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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 8173
Acessos: 290   |  Postado em: 25/05/2025

Capítulo 19

 

O cheiro do mar.

O quebrar das ondas contra as rochas.

A brisa salgada que acariciava a minha pele.

Fechei os olhos e, por um momento, fui transportada de volta.

O tempo possui uma forma cruel de apagar pormenores, contudo certas memórias nunca se desvanecem completamente. Persistem, escondidas entre os espaços vazios da mente, aguardando o momento certo para emergirem.

Quando cessei a visão, sem aviso, fui puxada para um lugar distante. A sua voz ressurgiu como um sussurro fantasmagórico. Nítida. Precisa. Como se estivesse ali do meu lado. O estremecimento que me percorreu não vinha do frio, mas da desconcertante certeza de que a loira sempre conseguira ver além do que eu estava preparada para admitir.

Nesse momento, compreendi que havia sempre uma parte dela que nunca cheguei a conhecer totalmente. Talvez porque, no fundo, soubesse que se me aproximasse demasiado, não haveria regresso. E, apesar de já ter articulado razões práticas, responsabilidades e deveres quando confrontada por Piper, eu sabia intimamente que o medo mais profundo não era apenas das expectativas que outros tinham sobre mim. Era, sobretudo, da intensidade do que sentia por Chloe. Então, fugi. Principalmente daquilo que não conseguia controlar em mim mesma. Daquilo que não conseguia compreender plenamente. Fugi como alguém que não estava pronta para aceitar o que o coração já havia decidido. Como quem acreditava que a distância podia transformar recordações em algo suportável.

A verdade é que desaparecer não apaga nada. Apenas adia o inevitável.

E talvez fosse exatamente por isso que me encontrava ali. De volta à Austrália, sentada na areia em Palm Beach. Currumbin Rock. O lugar onde aprendera a surfar. Onde ela passara horas dentro e fora de água. Onde os nossos mundos pareciam pequenos o suficiente para pertencerem a um verão sem fim.

No entanto não se tratava apenas dela. Era também sobre mim. Sobre quem fui e quem deixei de ser. Durante muito tempo, confundi quietude com proteção. Recato com lealdade. Acreditei que existia uma forma correta de ocupar o mundo. Que o amor, para ser digno, necessitava de ser discreto. A loira nunca me forçou a sair do meu esconderijo. Contudo, também nunca fingiu não perceber.

Houve escolhas. Algumas minhas, outras impostas. Momentos em que o caminho se bifurcou e eu segui pelo trilho que me parecia mais seguro aos 19 anos. Ou mais esperado. Não me orgulhava disso. Porém, também já não fugia dessa sombra. Talvez fosse por isso que aquele lugar parecia tão significativo. Como se, ao regressar ali, estivesse a conceder uma oportunidade não apenas a nós, mas a mim mesma. De encarar o que deixara para trás. De entender quem me tornara.

A brisa agitou-me os cabelos. O oceano estendia-se à minha frente. Azul e imensurável. Mas, a minha atenção não repousava no mar. Estava na possibilidade de a encontrar. Eu sabia que ela ainda frequentava aquele lugar. Vira pelas redes sociais. Nas poucas publicações reveladoras a que ainda conseguia aceder. Pequenas evidências de que o mar ainda era a sua casa. De que Currumbin ainda era o seu refúgio.

Se havia um local onde os nossos caminhos poderiam cruzar-se, era aquele.

A imagem que me trouxera até ali voltou a ocupar espaço na minha consciência. O vestido branco, o tecido ajustado às curvas do seu corpo, curvas que eu conhecia com a ponta dos dedos, mesmo tantos anos depois. O mar no fundo, a luz dourada a envolver-lhe a pele.

Chloe Harper Montgomery.

Quantas vezes repetira esse nome na minha cabeça sem nunca ter tido a ousadia de a procurar?

Quantas vezes imaginara aquele momento e fracassara antes mesmo de tentar?

Dez anos.

Desde que a enterrei na gaveta das coisas que nunca deveria revisitar.

Desde que me convencera de que seguir em frente significava apagar essa parte da minha vida.

Mas não apaguei. Nunca consegui.

Mesmo nos intervalos entre relacionamentos. Mesmo quando acreditava estar apaixonada por outra pessoa. Mesmo quando o toque era novo e o carinho parecia sincero, Chloe permanecia. Não à vista, não em tudo, porém sempre em alguma coisa. Na forma como alguém pronunciava o meu nome. Num gesto distraído. Num respiro contido. A loira habitava no que faltava. E, por vezes, era justamente isso que magoava, o modo como nenhuma ausência conseguia ser suficiente para que ela deixasse de existir.

Inspirei profundamente.

Não podia simplesmente esperar que o destino a colocasse diante de mim. Precisava vê-la. Peguei o celular, indecisa, os dedos pairando sobre o teclado. Poderia enviar uma mensagem, algo casual, como se os anos não tivessem passado.

Mas o que diria?

"Hey, quanto tempo! Estou na Austrália. Vamos tomar um café e fingir que não passámos a última década a evitar pensar uma na outra?"

Um riso curto escapou-me, sem humor. Não. Não conseguiria fazer isso. Mordi o interior da bochecha. O meu olhar retornou para a tela, e um nome atravessou a minha mente.

Piper.

A ruiva provavelmente saberia onde encontrá-la. Talvez ainda falassem frequentemente. Seria o caminho mais fácil. O atalho mais óbvio. Porém, três razões impediam-me sequer de considerar essa ideia por mais de um segundo.

A primeira era o orgulho. Se ligasse, teria que admitir que não conseguia fazer aquilo sozinha. Que, depois de uma década a evitar qualquer ligação com o passado, agora estava ali, a pedir ajuda. Não podia aceitar isso. Pedir auxílio seria trair a própria razão pela qual regressara. Se queria enfrentar o passado, teria de o fazer com os meus próprios passos.

A segunda, o receio das perguntas. Só de imaginar o tom incisivo da sua voz, senti o estômago contorcer-se por antecipação. "Por quê agora, Maya?" "O que realmente queres dela?" Não teria uma resposta convincente. Ou melhor, teria, contudo não queria admiti-la nem para mim mesma. Piper não aceitaria desculpas vagas, não engolira uma resposta genérica. Obrigar-me-ia a olhar diretamente para a verdade. E eu não sabia se estava preparada para isso.

Por fim, a razão mais cruel de todas. O medo da resposta. E se, em vez de me dar um endereço, dissesse exatamente o que eu não queria ouvir? "Maya, ela seguiu em frente." "Maya, ela não te quer ver." "Maya, deixa isso para lá."

Podia suportar a incerteza. O que não suportaria era a confirmação de que esperara demasiado tempo, vinda de outros lábios. Não. Se essa verdade existia, precisava encará-la com os meus próprios olhos. Talvez assim, apenas assim, conseguisse finalmente libertar-me de Chloe. Daquilo que ainda a prendia a mim.

Bastava lembrar daquela última vez em que falámos ao telefone. Sete anos depois, aquela chamada ainda ecoava como uma ferida mal cicatrizada.

Piper ligou-me sem aviso, como sempre fazia. Aquela mania irritante de surgir no momento exato em que eu fingia estar bem. A conversa começou com trivialidades. Trabalho, meteorologia, banalidades escolhidas a dedo para evitar o inevitável. No entanto esta nunca foi boa com rodeios.

— Como está o teu pai? — começou, havia algo no tom que me disse que ela já sabia mais do que deixava transparecer.

— Está... a fazer tratamento — respondi, sentindo a garganta apertar-se como um nó cego.

— E tu? Como tu estás, Maya?

A pergunta veio carregada de significados. Não era direcionado ao cansaço de cuidar de um pai doente. Era sobre tudo o resto.

— Estou bem — menti, como tinha mentido a todos desde que voltara.

— Claro que estás — proferiu, o sarcasmo a escorrer lento como uma lâmina quente. — Tens um talento raro, sabias? Conseguiste desmanchar toda uma reconstrução para voltar ao ponto inicial. Finges com precisão. Com sorrisos perfeitamente editados ao lado do teu marido. Enterraste tudo tão fundo que até tu já acreditas nesse teatro de que superaste.

— Piper... — tentei, mas a minha voz era um fio quebradiço.

— Não, escuta. — O seu tom tornou-se cortante. — Estás aí, a representar o papel da filha perfeita, não é? A que voltou para casa, a que cuida do pai, a esposa discreta, a que faz tudo o que se espera dela. E talvez até te tenhas convencido de que isso basta. — Fez uma pausa cruel. — Mas tu sabes tão bem quanto eu que as coisas não são bem assim.

O meu silêncio foi resposta suficiente. Uma confissão muda.

— Lembras-te daquele momento? — continuou mudando de tática. — Quando finalmente disseste em voz alta que não devias sentir o que sentias?

O meu peito contraiu-se. Claro que me lembrava. Antes de tudo mudar. Antes de ter de escolher.

— Lembro — sussurrei.

— Então também te lembras no que eu te disse. Que não ias ficar sozinha. Que havia um lugar para ti aqui, sempre. — A sua voz suavizou por um momento. — Mas tu escolheste outra coisa, não foi? Lembras-te do que te disse sobre a fantasia da perfeição? Sobre como estavas presa entre ser perfeita ou ser condenada? Pois bem parabéns, parece encontraste uma terceira opção: fingir que nada daquilo aconteceu.

— Não tive escolha — explodi. A voz não gritou, mas vibrou. Baixa, firme, rachada por dentro — O meu pai está ás portas da morte, Piper.

—O que é que isso mudou sobre quem tu és? Sobre o que sentes?

Engoli em seco. Como explicar que tudo mudara? Que havia expectativas ainda maiores. Que havia coisas que o meu pai queria presenciar antes do fim.

— Às vezes — a sua voz voltou, mais baixa, mais perigosa — as circunstâncias tornam-se desculpas convenientes. Para voltarmos ao que é esperado. Para enterrarmos o que é verdadeiro.

— Tu não entendes — murmurei, sentindo as lágrimas queimarem como ácido. — Tu falas como se fosse fácil. Como se o mundo fosse um palco onde basta escolher o teu papel. Eu cresci num lugar onde os papéis não se escolhem, Piper. Eles são impostos. Eu passei dezasseis anos da minha vida a tentar caber num molde que me asfixia, que nunca foi meu. A ouvir sermões sobre pureza, sobre decência, sobre como o amor é certo se for dentro de certas regras. Não fazes ideia do que isso custa.

A minha respiração doía. As palavras saíam cruas, como se estivessem a sangrar por dentro.

— Tu tens uma mãe que te diz e te instruí a ser livre, um pai que te ouve e apoia, um quarto onde podes colar quem quiseres na parede. Eu — a voz falhou — eu tive um quarto onde a Bíblia ficava aberta na mesinha ao lado da cama, nas páginas que me lembravam, noite após noite, tudo o que eu não deveria sentir.

O silêncio que se seguiu foi pesado como lápide.

— E a Chloe? — perguntou finalmente, com aquela suavidade cortante. — Tu não a perdeste. Foste tu que a deixaste escorregar, a ela e a tudo, como se ela tivesse sido apenas um desvio que corrigiste.

Engoli em seco. As lágrimas queimavam-me os olhos como fogo líquido.

— O que vivi com a Chloe foi real. Foi bonito. Mas sabes o que acontece quando o mundo inteiro à tua volta diz, como um eco interminável, que dois anos de verdade não chegam para competir com uma vida inteira de expectativas? Tu acreditas. Tu calas. E aos vinte e um anos acabas por dizer “sim” a um homem que o teu pai aprova, enquanto ele assina papéis de tratamento paliativo, pagos por mãos que não são as tuas. — Fechei os olhos, como se isso impedisse a dor de se derramar. — Porque é isso que se faz, não é? Porque o amor, quando se mistura com gratidão e culpa, deixa de ser escolha. Torna-se dívida. E a dívida, Piper, essa não se questiona. Paga-se. Em silêncio.

— Maya…

— Não, tu realmente não entendes — cortei-a, sem raiva, apenas derrotada, sem mais espaço para me esconder. — Tu sentes. Tu amas. Tu arriscas. E eu admiro-te por isso. Mas eu... eu não consigo. Não agora. Não quando o vejo a definhar diante dos meus olhos. Não com a mão dele a tremer ao segurar a fotografia do meu casamento, como se aquele retrato lhe trouxesse mais paz do que qualquer medicamento. Tu nunca tiveste de sustentar um olhar cheio de orgulho e, ao mesmo tempo, engolir a culpa por saber que esse orgulho depende de uma versão tua que não existe.

A minha voz quebrou. E, pela primeira vez, deixei. Não lutei contra as lágrimas. Não me recompus. Só desabei.

— O que me assusta não é o que deixei para trás. É o que me tornei para que todos pudessem dormir tranquilos. É reconhecer-me no espelho e ver uma estranha que aprendeu a mentir tão bem que até ela própria acredita.

Piper demorou a responder. Quando o fez, foi num tom que nunca lhe tinha ouvido. Mais sussurrado. Como se tivesse envelhecido uma década numa conversa.

— Maya, eu só queria, que não te perdesses tanto para seres tudo o que esperam.

— Já me perdi, Piper. Há algum tempo. Já não sei onde começa o que quero e onde termina o que devo. A única certeza que tenho é que abrir mão da Chloe foi abrir mão da única felicidade que alguma vez me pertenceu verdadeiramente. Mas também sei, com a mesma clareza cruel, que o meu pai é tudo o que me resta da palavra "família". E é ele quem mais precisa de mim agora.

Fechei os olhos. A luz do quarto parecia mais fria. E eu, menor. Invisível até para mim mesma.

A chamada terminou pouco depois. Sem adeus. Só aquela pausa densa a pairar como fumo tóxico.

Ligar para Piper seria voltar a pôr-me diante de um espelho.

Então, não. Eu não ligaria para ela.

Talvez nem precisasse.

Lembrei-me de como Chloe costumava perder a noção do tempo com a câmera em mãos, registando os pequenos detalhes que, segundo ela, "ninguém observava de verdade."

O sorriso leve que lhe surgia no rosto ao rever os cliques, a ponta da língua a escapar entre os lábios enquanto ajustava o foco.

Fechei os olhos e, sem aviso, estava de volta àquele momento. Em que começámos a construir o que tínhamos descoberto na torre. Depois daquele instante de vulnerabilidade partilhada, algo mudou entre nós. Os seus olhares demoravam-se nos meus por mais tempo, as suas mãos procuravam as minhas com mais frequência. Eram gestos pequenos, discretos para quem via de fora, porém para mim eram como faróis que me guiavam para casa.

Nos dias que já se perderam, aprendi a não fugir, pelo menos não frequentemente. Aprendi que os seus dedos, quando entrelaçados nos meus, não traziam condenação, apenas calor. Que o seu sorriso, aquele que notei ser exclusivamente meu, não carregava pecado, todavia uma espécie de liberdade que eu nunca tinha experimentado.

No entanto, por mais que me aproximasse, continuava a guardar em mim uma distância. Como se temesse quebrar-me se me entregasse por completo.

 

***

 

Naquela tarde, encontrava-me sentada com Piper e o grupo habitual numa das mesas ao ar livre do recinto escolar. A ruiva mantinha-se empoleirada no topo da mesa, o braço apoiado no joelho e as pálpebras semicerradas contra o sol do meio-dia. Noah e Ethan discutiam os detalhes sobre o próximo jogo de futebol, enquanto Amber deslizava o dedo pela tela do celular com expressão ausente. Eu, por outro lado, mergulhava num outro tipo de narrativa, um livro recém-emprestado por Chloe.

Estava tão absorta naquela leitura, cada parágrafo um espelho onde me via fragmentada, que, quando Piper guinchou do meu lado, saltei com o susto, o coração a tropeçar numa batida irregular, e as sobrancelhas a erguerem-se num arco involuntário que denunciava a minha exasperação.

Esta estudou-me por um segundo, a comissura dos lábios a elevar-se lentamente, como se tivesse acabado de receber uma inspiração divina.

— Ok, tenho uma proposta. Vamos à praia este fim de semana.

Pisquei, sentindo-me arrancada abruptamente do espaço seguro entre as páginas.

— Praia? — repeti, a voz ainda a flutuar entre a literatura e a realidade.

— Sim, sabes, aquele lugar com areia e mar? — provocou. — Eu recuso-me a passar o sábado em casa. Além disso, acho que estás a precisar de um pouco de sol. Estás tão branca que daqui a pouco começam a confundir-te com um vampiro. Se brilhares ao sol, aviso-te já que vou gritar.

Revirei os olhos, sentindo a resistência ceder e o sorriso escapar contra a minha vontade.

— Ótimo. Era exatamente disso que estava a precisar, alguém que me incentive com insultos criativos.

Vi-a encolher os ombros, levando a garrafa de energético aos lábios.

— Chama-se motivação alternativa. Funciona melhor do que parece.

Antes que pudesse responder, senti um toque, suave e firme ao mesmo tempo, a deslizar pelos meus ombros. Não precisei virar para saber quem era, o corpo já começava a reconhecer aquela pressão, aquele ritmo particular, aquela cadência deliberada. Chloe. Os óculos escuros refletiam a luz pálida da tarde, e o seu sorriso enviesado trazia aquela certeza de quem consegue ler cada micro-expressão do meu rosto. A temperatura da minha pele elevou-se num segundo, um calor que nascia nas vértebras e subia, vertebra por vertebra, até à nuca.

— Qual a conspiração de hoje? — questionou, inclinando-se ligeiramente, o seu perfume a misturar-se com o aroma de café e conversas ao redor.

Estar assim, tão próxima dela em público, era ainda um território inexplorado para mim. O corpo dividia-se entre impulsos contraditórios: permanecer na exata posição onde podia absorver o calor da sua presença ou recuar para uma distância segura, onde pudesse respirar sem me denunciar.

De soslaio, capturei Piper a observar-me com aquele brilho divertido que nunca conseguia disfarçar.

— Estamos a planear uma ida à praia no sábado. Maya estava a expressar o quão ansiosa está, em vez de ficar enfiada em casa a ler — esticou o pescoço para ver o título do livro nas minhas mãos — "O Segundo Sexo". Uau. Leitura leve para uma tarde a meio da semana.

A afirmação atingiu-me como um dardo certeiro e inesperado. A ruiva bebeu mais um gole do energético, o sorriso mal contido a dançar-lhe no rosto.

— Claro, como poderia recusar? — murmurei com um sarcasmo que não conseguiu esconder a rendição iminente.

— Perfeito. Porque a Chloe também vai.

— Vou? — A loira arqueou uma sobrancelha, teatral na sua simulação de surpresa, embora a luminosidade nos seus olhos traísse uma cumplicidade anterior.

— Claro que vais. O que mais terias para fazer?

O som que escapou dos seus lábios não era propriamente uma gargalhada, era algo mais contido, mais baixo, mais íntimo. Um rumor que vibrava como uma nota musical grave, carregando uma piada privada que só ela conhecia.

— Bom — respondeu, ainda atrás de mim. — Agora que já fui oficialmente incluída nos planos, seria rude recusar.

Nessa hora, sem qualquer aviso, o seu polegar começou a desenhar pequenos círculos na base do meu pescoço, onde a pele é mais fina, mais sensível, mais viva. Não era um gesto casual, era preciso, calculado, uma provocação deliberada para testar os limites da minha compostura em público. As pálpebras fecharam-se por instinto, enquanto forçava a respiração a manter um ritmo aceitável, fingindo uma normalidade que desmoronava a cada microssegundo daquele toque.

— E então, estás a gostar? — O seu timbre derramou-se como mel quente junto do meu ouvido, baixa e íntima o suficiente para criar a ilusão de estarmos sozinhas num espaço povoado.

Ergui o rosto numa fração de segundo, tentando descobrir a que ela se referia. Mesmo com os óculos escuros ocultando-lhe parte da expressão, captei o momento exato em que percebeu a minha confusão. Aquela curva assimétrica formou-se nos seus lábios, o tipo de meio sorriso que era pura provocação velada.

— Do livro — completou, respondendo à pergunta silenciosa que pairava na atmosfera que nos envolvia.

— Estou. É.. desafiador. De uma forma boa. Faz-me questionar muita coisa — murmurei, a voz a tentar encontrar equilíbrio enquanto o corpo se rendia às pequenas ondas de calor que a sua proximidade gerava.

Os seus dedos moveram-se lentamente sobre a lombada do exemplar, que agora permanecia fechado sobre as minhas mãos. Acompanhei o movimento hipnotizada, como se naquelas linhas invisíveis que traçava existisse um código secreto só meu. Cada movimento transferindo-se para a minha própria sensibilidade. Segundos depois, o seu toque regressou à base do meu pescoço.

— Ainda achas que o género é destino? Ou já percebeste que o destino, às vezes, veste-se de silêncio e medo? — O seu tom aparentava casualidade, mas as palavras eram afiadas, cortando diretamente para o cerne da questão.

Antes que as sílabas ganhassem presença, Ethan, que se mantivera silencioso até então, endireitou a postura.

— Não sei se concordo com tudo o que a Beauvoir diz, para ser honesto — afirmou, num tom que tentava parecer casual, embora a tensão nos músculos do rosto o traísse. — Há melhores formas de abordar o feminismo. Menos ideológicas.

Piper emitiu um som gutural, como se estivesse a engolir uma gargalhada indiscreta. Noah e Amber subitamente encontraram nos respetivos celulares um interesse extraordinário.

Os dedos de Chloe imobilizaram-se na minha nuca. Embora os óculos escuros me impedissem de ver completamente a sua expressão, percebi como os seus lábios se comprimiram numa linha fina e precisa. Lentamente, ergueu o rosto para o encarar.

— E há melhores formas de escutar uma mulher quando esta fala. Menos paternalistas — a sua voz mantinha-se calma, mas por baixo da serenidade aparente corria uma firmeza que era impossível ignorar. — Curioso como a palavra "ideológico" é sempre aplicada a mulheres que pensam. Nunca a filósofos que estabelecem verdades universais há séculos, em coro, de gravata.

Ethan entreabriu os lábios para responder, o olhar oscilando brevemente entre mim e Chloe, como se procurasse apoio, porém a loira não lhe deu espaço para continuar.

— Beauvoir não está a ser "ideológica". Está a questionar as estruturas que nos dizem como uma mulher deve ser, pensar, sentir. A desconstruir a ideia de que o nosso género determina o nosso lugar no mundo. É um trabalho necessário. Incómodo, talvez, para quem está confortável.

Ele franziu o cenho, claramente desconfortável com o rumo da conversa.

— Não estou a dizer que não é importante questionar as normas sociais. Só acho que há formas mais subtis de o fazer. Sem antagonizar tanto.

Esta inclinou ligeiramente a cabeça, um movimento fluido que me lembrou um predador a estudar a sua presa. Num gesto deliberado, retirou os óculos de sol, revelando aquele azul-turquesa que parecia ter o poder de ver para além das aparências. Fixou Ethan diretamente, não havia agressividade, mas a intensidade era como água profunda, calma na superfície, poderosa nas correntes.

— A mudança raramente é subtil ou confortável, Ethan. Especialmente para aqueles que beneficiam do sistema atual. O feminismo não existe para ser agradável. Existe para ser transformador.

A cadência das palavras fluía como uma aula improvisada, como se estivesse a explicar um conceito particularmente complexo a uma criança. Este remexeu-se, claramente desconfortável sob o peso daquela atenção analítica.

— Eu... eu não quis dizer que...

— Eu sei que não. — interrompeu-o, não com hostilidade, mas com uma certeza que não deixava espaço para dúvidas. — Mas é importante reconhecermos os nossos privilégios. E percebermos que, às vezes, o que nos parece "extremo" é apenas a realidade de quem vive numa posição diferente da nossa.

A suspensão entre palavras caiu sobre nós. Vi-o engolir em seco, à procura de palavras que não encontrou. Havia na sua expressão, uma densidade, uma fragilidade que não era apenas desconforto intelectual. Era algo mais visceral, mais íntimo, como um nervo exposto que ela tinha tocado sem querer ou talvez deliberadamente.

E ali, observando-os, ela com a sua serenidade cortante e Ethan preso naquele desconforto, percebi algo que até então não tinha notado. Aquela era, estranhamente, a primeira vez que os via realmente a interagir. Não como duas presenças coincidentes no mesmo espaço, mas verdadeiramente frente a frente, em diálogo direto.

Chloe era, em teoria, parte do grupo. Todos a cumprimentavam com naturalidade, todos pareciam conhecê-la. No entanto, agora que refletia, havia algo de enganador nessa impressão. Ela estava, mas nunca permanecia. Surgia quando bem entendia, materializava-se do nada. Sentava-se brevemente, por vezes sorria, dizia uma ou duas frases, contudo quase sempre já tinha outro compromisso, alguém à espera, outro lugar para estar.

Nunca me parecera solitária, longe disso. Porém, também nunca parecera verdadeiramente integrada.

Piper observava tudo com um sorriso mal disfarçado, como uma espectadora diante do seu programa favorito.

Por um instante, senti uma vibração estranha atravessar-me, algo sem nome definido. Não era bem ciúme, não na aceção convencional da palavra. Era uma inquietação subtil e profunda, como entrar numa sala onde o ar está saturado de algo que aconteceu antes, e que ninguém menciona.

Mesmo fascinada ao a ver defender as suas convicções com uma eloquência quase musical, a minha atenção oscilava entre a loira e Ethan, captando correntes invisíveis, tentando perceber o que não estava a ser dito.

O olhar dele tornou-se distante, como se se tivesse recolhido para um lugar inacessível. Chloe, por sua vez, recolocou os óculos num gesto fluido, o sorriso característico a voltar aos seus lábios, impedindo-me de explorar os pensamentos que começavam a ganhar forma.

— Bom — interveio Piper por fim, quebrando o silêncio carregado com uma energia quase elétrica — então está decidido. Praia, sábado. — Fez uma pausa dramática, avaliando-nos com uma expressão falsamente autoritária. — Sem desculpas de última hora, sem atrasos, sem crises existenciais provocadas por livros filosóficos.

Amber ergueu finalmente os olhos e assentiu, divertida.

— Eu alinho.

Noah levantou o polegar em concordância silenciosa. Ethan apenas fez um aceno quase intangível, a expressão ainda distante, como se uma parte dele tivesse ficado presa naquela troca de palavras.

— Ótimo! — ouvi-a bater palmas, satisfeita. — Vamos todos precisar de um pouco de vitamina D depois desta semana.

Risos dispersos surgiram à volta da mesa, dissipando finalmente a tensão.

 

***

 

O sábado surgiu com um calor suave, o tipo de sopro que traz a promessa de um dia perfeito na praia. De pé diante do espelho, segurei o tecido leve do biquíni entre os dedos, hesitante, a pele a formigar com uma mistura de nervosismo e expectativa diferente de tudo o que já sentira antes.

A peça ainda carregava o cheiro subtil da loja, misturado com o perfume cítrico das mãos de Piper, que na tarde anterior praticamente me obrigara a experimentá-lo.

"Confia em mim, Maya, é perfeito para ti."

Dissera com aquela certeza absoluta que só os extrovertidos conseguem possuir ao empurrar alguém para fora da zona de conforto.

Na altura, estava demasiado distraída com o seu entusiasmo para me lembrar de um detalhe crucial, as suas preferências. Só quando pedi a sua aprovação, notei a forma como os seus olhos castanhos se demoraram em mim, compreendendo o que tinha feito. Não foi um olhar vulgar ou sequer intencionalmente sugestivo. Foi apenas um instante a mais do que o necessário, um escorregar de atenção que fez o meu estômago revirar-se num desconforto. Não pelo olhar em si, mas como se de repente aquela peça se tornasse mais revelador do que eu imaginara.

O veredito veio sem palavras. A forma como o canto da sua boca se ergueu ligeiramente dizia tudo, obtive a aprovação no instante em que Piper me olhou daquele jeito, e talvez isso tivesse sido pior do que qualquer comentário que pudesse ter feito.

Agora, observando o meu reflexo, não pude deixar de notar como o tecido abraçava as curvas do meu corpo de uma forma simultaneamente lisonjeira e reveladora. Há algumas semanas, este mesmo reflexo teria me feito tremer de vergonha. Teria chegado a este momento e recuado, escolhido algo mais conservador, menos visível.

Porém hoje, após momento sob a chuva, algo tinha mudado. O receio ainda persistia, não podia negar, contudo já não era vergonha nem reprovação que sentia a fervilhar sob a pele. Era mais como uma antecipação elétrica, uma consciência nova.

Debrucei-me sobre o reflexo, avaliando esta nova versão que parecia emergir aos poucos. Nas últimas semanas, tinha aprendido sobre novos territórios dentro de mim, espaços que desconhecia, sentimentos que não sabia nomear. E hoje, na praia, com ela, sentia que poderia dar mais um passo nessa direção.

Respirei fundo, passando os dedos pelo cabelo solto, tentando alinhar pensamentos que insistiam em dispersar-se. Era apenas um biquíni. Apenas um dia na praia com amigos. Nada de extraordinário.

Exceto que havia. Especialmente com Chloe presente.

Com um último olhar, peguei na bolsa de praia e saí do quarto.

Desci as escadas com passos medidos, ajustando as alças do macacão leve que vestira por cima. O tecido fresco deslizava sobre a pele, oferecendo uma camada extra de segurança contra a inquietação. A bolsa de praia que Amanda me emprestara pendia do ombro. O boné, enfiado de forma apressada sobre a cabeça, escondia parte do meu cabelo, os fios loiros claros escapando pelas laterais em pequenas mechas rebeldes.

Ao chegar ao último degrau, encontrei Piper já à minha espera na entrada. Estava vestida de forma descontraída, uns calções jeans gastos e uma regata preta, as sandálias presas displicentemente nos pés. Os óculos de sol escuros escondiam-lhe os olhos, mas o sorriso sarcástico nos lábios deixava claro que tinha algo na ponta da língua.

Na mão direita, segurava uma prancha de surf, equilibrando-a com uma familiaridade que denunciava anos de prática.

— Finalmente! — exclamou, endireitando-se, apoiando o objeto contra a parede. — Eu já estava a considerar enviar uma equipa de resgate lá para cima. Pensei que tinhas sido engolida pelo espelho.

Revirei os olhos, ajustando a alça no ombro.

— Demorei cinco minutos.

— Cinco minutos? — Ergueu uma sobrancelha, incrédula. — No teu tempo interno isso equivale a um ano de dilema existencial, certo?

Soltei um suspiro exagerado seguindo até à porta, onde esta já se encontrava.

— Trazes uma prancha? — observei, analisando-a com um misto de curiosidade e ceticismo.

Ela empurrou os óculos de sol para o alto da cabeça e piscou-me o olho.

— Claro que sim. Alguma vez viste um australiano ir à praia sem a sua prancha? Seria um insulto cultural. É como ir a um churrasco e recusar uma cerveja.

Pisquei, fingindo refletir sobre a questão.

— Mas e se a praia for só para relaxar?

A ruiva arfou dramaticamente, levando a mão livre ao peito como se tivesse sido mortalmente ofendida.

— Relaxar? Maya, acho que ainda não percebeste o conceito. A praia é a oportunidade perfeita para eu demonstrar os meus incríveis talentos aquáticos. Para brilhar sob o sol australiano como a deusa surfista que sou.

— Isso é suposto impressionar-me?

Ela deu um passo à frente, inclinando-se ligeiramente, os olhos castanhos a dançarem cheios de diversão.

— Impressionar-te? Eu? — O sorriso tornou-se malicioso. — Eu nunca faria algo tão baixo. Mas se, por acaso, ficares boquiaberta com as minhas habilidades, prometo que não me vou gabar muito.

Revirei os olhos, sem conseguir evitar o pequeno sorriso que se formava nos meus lábios. Era difícil não me sentir contagiada pela sua energia impulsiva.

— Anda. O mar espera-nos! E, quem sabe, talvez descubras um novo talento escondido, ou, pelo menos, espero que te afundes com estilo. Porque se vais fazer uma figurinha triste, prefiro que seja memorável.

— Vou fingir que não ouvi isso.

A sua risada preencheu o ambiente, antes de caminhar para fora de casa. Segui-a, sentindo o sol quente beijar a pele no instante em que cruzámos a soleira.

A caminhada até Palm Beach foi tranquila, quase meditativa. O ar salgado e quente envolveu-me de imediato, trazendo consigo uma vaga sensação de expansão interior. O calor do pavimento atravessava as minhas sandálias enquanto seguíamos pelo caminho costeiro. A ruiva ia à frente, equilibrando a prancha com uma facilidade irritante, como se fosse uma extensão natural dela. À nossa direita, vislumbres do azul profundo do mar surgiam entre os troncos das palmeiras, hipnotizando-me com o seu movimento eterno.

— Há algo que não te disse — comentou, virando-se na minha direção com um meio sorriso. — Currumbin Rock é o local perfeito para fotografias. As rochas, a água cristalina, a vista para o horizonte. Se tivesses uma câmera, poderias captar imagens de cortar a respiração.

Percebi imediatamente o que ela estava a sugerir. Um calor subtil subiu-me pelas faces, não de vergonha, mas de um entendimento profundo daquela insinuação.

— Eu sei o que estás a fazer — murmurei, lançando-lhe um olhar conhecedor — e não está a funcionar.

— Não sei do que estás a falar — respondeu inocentemente, ajustando o objeto debaixo do braço. — Só estava a oferecer informação turística. Não é culpa minha se uma certa pessoa que conhecemos também aprecia fotografia.

— Consegues ser menos subtil? — Perguntei, cruzando os braços.

— Ah, tu preferes quando eu não o sou — retorquiu, sorrindo de lado. — Além disso, não precisas de agradecer por criar oportunidades tão perfeitas. É um dom natural.

Abanei a cabeça, incapaz de esconder um sorriso. Nas últimas semanas, Piper tinha-se tornado não apenas uma amiga, mas uma espécie de cúmplice silenciosa nesta minha jornada de autodescoberta. Havia dias em que a sua franqueza me assustava, mas hoje, sob o sol dourado de Queensland, sentia-me quase agradecida pela forma como ela me empurrava para fora da minha zona de conforto.

Quando finalmente chegámos, o cenário era de cartão-postal. A água cristalina dançava sob a luz do sol, as ondas quebravam suavemente contra a costa, e a areia dourada estendia-se convidativa, pontilhada por grupos de pessoas que já aproveitavam a manhã. A imponente formação rochosa de Currumbin erguia-se majestosamente na extremidade da praia, uma silhueta robusta contra o céu límpido, servindo de ponto de referência para surfistas e aventureiros.

Ouvi-a soltar um suspiro satisfeito ao esticar um dos braços para cima, absorvendo a brisa marítima.

— Respira fundo, Maya. Isto sim é liberdade.

Segui o seu conselho, fechando os olhos por um instante inspirando o ar salgado.

— Então, qual é o plano? — perguntei alguns segundos depois, ajustando a alça da bolsa no ombro, tentando manter uma aparência casual.

Ela apontou com a cabeça para um ponto mais afastado, próximo das rochas.

— Vou surfar ali. As ondas são melhores nessa parte, e menos gente atrapalha. Mas antes, vamos montar acampamento.

O "acampamento", pelo que percebi, resumia-se a estender uma toalha grande o suficiente para nós duas e atirar a bolsa de praia por cima, garantindo que o vento não a levasse. Piper largou a prancha na areia e logo deixou transparecer um esgar travesso.

— Agora a verdadeira questão, vais entrar na água ou vais só ficar a fingir que és uma estátua grega esculpida em nervosismo?

Revirei os olhos, empurrando-a de leve com o ombro.

— Vou entrar, só preciso de me preparar mentalmente para a temperatura.

Ela soltou uma gargalhada, batendo-me nas costas com entusiasmo.

— Mentalmente? Pois, claro!

Retirei a minha toalha e estendi-a sobre a areia quente. Do meu lado, a ruiva estava entretida no celular, os óculos de sol agora empoleirados no topo da cabeça enquanto digitava algo com rapidez.

Sentei-me, ainda com o macacão vestido, procurei pelo protetor solar. O frasco escorregou entre os meus dedos enquanto espalhava uma quantidade generosa pelos braços.

— Ethan e o Noah já estão a caminho — comentou, sem erguer a cabeça. — Amber disse que talvez chegue um pouco atrasada porque tem de comprar algo para a mãe. Chloe acabou de mandar mensagem. — Fez uma pausa, digitando rapidamente. — Mandei as nossas coordenadas.

Tentei disfarçar o nervosismo, concentrando-me na aplicação metódica do creme. Fechei os olhos por um momento, absorvendo o sol e o sopro salgado.

Não passaram muitos minutos até sentir uma presença atrás de mim, não a ouvi, porém de alguma forma sabia que estava lá. Uma eletricidade fina no ar. Não precisei abrir os olhos para saber quem era, reconheceria aquela energia silenciosa em qualquer lugar.

— Bem, acho que hoje o espetáculo principal vai ser na areia.

Abri as pálpebras lentamente, como quem desperta de um sonho lúcido, e virei o rosto para encontrá-la. Chloe estava ali, os cabelos loiros a capturarem reflexos dourados sob o sol intenso, os óculos escuros a esconderem os seus olhos, contudo o leve sorriso dançava nos lábios. Ela vestia uma camisa branca sobre o biquíni, apenas alguns botões fechados, deixando entrever fragmentos de pele bronzeada.

— Parece que sim — respondi com um sorriso discreto, tentando conter a forma como o meu coração acelerava com a sua proximidade.

Observei-a enquanto esta se sentava do meu lado na toalha, colocando a sua câmera fotográfica com delicadeza sobre a bolsa. Os nossos braços quase se roçavam, a poucos milímetros de distância.

— Sabes dizem que o segredo de um bronzeado perfeito é deixar que o sol encontre a pele sem reservas. — O som deslizou pelo ar como um murmúrio velado, carregado daquela diversão perigosa que lhe era tão característica. No entanto havia também algo mais, uma suavidade nova que não estava presente antes. — Mas tu — Inclinou ligeiramente a cabeça, aquela íris oceânica captando cada detalhe do meu rosto, do meu pescoço, do espaço mínimo entre nós. — Pareces gostar de desafiar a lógica.

Senti o calor subir-me às faces, incapaz de desviar o olhar.

— Talvez eu goste de guardar alguns mistérios — murmurei, numa tentativa de transmitir estabilidade, enquanto algo dentro de mim se sentia ousado, quase atrevido.

Uma curvatura ligeira surgiu-lhe nos seus lábios, lentamente retirou os óculos, deixando-me finalmente ver a intensidade do seu olhar. Mais do que nunca, havia uma transparência nova, como se a camada de provocação habitual tivesse dado lugar a algo mais verdadeiro, mais direto.

— Mistérios são interessantes. — Fez uma breve pausa, observando-me com uma atenção que me fez sentir como se estivesse a ser lida como um livro aberto. — Mas eu gosto particularmente dos que posso desvendar.

Os seus lábios entreabriram-se ligeiramente, como se uma palavra, ou talvez um gesto, estivesse prestes a nascer ali, suspenso entre a hesitação e a vontade. Um movimento quase inexistente, mas que acendeu em mim uma consciência aguda da distância curta que nos separava.

Procurei umedecer a boca subitamente seca, desviando finalmente o olhar, sentindo um tremor percorrer-me a pele aquecida pelo sol. Não de forma desconfortável, contudo como um pequeno tremor de antecipação.

Antes que pudesse recuperar o fôlego, algo voou na minha direção. O reflexo tardio fez-me levantar as mãos a tempo de apanhar um par de óculos de sol, atirados com precisão.

Noah e Ethan aproximaram-se, cada um carregando uma prancha debaixo do braço. Ethan ofereceu-me um sorriso tímido quando as nossas vistas se cruzaram. Senti um leve desconforto ao reparar que Chloe acompanhava atentamente aquela troca, a cabeça inclinada num ângulo estudioso.

O foco dele deslizou de mim para ela, voltando novamente. Vi quando a sua expressão se fechou, a postura enrijecendo quase impercetivelmente. Por um segundo, pareceu que queria dizer algo, mas recuou, optando por um sorriso que não lhe chegou aos cantos da boca.

Piper ergueu-se num salto, estalando os dedos.

— Tive uma ideia fantástica. Maya, acho que já está mais do que na hora de aprenderes a surfar.

Pisquei, ainda processando as correntes invisíveis que circulavam entre nós três.

— Espera, o quê?

— Vieste para a Austrália e pretendes sair daqui sem apanhar uma única onda? Isso é inaceitável. — A ruiva apoiou as mãos na cintura, carregada de impaciência exagerada.

— Eu nunca disse que queria aprender.

— E eu nunca disse que me importava com o que tu queres. — Sorriu, já pegando na prancha. — Para o mar, já!

Do meu lado, Chloe permanecia reclinada na toalha, soltando uma gargalhada suave sem abrir as pálpebras. Contudo, havia algo no modo como o seu corpo se inclinava ligeiramente na minha direção, uma tensão subtil que denunciava estar perfeitamente consciente de cada movimento ao redor.

— Concordo. — A sua voz arrastada deslizou pelo ar, preguiçosa e insinuante. — E também acho que não vais aprender grande coisa completamente vestida.

Desta vez, quando me contemplou, foi diferente. Havia uma intimidade nova, um reconhecimento tácito que antes não existia. Começou no meu rosto, medindo a minha reação, depois desceu, avaliando não apenas o que via, mas o que despertava em mim.

Calor avermelhado espalhou-se-me pela pele, mas não era vergonha. Era a consciência de que aquele gesto carregava mais do que simples provocação.

De relance, vi Ethan desviar a atenção, como se o horizonte tivesse adquirido um súbito fascínio. O maxilar contraiu-se ligeiramente, os dedos cerraram-se em punhos discretos, e, num gesto contido, afastou-se.

Piper, alheia ou talvez apenas indiferente ao que estava a acontecer, estalou a língua contra os dentes e assentiu de forma decidida.

— Concordo plenamente. Isso não vai servir. — declarou, cruzando os braços com ar satisfeito.

— Eu podia simplesmente não aprender. — Tentei, sabendo que era um argumento perdido antes mesmo de sair da minha boca.

— E eu podia simplesmente não insistir. Mas aqui estamos nós. — Concluiu, atirando-me um olhar triunfante. — Anda.

Suspirei, sentindo-me encurralada, contudo não de forma desagradável. Era como se, finalmente, estivesse a ceder a algo que parte de mim sempre desejou, não apenas aprender a surfar, mas deixar-me levar pela corrente, por uma vez.

Resignada, ergui-me e puxei o fecho do macacão devagar, sentindo o tecido deslizar contra a minha pele num arrepio involuntário. Uma quietude estranha instalou-se. Esperava um comentário, uma provocação, um riso abafado. Porém, o sossego permaneceu, repleto de uma tensão nova.

Nesse instante percebi que estava a ser observada. Não por Piper, que já estava focada na prancha. Nem por Noah, que iniciara uma conversa animada com dois rapazes.

Ergui a cabeça lentamente e, inevitavelmente, encontrei o azul-turquesa fixo em mim. Porém não era o de sempre. Não havia provocação, nem preguiça no sorriso, tampouco o jogo habitual nas palavras.

Era diferente. Mais escuro. Mais sincero. De certa forma familiar.

Uma recordação assaltou-me com a força de uma epifania. O quarto. A festa.

Esse mesmo tom de azul estava agora diante de mim, no entanto havia uma profundidade inédita, um lampejo de algo que ela não costumava permitir que fosse tão evidente.

Explorou-me vagarosamente, captando cada pormenor com atenção que me fez estremecer. Como se absorvesse algo novo e não soubesse exatamente o que fazer com essa informação. Como se estivesse a memorizar.

O canto dos seus lábios curvou-se num sorriso que era mais uma confissão do que uma provocação. Uma admissão tácita de que algo tinha se transformado, de que também estava a ser impactada por aquilo que florescia entre nós.

O ar tornou-se subitamente mais pesado, mais árduo de inspirar. Senti o calor percorrer-me a pele, o peito a pulsar com força. Cruzei os braços, numa tentativa infrutífera de me resguardar da intensidade daquele exame, da verdade que encerrava.

Mas Chloe, não me permitiu esconder. Com um gesto subtil, recostou-se, os dedos brincando na borda da toalha, o sorriso agora com um toque de provocação que era tão familiar quanto inquietante.

— Acho que agora sim vais conseguir aprender alguma coisa — murmurou, rouca carregando uma promessa que me fez vibrar por dentro.

Naquele momento, compreendi que esta também estava a aprender. Que aquilo que desabrochava entre nós era tão novo e avassalador para ela quanto para mim.

O som de passos na areia fez-me erguer o rosto. Ethan aproximava-se, carregando duas garrafas de água, porém algo na sua postura chamou-me a atenção. Os ombros ligeiramente tensos, o passo mais lento que o habitual. Quando parou junto de nós, estendendo-me uma das garrafas, captei aquela expressão familiar, a mesma vulnerabilidade que aflorava quando falava sobre nunca saber se jogava futebol por prazer ou por obrigação.

— Obrigada — murmurei, aceitando a água.

Ele acenou brevemente, porém demorou-se no espaço entre mim e Chloe. Não era possessividade nem ciúme declarado. Era reconhecimento. O lento despertar de quem finalmente vê o que sempre esteve ali, mas que escolheu ignorar.

O desconforto instalou-se como um terceiro corpo entre nós.

Desviei o olhar, contudo senti a atenção de Chloe poisar sobre mim com aquela intensidade familiar. Quando finalmente a encarei, captei o ligeiro apertar dos seus lábios, um quase sorriso contido, como se tivesse engolido um comentário afiado.

— Perfeito! — A voz de Piper cortou a tensão como uma lâmina. — Agora que já temos a aluna devidamente preparada, vamos para a água!

Ao longe, Amber acenou, aproximando-se com uma caixa térmica que parecia pesar mais do que ela.

Agarrei na prancha com uma determinação que não sabia possuir. Segui a ruiva em direção à margem. Bastou um toque da água fria contra os meus pés para perceber que estava completamente fora da minha zona de conforto. E talvez fosse exatamente disso que eu precisava.

— Maya, para de segurar a prancha como se ela te fosse morder.

O riso de Piper ecoou atrás de mim, cristalino e provocador.

— Não a estou a segurar como se me fosse morder — retorqui, mantendo o olhar fixo no horizonte. — Estou apenas a avaliar a situação.

— A única coisa que precisas de avaliar é que vais cair várias vezes e, provavelmente, engolir litros de água salgada. — A ruiva gotejava divertimento. — E eu estou aqui somente para testemunhar esse espetáculo.

— Muito útil da tua parte, obrigada — murmurei, enquanto pousava o objeto.

Noah e Ethan já se aventuravam pelas ondas, as pranchas seguras com uma confiança invejável. A distância fazia-os parecer figuras pequenas contra a imensidão azul.

Então, num movimento fluido, Chloe contornou-me, os seus dedos roçando de leve a pele exposta do meu ombro. Um toque tão efémero que poderia ter sido acidental, mas que fez a minha respiração falhar por um instante. Agachou-se junto à prancha, perto o suficiente para que o seu aroma se misturasse com a brisa marítima, inebriando-me os sentidos.

— Ok, vamos ao básico. Primeiro, deitas-te assim.

Com uma graciosidade natural, deslizou sobre a prancha, os músculos movendo-se em perfeita sincronia. Observei-a, hipnotizada pela forma como o seu corpo parecia pertencer àquele cenário, enquanto o meu se sentia deslocado.

— Manténs o equilíbrio com o peito ligeiramente elevado, mas sem tensionar os braços — instruiu, demonstrando com uma facilidade irritante.

— Agora, a parte mais importante. — Chloe voltou a sentar-se, indicando que eu tentasse. — Quando estiveres pronta, rema com firmeza e, no momento certo, impulsiona-te para cima. Como uma flexão rápida, mas com equilíbrio.

— Equilíbrio. Claro.

Suspirei, antecipando o desastre iminente. Piper, reclinada na areia, observava-me com uma expectativa exagerada.

— Avisa-me antes para eu começar a gravar.

Ignorando a provocação, posicionei-me como a loira demonstrara, sentindo a superfície oscilar sob o meu peso. A prancha parecia ter vida própria, reagindo a cada tremor involuntário. Contudo havia algo mais perturbador, a forma como Chloe me observava. Não era o olhar técnico de uma instrutora. Era íntimo. Atento. Como se cada movimento meu fosse uma revelação que ela guardava só para si.

— Certo. Agora, quando eu disser, levanta-te rapidamente.

Assenti, o coração martelando contra as costelas.

— Agora!

Impulsionei o corpo para cima, contudo, no meio do movimento, perdi o equilíbrio. O mundo girou numa sequência caótica antes de aterrar de costas na areia. Uma pausa brevíssima instalou-se, logo interrompida pela risada escandalosa da ruiva.

— Isso foi épico! — Ela apontou para mim, quase em lágrimas. — A forma como simplesmente, tombaste feito um saco de batatas.

O rubor queimava-me mais que o sol. Chloe aproximou-se, estendendo a mão, um sorriso contido nos lábios, mas havia algo mais nos seus olhos. Uma chama baixa, controlada. Os meus dedos encontraram os dela, e o contacto foi elétrico. Não consegui evitar o arrepio que me percorreu a espinha.

Vi-a vacilar por uma fração de segundo, os dedos apertando os meus por mais tempo que o necessário, antes de me puxar para cima. Ficámos demasiado próximas. O cheiro a sal misturava-se com o seu perfume, criando uma intimidade involuntária.

— Estás bem? — perguntou, a voz ligeiramente rouca.

Quis dizer que sim, mas as palavras ficaram presas algures entre a garganta e o desejo de não me afastar.

— Vão ficar só a olhar uma para a outra ou vão tentar de novo? — Piper pigarreou, o sarcasmo cortando a tensão como uma lâmina.

Chloe recuou primeiro, eu soltei a sua mão como se queimasse.

— Vamos tentar de novo. — murmurei, a voz mais firme que os joelhos.

Várias tentativas depois, consegui equilibrar-me por três segundos gloriosos antes de mergulhar na água. Quando emergi, Chloe aplaudia, o sorriso genuíno iluminando-lhe o rosto, enquanto Piper assobiava com o celular apontado na minha direção.

— Isso vai direto para o arquivo de conquistas impossíveis da Maya.

Flutuando de costas, com o sabor salgado nos lábios e o eco do toque dela ainda vivo na pele, um pensamento cristalizou-se.

Equilíbrio.

Se ao menos fosse tão fácil encontrá-lo fora das ondas quanto parecia dentro do mar.

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Obrigada a quem continua desse lado. ?

Espero que tenham gostado!

Até ao próximo **


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Comentários para 20 - Capítulo 19:
Socorro
Socorro

Em: 26/05/2025

Maya casada...?

ansiosa pra esse encontro das duas, que aconteça logo 


asuna

asuna Em: 30/05/2025 Autora da história
O reencontro das duas chegará logo ;D


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