Jogo de Sedução
Casa da Valentina — Início da noite
O cheiro de arroz fresco e feijão recém-temperado pairava no ar, mas parecia não alcançar a ponta do nariz de Valentina. Ela estava sentada à mesa, os ombros curvados, mexendo devagar com a colher no prato fundo onde o caldo engrossava em volta de uma única colherada não tocada.
Isadora, do outro lado da mesa, mastigava de boca cheia, olhando de tempos em tempos para a irmã mais velha com aquele olhar curioso de quem não entende, mas percebe.
— Val… — a menina puxou, baixinho, inclinando a cabeça. — Você não gostou do frango?
Valentina ergueu os olhos, vagos, demorando alguns segundos pra processar a pergunta.
— Tá bom… — respondeu, num fio de voz, empurrando de leve a comida com o garfo, mas sem levar à boca.
Isadora franziu ainda mais a testa, desconfiada, mas ficou quieta. Do outro lado da mesa, Ana Paula e Carlos trocavam olhares rápidos, silenciosos, sem saber bem como agir na frente da filha caçula.
O homem pigarreou, tentando quebrar o peso do ar.
— Frango tá gostoso, né? — soltou, forçando um tom leve, quase artificial.
Isadora assentiu com a cabeça, mas manteve os olhos em Valentina.
Ana Paula passou a mão discretamente pela perna do marido, como quem pede: deixa… não agora. O jantar seguiu assim: mastigações espaçadas, talheres batendo de leve no prato, o som do relógio de parede preenchendo o espaço onde, antes, sempre havia risadas ou alguma piada do pai.
Valentina, em algum momento, largou o garfo de lado, apoiou o cotovelo na mesa e ficou só olhando a comida, já fria.
— Tá sem fome, filha? — Ana Paula perguntou, com um tom suave, mas já conhecido pela preocupação.
Valentina deu um meio encolher de ombros, quase imperceptível. Carlos limpou a garganta, ergueu-se da cadeira e começou a recolher os pratos, quebrando o silêncio com o barulho da louça. Ana Paula fez o mesmo.
— Isa, vai escovar os dentes, meu amor? Já tá ficando tarde… — pediu, com aquele tom manso que as mães usam pra não causar resistência.
Isadora levantou-se, mas antes de sair da cozinha, ainda virou para a irmã.
— Se quiser, depois a gente brinca de adedanha — sugeriu, meio sem jeito, como quem oferece algo que pode melhorar as coisas.
Valentina apenas assentiu com a cabeça, mas nem esboçou um sorriso. Isadora saiu, meio arrastando os chinelos, até o banheiro. Assim que a caçula se afastou, Ana Paula soltou um suspiro contido e olhou para o marido.
— Depois a gente conversa… — disse baixinho, olhando de canto para onde Isadora tinha desaparecido. Carlos só assentiu, com um olhar pesado.
Quarto da Isadora — Pouco depois
Ana Paula ajudava a filha a colocar o pijama, ajeitando os botões da blusa com calma.
— Mãe… — Isadora chamou, já com os olhos brilhando, meio tímida. — A Val tá bem?
Ana Paula parou por um segundo, respirando fundo antes de responder.
— Tá, sim, meu amor… — respondeu, ajeitando uma mecha de cabelo da menina atrás da orelha, sorrindo de leve, mesmo com o coração apertado. — Às vezes… a gente fica meio triste, sabe? Mas passa.
Isadora franziu o nariz, confusa.
— Mas ela nem comeu…
Ana Paula puxou a filha para um abraço apertado.
— A mamãe tá cuidando dela, tá? Não precisa se preocupar, meu anjo.
Isadora enfiou o rosto no pescoço da mãe, como sempre fazia quando queria acreditar numa coisa mesmo sem entender.
— Tá bom…
Ana Paula a deitou na cama, puxou o cobertor até o queixo da menina e deu um beijo na testa.
— Deus abençoe, minha flor.
— Amém… — respondeu Isadora, já fechando os olhos.
Ana Paula apagou a luz do quarto e ficou parada ali por um segundo, olhando a filha dormir, antes de fechar a porta com cuidado. Quando voltou pra cozinha, encontrou o marido encostado na pia, com os braços cruzados.
Ele perguntou só com o olhar, apontando discretamente para a sala, onde Valentina estava. Ana Paula soltou o ar lentamente, balançando a cabeça, como quem diz: eu sei… Carlos passou a mão pela nuca e ficou ali, em silêncio. Ana Paula cruzou os braços sobre o peito, olhando para a mesa onde o prato da filha mais velha ainda estava, intocado, como se fosse uma metáfora gritante do que eles não estavam conseguindo alcançar.
Casa da Valentina — Sala 21h55
Valentina estava sentada no sofá, encolhida num canto, abraçando um travesseiro. Na televisão, um programa qualquer passava, mas ninguém realmente prestava atenção. Ana Paula e Carlos apareceram na porta da cozinha, trocaram um olhar silencioso e se aproximaram.
A mulher sentou-se primeiro, do lado da filha, apoiando a mão sobre o joelho dela com delicadeza. O pai ficou em pé por um instante, coçando a cabeça, antes de se sentar também, na poltrona em frente.
Ana Paula respirou fundo, escolhendo as palavras com muito cuidado.
— Filha… ontem eu fui lá na escola… — começou, com um tom sereno, quase como quem fala sobre o mercado ou o tempo.
Valentina apertou mais o travesseiro, sem desviar o olhar da TV.
— A coordenadora me chamou pra conversar. Não é nada grave, tá? — Ana Paula apressou-se em dizer, inclinando-se um pouco, buscando o olhar da filha. — Mas… eles estão um pouco preocupados com você.
Valentina mordeu o canto da boca, sentindo o coração acelerar, mesmo sem conseguir expressar. Carlos se mexeu na poltrona, ajeitando a postura, e falou, com aquele jeito direto que tinha:
— Falaram que você não tem entregado as atividades… e… que chorou na aula.
Valentina apertou o travesseiro com força, os olhos fixos em um ponto vazio. Não respondeu. O silêncio era quase sufocante. Ana Paula lançou um olhar rápido de advertência pro marido e colocou a mão com mais firmeza sobre a perna da filha.
— Eles só… estão querendo ajudar, viu, minha filha? — falou, com a voz bem mansa. — A gente também.
Carlos respirou fundo e tentou suavizar, do jeito que sabia:
— Filha… nós pensamos que… quem sabe… você conversar com alguém, com um psicólogo, pode te ajudar.
Valentina fechou os olhos com força, como se aquele nome fosse um soco no estômago. O travesseiro foi ficando ainda mais apertado contra o peito.
— Não… — murmurou, quase inaudível.
Ana Paula deslizou a mão pelas costas da filha, num carinho automático.
— A gente sabe que… pode parecer estranho, ou difícil… — ela disse, com aquele tom doce, paciente. — Mas às vezes, falar com alguém ajuda, sabe? Não é porque você tá "errada"… é só… pra se sentir melhor.
Valentina ficou em silêncio, mas o queixo começou a tremer, muito levemente. Não era o choro soluçado que antes vinha com facilidade. Era só aquele nó na garganta, pesado, que não descia nem subia.
Carlos franziu a testa, tentando entender como seguir, mas se calou quando Ana Paula lançou mais um olhar firme na direção dele, como quem dizia: deixa eu conduzir.
Ela respirou fundo.
— Ninguém vai te obrigar a nada, filha. Só… queria que você soubesse que a gente tá aqui. E que… se você quiser… pode conversar com essa pessoa. Pode ajudar, sabe?
Valentina desviou o olhar pra janela, onde a noite escura parecia uma extensão do que ela sentia por dentro.
— Eu… eu tô bem… — mentiu, sem conseguir colocar firmeza na voz.
Carlos bufou baixinho, mexendo o pé impaciente, mas não falou nada. Aprendeu, ao longo dos anos, que nessas horas era melhor deixar a esposa conduzir.
— Eu sei que você quer parecer forte… — Ana Paula continuou, apertando de leve o joelho da filha. — Mas… força também é saber pedir ajuda.
Valentina respirou fundo, com dificuldade, e balançou a cabeça devagar, como quem não concorda, mas também não quer discutir. O pai então falou, meio seco, mas com aquele tom de quem quer acertar:
— Ninguém tá dizendo que você tá doida, tá? É só… pra ajudar.
Ana Paula franziu os lábios e lançou um olhar cortante pro marido.
— Carlos…
Ele ergueu as mãos, como quem diz: foi mal.
Ana Paula então se inclinou e deu um beijo na têmpora da filha, com carinho.
— A gente te ama, tá? Muito. E… quando quiser falar… sobre qualquer coisa… a gente tá aqui.
Valentina assentiu, mas não respondeu. Continuou ali, abraçada ao travesseiro, com a cabeça encostada no braço do sofá, olhando pro nada. Ana Paula fez um sinal discreto pro marido, indicando que era melhor darem espaço. Os dois se levantaram, andando devagar até o corredor, deixando a filha ali, no silêncio pesado da sala. Valentina fechou os olhos e respirou fundo, engolindo aquele choro que nem conseguia mais sair.
Apartamento de Verena e Silvia – Noite
O apartamento estava silencioso, exceto pelo leve zumbido da máquina de lavar funcionando ao fundo. O relógio marcava 20h30 quando Silvia surgiu na cozinha, impecável como sempre, mesmo em casa: blusa de seda lilás, levemente desabotoada no colarinho, e calça de alfaiataria creme, mas com pantufas felpudas, que destoavam de toda a sofisticação e a humanizavam.
Com gestos automáticos, ela arrumou dois pratos: salmão grelhado, arroz integral com brócolis, e salada de folhas frescas com lascas de parmesão — o máximo que conseguia preparar depois de um dia longo no escritório. Suspirou fundo antes de levar o prato até a mesa.
Verena já estava ali, sentada, com a coluna ligeiramente curvada, os cotovelos apoiados na madeira e o olhar distante, fixado em algum ponto entre o copo de água e a própria angústia. Vestia uma camiseta preta básica, de algodão, e calça moletom bege. O cabelo solto caía de forma displicente sobre os ombros. O celular repousava ao lado, com a tela recém apagada.
Silvia se aproximou, apoiando o prato à frente da esposa com um gesto cuidadoso, como quem serve alguém querido, mesmo que o silêncio estivesse se acumulando há dias.
— A excelentíssima deputada… — começou Silvia, com um sorriso enviesado, apoiando-se levemente na cadeira oposta — …não consegue tirar nem cinco minutos pra jantar?
Verena desviou o olhar da janela, mas não chegou a sorrir. Apenas inclinou o rosto, como quem reconhece o esforço, mas não tem energia pra corresponder.
— Eu tô aqui, não tô? — respondeu, com aquele tom irônico que só ela sabia dosar entre charme e exaustão.
Silvia sentou-se com elegância, cruzando as pernas e pegando a taça de água.
— O corpo tá… — disse, dando um gole leve. — O resto, sei não.
Verena soltou um meio sorriso, fraco, sem levantar o olhar.
— Tá no cardápio alguma proposta de redução de danos… ou só salmão mesmo?
Silvia soltou uma risada, preparando a primeira garfada.
— Só salmão. E uma cláusula obrigatória: mastigar com atenção e largar o celular por pelo menos sete minutos.
Verena pegou o garfo devagar, sem nenhuma pressa de começar. Girou-o sobre o arroz, distraída, como se a comida fosse só um adereço. Silvia observou o gesto, já habituada ao corpo presente e à mente ausente da esposa.
— Vai me dizer que hoje teve mais um round na Comissão? — perguntou, em tom leve, buscando alguma abertura.
Verena respondeu com um simples:
— Não.
Silvia franziu o cenho, apoiando o queixo na mão.
— Você tá estranha. Mais que o habitual.
Verena soltou um suspiro discreto, levando a mão ao pescoço, tensa.
— Só cansada. Nada demais.
Silvia inclinou levemente a cabeça, estudando o rosto da esposa, mas não insistiu. Pegou a taça de água e bebeu mais um gole com calma.
— Sabe que você sempre pode falar comigo, né?
Verena levantou o olhar por um segundo e assentiu, oferecendo aquele sorriso polido que Silvia já conhecia bem: o sorriso que dizia “obrigada”, mas também “não vou falar”. Ela sorriu de volta, resignada, e resolveu mudar o tom.
— Sabe… às vezes eu acho que deveria começar a cobrar um valor simbólico por esses jantares. Nem que fosse em bitcoin. Assim talvez você levasse mais a sério.
Verena ergueu uma sobrancelha, esboçando o charme irônico de sempre.
— Com o valor do meu salário público, melhor pagar em parcelinhas.
Silvia soltou uma risada sincera e deu outro gole na água, deixando o silêncio confortável ocupar a mesa por alguns segundos.
— Pelo menos tá viva o suficiente pra fazer piada.
Silvia ajeitou-se na cadeira, passando os dedos lentamente pelo pé da taça, escolhendo as palavras com precisão.
— Você sabia que, das últimas dez refeições que eu fiz aqui, sete foram sozinha?
Verena arqueou uma sobrancelha, lançando um olhar enviesado, com um sorriso de canto de boca, cansado, mas charmoso:
— Estatística impecável, senhora advogada.
Silvia riu discretamente, ajeitando-se de novo na cadeira.
— Eu gosto de trabalhar com dados concretos.
Mas, logo em seguida, percebeu que a esposa voltou a mergulhar no prato, mexendo a comida sem realmente comer. Os olhos vazios, presos em pensamentos que ela não compartilhava. Apoiou o garfo no prato e respirou fundo.
— Tá tudo bem… mesmo?
Verena balançou a cabeça positivamente, sem erguer os olhos.
— Só um dia puxado.
Silvia assentiu, sem acreditar completamente, mas também sem forçar. Já aprendera que Verena era assim: fechada, hermética, como um cofre onde sentimentos eram trancados a sete chaves. O silêncio voltou a reinar na mesa, só interrompido pelo tilintar suave dos talheres.
Do outro lado, a deputada seguia lutando para conter a saudade que a consumia. A cabeça latej*v* com a lembrança da última vez que viu Valentina, frágil, na enfermaria. E agora, depois de receber aquele e-mail frio da escola — só números, gráficos, nenhuma linha pessoal, nenhum indício de como ela estava de verdade —, o vazio parecia ainda maior.
Mas nada disso ela dizia. Apenas respirava fundo, mastigava uma garfada, e tentava se convencer de que o silêncio era mais seguro do que expor a fragilidade que nem ela mesma sabia nomear.
Apartamento de Verena e Silvia — Escritório de Verena, cerca de 22h
Depois do jantar silencioso, Silvia recolheu os pratos com a paciência de quem já sabia que Verena, invariavelmente, iria se isolar. E não deu outra: assim que terminou de mastigar a última garfada, se levantou, murmurou um “vou pro escritório” e caminhou lentamente até o cômodo ao final do corredor.
O escritório era um dos poucos espaços do apartamento onde Silvia raramente entrava — não por proibição, mas porque, instintivamente, sabia que ali era o refúgio intransponível da esposa.
A porta de madeira maciça, pintada num tom escuro, rangeu levemente quando Verena a empurrou e entrou, acendendo a luz de abajur ao lado da poltrona. Nunca acendia a luz central, preferia aquela iluminação indireta, amarelada, que criava sombras nas paredes e conferia ao ambiente um ar mais íntimo, quase melancólico.
As paredes eram de um cinza grafite, só quebrado por uma estante que ia do chão ao teto, tomada por livros de política, direito, biografias de figuras históricas, além de algumas edições raras de filosofia — Nietzsche, Simone de Beauvoir, Foucault… tudo organizado milimetricamente, por autor e tema.
Num dos cantos, repousava um bar discreto, embutido num móvel de madeira escura, com uma garrafa de bourbon quase intacta, dois copos baixos e algumas pedras de gelo artificiais. Ao lado, um porta-charutos fechado, mais como decoração do que funcionalidade — Verena nunca fumava, mas gostava da ideia de parecer que poderia fazê-lo a qualquer momento.
O centro do escritório era dominado por uma mesa de madeira maciça, austera, lisa, sem firulas. Sobre ela, repousavam apenas um laptop, um caderno Moleskine preto, uma caneta de tinteiro de design minimalista, e uma pequena escultura de metal: uma balança da justiça, estilizada, presente de Silvia quando Verena passou no exame da OAB, anos atrás.
Na poltrona ao lado do abajur, uma manta cinza repousava cuidadosamente dobrada, e ao lado dela, uma mesinha de apoio onde Verena mantinha sempre um copo d’água e, discretamente, um frasco pequeno de calmantes, que só ela sabia estar ali.
Verena fechou a porta suavemente atrás de si, se aproximou da mesa e puxou a cadeira, acomodando-se com aquele jeito meio displicente, meio tenso. Ligou o laptop, digitou a senha com pressa e, em poucos segundos, a tela iluminou o rosto, revelando os traços cansados e os olhos pesados.
Abriu a pasta marcada como “Documentos escolares” — um nome tão frio e burocrático quanto a abordagem que tentava sustentar —, e lá estava: o relatório da escola da Valentina, recebido naquela manhã.
Clicou, leu mais uma vez, como se as estatísticas pudessem, subitamente, se transformar em frases do tipo: “Ela está bem. Está feliz. Está comendo direito.” Mas não estavam. Só números. Gráficos. Frequência. Verena soltou um suspiro longo, recostando-se na cadeira, levando uma das mãos ao rosto, apertando a ponte do nariz.
Deixou o relatório aberto na tela, mas desviou o olhar para a estante à frente, onde, entre livros densos de teoria política, uma foto discreta destoava de tudo: uma imagem antiga, meio desbotada, dela e Silvia abraçadas num mirante, em Paraty, no primeiro réveillon que passaram juntas.
A única coisa “pessoal” daquele espaço. Olhou para a foto por alguns segundos, com aquele olhar indecifrável, como quem pesa o passado, o presente e tudo o que ficou pelo caminho. Depois voltou a olhar para a tela.
O nome de Valentina no cabeçalho do relatório parecia gritar na penumbra silenciosa daquele escritório. Sem pensar muito, Verena passou o cursor sobre o ícone de “Nova mensagem”. Mas, como sempre, hesitou. Deixou o mouse parado, o peito apertado, e os olhos fixos na tela como quem procura uma resposta que não vem.
Lá fora, na sala, o som distante da TV ligada — Silvia assistia a alguma série qualquer, sozinha. E Verena ali, naquele escritório feito de concreto, livros, madeira escura… e silêncios. Muitos silêncios.
Apartamento de Verena e Silvia — Corredor, diante do escritório, cerca de 22h30
Silvia caminhou pelo corredor silencioso, segurando a caneca de chá quente com as duas mãos, como se o calor ali pudesse suavizar também a distância crescente entre ela e Verena.
Parou diante da porta fechada do escritório, respirou fundo e ficou alguns segundos apenas olhando para aquela madeira fria, lisa, opaca — como se pudesse, de algum modo, atravessá-la apenas com o olhar.
Levantou a mão devagar, hesitando… os dedos pairaram no ar, a centímetros da superfície, prontos para bater, para quebrar aquele silêncio, para insistir um pouco mais. Talvez só para dizer: "Ei, quer um chá?", ou quem sabe: "Você está bem?".
Mas a respiração pesada denunciou o que o corpo inteiro já sabia: não era a hora.
Ela suspirou fundo, fechando os olhos por um breve instante, e ao invés de bater, deixou a palma deslizar lentamente sobre a porta fria, percorrendo a madeira como quem tenta, sem sucesso, atravessar o abismo entre duas pessoas que se amam, mas que naquele momento pareciam tão distantes.
Soltou o ar de maneira resignada e virou-se, caminhando de volta pelo corredor, levando consigo o aroma quente de camomila… e o silêncio intacto.
Dentro do escritório — segundos depois
Verena não ouviu os passos do lado de fora, nem percebeu o movimento da esposa.
Estava ali, sentada na cadeira de madeira, completamente imóvel, os olhos fixos na tela do laptop, mas sem de fato enxergar o que estava diante dela. O relatório da escola da Valentina ainda aberto, como uma cicatriz exposta, mas o olhar de Verena parecia atravessá-lo, indo para um lugar muito mais fundo, muito mais escuro.
Respirou fundo, como quem tenta puxar para dentro o mínimo de ar necessário para não desabar. Mordeu o canto do lábio inferior, apertou as mãos contra a beirada da mesa, tentando sustentar aquela fachada que, por fora, parecia tão inabalável. Mas por dentro…
Por dentro, já não havia mais estrutura alguma.
As lágrimas começaram tímidas, escorrendo silenciosamente por baixo das lentes dos óculos de grau, traçando dois caminhos frios e salinos sobre o rosto sério, até então impassível. Levou uma das mãos ao rosto, como se quisesse impedir o choro de sair, mas a dor era maior, mais funda, mais antiga do que qualquer resistência que ainda pudesse ter.
Em poucos segundos, a respiração começou a falhar, os ombros se ergueram numa tentativa frustrada de conter os soluços, e então ela não conseguiu mais: cedeu completamente, inclinando o corpo para frente, apoiando os antebraços na mesa, e afundando o rosto entre eles.
Ali, escondida no pequeno espaço entre os braços, a mulher que sustentava discursos inflamados, enfrentava adversários políticos, que articulava estratégias com precisão cirúrgica… ali, ela desabava.
Chorava como quem não aguenta mais segurar.
O corpo inteiro tremia com a intensidade dos soluços, as costas arqueadas, a cabeça enterrada entre os braços, enquanto as lágrimas escorriam sem controle, molhando as mangas da blusa de moletom que vestia — sempre prática, sempre discreta, quase como uma armadura.
Mas agora, naquela sala cheia de livros e silêncio, não havia armadura que suportasse. O relatório ainda aberto no laptop, o nome de Valentina pairando ali, como um fantasma, como uma ausência insuportável.
E Verena, sozinha, se permitia, talvez pela primeira vez em muito tempo, não ser forte.
Apenas ser… humana.
E chorar.
Prédio Comercial – Zona Sul de São Paulo | Sala de reuniões privativa | Noite
O ambiente era frio e impessoal. Uma sala de reuniões no 7º andar de um prédio comercial discreto, fachada envidraçada, sem nenhuma marcação evidente, afastado da movimentação da Assembleia Legislativa. Era ali que, desde que as investigações começaram a apertar, o núcleo duro da operação se encontrava para discutir os desdobramentos do desvio de verbas — longe dos olhares, longe dos sistemas de monitoramento.
A luz amarelada tremulava no teto de gesso rebaixado, refletida na mesa retangular de fórmica já um pouco gasta. O ar-condicionado zumbia em excesso, como se fosse o único a tentar manter a compostura no ambiente.
Verena entrou por último. A porta bateu às costas dela com um estalo seco. Não cumprimentou ninguém. Caminhou até a cabeceira da mesa e, com um gesto controlado, abriu a pasta de couro, espalhando sobre a mesa os documentos impressos, um a um, com a precisão de quem já havia ensaiado aquilo mentalmente dezenas de vezes.
Em pé, mangas da camisa preta dobradas até o antebraço, blazer apoiado sobre a cadeira, ela não dizia uma palavra. Só observava. Um por um. Como se esperasse que alguém piscasse. Até quebrou o silêncio com precisão:
— Vamos ser objetivos.
Rafaela, encostada na parede lateral do fundo, blazer vinho, braços cruzados, observava cada movimento da amiga como quem se prepara pra segurar uma bomba-relógio. Ao redor da mesa, três figuras: Galvão, da base ruralista, com o notebook aberto, olhando os gráficos na tela; Rubens, laranja responsável por uma das instituições de fachada, folheando uma pasta, evitando contato visual com Verena; e o deputado Deodato Costa, político veterano, um dos principais articuladores do grupo, sentado com a perna cruzada, mexendo no anel dourado como quem quisesse mostrar desprezo pelo drama.
Verena respirou fundo, abriu a pasta à sua frente com força e soltou, a voz grave cortando o silêncio:
— Bom. — A voz de Verena quebrou o silêncio como uma lâmina atravessando a água. — Acho que todo mundo sabe por que foi chamado. Mas, pra não restar dúvida: repasse, primeira etapa, valores assinados e autorizados, com cronograma em dia. Nada muda.
Silêncio. Ninguém ousou comentar. Ela caminhou lentamente ao redor da mesa, olhando cada um como quem avalia soldados antes de uma missão suicida. Rafaela, ao lado, mantinha a postura contida, mas os olhos denunciavam alerta. Já sabia o que viria.
Verena fez uma pausa, encarando um a um. O olhar parou por um segundo mais longo em Rubens, antes de deslizar até Rafaela, que não desviou o olhar, mas permaneceu calada.
— Mas antes de vocês comemorarem que tudo tá “dentro do esperado”, deixa eu contar uma novidade. — Parou atrás de um dos assessores mais antigos, o senhor Galvão. — Documentos do meu gabinete foram vazados.
O homem engoliu seco, sem virar o rosto.
— Vazamento externo? Hacker? — Rubens tentou se antecipar.
— Papel. — respondeu Verena, fria. — Escaneado. Fotografado. A moda antiga. Sem rastro digital. O que significa que não foi alguém de fora. Foi alguém de dentro. Ou de muito perto.
Rafaela interveio com cuidado, como quem estende um pano sobre vidro prestes a trincar.
— A gente investigou com cautela. Não passou por nenhum sistema. Nem e-mail. Nem drive. Nem pendrive. Tudo saiu direto da impressora. Alguém teve acesso físico.
— E acesso físico... — completou Verena, agora se aproximando da outra ponta da mesa — ...é algo que só alguns privilegiados têm. Vou repetir, mais uma vez. Os documentos... Foram impressos. Escaneados. Vazados. Não por hackers, não por adversários espertos. Mas por algum cretino que teve a pachorra de se levantar da cadeira, caminhar até a impressora e, quem sabe, até fazer um cafezinho enquanto planejava me enterrar.
Os olhares se cruzaram. Alguns desviaram. Um dos parlamentares mais impulsivos, Deodato, coçou o queixo com irritação evidente. Rubens ,com o terno sempre um número maior do que o adequado, soltou um muxoxo, esboçando um sorriso cínico, se remexeu na cadeira, e pigarreou:
— Olha, Verena… com todo respeito…
Mas ela o interrompeu, a voz subindo um tom:
— Respeito? Respeito? — soltou uma risada seca. — O que tem de respeitável aqui, Rubens? Temos um rastro documental que aponta diretamente para nossas operações, e você quer falar de respeito?
O sorriso dele desapareceu como quem apaga a luz. Rafaela soltou um breve “Verena…”, como um pedido silencioso para que ela respirasse.
— Não, Rafaela! — cortou Verena, girando o corpo abruptamente para ela. — Não me peça moderação quando o barco tá afundando e tem rato nadando por baixo da linha d'água. Eu tô cansada desse tom condescendente! Cansada de fingirem que está tudo sob controle enquanto a porr* de um dossiê está correndo solto por aí!
— Você tá insinuando que tem traidor aqui dentro, Verena? — Deodato disse, ríspido. — É isso?
— Eu não insinuo nada, Deodato. — Ela sorriu. Seco. Gelado. — Só gosto de deixar os fatos na mesa e ver quem se contorce.
— Cuidado com o tom. A gente não tá aqui pra ser humilhado.
Verena inclinou a cabeça, como se estivesse genuinamente surpresa.
— Humilhado? Eu? Imagina. — Ela apoiou as duas mãos sobre a mesa, olhando diretamente nos olhos dele. — Mas se a carapuça serviu, meu bem, não fui eu quem costurou.
Deodato bateu com a palma na mesa, fazendo alguns papéis saltarem. Ele se levantou bruscamente, a cadeira arrastando com estrépito no piso:
— Porr*, Verena! Tá querendo o quê? Que a gente se acuse?
Verena também se endireitou, ficando frente a frente, numa distância perigosa:
— Se eu quisesse confissão, chamava a imprensa, não vocês.
Silêncio. Virou-se lentamente, voltando a encarar o grupo:
— A partir de agora, nenhum passo sem que eu saiba. Nenhuma impressão, nenhuma movimentação, nenhuma porcaria de mensagem no WhatsApp sem meu conhecimento.
— Vai se danar, Castilho! Você não manda em todo mundo aqui não! Só porque a imprensa lambe tua biografia progressista...
— Eu não mando. — Ela ergueu um dedo. — Mas a verba sai do meu gabinete. E, veja bem, eu posso ser muitas coisas, mas burra não é uma delas. E traíra, menos ainda. Agora... se tem gente aqui que joga nos dois times, eu quero saber antes de virar manchete.
Ele cerrou os punhos, respirando pesadamente. Por um segundo, ambos ficaram frente a frente, os rostos a poucos centímetros, as tensões latentes prestes a explodir. Verena continuou, num tom irônico e provocativo.
— Vai fazer o quê? Vai me empurrar? Me processar? Fique à vontade… quem sabe mais esse escândalo ajude a enterrar de vez sua reeleição.
Rafaela se intrometeu de vez, atravessando a sala com passos apressados. Parou entre os dois, abrindo os braços discretamente.
— Já deu. Os dois. — Olhou pra Verena. — Você tá passando do ponto.
— Tô só deixando claro que a brincadeira acabou. — A deputada respondeu com um sorriso torto, ajeitando a gola da camisa. — A próxima vez que meu nome circular junto com escândalo, eu quero que saibam que já avisei.
— Você não tem moral pra apontar o dedo aqui não Verena. A gente sabe dos podres. Tá todo mundo no mesmo barco. Então para de fazer pose de comandante.
— Ah, Deodato... — Verena deu uma risada baixa, quase elegante. — Se você soubesse tudo que eu sei, você não levantava da cadeira assim. Você fugia pela janela.
Ele deu um passo à frente. Rafaela, em reflexo rápido, puxou a amiga pelo braço e a afastou pro canto da sala.
— Vê, chega. — murmurou com firmeza. — Você tá perdendo a mão.
— Tô mostrando a mão. — retrucou Verena, firme. — Eles precisam lembrar com quem tão lidando.
— E você precisa lembrar que isso aqui não é ringue. — Rafaela manteve o olhar firme. — Você quer respeito, não medo.
Do outro lado, Rubens já segurava Deodato pelo ombro, tentando trazê-lo de volta pra cadeira. O clima era de barril. Ninguém ousava se mexer muito.
Rafaela virou de novo pra sala:
— A reunião acabou. Levem as orientações. E fiquem espertos. Isso vale pra todo mundo.
Verena soltou o braço devagar, se recompôs como se nada tivesse acontecido, e lançou uma última frase antes de sair:
— E se alguém tiver dúvida sobre minha capacidade de retaliação... testem. Só testem.
Deixou a sala num silêncio tão pesado que parecia que o ar tinha engrossado. Rafaela ficou um segundo parada, olhando pros demais, antes de seguir. Mas naquele instante, todos ali já tinham entendido: não era mais uma operação política. Era guerra.
Local: Estacionamento lateral do prédio — Barra Funda
Horário: 22h14
O portão automático desceu com lentidão, até sumir sob o piso metálico. O barulho estridente da tranca automática ecoou pela noite abafada, misturando-se ao som distante de sirenes na avenida.
Verena encostava na lateral do carro preto, blazer pendurado no antebraço, a gola da camisa ainda aberta. Os dedos afobados puxaram o maço de cigarros do bolso da calça, como quem busca ar. Acendeu um, tragando fundo, como se o fôlego que não vinha há horas pudesse estar ali dentro. A mão direita tremia levemente ao levar o cigarro à boca. Ela tragava fundo, como se pudesse puxar toda a ansiedade da noite junto com a nicotina.
Rafaela parou a poucos passos, os braços cruzados, o rosto pálido de tensão.
— Você voltou a fumar. — Não era uma pergunta.
Verena soltou a fumaça com os olhos semicerrados, sem pressa, como se cada tragada fosse uma vírgula entre dois surtos.
— Uma noite não vai me matar. — respondeu, sem encará-la.
— Não, mas talvez o que você fez lá em cima mate a operação toda. — Rafaela se aproximou, a voz baixa, cortante. — Você tem noção do risco?
— Tenho. — Verena olhou enfim. O rosto duro, mas os olhos... os olhos estavam vermelhos, fundos, esgotados. — E sabe o que é mais assustador? É saber que tem um traidor dentro.
— Você não tem prova de nada ainda. — Rafaela disse com calma, mas o tom era de alerta. — E mesmo que tivesse... você não pode transformar uma reunião política num interrogatório da KGB.
— Eu não acusei ninguém. — deu outra tragada. — Só deixei claro que eu não sou idiota.
Rafaela riu de canto, irônica.
— Você deixou claro que tá à beira de um colapso. É diferente.
Verena virou o rosto devagar, o cigarro tremendo agora entre os dedos.
— Você tá me chamando de desequilibrada?
— Tô dizendo que você perdeu o controle. — Rafaela se aproximou mais um passo. — Vê, você não é só uma deputada. Você é um símbolo, caralh*. Uma mulher em ascensão, progressista, casada com outra mulher e no meio de um esquema que se der errado, não leva só você. Leva gente que acreditou em você. Eu inclusive.
— Eu não pedi pra ser símbolo. Eu não pedi pra me filmarem numa festa privada. E muito menos pedi pra ser traída por gente minha. Se você acha que eu vou sorrir e manter a compostura com essa bomba no colo, então me perdoa, Rafa, mas você me conhece menos do que eu achava.
— Eu te conheço até demais. — Rafaela respondeu num sussurro firme. — E talvez por isso eu saiba quando você tá tentando fingir que tá tudo sob controle. Você acha que gritar com gente na frente de assessor corrupto é estratégia? É desespero, Verena. Você tá sangrando no mar.
Verena soltou a fumaça pelo nariz, sem responder. O silêncio entre elas tinha um som metálico, como de parafuso apertando demais. A frase pairou no ar como pólvora exposta ao fogo. Verena virou de costas, caminhando até o capô do carro. Deu mais uma tragada, virou-se meio de lado, apoiando-se na lataria fria, olhando para o horizonte de prédios baixos ao longe.
Rafaela baixou o olhar por um instante. Tentou respirar antes de continuar.
— Eu entendo que a gente tá cercada. Mas, Vê... você quase partiu pra cima do Deo. Se eu não puxo seu braço, eu nem sei onde teria parado.
— Ele praticamente me chamou de louca — a voz saiu baixa, mas cortante. — E fez isso depois de perguntar se eu tava acusando alguém ali. E se eu tivesse?
— Mas você não pode acusar sem prova. Você sabe disso melhor do que qualquer um. — Rafaela abriu os braços. — Isso aqui não é um boteco. É política. Você não joga a bomba na mesa sem saber quem vai explodir primeiro.
— Eu não joguei bomba nenhuma. Só coloquei o fósforo. Se alguém se molhou de álcool antes de vir, problema dele.
Rafa bufou, jogando a cabeça pra trás.
— E o seu problema, Vê, é que você tá misturando tudo. O desvio, o vídeo da festa, esse maldito gabinete e... — hesitou — e o que você não quer falar.
Verena virou o rosto devagar. Os olhos, sempre tão vivos, estavam escuros.
— Cuidado com o que você vai dizer agora.
— Eu não vou dizer nada. — Rafaela cruzou os braços de novo. — Você pode enganar todo mundo, fingindo que tá com tudo na mão, mas eu... que conheço isso aqui... — ela apontou vagamente para o cigarro, a tensão, o surto de minutos atrás — ... sei não tem só a ver com planilha vazada.
Verena ficou em silêncio. O cigarro queimava no ritmo da respiração curta.
— A gente tá numa curva perigosa, Vê. — Rafaela disse, mais suave agora. — Se você cair, não vai ter cinto de segurança. Nem airbag. E eu não vou conseguir te segurar sozinha.
Verena jogou a bituca no chão e a apagou com o salto, num gesto preciso.
— Então reza pra eu não cair.
As duas ficaram em silêncio por alguns segundos. A brisa fraca da noite parecia carregar o cheiro do cigarro, do suor e da tensão ainda latente.
— Vamos pra casa. — Rafaela disse, por fim. — Amanhã a gente pensa nos próximos passos. Com a cabeça no lugar.
Verena assentiu, lentamente. Puxou o blazer do braço, vestiu como uma armadura e abriu a porta do carro, mas antes de entrar, lançou um último olhar para a amiga.
— Porque se eu cair, não levo só a mim.
Entrou e bateu a porta com força cirúrgica. Rafaela ficou parada ali, respirando fundo, como quem precisa expulsar o cheiro do medo junto com o da nicotina. O sol já tinha ido embora. Mas o calor — esse não tinha nem começado a passar.
Apartamento de Verena e Silvia – 23h47
A chave girou na fechadura com mais força do que o necessário. Verena entrou sem acender a luz, guiada apenas pelo retângulo pálido do corredor. Tirou os sapatos ali mesmo, deslizando-os para o canto ao lado do aparador, e soltou um suspiro que até o teto pareceu escutar. O lugar cheirava a lavanda do difusor que Silvia repunha toda semana — aroma limpo demais para a carga que ela trazia nas roupas.
No corredor, o relógio analógico marcava quase meia-noite. A luz azulada da televisão vazava pela porta entreaberta do quarto. Deu dois passos, parou. Escutou as hélices do ventilador no teto do lavabo girando preguiçosas — provavelmente deixadas ligadas para espantar o abafado.
Empurrou a porta do quarto com o ombro; a dobradiça rangia um fio, como sempre. Silvia estava deitada de lado, coberta até os ombros pelo edredom claro. O abajur permanecia apagado, só a tela do televisor, já no modo descanso, projetava reflexos irregulares na parede.
Verena largou o blazer sobre a poltrona junto à janela, abriu dois botões da camisa sem pressa e puxou a camisa de dentro da calça de alfaiataria. Tirou o celular do bolso e colocou sobre o criado mudo, junto com os óculos. Desabotoou o cinto, soltou o fecho, deslizou o tecido pelas pernas. Ficou apenas com a calcinha boxer cor grafite e a camisa folgada, as mangas ainda dobradas do cotovelo para cima.
Ergueu o cobertor para se enfiar na cama. Afundou o corpo no colchão, suspirando com força. A cama cedeu sob seu peso.
— Vê.
A voz veio baixa, porém cristalina, cortando o escuro. Verena congelou a meio movimento com um leve susto; não vira o leve brilho dos olhos de Silvia na semi-escuridão.
— Vai pro banho antes de deitar.
Verena soltou uma risada breve, incrédula, quase infantil, como quem duvida se ouviu certo.
— Sério isso?
Silvia não respondeu. Manteve-se imóvel.
— Eu acabei de chegar de uma reunião. Não jantei. Não parei. E você quer discutir higiene pessoal?
— Não quero discutir nada. Só quero que você tome banho antes de deitar.
A deputada soltou uma risada seca, apoiando o cotovelo no travesseiro.
— Ah, então agora virou imposição? Interessante. Me avisa quando for necessário pedir autorização pra encostar na cama da minha casa.
— A cama é nossa. Mas a paz que existe nela não é. Essa eu construí sozinha nos últimos dias, tentando não surtar com sua ausência. E já que você não atende mensagem, nem ligação, nem olha na minha cara quando tá aqui, eu resolvi tentar o básico: manter a dignidade do nosso quarto. Isso inclui o mínimo. Um banho.
Verena piscou, confusa por um instante; levou a mão ao bolso inexistente da calça que já não usava. Depois tateou a mão pelo criado mudo, desbloqueando o aparelho.
— Esqueci o telefone no silencioso… — Murmurou, deslizando o dedo sobre as várias notificações não vistas: dezenove chamadas perdidas de “Amor ♥”, onze mensagens. Sentiu o estômago revirar num arrepio leve. Verena ergueu uma sobrancelha, o rosto desenhado num cansaço impaciente. — Me perdoa, hoje o dia foi terrível, eu mal tive tempo pra respirar.
— Mas teve tempo pra fumar ao que parece.
Verena suspirou, achou que tivesse conseguido esconder o cheiro com o perfume que sempre carregava no carro. Mas não riria se render, estava sem paciência, mesmo sabendo que era a errada da história.
— Você tá realmente querendo brigar por causa de um banho?
— Tô tentando lembrar você que ainda vive com alguém. Que ainda tem uma esposa. Que esse casamento não é um quarto de hotel em que você entra, joga a bolsa e apaga. — Silvia se sentou devagar, os olhos fixos nela agora. — E que, enquanto você passa os dias resolvendo os problemas do mundo, eu continuo aqui... esperando alguma migalha de presença.
— Ah, pronto. O tribunal da madrugada. — Verena riu com escárnio e se sentou na beirada da cama, passando as mãos no rosto. — Silvia, olha pra mim. Eu tô no meio de uma crise. Eu tenho gente dentro do gabinete que talvez vá me derrubar. Hoje eu encarei parlamentares que, se eu errasse uma vírgula, estariam agora articulando meu impeachment. E você tá aí... fiscal de sabonete.
Silvia sustentou o olhar, sem piscar.
— Você sempre foi boa com palavras. Sarcástica, afiada. Até quando tá de saco cheio, continua elegante. Mas o problema é que esse seu charme não limpa o ranço que você traz da rua. Nem da alma.
Fez uma pausa, a garganta apertada.
— Então, antes de deitar ao meu lado, toma banho. Leva embora o cheiro desse mundo que te engoliu. Cheiro de cigarro, de corredor de gabinete, de gente que te suga. Eu… eu preciso, pelo menos, acreditar que ainda existe a Verena que eu conhecia embaixo dessa casca.
Verena baixou os olhos. As notificações do celular continuavam piscando; cada flash iluminava a culpa no rosto dela. Sentiu o corpo inteiro pesado. Afastou o lençol, levantou devagar.
— Tudo bem. — a voz saiu rouca, quase falhada. — Eu… já volto.
Caminhou até o banheiro; a porta fechou-se com um clique tímido. Silvia permaneceu sentada, braços cruzados sobre o peito, o ritmo da respiração irregular. Na televisão, o protetor de tela mudava de cor lentamente, pintando sombras azuis e roxas pelo quarto.
Lá dentro, o som da água do chuveiro começou a cair; não era forte, nem relaxante. Era só a confirmação de que, mesmo debaixo do mesmo teto, as duas estavam em cômodos diferentes há muito mais tempo do que pareciam admitir.
Casa da Marlene — Manhã, 9h30
O cheiro de café fresco preenchia a cozinha pequena, misturado ao leve aroma de pão caseiro ainda quente, descansando sobre um pano de prato bordado com flores azuis. Ana Paula apoiou a xícara no pires com delicadeza, sorrindo enquanto ouvia, ao fundo, a risada da Isadora vinda do quarto.
— Elas se dão tão bem, né? — comentou Marlene, ajeitando a alça do avental enquanto passava um pano na pia.
Ana Paula assentiu, o olhar meio perdido.
— É… — respirou fundo, depois sorriu, retomando o tom ameno. — Graças a Deus, são muito parceiras.
Por alguns segundos, o silêncio ficou ali, como quem espera ser quebrado com naturalidade. Marlene puxou a cadeira e se sentou, cruzando as pernas, dando, finalmente, um gole na própria xícara e, então, quebrou o silêncio.
— E a Valentina, como está?
Ana Paula soltou um suspiro contido, olhando de relance para o corredor, como se a filha pudesse aparecer a qualquer momento, mesmo sabendo que estava na escola. Marlene inclinou levemente a cabeça, aquele gesto silencioso de quem escuta sem julgar, mas querendo entender.
Ana Paula apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos e encarou a madeira gasta.
— Ando… preocupada, sabe? Ela tá diferente… meio fechada, sem paciência… parece sempre… cansada.
Marlene inclinou o corpo, os olhos atentos.
— Adolescente, né? Fico só imaginando quando a Isabela chegar nessa fase.
Ana Paula sorriu, mas o sorriso morreu rápido.
— Sim… — pausou. — Só que… dessa vez, acho que…
Deixou o final escapar no ar.
Marlene franziu um pouco a testa, se ajeitando na cadeira. Pegou o bule e serviu mais café pra Ana Paula, quase como um gesto de acolhimento silencioso. Ana Paula agradeceu com um aceno discreto, antes de, enfim, soltar:
O silêncio que veio depois foi mais denso. Marlene não apressou a resposta, deixou que a amiga fosse até onde quisesse ir.
— Eu queria… — a mãe respirou fundo, a voz saindo quase num sussurro — saber se você conhece alguém… algum psicólogo.
Marlene arqueou levemente as sobrancelhas, surpresa pela pergunta, mas logo se recompôs, repousando a xícara no pires com calma.
— Olha… psicólogo mesmo, de consultório… não conheço.
Ana Paula mordeu o lábio, desapontada, mas a outra já completava:
— Mas… tem a Maria Eduarda, minha sobrinha.
Ana Paula ergueu os olhos, atenta.
Marlene sorriu com aquele orgulho discreto de quem sabe que tem motivo.
— Acabou de se formar, Psicologia… fez faculdade ali no centro. Sempre foi muito dedicada, sabe? Daquelas que ouvem mais do que falam…
Ana Paula sorriu, com aquele ar que mistura alívio e dúvida.
— Ela atende?
— Tá começando… — A mulher de roupas simples ajeitou o pano de prato que segurava, quase sem perceber. — Tá fazendo um trabalho na igreja… com os jovens, aconselhamento, grupos de apoio. O pastor convidou.
Ana Paula assentiu, absorvendo a informação, mas não escondeu um leve franzir de sobrancelha.
— A Valentina… não faz parte desse grupo… — disse, sem concluir a frase.
Marlene logo completou:
— Não precisa ser só quem frequenta. Ela tá aberta, sabe? E… é bom. Às vezes eles não escutam tanto a gente… mas alguém de fora…
Ana Paula sorriu, sem graça, e abaixou o olhar, passando a mão pelo pires.
— Eu não sei nem direito o que tá acontecendo… — confessou, com a voz baixa, como quem sente vergonha de não ter as respostas.
Marlene colocou a mão sobre a dela, num gesto firme e afetuoso.
— Não precisa saber tudo, Ana. O importante é ela sentir que tem pra onde olhar…
Ana Paula assentiu, os olhos brilhando discretamente, como quem segurava a emoção só por hábito, só por força.
Lá no quarto, as meninas gritavam, e a risada aguda da Isadora explodia pelo corredor, trazendo de volta aquele contraste brutal: a infância tão viva e tão despreocupada… enquanto ali, na cozinha pequena, uma mãe tentava, sem saber como, alcançar a filha que parecia cada dia mais longe.
Marlene soltou um suspiro, e com aquele mesmo tom de quem se orgulha do sangue da família, completou:
— E a Maria Eduarda… além de psicóloga, é da igreja. Tem valores, princípios… vai acolher bem.
Ana Paula sorriu, mais grata do que confiante.
— Você… pode falar com ela?
— Hoje mesmo.
As duas se olharam, cúmplices de uma mesma tentativa: proteger, cuidar… ainda que sem saber exatamente do quê.
Casa da Valentina – Quarto – Início da tarde
O quarto estava silencioso, exceto pelo zumbido insistente do celular vibrando sobre a colcha azul desbotada. Valentina, encolhida num canto da cama, fitava o aparelho como quem encara uma decisão impossível. Não tinha forças, nem vontade, mas o nome piscando na tela – “Léo” – não parava de aparecer, como um chamado que não podia mais ignorar.
Respirou fundo, limpou discretamente o canto dos olhos com a manga da blusa larga e atendeu.
— Alô…
A voz saiu baixa, rouca de quem passou horas em silêncio.
Do outro lado, o Léo soltou um suspiro aliviado e, sem dar espaço, começou a falar, acelerado, tropeçando nas palavras:
— ATÉ QUE ENFIM!
Valentina afastou um pouco o telefone do ouvido, assustada.
— Achei que você tinha MORRIDO, sua louca! Eu já tava planejando velório, com coral gospel e tudo! — ele soltou uma gargalhada escandalosa, sem a menor cerimônia.
Ela não conseguiu evitar um risinho fraco, abafado.
— Desculpa… — murmurou, sem saber muito bem por quê.
Léo não deixou nem ela respirar:
— Desculpa, nada! Pelo amor de Deus, Valentina! Sumiu! Não respondeu mais, nem sinal de fumaça, nem emoji triste, NADA! Fiquei achando que você tinha fugido pra algum retiro espiritual no meio do mato… — fez uma pausa dramática. — Ou que tinha sido sequestrada por alienígenas evangélicos.
Valentina soltou um risinho abafado, virando o rosto pro travesseiro, meio sem saber se ria ou chorava.
— Eu… só precisava de um tempo.
— Tempo? Você tá há dias sumida, garota! Eu quase invadi a sua casa! — E emendou, num tom falso de indignação: — Sua mãe ia me expulsar com um cabo de vassoura, certeza…
Valentina deixou escapar um riso mais sincero, e o som parecia tão estranho pra ela mesma… fazia quanto tempo que não ria assim? Nem sabia. Léo, pela primeira vez, ficou em silêncio por uns segundos. Depois, soltou um suspiro e disse, mais suave:
— Tá tudo bem mesmo? — perguntou, dessa vez mais sério, a voz menos espalhafatosa, com aquele tom que ela já conhecia: o Léo preocupado, tentando entender quando alguém não queria falar. — O que aconteceu?
Valentina apertou os olhos, como se pudesse afastar as lembranças da última vez que pisou na Alesp.
— Tá… tá tudo bem. Só… muita coisa, sabe? Eu… achei melhor sair.
Léo soltou um suspiro exagerado, quebrando a tensão:
— Muita coisa? Você fugiu, isso sim! Nem tchau deu!
Valentina riu de leve, abafado, sem muita força.
— Desculpa…
Ele não perdoou:
— Desculpa, nada! A gente achou que você tinha entrado pra um culto daqueles que não deixam mais sair!
Léo continuou, no mesmo tom debochado:
— E Olha… só pra te avisar… depois que você foi embora, a sua deputada tá deixando todo mundo maluco.
Valentina parou de respirar. O sorriso congelou no rosto, e ela mordeu levemente o lábio inferior, sem conseguir disfarçar o sobressalto. Léo, claro, percebeu e foi ainda mais fundo, como só ele fazia: O peito travou, as mãos apertaram o tecido do lençol, e os olhos ficaram vidrados num ponto qualquer do teto.
— O… quê? — perguntou, baixinho, quase sem perceber.
— A mulher tá impossível. Sério! Passa pelos corredores parecendo um furacão, ninguém tem coragem de nem olhar. O Eduardo quase pediu férias… E olha, não vou mentir… tô achando que ela surtou depois que você saiu.
A menina fechou os olhos, respirando fundo, e, sem perceber, um sorrisinho minúsculo, tímido, nasceu no canto da boca. Um gesto tão automático, tão involuntário… que nem deu tempo de pensar.
Mas junto dele, também veio aquela pontada no peito…
E, como quem não quer nada, uma lágrima solitária escapou, descendo silenciosa pela bochecha, misturada com aquele sorriso discreto e contido.
Queria perguntar.
Como ela tá?
Ela perguntou de mim?
Tá… bem?
Mas não perguntou. Só apertou o celular com mais força e respondeu, numa voz fraca, mas carregada de algo que nem ela sabia nomear:
— Imagino…
Valentina soltou um risinho fraco, olhando para o teto, enquanto o coração batia acelerado demais pra quem estava deitada sem fazer nada. Fechou os olhos, e foi como se aquele nome, aquela imagem, voltasse inteira, viva demais.
A sua deputada.
Sua.
Só de ouvir, o coração deu um salto tão involuntário que ela mal conseguiu disfarçar.
Um sorrisinho tímido começou a nascer no canto da boca, quase involuntário, como quem reencontra uma parte que tava faltando… Mas, no mesmo instante, os olhos se encheram d’água novamente. Uma lágrima solitária escorreu pela bochecha, silenciosa, sem aviso, enquanto o sorriso resistia ali, frágil, lutando pra não se desfazer.
Era saudade.
Era culpa.
Era tudo misturado: aquela vontade absurda de perguntar como ela estava… e o medo de ouvir a resposta.
Léo, percebendo o silêncio dela, mas sem entender direito, soltou um suspiro mais leve:
— Só queria saber se você tá bem, viu? Senti falta das suas caras de “não acredito que ele tá falando isso”…
Valentina riu fraco, limpando a lágrima com a manga da camiseta.
— Eu tô… vou ficar.
— Ó, qualquer coisa, me chama, hein? Nem que seja pra eu te fazer passar vergonha por áudio…
Ela soltou outro risinho tímido.
— Tá bom… obrigada.
— Fica bem, sua doida.
— Você também…
Desligou.
Ficou ali, segurando o celular contra o peito, com aquela sensação confusa: o calor da voz dele, o conforto da amizade… mas, acima de tudo, a lembrança dela.
Da sua deputada.
E, no meio do silêncio do quarto abafado, outra lágrima escorreu, lenta, enquanto Valentina fechava os olhos e desejava, mais do que tudo, que fosse mais fácil esquecer.
Restaurante perto da Alesp – Horário de almoço
O burburinho típico tomava conta do salão. Parlamentares, assessores e estagiários lotavam as mesas, misturando conversas rápidas sobre projetos, fofocas políticas e reclamações sobre o cafezinho fraco da Assembleia.
Verena estava ali, mas parecia sempre fora do lugar — embora impecável, com o blazer claro, a blusa alinhada e os cabelos soltos, deslizando sobre os ombros. À frente dela, Rafaela empurrava o prato com a ponta do garfo, sem muita fome, enquanto disparava uma das suas piadas costumeiras:
— Sabe o que eu mais gosto daqui? — perguntou, inclinando-se, com aquele sorriso debochado. — É que o prato executivo é igual aos deputados: promete mais do que entrega.
Verena soltou um meio sorriso, aquele que ela deixava escapar só quando estava com a Rafa.
— Idiota… — respondeu, mexendo a salada sem muita vontade.
Rafa ergueu a sobrancelha, fingindo indignação:
— Idiota, não. Ácida, honesta e com um paladar exigente.
Antes que Verena pudesse retrucar, o celular, pousado discretamente ao lado do copo, acendeu.
Um alerta silencioso.
Seu contato: “Segurança Pessoal”.
Rafa ainda falava alguma coisa sobre o molho da salada ser mais aguado que o orçamento da educação, mas Verena já não ouvia. Pegou o aparelho, olhou a mensagem que surgia ali, seca, direta:
Uma nova mensagem, curta:
“Preciso falar com você. Agora.”
Verena imediatamente pegou o aparelho, levantando os olhos de relance para a amiga, que percebeu na hora a mudança de expressão.
— Opa… — murmurou, inclinando-se levemente. — Lá vem coisa.
Verena não respondeu. Levantou-se, pegando o celular e caminhando até o corredor lateral do restaurante, onde ficava o toalete e menos gente passava. Encostou-se na parede fria e atendeu.
— Fala.
Do outro lado, a voz profissional, sem rodeios:
— Avançamos. A movimentação no prédio da Bela Vista se confirmou. Não era casual.
Verena apertou os olhos, fixando-se em uma mancha na parede como se pudesse arrancar dali alguma resposta.
— E aí?
— Fizemos varredura nos arredores. Dois dias atrás, detectamos uma nova ativação do mesmo padrão: chip pré-pago, identidade falsa. Só que dessa vez, em outro endereço.
— Onde?
— Cambuci. Rua pequena, quase sem saída. Casa alugada há menos de três meses.
Verena inspirou profundamente, mantendo a voz controlada:
— Quem tá no contrato?
— Um nome inexistente. O fiador também. Coisa bem feita. Mas um dos vizinhos relatou ter visto um homem entrando e saindo, sempre à noite.
Ela franziu a testa.
— Descrição?
— Cabelo escuro, altura mediana, sempre de boné e mochila. Cauteloso. Mas o mais importante… — ele fez uma pausa.
Verena ficou imóvel.
— …ontem à noite alguém foi até lá, ficou cerca de quinze minutos e saiu com uma pasta preta.
Ela cerrou o punho livre, mantendo a outra mão firme no celular.
— Rastro?
— Pegamos a placa do carro. Já tô cruzando os dados.
Verena ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, perguntou:
— Acha que é o mesmo cara da foto?
— Não sei. Mas a chance é alta. Ele tá sempre um passo à frente, mas agora deixaram rastro demais.
Verena encostou a cabeça na parede, fechando os olhos por um segundo.
— Continua. Sem contato direto. Só me avisa quando tiver nome, CPF ou… cadáver.
Do outro lado, um leve riso. Não de humor, mas de quem sabe que a coisa é séria demais pra brincar:
— Pode deixar. Mais alguma coisa?
Houve uma breve pausa. Ela mordeu o canto do lábio, os olhos semicerrados, e soltou numa voz mais baixa, quase entredentes:
— Sim… a Valentina.
O homem não respondeu de imediato, surpreso com a menção inesperada. Verena pigarreou, retomando o tom firme, profissional:
— Fique de olho nela. Discretamente. Não quero que ela perceba nada… mas se alguém se aproximar demais… me avisa na hora.
A mão apertou a borda da mesa com força, mas o olhar se perdeu por um segundo, numa expressão quase… protetora. Do outro lado, a confirmação:
— Entendido.
Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, ela encerrou:
— E, por favor… com cuidado. Ela não pode sonhar sobre essas movimentações.
Ela desligou, soltando o ar devagar, como quem esvazia a pressão acumulada, mas sem jamais se permitir relaxar. Guardou o celular no bolso e voltou para a mesa com a expressão cuidadosamente recomposta.
Verena puxou a cadeira, sentando-se, olhando para o prato que continuava intacto, mas Rafaela sabia ler as expressões da amiga como ninguém e mal disfarçou.
— Nossa… tá com uma cara ótima. — A voz cortou o silêncio como quem se diverte em acender o fósforo perto do barril de pólvora. — Alguém te mandou flores ou foi outro dossiê?
Verena ergueu lentamente o olhar, sem sequer mover a cabeça. Apenas os olhos, escuros e impassíveis, deslizaram até encontrar os de Rafaela, que manteve o sorriso aberto, provocador, girando de leve o talher entre os dedos.
Silêncio.
Rafaela ergueu uma sobrancelha, afundando ainda mais no encosto da cadeira, e deixou escapar, num tom que oscilava entre o deboche e uma pontinha incômoda de dúvida:
— Não fode… É piada, né?
Verena apertou o maxilar, desviando os olhos para o prato à sua frente, como quem escolhe ignorar, mas não sem antes soltar um suspiro rápido, entredentes, quase imperceptível. Rafaela inclinou o corpo mais pra frente, apoiando agora os dois antebraços na borda da mesa, aproximando o rosto e estreitando os olhos com aquele ar de quem tenta decifrar o enigma:
— Ou será que…?
Fez uma pausa estratégica, fingindo escolher o tom das próximas palavras, mas no fundo só queria cutucar. Verena mexeu o garfo distraidamente, empurrando a salada de um lado para o outro, até que soltou, num tom arrastado, como quem não fazia esforço algum para esconder a ironia:
— Rafa… come.
Rafaela abriu um sorriso ainda maior, daquele tipo que sabia que tinha acertado na provocação. Endireitou-se, erguendo o copo d'água para brindar no ar, sozinha:
— Saúde então… à nossa paz de espírito inexistente.
Verena arqueou discretamente uma sobrancelha, mas não respondeu. Apenas cortou um pedaço minúsculo do frango grelhado e levou à boca com a calma que só quem está no limite consegue fingir ter. Enquanto mastigava devagar, o olhar fugia para o celular, ainda virado para baixo, como se cada segundo longe daquela tela fosse um esforço sobre-humano. Rafaela percebeu, claro. Sempre percebia.
— É só trabalho mesmo…? — soltou de repente, agora num tom mais baixo, quase sincero.
Verena demorou um segundo a mais do que o normal para responder, e quando o fez, a voz saiu perfeitamente ensaiada:
— Claro que é.
E enfiou outro pedaço de frango na boca, encerrando ali qualquer possibilidade de aprofundar a conversa. Rafaela riu sozinha, dessa vez sem ironia, e voltou a atacar a própria comida, enquanto, entre um gole e outro, ainda murmurou, como quem fala pra si mesma:
— Claro… sempre é.
E assim o silêncio se refez, denso, confortável apenas na superfície, enquanto os talheres tilintavam discretamente no salão lotado, abafados pelo barulho indiferente de outras conversas e pratos sendo servidos.
Só Verena sabia que, do outro lado daquele telefone, alguém poderia, a qualquer momento, trazer mais um pedaço do quebra-cabeça que ela tentava — sem sucesso — manter longe de quem mais queria proteger.
Estacionamento coberto da Alesp — 19h12
O eco distante dos saltos de Verena reverberava pelo concreto frio, misturando-se ao zumbido constante dos ventiladores industriais no teto baixo. O ar estava denso, impregnado de gasolina, ferrugem e umidade. Ela apertava a chave do Audi A4 preto entre os dedos, o passo firme, mas o olhar disperso.
As últimas semanas tinham sugado dela mais do que horas de sono; arrancaram também a paciência e o pouco de confiança que ainda restava nas pessoas. Chegou ao carro, destravou com um clique seco, abriu a porta do motorista e entrou, soltando um longo suspiro, como quem tenta expirar junto com o ar o peso do dia.
Girou a chave na ignição, o motor ronronou baixo. Ajustou os espelhos com movimentos automáticos, ensaiou afrouxar o colarinho, mas parou. O celular vibrou no painel, notificações acumuladas — ignorou.
Então, o som.
Um baque seco na porta do carona.
Antes que pudesse reagir, a maçaneta foi puxada e a porta se abriu num movimento decidido.
— O que…?! — Verena soltou, instintivamente levando a mão à bolsa, onde mantinha, entre tantos papéis, a segurança de sempre.
Gabriela entrou como uma sombra elegante, se acomodando no banco ao lado com a naturalidade de quem conhece cada centímetro daquele espaço — e da mulher ao volante.
Vestia uma saia justa, um pouco mais curta do que o aceitável até mesmo para os padrões flexíveis da Assembleia, e uma blusa de tecido leve, que deixava a clavícula exposta. Cruzou as pernas com lentidão calculada, fazendo a saia subir alguns centímetros, revelando as coxas bem delineadas, iluminadas apenas pelo fraco néon esverdeado do teto do estacionamento.
Verena cerrou os olhos, inspirando fundo, lutando contra o reflexo de olhar.
— Gabriela… — a voz saiu grave, carregada de um cansaço irritado. — Sai do carro. Agora.
Gabriela sorriu, inclinando a cabeça para o lado, como quem ouve uma criança teimosa.
— Nossa… nem um “boa noite”, deputada? — provocou, deslizando uma das mãos sobre a própria coxa, como quem ajeita a saia, mas sem a menor intenção de cobri-la.
Verena engoliu seco, os olhos fixos à frente, as mãos cerrando o volante com força. Gabriela sorriu de canto, inclinando-se um pouco, forçando aquele ar sedutor.
— Não vai nem perguntar o que eu vim fazer? — provocou, passando os dedos pela própria coxa, como se convidasse o olhar que Verena se recusava a lançar.
A deputada inspirou devagar, o maxilar contraído.
— Gabriela, eu não tô brincando. Sai do meu carro agora. — repetiu, ainda sem levantar a voz.
Mas a mulher parecia disposta a continuar a provocação, se inclinou ligeiramente, o perfume doce e invasivo tomando conta do pequeno espaço entre elas.
— Você tá tensa… — sussurrou, deixando os dedos roçarem de leve a nuca de Verena, que estremeceu, cerrando ainda mais a mandíbula. — Muito tensa…
Verena virou o rosto, desviando da aproximação, mas a respiração já denunciava o desconforto, ou pior: o desejo reprimido.
— Não vem com essas jogadas baratas. Acabou, Gabriela. Eu deixei isso bem claro.
— Será mesmo? — Gabriela sorriu de canto, sem pressa. — Porque… quem olha de fora, nem diria que você tá tão decidida assim.
O olhar de Verena, finalmente, encontrou o dela — duro, ameaçador.
— Você não faz ideia do que eu tô passando. Nem tenta… — a voz grave, arrastada, carregada de algo que Gabriela não soube identificar de imediato: dor, raiva, ou só exaustão.
A mulher manteve o sorriso, mas algo no olhar dela mudou. Um brilho sutil, uma camada a mais por trás da sedução.
— Não? — perguntou, com uma entonação que desarmou por completo a frieza de Verena, como se a frase fosse mais do que só uma provocação.
Verena franziu o cenho, agora menos irritada e mais alerta.
— O que você quer dizer com isso?
Gabriela se recostou, esticando as pernas, os braços cruzados, como quem desfruta do poder de não dizer tudo.
— Nada… só acho que… — deslizou o olhar pelo painel do carro, fingindo desinteresse — ultimamente você anda… distraída demais. Não acha perigoso? — Soltou, fazendo um biquinho sarcástico.
A deputada sustentou o olhar dela por um segundo longo, o silêncio preenchendo o carro como uma corda esticada prestes a arrebentar. Aquilo foi o suficiente. A paranoia, o acúmulo, a raiva. Tudo explodiu num só movimento.
Mas Verena era fria — ou aprendeu a ser. E, em vez de romper, soube jogar. Relaxou de repente, soltando um meio sorriso carregado de veneno e charme.
— É… talvez você tenha razão… — murmurou, deslizando a mão direita pela alavanca de câmbio, como quem muda de marcha, mas desviando o percurso até pousar, firme, na coxa nua de Gabriela.
O toque foi decidido, os dedos apertando com força, o polegar afundando de leve na pele quente. Gabriela soltou um suspiro involuntário, a postura desconcertada por um segundo, mordendo o lábio inferior. Verena, então, inclinou-se lentamente em direção a ela, a respiração pesada, a expressão de predadora.
— Anda me faltando mesmo um carinho… — sussurrou com aquele tom cafajeste que poucos conheciam, o olhar preso ao da outra, sem desviar.
Gabriela se deixou levar, aproximando-se também, como que puxada por um ímã. O hálito doce misturou-se ao da deputada, quente, alcoólico, tenso. Os rostos se aproximaram mais… os narizes quase se tocando…
E, então, num rompante brutal, Verena agarrou a mandíbula dela com força, prendendo as bochechas entre os dedos num aperto seco e firme. Antes que a mulher sequer tentasse se defender, Verena usou a outra mão e, com a mesma frieza cirúrgica, agarrou-lhe o pescoço, os dedos fechando-se ao redor da garganta com uma força que tirou o ar de Gabriela na hora.
— Verena… — tentou, com a voz falha, já levando as mãos trêmulas aos pulsos da deputada, tentando em vão afastá-la.
Mas Verena apertou ainda mais a mandíbula, forçando Gabriela a manter o olhar fixo no dela. O tom da deputada era pausado, gelado, como quem faz questão de cravar cada palavra.
— Você sabe… de alguma coisa?
Verena apertou ainda mais a garganta, sentindo a pulsação acelerada sob os dedos, o pânico real nos olhos que até então só expressavam provocação. Gabriela tentava, com dificuldade, afastar as mãos da deputada, os dedos tremendo, a voz fraca, rouca, entrecortada:
— Vê… Verena… por favor…
A deputada apertou ainda mais a garganta, sentindo a pulsação acelerada sob os dedos, o pânico real nos olhos que até então só expressavam provocação.
— Não brinca comigo Gabriela.... Tem alguma coisa pra me falar? — insistiu, cada frase soando mais letal que a anterior.
A mulher balançou a cabeça, ou tentou, mas o aperto na garganta impedia qualquer movimento mais brusco. Os olhos arregalados, o rosto começando a corar, a respiração já comprometida.
Verena não recuou um milímetro.
— Fala… o que você veio… fazer aqui.
Gabriela, sufocada, tentou soltar um som, mas só conseguiu um gemido fraco, as mãos já perdendo força, os dedos escorregando sem eficácia pelos punhos de Verena. A deputada aproximou ainda mais o rosto do dela, o olhar de predadora absoluta, a respiração dela se chocando contra a pele pálida da outra mulher.
— Ouve bem… — Verena rosnou, a voz rouca, colada ao rosto dela, os dentes cerrados. — Nunca mais entra no meu carro sem ser chamada… nunca mais chega perto de mim… nunca mais tenta qualquer jogada… ou você vai se arrepender.
Gabriela arqueou o corpo, numa tentativa desesperada de escapar, o rosto já ficando vermelho, os olhos lacrimejando, o ar sumindo. As pernas se moveram instintivamente, procurando apoio, mas Verena manteve-a ali, imobilizada, sufocada, presa.
Então, com a mesma calma com que começou, Verena apertou ainda mais o pescoço, sentindo a pulsação acelerada sob seus dedos.
— Se você estiver envolvida… em qualquer coisa… contra mim… — a voz dela era um sussurro gélido — …eu vou acabar com você.
As palavras entraram como lâminas no cérebro de Gabriela, que já mal conseguia resistir, os dedos fracos escorregando, o olhar perdido, desesperado. Só então Verena afrouxou o aperto na garganta.
Gabriela sugou o ar com um ruído alto e desesperado, tossindo imediatamente, levando a mão à garganta, massageando a pele onde a marca dos dedos latej*v*, quente e sensível. Com os olhos marejados, tentou abrir a porta para sair, mas antes que conseguisse, Verena segurou seu pulso com força, puxando-a de volta, fria como uma sentença:
— Se você entrar no meu carro… de novo… talvez não consiga sair.
Verena se recostou lentamente no banco, ajeitou o blazer, respirou fundo, e falou, com aquele meio sorriso cínico, soltando o pulso dela apenas no último segundo.
— Boa noite, Gabriela.
Gabriela arregalou ainda mais os olhos, o corpo inteiro tremendo. Sem esperar mais nada, abriu a porta e saiu aos tropeços, quase caindo sobre os próprios saltos, as pernas falhando, o olhar ainda brilhando de medo e vergonha.
Verena permaneceu imóvel, as mãos ainda tremendo levemente sobre o volante, o coração martelando no peito. Só então soltou um suspiro longo, jogando a cabeça para trás, fechando os olhos por um segundo.
E, sem dizer mais nada, girou a chave, soltando palavrão baixinho, e, com um movimento brusco, arrancou o carro, o ronco do motor preenchendo o silêncio deixado para trás. e sumiu na saída do estacionamento, deixando para trás não só o cheiro de perfume doce… mas também o sinal claro de que, quando quisesse, ela podia ser muito mais perigosa do que qualquer um imaginava.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Zanja45
Em: 31/05/2025
Fiquei com medo que nesse momento de descontrole, Verena acabasse matando Gabriela acidentalmente. - Fiquei com o coração na mão. - Que cena de suspense.
Passou pela minha mente que Gabriela ia aparecer morta e Verena seria uma das suspeitas. - Porque ela deixou marcas ali no pescoço de Gabriela e ainda por cima teve um caso com ela
Zanja45
Em: 01/06/2025
Eh, Verena está passando por processos complicados na vida dela. - Então, cada vez mais ela envereda por caminhos que infelizmente não tem volta. - Mas na traição ela pode dar um basta. porém no que concerne a política não tem mais volta. - Quando se toma uma decisão errada, vira escravo disso. - É como um câncer que não tem cura. Também sou contra traição, porém gosto de uma história proibida e de amores impossíveis.
[Faça o login para poder comentar]
Hanna28
Em: 28/05/2025
Não sei dizer o porque sinto que elas ainda conseguiram ter um momento delas... Verena está por um fio de não chegar na casa dos pais da futura namorada só para vê-la com os próprios olhos seu verdadeiro estado. A saudades de ambas a estão consumindo
anonimo2405
Em: 29/05/2025
Autora da história
Olha, já até pensando lá na frente hein rsrssr. Mas eu torço também pra que elas consigam pelo menos se abrir uma com a outra. E não sei como a Verena não fez nada ainda kkkk
anonimo2405
Em: 29/05/2025
Autora da história
Olha, já até pensando lá na frente hein rsrssr. Mas eu torço também pra que elas consigam pelo menos se abrir uma com a outra. E não sei como a Verena não fez nada ainda kkkk
[Faça o login para poder comentar]
Hanna28
Em: 28/05/2025
Essa aparição repentina da bactéria(Gabriela)não foi aleatório. Ela tá no esquema de derrubar a Verena e a coitada da Val por despeito.Vale ressaltar a forma como a sucuri nem tentou negar algo sobre as ameaças contra a deputada
anonimo2405
Em: 29/05/2025
Autora da história
Oiee. Boa noite!
Olha, não vou mentir, tô rindo até agora com esse apelido carinhoso seu pra Gabriela kkkkkkkkkkkk, maravilhoso kkkkk. Tá pra nascer mais cara de pau que essa.
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
anonimo2405 Em: 01/06/2025 Autora da história
Oiee. Boa noite! :)
Também fiquei com medo. Nessas horas de raiva intensa, muitas coisas podem sair do controle. Ainda bem que ela não passou do limite. Mas acho que isso ainda vai dar problema. Me pergunto como a Verena pôde ter tido coragem de ter traído alguém como a Silvia. Detesto traição.