarefeito do pequeno gabinete. As palavras flutuavam diante de mim, carregadas de significado que me atingia em ondas sucessivas.
— Maya? — O meu nome chegou distorcido, como se viesse de muito longe. — Estás bem?
Ergui os olhos do papel, percebendo que as minhas mãos traíam um tremor subtil. Grace examinava-me com uma expressão que misturava solicitude e algo mais, uma compreensão que transcendia o que eu lhe revelara.
— A exposição — consegui articular — quando inaugura?
— Sexta-feira. Permanecerá aberta durante todo o fim de semana.
Sexta-feira. Quarenta e oito horas apenas. Em dois dias, Chloe estaria numa galeria a poucos quilómetros dali
Dobrei o desdobrável com reverência, como se fosse feito de cristal. Quando voltei a encontrar o seu rosto, Grace tinha os lábios ligeiramente curvados, num gesto que mal chegava a ser expressão.
— Obrigada — Não era apenas gratidão pelo papel entre as minhas mãos. Era reconhecimento. A compreensão de que Grace acabara de me oferecer muito mais que informação.
Concedera-me uma oportunidade. Uma forma de a encontrar que não dependia de acasos ou favores. Um território neutro onde poderíamos ocupar o mesmo espaço sem que nenhuma precisasse justificar a sua presença.
Grace assentiu devagar, como se decifrasse os meus pensamentos não verbalizados.
— Às vezes — murmurou, a voz quase etérea — o universo tece encontros para que certas pessoas se reencontrem no momento exato. Mesmo quando acreditamos que perdemos a oportunidade para sempre.
Ergui-me da cadeira, as pernas ligeiramente bambas. O papel permanecia apertado contra a palma como um amuleto perigoso.
— Não sei como expressar a minha gratidão.
— Não é necessário — respondeu, também se levantando. Uma tristeza suave habitava o seu sorriso, como se guardasse histórias próprias.
A forma como pronunciou aquelas palavras despertou uma questão na minha mente, porém deixei-a morrer antes de ganhar forma.
Em vez disso, acenei uma última vez e abandonei o gabinete, o desdobrável queimando contra a minha pele como uma promessa arriscada.
Dois dias.
Em quarenta e oito horas, veria Chloe pela primeira vez numa década.
Fim do capítulo
Espero que tenham gostado!
Até ao próximo **
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asuna Em: 08/06/2025 Autora da história
Mal posso esperar para saber a tua opinião sobre o próximo capitulo :)