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Entre Votos e Silencios por anonimo2405

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Palavras: 13684
Acessos: 705   |  Postado em: 01/06/2025

Caindo no Abismo

Gabinete de Verena — 9h17

A luz fria das luminárias embutidas na sala se espalhava de forma uniforme sobre os móveis de madeira escura e o piso de cimento queimado polido, refletindo o brilho austero que Verena sempre fez questão de manter no gabinete. A mesa de reuniões já estava pronta: relatórios de execução orçamentária, planilhas de fluxo de caixa, balancetes trimestrais e contratos minuciosamente grampeados, pastas grossas empilhadas, grampeadores metálicos, blocos de anotações, três garrafas d'água alinhadas com precisão quase militar.

Verena estava ali desde antes das sete, com o blazer preto perfeitamente alinhado aos ombros, as mangas arregaçadas até os cotovelos, expondo os braços definidos e a aliança de casamento reluzindo sob a luz fria. De pé, ao lado da própria mesa de trabalho, passava os olhos — mais uma vez — sobre o relatório impresso que segurava com firmeza. O papel grosso, de alta gramatura, já começava a mostrar sinais do manuseio intenso.

Na tela do notebook aberto à sua frente, gráficos detalhados saltavam aos olhos: barras verticais comparando os repasses parlamentares, linhas ascendentes indicando o crescimento das demandas em projetos sociais. Ela apertou os olhos, inclinando-se para frente.

— Quarenta e sete mil, seiscentos e dez… — sussurrou, seguindo com o dedo o valor discriminado na planilha, depois buscando no relatório físico a mesma cifra, quase como quem procura um erro que, no fundo, teme encontrar.

Mas a concentração durava pouco.

Os olhos percorreram mais uma vez a linha do relatório da contabilidade:

“Repasse da verba de gabinete — R$ 122.500,00.
Gastos de custeio — R$ 94.300,00.”

Ela franziu o cenho. O número estava correto, batia com o fluxo, mas mesmo assim... Pegou a calculadora, digitou lentamente, uma, duas vezes. Conferiu novamente o relatório do jurídico, depois a ata do contrato de prestação de serviços.

Nada. Nenhuma falha. Nenhum erro.

Ou será que estavam cada vez mais sutis? A mão passou pelo rosto, o indicador pressionando a têmpora direita, sentindo a pressão do dia que mal começava. Respirou fundo. Tentou focar novamente na pasta. Mas, como uma maldição silenciosa, o olhar foi atraído automaticamente para o celular, repousado ao lado do monitor, a tela ainda apagada.

Ela hesitou por um segundo… e então, deslizou o dedo pelo visor, abrindo o WhatsApp.

Últimas conversas:

— Amor ❤️
— Rafaela 😑
— Jurídico ALESP

E ali, nas conversas trancadas, o nome que ela evitava, mas que nunca conseguia deletar: “Valentina Moraes”.

Automático, o dedo deslizou pela tela e abriu o perfil. A foto era a mesma —O sorriso, a delicadeza, a pureza, meio sem jeito, com aquele jeito de menina que não fazia ideia do impacto que tinha. Verena segurou o celular por alguns segundos, olhando fixamente a imagem, até que a tela apagou sozinha.

Deixou o aparelho de lado, com raiva de si mesma. Passou a mão no rosto, depois prendeu o cabelo rapidamente num coque frouxo — os fios lisos, escuros, escorregando de volta pelas têmporas.

— Merda… — sussurrou entre os dentes, puxando o ar pela boca e soltando devagar pelo nariz, como a esposa insistia que fizesse quando a ansiedade ameaçava tomar conta. Largou o celular de lado com força, fazendo a caneta chacoalhar sobre a mesa.

Mas não adiantava muito. Voltou o olhar para a planilha, esforçando-se para focar.

"Orçamento: despesas discricionárias do mandato — R$ 1.473.890,20."

Leu.

"Verba de gabinete — pessoal — contratos — viagens."

Repassou mentalmente: pagamento dos assessores, passagens aéreas, reservas em hotéis oficiais, aluguel de carro para deslocamento em interior…Tudo protocolado, tudo declarado.

Cruzou os braços enquanto caminhava até a janela, fechada, com as persianas parcialmente abertas deixando frestas da manhã nublada invadirem o ambiente. De lá, via o topo de alguns prédios da cidade que já andava a todo vapor, as árvores sufocadas pelo concreto, e, lá embaixo, bem ao fundo, o estacionamento coberto onde, um dia antes, tinha quase estrangulado Gabriela...

O coração acelerou.

Engoliu seco.

Só de pensar no caos que já estava vivendo, e agora mais isso… O reflexo do próprio rosto no vidro fez com que baixasse um pouco os olhos.

"Você tá ficando louca", pensou.

Mas não era loucura. Era saudade.

Fechou os olhos por um segundo.

A mente puxou a lembrança automaticamente, mas ela afastou.

Não. Não agora.

Voltou para a mesa, respirou fundo, pegou mais uma pasta: "Análise de empenhos — exercícios anteriores".

Abriu, passou os olhos. Os contratos de publicidade, os empenhos para gráfica, tudo devidamente assinado, tudo auditado.

— Não vão me pegar... — murmurou, com aquele tom frio que só ela conhecia.

Mas no fundo, ela sabia: não era apenas medo de ser pega.

Era medo de não aguentar mais.

O celular vibrou de repente, arrancando-a do transe. Ela olhou de imediato.

Rafaela:

“Tô subindo, café?”

Verena soltou um suspiro longo, apoiando as mãos na borda da mesa, inclinando o corpo para frente, os ombros pesados. Olhou novamente, sem pensar, o nome de Valentina, como se houvesse alguma nova notificação.

Nada. Obviamente.

Fechou os olhos, apertou o botão lateral, desligando a tela.

Endireitou a postura.

Era hora de focar.

O jurídico chegaria em menos de vinte minutos para a reunião. Ela precisava revisar todos os contratos, garantir que não houvesse nenhum detalhe, nenhuma movimentação atípica que pudesse virar munição. Virou mais uma página, tentando enganar o próprio coração — fingindo que era só uma manhã normal de trabalho.

Mas não era.

Nem seria.

Gabinete de Verena — 9h24

Verena já estava sentada novamente, inclinada sobre a mesa, quando ouviu o interfone da sala vibrar discretamente. Apertou o botão sem sequer erguer os olhos:

— Pode subir.

Em menos de dois minutos, Rafaela apareceu na porta, segurando uma bandeja com duas xícaras fumegantes, o blazer azul jogado displicentemente sobre os ombros.

— Trouxe café forte, como a senhora gosta — disse, sem perder o tom irônico habitual, mas medindo bem as palavras diante da expressão hermética da chefe.

Verena fez um leve aceno, sem sorrir, pegando a xícara com a mão esquerda, enquanto a direita folheava mais uma planilha:

“Relação de Empenhos — Serviços Gráficos: R$ 37.800,00
Análise de Regularidade: Sem inconformidades aparentes.”

— O jurídico já chegou? — perguntou, com a voz seca, sem tirar os olhos do papel.

— Sim, estão na antessala. Quer que eu traga?

Verena parou por um segundo, esfregou o polegar contra o indicador, numa tensão silenciosa, e ergueu o olhar para Rafaela:

— Dá cinco minutos.

Rafaela a analisou rapidamente, percebendo o semblante ainda mais fechado que o usual, e ousou:

— Tá tudo bem?

Verena sustentou o olhar, com aquela frieza que cortava como navalha.

— Está.

Rafaela soltou um meio sorriso, apoiou-se de leve no batente da porta, cruzando os braços:

— Sabe que não está, né?

Verena ergueu a sobrancelha, soltou um leve suspiro e voltou os olhos para a pasta.

— Não é assunto pra agora.

Rafaela assentiu, saindo em silêncio e fechando a porta.

Verena respirou fundo e se levantou, ajustando o blazer, alisando a calça de alfaiataria com as duas mãos, e caminhou até a parede onde pendurava o grande mapa orçamentário da legislatura, com os gráficos de distribuição de recursos.

Passou a mão lentamente sobre o acrílico, como se aquilo fosse capaz de ancorá-la no presente.

O interfone tocou novamente.

— Deputada, o jurídico está aguardando.

— Peça pra entrarem.

A porta se abriu lentamente e três pessoas adentraram a sala: a advogada-chefe, Drª Letícia; o assessor de compliance, Paulo; e a técnica contábil, Juliana. Todos com pastas, tablets e aquele ar de quem já sabia que o dia seria longo.

Verena os cumprimentou com um leve aceno de cabeça e indicou a mesa de reuniões ao lado, onde todos se acomodaram rapidamente. Sentou-se à cabeceira, abriu a pasta principal e, antes de qualquer um iniciar, falou com a voz firme e pausada:

— Bom dia a todos. Vamos ser objetivos. Quero revisão completa das movimentações de verba nos últimos seis meses. Contratos de serviço, empenhos, pagamentos extraordinários. Preciso ter certeza absoluta de que não há nenhuma movimentação fora da margem.

Drª Letícia ajeitou os óculos, folheando rapidamente o relatório:

— Deputada, nossa equipe de compliance não identificou nenhuma inconformidade material até o momento. Todos os contratos têm respaldo legal, foram aprovados pelo controle interno e externo.

Verena assentiu lentamente, mas manteve o olhar fixo nela:

— Não estou perguntando se foi aprovado. Estou perguntando se há qualquer indício de irregularidade, mesmo que não seja detectável à primeira vista. Alguma nota fiscal que pareça incompatível, algum serviço que tenha custado acima do mercado, alguma empresa que tenha vínculo político suspeito.

Paulo, o assessor de compliance, pigarreou e interveio:

— Nós cruzamos os dados com a Receita Federal, Receita Estadual e o TCE. Não há indícios formais. Mas, de fato, há uma empresa que chamou a atenção: a “LogPrint Serviços Gráficos”.

Verena virou o rosto rapidamente, fixando nele:

— Por quê?

Paulo deslizou a folha plastificada pela mesa até ela:

— A empresa mudou de CNPJ há oito meses, mas manteve o mesmo quadro societário e, curiosamente, aumentou em 45% o valor médio das notas fiscais emitidas para serviços de gráfica.

Verena pegou a folha, analisando cada dado com precisão cirúrgica.

— Justificativa para o aumento?

Juliana, com a voz mais tímida, respondeu:

— Alegam reajuste de custo de insumos e atualização de tabela conforme IGPM.

Verena sorriu de canto, sarcástica:

— IGPM? Subiu 45%?

O silêncio foi a resposta.

Ela largou a folha sobre a mesa com força controlada e se recostou na cadeira, cruzando uma perna sobre a outra, sem tirar os olhos do relatório.

— Quero uma auditoria independente nesse contrato. E quero todos os contatos políticos da empresa mapeados até o final da semana.

Os três assentiram rapidamente, fazendo anotações. Mas, enquanto falava, os olhos de Verena, apesar de fixos nas folhas, pareciam atravessar a parede.

Valentina.

A lembrança da garota quieta, os olhos castanhos baixos quando falava, a voz tímida nas reuniões, a letra delicada nos relatórios. Fechou os olhos por um segundo, inspirando profundamente, antes de continuar:

— Além disso, quero uma revisão retroativa de todos os contratos da legislatura anterior também. Se há alguma ponta solta, vai estar lá.

Paulo levantou a cabeça, hesitando:

— Deputada... isso vai demandar tempo e gente. E não há nenhuma recomendação formal para isso no momento.

Verena o encarou como quem corta o ar com um punhal:

— Não estou pedindo recomendação formal, Paulo. Estou dando uma ordem.

Ele engoliu seco e assentiu. Por um segundo, o silêncio tomou conta da sala.

Verena olhou para o relógio, depois para o celular. Nada. Nenhuma mensagem. Só a foto estática de Valentina, pairando na sua mente como um lembrete cruel. Respirou fundo, passou a mão pelo rosto e então, com a frieza que a caracterizava, concluiu:

— Podem ir. Quero o relatório parcial até quarta.

Os três se levantaram rapidamente, recolhendo as coisas e saindo sem dizer uma palavra a mais. Verena ficou ali, olhando fixamente para a pasta fechada sobre a mesa… e para o celular, ainda inerte ao lado. O café, já frio, repousava intocado. Restando apenas a saudade, a angústia, e o medo de que tudo estivesse escapando por entre os dedos...

 

Rafaela olhava discretamente, ajeitando os relatórios sobre a mesa, como se um simples olhar direto pudesse causar um incêndio.

Gabinete de Verena — 10h45

O gabinete ainda cheirava a papel impresso e café requentado, o ar-condicionado vibrava baixo. Verena permanecia sentada à mesa, de braços cruzados, olhos fixos no relatório fechado à sua frente — como se quisesse perfurá-lo com o olhar. Não ergueu os olhos quando Rafaela entrou e fechou a porta com um estalo seco, com o blazer devidamente vestido, os cabelos presos num coque mais firme e uma expressão que misturava exaustão e julgamento.

— Tá. Agora que terminou o teatrinho com o jurídico, quer me explicar que porr* foi aquela? — Rafaela jogou a pasta na cadeira, cruzando os braços.

Verena não se virou.

— Não tenho que te explicar nada.

Rafaela bufou, se apoiando na quina da mesa:

— E aí, vai mandar fazer varredura na água do filtro também? — perguntou a assessora, com aquele sarcasmo arrastado de quem já sabia que ia apanhar, mas resolveu falar mesmo assim.

Verena soltou um suspiro entredentes, ainda sem encará-la.

— Se precisar, sim. — A resposta veio seca, cortante.

Rafaela ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços. Parou em pé, de frente para a mesa.

— Tá bom. Só queria saber se eu também vou ter que abrir minha mochila quando sair do gabinete. A galera já tá cogitando montar um comitê de segurança.

Verena finalmente ergueu o olhar, estreito, fulminante.

— Você veio me passar alguma informação relevante ou só pra dramatizar?

— Ué, achei que sarcasmo fosse a língua oficial por aqui — rebateu Rafaela, num sorriso enviesado. — Mas, já que perguntou: só vim avisar que o clima no gabinete tá insuportável. E a culpa não é só da auditoria.

Verena se recostou na cadeira, girando levemente a aliança com os dedos. A mandíbula cerrada.

— Fala logo, Rafaela.

— Tá todo mundo dizendo que você virou uma bomba-relógio. Não pode nem bater porta que alguém já corre achando que vai cair numa sindicância. — Ela fez uma pausa breve, o olhar afiado. — E, cá entre nós, você realmente tá uma delícia de convívio ultimamente.

— Se tiver incomodada, a porta é a mesma por onde entrou. — O tom de Verena era frio, elegante, como quem dá tapa com luva de veludo.

— Ah, essa porta? A mesma que você olha toda hora esperando que a Valentina entre de novo? — Rafaela disse como quem deixa cair uma taça no chão e finge que não percebeu.

Verena travou por um instante, apenas um segundo, mas suficiente para que Rafaela percebesse o efeito. Então, voltou a se inclinar sobre os papéis, buscando disfarçar a fisgada no peito com concentração.

— Não tem relação uma coisa com a outra.

— Não? Jura? Porque pra quem te conhece — Rafaela apontou um dedo leve, zombeteiro —, parece bem claro que a sua TPM emocional tem nome, sobrenome e citação bíblica.

Verena largou a caneta sobre a mesa, com firmeza, e estreitou os olhos.

— Cuidado com o tom, Rafaela.

— Cuidado você — rebateu, agora mais séria. — Tá tão cega tentando fingir que nada te afeta, que tá deixando todo mundo no escuro junto. Isso aqui virou um campo minado.

Verena a encarou em silêncio por alguns segundos. Depois, girou lentamente a cadeira, ficando de lado, cruzando as pernas com elegância quase irritante. O blazer levemente aberto revelava o colar fino sobre a blusa de seda cinza. A imagem da política implacável.

— Se o gabinete virou um campo minado, o que você sugere? Que eu vá abraçar cada servidor e oferecer um chazinho de camomila?

Rafaela riu, um riso curto, cético.

— Sugiro que você pare de agir como se tivesse tomado ranço do mundo. Tá tentando resolver tudo na força, no grito, no controle. E você sabe que não é só sobre política.

Silêncio.

A respiração de Verena ficou mais pesada. Ela passou a mão pelo cabelo, depois pela nuca. Rafaela observou de braços cruzados, sem pressa.

— Você tá com raiva porque não conseguiu controlar o que sentia. Porque não queria sentir. E agora a menina foi embora, e você não sabe o que fazer com o buraco que ficou.

Verena apertou os olhos, como se aquilo tivesse doído fisicamente. Quando respondeu, a voz veio baixa, dura:

— Eu tô tentando impedir que um mandato inteiro desmorone. Que um projeto seja engolido por uma guerra interna. E você quer sentar aqui pra falar de buraco emocional?

Rafaela se aproximou, encostou as mãos na beirada da mesa e disse com uma suavidade amarga:

—  Olha pra você — Rafa continuou, a voz mais baixa, mas firme. — Tá se enterrando nesse trabalho, cortando gente pela metade, montando reunião atrás de reunião…Você pode vencer todas as guerras externas, Vê. Mas se continuar fugindo dessa aqui — e apontou com o dedo leve, direto ao peito da amiga —, vai perder a única que importa.

Verena ficou imóvel. Um músculo da mandíbula pulsava. O celular sobre a mesa acendeu com uma notificação qualquer — mas não era o nome que ela esperava ver. Nunca era. Ela desviou o olhar, pegou o celular, bloqueou a tela e disse apenas:

— Volta pro trabalho, Rafaela.

— Com prazer, chefe. Só não esquece que quem fecha os olhos pra dor, acaba batendo de frente com ela — retrucou a amiga, já virando de costas, mas deixando a frase no ar como um rastro de fumaça.

A porta fechou suavemente atrás dela.

Verena, sozinha outra vez, girou levemente a cadeira de volta para a mesa, abriu um novo documento, mas... não leu uma linha sequer. Seus olhos estavam fixos num ponto qualquer da parede. Como quem briga por dentro, mas nunca se permite sangrar.

Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 09h12

A sala de aula estava mergulhada no zumbido contínuo do ventilador de teto, que girava devagar, como se o tempo ali dentro tivesse sua própria lógica — mais lento, mais pesado. O professor de História falava sobre o período regencial, mas Valentina não ouvia nada.

Sentada na penúltima carteira da fileira do canto, a garota encarava o livro aberto à sua frente como se fosse um objeto distante, sem propósito. Seus olhos estavam fixos numa mesma linha há minutos, mas ela sequer registrava as palavras. A caneta entre os dedos escorregava, traçando riscos sem sentido no canto da folha, que agora estava rabiscada com formas repetitivas — ondas, grades, espirais. Ela sequer percebia.

— Val? — Carol sussurrou ao lado, inclinando levemente o rosto.

Valentina não respondeu. Pisquei lento, como quem volta de muito longe.

— Valentina... — Carol insistiu, agora tocando de leve seu braço.

— Hm?

— Tá tudo bem?

Ela assentiu com a cabeça, mas nem tentou sorrir. Os olhos, fundos e opacos, negavam o que a boca calava. O professor interrompeu a fala e olhou para a fileira onde elas estavam.

— Aconteceu alguma coisa aí atrás?

Carol se adiantou rapidamente:

— Não, professor. Só uma dúvida da matéria mesmo.

Ele franziu o cenho, mas seguiu.

Valentina voltou a olhar pro livro, mas agora nem fingia estar prestando atenção. Só permanecia ali, parada. O tempo todo com o tronco encolhido, como se estivesse tentando desaparecer entre as costelas.

Na hora do intervalo, não foi com Carol até o refeitório. Nem respondeu a mensagem que a amiga mandou no celular. Apenas ficou sentada num canto do pátio, o corpo curvado pra frente, braços cruzados sobre as pernas, cabeça baixa. Os outros alunos passavam, riam, corriam — mas ela era como uma fotografia em preto e branco num lugar em movimento.

Todos ali já haviam notado. A coordenadora pedagógica expressava cada vez mais preocupação, cogitando chamar os pais da menina pra uma conversa mais direta.. Mas ninguém sabia muito o que fazer — Valentina era boa aluna, educada, respeitosa. Só... parecia ter se tornado outra pessoa nas últimas semanas.

Quarto da Valentina — 14h37

Ana Paula encostou a porta com o ombro, equilibrando o copo d’água e um pires com biscoitos. Tudo em silêncio. A casa parecia maior sem os ruídos do dia — Isadora estava na escola, o marido ainda no trabalho, e Valentina... Valentina estava deitada do mesmo jeito que a deixara horas antes.

O sol da tarde entrava cortado pela cortina fina, criando faixas de luz sobre o lençol amarrotado. A filha estava virada pro lado, de costas, ainda com a blusa branca do uniforme, já amassada e suada. Os tênis jogados perto da porta, a mochila no chão, aberta, com cadernos espalhados.

Ana Paula se aproximou com cuidado. Deixou o copo e o pires sobre a escrivaninha, e puxou a cadeira, sentando-se devagar, como se qualquer movimento em falso pudesse fazer a filha se partir.

— Filha? — chamou baixo, com um carinho que quase tremia.

Valentina não respondeu. Respirava fundo, mas de olhos abertos, fixos em algum ponto que só ela via. Ana Paula mordeu o canto da boca e baixou os olhos, pensando em como começar.

— Eu sei que você não quer conversar, que tá cansada... que não tá sendo fácil. Mas eu tô aqui, tá? — esperou uma resposta. Nada. — Eu fico olhando pra você, e parece que cada dia que passa... você some um pouquinho mais, filha.

A menina respirou fundo, e fechou os olhos, como se quisesse sair dali. Desaparecer.

— Eu e seu pai pensamos que era o estágio, que tava puxado demais... você sempre foi responsável, dedicada... Mas desde que você saiu de lá... — a voz de Ana Paula vacilou —... só piorou.

Silêncio.

Ana Paula se levantou, se ajoelhou ao lado da cama, ficando na altura do rosto da filha. Tentou tocar o braço de leve, mas Valentina se encolheu sutilmente, o suficiente pra fazer a mãe parar.

— Eu fui falar com a Marlene ontem. Se lembra dela? A gente ficou um tempão conversando. E... ela falou que a sobrinha dela, a Maria Eduarda, acabou de se formar em psicologia, e tá começando a atender em grupos da igreja... Ela é bem jovem, uma menina doce. Ela disse que pode te ouvir, sem pressa, sem pressão. Só ouvir.

Valentina começou a franzir o rosto, como se aquilo abrisse uma dor que ela não queria encarar. As lágrimas vieram sem aviso, silenciosas, escorrendo pelas têmporas. E então a voz:

— Mãe... — saiu num fio abafado — eu não quero ir.

Ana Paula se aproximou mais, agora tocando o rosto da filha com cuidado, secando as lágrimas, com os olhos marejados.

— Então fala comigo, meu amor... me ajuda a te ajudar. Meu amor… — Ana Paula fazia um carinho suave nos cabelos bagunçados da filha. A voz quase falhava. — Se aconteceu alguma coisa com você naquele estágio… se alguém te disse alguma coisa, te fez mal, ou… se teve alguma situação difícil… você pode me contar. Eu tô aqui. Eu não vou te julgar, filha. Só quero te entender. Te proteger.

Valentina suspirou, como se tentasse buscar o ar que não vinha com facilidade.

— Mãe...você... Você acha que Deus, pode deixar... de gostar de alguém...— ela engasgou nas próprias palavras, o corpo começando a tremer de leve.

Ana Paula sentiu o peito rasgar.

— Meu anjinho, escuta... não tem nada que você possa sentir ou pensar que faça Deus te amar menos. Nada. E se você tá sofrendo, isso não vem Dele. Isso não pode vir Dele.

Valentina chorava agora com força. Um choro preso há semanas, talvez meses. Um choro que carregava culpa, medo, vergonha — e algo que ela mesma ainda não sabia nomear sem se destruir por dentro.

Ana Paula abraçou a filha com todo o cuidado do mundo, como se estivesse segurando uma porcelana trincada. Ficaram ali, naquela cama pequena, a luz do sol esmaecendo, as palavras parando — e, no lugar delas, o som mais honesto que Valentina conseguia emitir: o do seu pranto. Ficaram ali, abraçadas no canto da cama, a casa toda em silêncio — como se o mundo lá fora também tivesse parado, respeitando o luto invisível de uma menina que estava se perdendo por dentro.

Casa da Valentina — Quarto do casal — 22h47

A luz do abajur criava uma penumbra amarelada no quarto, projetando sombras longas nas paredes. A cama de casal estava desarrumada. Ana Paula sentava-se encostada na cabeceira, de camisola, as mãos entrelaçadas sobre o colo. O olhar fixo no nada.

Carlos andava de um lado pro outro, descalço, de bermuda e camiseta. O andar irritado fazia o piso ranger, e o quarto pequeno parecia pequeno demais pra conter a inquietação dele.

— Não dá mais, Paula. — A voz dele já começava num tom elevado, os ombros tensos. — A gente precisa fazer alguma coisa. Eu tô vendo nossa filha se apagar na nossa frente! Não é normal o que tá acontecendo!

Ana Paula respirou fundo, a cabeça girando devagar pro lado dele. A voz saiu baixa, cansada.

— Eu sei, Carlos. Eu tô vendo também. Você acha que pra mim é fácil?

— Ela não come, não fala, não reage. Hoje ficou o dia inteiro largada na cama, com a mesma roupa da escola! — Ele parou, apontando pra direção do corredor, como se a filha estivesse logo ali atrás da porta. — Que tipo de coisa pode causar isso numa menina de dezesseis anos, hein? Me diz!

Ana Paula fechou os olhos, inclinando um pouco a cabeça pra trás. O abajur atrás dela realçava os vincos de preocupação em seu rosto.

— Eu tentei conversar com ela, Carlos. Com todo o cuidado do mundo. Ela não consegue… Ela só chora. — A voz dela falhou por um segundo. — É como se tivesse presa por dentro.

Carlos bufou, passando a mão pelos cabelos já grisalhos nas têmporas.

— Você falou da tal psicóloga? Da menina da igreja?

— Falei. Ela chorou mais ainda. — Ana Paula mordeu o lábio inferior, tentando segurar as próprias emoções. — Mas eu vou tentar de novo. Amanhã. Com mais calma. Eu sei que ela quer falar. Mas não sabe por onde.

Carlos se sentou na ponta da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça abaixada. Ficou um instante em silêncio, respirando fundo.

— Isso tudo começou depois daquele estágio.

Ana Paula não respondeu. Ficou olhando pra ele, apreensiva.

— Antes disso… ela podia até estar cansada, estressada. Mas ela tinha brilho. Ela ria. Ela conversava. — Ele levantou o olhar, os olhos cheios de raiva mal contida. — Foi naquele lugar que alguma coisa aconteceu, eu tenho certeza.

— Carlos… — a voz dela era um sussurro.

— Não me vem com calma agora, Ana Paula. Não me vem! — Ele levantou bruscamente, voltando a andar pelo quarto. — E se… e se alguém fez algo com ela?

Ana Paula gelou. Foi como se alguém tivesse apertado o ar do quarto e enfiado um punhal no meio do estômago dela. Seus olhos se arregalaram, devagar. A boca entreaberta, sem conseguir articular nada. O coração disparou.

— Carlos… pelo amor de Deus… — murmurou, quase sem som.

— Tô falando sério! — Ele se virou, agora com os olhos ardendo de raiva e desespero. — A gente não pode descartar isso! Ela voltou de lá outra pessoa! Ela não olha mais no olho da gente! Se encolhe quando alguém chega perto!

Ana Paula levou a mão à boca. Os olhos marejaram instantaneamente.

— Não… não fala isso… — sussurrou, sem conseguir conter as lágrimas. — Nossa menininha… meu Deus…

Carlos andou até a janela, abriu num gesto brusco, como se o ar da rua pudesse dissipar o sufoco dentro do peito. Respirou fundo. Depois virou de novo pra ela, apontando com o dedo.

— Eu vou ligar amanhã pra escola. Quero saber exatamente quem foi o responsável por mandar minha filha pra aquele lugar. Quero nome, telefone, quero falar com alguém da Alesp, se for preciso. Se eu descobrir que teve qualquer coisa errada ali, eu juro por Deus, Paula… juro por Deus que eu acabo com a vida de quem for.

Ana Paula se levantou da cama, ainda trêmula, e foi até ele. Tocou no braço do marido com gentileza, tentando trazê-lo de volta do furacão que girava na cabeça dele.

— Carlos… a gente precisa de calma. Por mais difícil que seja. Eu tô com medo também. Eu tô me sentindo impotente, desesperada… mas se a gente for com tudo, ela vai se fechar ainda mais. Vai se perder de vez.

Ele olhou pra ela, os olhos vermelhos de raiva e frustração.

— E o que você quer que eu faça, hein? Que eu fique aqui vendo minha filha afundar sem fazer nada?

— Não… — ela balançou a cabeça, a voz embargada. — Mas a gente precisa de sabedoria. E de paciência. A gente precisa estar juntos nisso.

Carlos engoliu em seco, os olhos marejando agora também. Um silêncio pesado se impôs entre os dois. Ela então o abraçou, de leve. O corpo dele ainda tenso, mas os braços finalmente se moveram para envolvê-la.

— Amanhã… eu tento de novo com ela. Com mais calma. Eu vou fazer ela ir conversar com a Maria Eduarda. Nem que eu vá com ela, sente do lado. — Ana Paula respirou fundo contra o peito do marido. — Mas você precisa prometer que não vai explodir. Que não vai agir no impulso. A gente não sabe o que tá acontecendo ainda.

Carlos fechou os olhos, abaixando a cabeça. A voz saiu num fio:

— Se alguém machucou minha filha… eu não respondo por mim.

E o silêncio voltou ao quarto. Denso, absoluto. Do lado de fora da janela, só o som do vento balançando as folhas. E dentro, dois corações aflitos tentando proteger uma menina que, aos poucos, se perdia para dentro de si mesma.

Quarto da Valentina — Dia seguinte - 15h12

A brisa fraca que vinha da janela entreaberta mal mexia a cortina. No chão, a calça de uniforme amassado da manhã. Na cama, Valentina ainda usava a blusa da escola — amarrotada, colada ao corpo pelo suor seco e pelo cansaço que ela não sabia explicar. O lençol embolado no pé da cama. Um copo d'água intocado sobre o criado-mudo.

Ela estava deitada de lado, os olhos abertos. Olhos que não choravam, mas também não viam. Olhos gastos de tanto tentar entender por que doía tanto.

A porta se abriu devagar.

Ana Paula entrou com passos contidos. Trazia nas mãos um copo de suco de maracujá e um pedaço de pão com requeijão. O rosto denunciava a tensão de quem passou a noite sem dormir direito.

— Filha… — a voz saiu baixinha, quase um pedido de licença — eu trouxe isso pra você.

Valentina não respondeu. Nem se moveu.

Ana Paula pousou a bandeja improvisada na escrivaninha. Olhou o quarto. O ventilador desligado. A luz apagada. A filha desfeita.

— Tá muito quente aqui, amor… — ela foi até a janela e abriu mais um pouco, puxando a cortina pro lado. — Por que você não liga o ventilador, hein?

Nada.

— Quer que eu ligue pra você?

Silêncio.

Ana Paula se aproximou da cama, com cuidado. Se sentou na beiradinha, o colchão afundando levemente sob o seu peso.

— Valen…

A filha piscou, lenta. Mas não respondeu.

— Eu tô preocupada com você, filha. Você sabe disso, né?

Uma leve contração nos ombros da menina. Quase imperceptível.

— Você é a minha menina… minha primogênita. Eu te conheço. E sei que tem alguma coisa te machucando, te corroendo por dentro… — a voz dela vacilou um pouco. — Eu já tentei dar espaço, já tentei conversar, já esperei. Mas agora eu tô… eu tô com medo, Valen.

Valentina engoliu em seco. A garganta parecia colada. Ana Paula abaixou a cabeça, respirou fundo. Tentou mais uma vez:

— Lembra da Maria Eduarda? Eu conversei com ela. Ela topou conversar com você, só um bate-papo mesmo… sem compromisso. É da igreja, filha. Vai te entender. Ela sabe ouvir.

Valentina fechou os olhos com força. Como se a simples menção à palavra conversar apertasse um botão de dor dentro dela.

— Eu… eu posso ir com você, se quiser. Fico na recepção. Ou te levo, te espero do lado de fora. Você escolhe. Só não fica assim. Por favor, Valentina…

A menina mordeu os lábios. Uma, duas vezes. Até sentir o gosto metálico da própria saliva.
E então, os olhos se encheram. De uma hora pra outra. Como se o corpo dissesse: já chega.

Ana Paula arregalou os olhos e levou a mão ao ombro da filha.

— Ei, meu amor… o que foi? O que tá acontecendo com você, filha? — sua voz agora era puro desespero disfarçado de doçura.

Valentina abriu a boca, como se fosse dizer algo… mas nenhum som saiu. Ela tentou. Juro que tentou. Mas a garganta travou, o peito colapsou pra dentro, e no lugar da fala veio o choro. Um choro mudo. Um soluço contido, que fazia o corpo inteiro estremecer.

Ela virou o rosto pro travesseiro, tentando se esconder. Mas a dor era grande demais pra caber ali. Ana Paula se inclinou, envolveu a filha num abraço trêmulo, cheio de cuidado, mas também de impotência. A cabeça encostada no ombro da menina. O coração batendo acelerado.

— Eu fico tentando entender o que houve com você… — a mãe continuou, agora com a voz embargada. — E eu sei que não é só o estágio. Sei que tem algo aí dentro que você não consegue me contar ainda. Mas mesmo assim, eu tô aqui. Esperando. E te amando… mais do que você pode imaginar.

Valentina mordeu o lábio inferior com força. A garganta fechada. Uma dor que nem nome tinha apertando o peito.

— Você não precisa falar agora — sussurrou Ana Paula, baixinho. — Só me deixa te ajudar, tá? De algum jeito.

Valentina se encolheu mais. Não empurrou. Mas também não retribuiu. Só chorou. Como se o mundo dentro dela estivesse em ruínas. E a mãe, ali, tentando resgatar uma filha que afundava em silêncio.

Cozinha da família Moraes — 6h58 da manhã

A chaleira apitava baixo no fogão. Ana Paula desligou o fogo com a ponta dos dedos e despejou a água na garrafa térmica. Os olhos estavam fundos. O rosto, pálido. A noite tinha sido longa — como todas as últimas — e a preocupação não dava trégua.

Na mesa, Carlos folheava o jornal sem realmente ler. O café esfriava diante dele. Estava tenso, rígido, os olhos fixos em um ponto qualquer da parede. Os punhos cerrados traíam sua inquietação.

— A Val não levantou? — ele perguntou, sem tirar os olhos do nada.

Ana Paula hesitou por um segundo. Terminou de fechar a garrafa com calma e respondeu num tom baixo:

— Não… disse que tava cansada. Que não conseguia ir hoje.

Carlos deu um leve suspiro, mas não respondeu. Ficou alguns segundos em silêncio. Mas o silêncio era como uma mola pressionada. E ela não demorou a soltar.

— Cansada do quê? De existir?

Ana Paula o olhou com um misto de reprovação e dor.

— Carlos…

— Não, Paula. Desculpa, mas isso já passou de qualquer limite. Todo dia é a mesma coisa! Ela não come, não fala, não olha na nossa cara. Tá andando pela casa como se fosse um fantasma. Isso não é normal. Isso não é "cansaço".

Ana Paula puxou uma cadeira e sentou-se devagar, tentando manter a calma.

— Eu sei. Eu sei disso, amor. Mas não adianta você querer resolver tudo na base da força. Ela precisa de ajuda, eu concordo. Mas tem que ser no tempo dela.

Carlos encarou a esposa, o maxilar tenso.

— No tempo dela? Enquanto isso ela vai apodrecendo em vida? Vai ficar vegetando em cima daquela cama até quando? Vamos esperar o conselho tutelar bater aqui em casa?

A dor na voz dele era visível. Não era dureza por crueldade. Era desespero.

— Eu tô falando com a Maria Eduarda. Tô tentando convencer ela aos poucos. Mas não posso empurrar nossa filha numa sala fechada com alguém se ela não quiser, Carlos.

Ele se levantou da cadeira num rompante. Foi até a pia, jogou o café fora. Os movimentos bruscos, nervosos.

— Chega! Eu vou resolver isso.

Ana Paula virou o rosto na direção dele, alarmada.

— Resolver como?

Carlos encarou a esposa, o olhar aceso por uma suspeita que já estava ali há dias — fermentando, crescendo, até não caber mais dentro do peito.

— Eu vou até a escola. E vou pedir pra chamarem alguém da Alesp. Quero falar com um superior, com algum responsável direto. Eu vou descobrir o que aconteceu naquele estágio.

Ana Paula empalideceu.

— Carlos… por favor, não faz isso. Não agora. Não desse jeito.

— E quer que eu espere mais o quê? A Valentina nunca foi assim! Nunca! Aquilo ali, aquela menina trancada no quarto, sem vida… não é a nossa filha.

A voz dele começou a falhar.

— Eu já pensei em tudo. TUDO. Mas a única coisa que me parece fazer sentido — por mais que me destrua dizer isso — é que alguém tenha feito algo com ela. Alguma coisa grave. Alguma coisa suja.

Ana Paula levou a mão à boca, como se tivesse levado um tapa invisível. O coração disparou. A mente recusava aquela hipótese, mas o instinto… o instinto gritava que era possível.

— Carlos, por Deus…

— Ela voltou daquele estágio… outra. Desde aquele dia, ela parou de sorrir. De falar. De viver. E agora nem levanta mais da cama! — ele estava alterado, mas a voz baixou subitamente. — Eu sou pai. E se tiver alguém por trás disso, alguém que mexeu com a minha filha… eu juro, Paula, eu juro que…

— Você vai se prejudicar. Vai acabar perdendo o controle, falando o que não deve com alguém poderoso, e aí a gente vai ter mais um problema pra resolver. É isso que você quer?

Carlos fechou os olhos com força. A respiração pesada. Os dedos apoiados na beirada da pia com força.

— Eu não vou gritar. Não vou fazer barraco. Só quero respostas. Só quero entender o que fizeram com a nossa filha.

Ana Paula se levantou, se aproximou devagar, tocando o braço dele.

— Você acha mesmo que se fosse algo assim, ela não teria dado nenhum sinal, nenhum indício claro? Carlos, ela não deixa nem a gente encostar. Você acha que vai tirar isso de um funcionário qualquer da assembleia?

Carlos olhou nos olhos da esposa, profundamente abalado. E respondeu com dor:

— Eu não sei. Mas não consigo mais ficar parado.

Ana Paula se calou. A vontade era de amarrá-lo na cadeira, impedi-lo de sair. Mas o que ela podia fazer contra o medo de um pai diante do que não entende?

A tensão entre eles pairou no ar como uma nuvem densa. Ao fundo, a porta do quarto de Valentina continuava fechada. O mundo lá dentro era outro — um mundo em colapso, em silêncio.

Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – Portão Principal - Manhã

O céu ainda estava cinzento, carregado de umidade. O portão de ferro da escola permanecia fechado, com o aviso de “Entrada apenas após 7h15” pendurado no cadeado. Já passava das 8h, então a rua estava vazia.

Carlos parou diante do portão. Olhou para dentro — o corredor silencioso, o pátio ainda úmido do sereno da madrugada. Respirou fundo. Então apertou o botão do interfone, ao lado da grade. Após alguns segundos, a voz rouca e familiar de Dona Dalva ecoou do outro lado:

— Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro, bom dia? - respondeu a voz envelhecida, abafada pelo chiado do aparelho.

— Bom dia. Aqui é o pai da Valentina Moraes, do 2º C. Preciso conversar com alguém da coordenação. É assunto sério.

Um silêncio breve. Dalva reconheceu o nome.

— O senhor pode aguardar um instante?

Carlos assentiu, mesmo que ela não pudesse vê-lo. Apoiado no portão com uma das mãos, olhou pra calçada vazia, os olhos fundos de cansaço e raiva contida. Dois minutos depois, o trinco do portão destravou com um estalo metálico. O portão rangeu ao ser puxado. Dona Dalva, de batinha florida e chinelos, segurava a prancheta de presença na mão, os cabelos brancos presos num rabo de cavalo baixo.

— Entra, seu Carlos… pode vir comigo. A coordenação já foi avisada. Só um minutinho que já vão te atender.

Ele seguiu ao lado dela pelo corredor estreito, enquanto os sons das salas fechadas — professores falando, carteiras se arrastando — se fundiam em um zumbido ao fundo. O cheiro familiar de desinfetante e papel velho invadia as narinas.

— A coordenadora Regina tá numa orientação com os terceiros anos, mas chamei a Luciana. A supervisora.— disse Dalva, tentando soar tranquila, mas com o olhar já preocupado.

Carlos assentiu, sem responder.


SALA DA COORDENAÇÃO – MINUTOS DEPOIS

Luciana apareceu à porta com os cabelos presos em um coque desfeito e um bloquinho de anotações na mão. O sorriso educado sumiu ao ver o semblante de Carlos, que se manteve em pé. Luciana fez sinal para que ele se sentasse, mas ele recusou com um gesto.

— Eu vou ser direto — disse ele, os olhos fixos nela. — Minha filha não conseguiu levantar da cama hoje. Minha esposa tentou acordar, insistiu, mas... a menina não conseguia levantar da cama. Disse que tava enjoada, cansada. Mas não é isso. E não é a primeira vez. Desde que saiu do estágio na Alesp, ela tá em outro mundo. Apática. Sem comer direito, sem dormir… e agora nem sair do quarto consegue mais.

Luciana cruzou as mãos sobre a mesa, o semblante tenso.

— Desculpem a forma como vim. Não quis marcar hora nem passar por protocolo nenhum. Vim porque... não aguento mais ver minha filha naquele estado.

Luciana se adiantou, no tom mais institucional possível:

— Não se preocupa com isso senhor Carlos, nós entendemos sua posição. E estamos aqui pra ajudar no que for possível. A gente vem acompanhando a situação da Valentina sim. Já conversamos com sua esposa, inclusive.

Ele respirou fundo. Passou a mão pelos cabelos e encarou o chão por um segundo. Quando levantou o olhar, os olhos estavam úmidos, mas duros.

— Eu sei — interrompeu ele. — Eu e minha esposa já tentamos conversar com ela. Com calma. Com paciência. Ela não fala. Só chora. Fica no quarto como se o mundo tivesse acabado. Isso não é normal. E se fosse “só” o estágio, ela já teria melhorado, não piorado.

Luciana falou com cautela:

— Senhor Carlos, nós também nos preocupamos com ela. A Valentina é uma menina muito sensível e dedicada, sempre foi muito participativa. E o que a gente viu nas últimas semanas... é realmente preocupante.

Carlos respirou fundo, a voz embargando.

— Eu não sei o que aconteceu lá. Mas aconteceu alguma coisa. Alguma coisa que ela não consegue falar. E... e eu comecei a pensar coisas.

O silêncio que se seguiu foi cortante. Luciana pousou lentamente a caneta que segurava. A mulher o encarava, atenta.

— Eu tô dizendo que... eu não descarto a possibilidade... — ele hesitou, os olhos marejados — de que alguém possa ter feito algo com a minha filha. Algum tipo de abuso. Psicológico, físico, sexual... eu não sei. Mas ela tá se desmanchando por dentro. E eu não posso ficar parado esperando.

O peso da acusação caiu como uma pedra. Luciana respondeu, visivelmente  abalada com o que ouviu, mas tentando manter o tom profissional:

— Senhor Carlos, eu posso imaginar a sua angústia. Mas esse tipo de alegação é muito séria. Muito. E precisa ser tratado com todos os cuidados legais.

— Eu não tô aqui pra acusar ninguém sem prova — rebateu ele, com a voz trêmula. — Tô aqui porque sou pai. E se eu não fizer nada, vou enlouquecer.

Luciana manteve o tom firme, mas humano:

— O senhor já conversou com ela sobre isso diretamente? Tentou perguntar se algo específico aconteceu?

— Ela não consegue falar. Ela trava. E eu não tenho mais estrutura emocional pra esperar que isso se resolva sozinho.

Luciana assentiu, profissional, mas com olhos mais suaves:

— Olha, o senhor pode fazer uma denúncia formal, se quiser. Tem os canais certos pra isso. Conselho Tutelar, Ministério Público, CREAS... Mas a escola, até agora, não recebeu nenhum relato que indicasse uma situação de violência ou abuso.

— Eu sei. Mas eu preciso falar com alguém da Alesp. Alguém da coordenação do programa de estágio. Alguém que possa me explicar o que diabos aconteceu com a minha filha naquele lugar.

Luciana anotou rapidamente algo num papel.

— O nome da responsável que assinou o desligamento da Valentina é Rafaela Campos. Ela é assessora da deputada com quem sua filha estagiava. Podemos tentar esse contato por meio da escola, com cautela. Mas o senhor precisa entender que são estruturas diferentes. A gente não tem autoridade sobre a Assembleia.

Carlos assentiu, os olhos ainda fixos no vazio.

— Façam o que puderem. Mas eu vou atrás. E se tiver que ir na Alesp bater de porta em porta, eu vou.

Luciana se levantou, encerrando com delicadeza:

— A gente entende. E vamos fazer nossa parte. E, por favor, senhor Carlos... cuida da sua filha. O que ela precisa mais do que tudo agora é de acolhimento.

Ele respirou fundo, com as mãos trêmulas.

— É isso que mais me dói. Nem ela sabe como ser acolhida.

Sala da Coordenação — 09h15

Logo após a saída do homem, Regina entra na sala, já tendo sido brevemente atualizada por dona Dalva sobre a visita do pai de Valentina. Sem hesitar, se apressou em adiar seus compromissos dos próximos minutos, já imaginando a gravidade do assunto, dado o acompanhamento da jovem nos últimos dias. Assim que entrou, foi atualizada nos detalhes pela colega Lucina.

O silêncio pesava feito chumbo, as duas mulheres continuavam imóveis, como se seus corpos ainda estivessem tentando acompanhar o que a mente acabara de absorver. Luciana foi a primeira a se mover, inspirando fundo e tirando os óculos com um gesto mecânico. Passou a mão no rosto.

— Isso é muito sério… — disse, quase num sussurro.

Regina nem piscava. Encostou-se devagar na mesa, como se precisasse do apoio físico pra não desabar.

— Eu não... eu nunca vi algo assim aqui. Não com esse peso.

Luciana se levantou, pegando o celular. Conferiu o relógio: 9h30. Precisavam agir com responsabilidade e rapidez. Ela digitou algo, depois travou a tela.

— A gente precisa avisar a Sônia agora. Isso extrapola qualquer atribuição nossa como orientadoras. É diretoria. É protocolo de denúncia.

Regina assentiu, ainda em choque.

— Eu... eu vou ligar pra ela. Ela deve estar chegando agora.

Enquanto Regina fazia a ligação, Luciana sentou-se de novo e abriu o sistema interno da escola. Começou a digitar o relato da visita de Carlos no campo próprio para "Ocorrência Excepcional com Responsável". O formulário era objetivo: horário, nome completo, vínculo com a aluna, e o relato do que foi dito.

Ela manteve a linguagem técnica, mas clara:

"O responsável Carlos Santos de Souza compareceu à unidade escolar às 08h15, solicitando reunião com a coordenação pedagógica. Relatou preocupação com o estado emocional da filha, aluna Valentina Moraes de Souza, regularmente matriculada no 2º ano C do Ensino Médio. Informou que a estudante apresenta sinais de isolamento, apatia e recusa escolar desde o desligamento de seu estágio na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). Durante a conversa, manifestou suspeita de que a filha possa ter sido vítima de abuso psicológico e/ou sexual no período em que esteve vinculada ao referido estágio. Solicitou que a unidade escolar entrasse em contato com os responsáveis pela gestão do programa."

Luciana terminou o texto com a mão um pouco trêmula. Salvou o registro, imprimiu uma cópia e separou em envelope timbrado, que entregaria à diretora junto com o restante dos documentos.

Regina desligou o telefone, pálida.

— Ela tá vindo direto pra cá.

**

10 MINUTOS DEPOIS — SALA DA DIREÇÃO

A sala da diretora tinha o mesmo mobiliário simples do resto da escola: armário de aço cinza, mesa de MDF com tampo escuro e duas cadeiras de visita. A única diferença era a presença de uma pequena estante com livros pedagógicos e um difusor de aromas discretamente posicionado no canto.

Sônia entrou com passos firmes, vestindo calça de alfaiataria e camisa azul-marinho. A expressão já era de preocupação antes mesmo de se sentar.

— Me atualizem.

Luciana entregou o envelope com a ocorrência e um segundo documento com o resumo de acompanhamento da aluna desde o fim do estágio. Enquanto Sônia lia, Luciana começou a falar:

— Ele tava transtornado, Sônia. Disse que a filha não consegue levantar da cama, que desde o estágio entrou num estado de apatia profunda. Hoje simplesmente não conseguiu vir à escola. E ele falou, com todas as letras, que acha que a menina pode ter sofrido abuso. E foi específico: durante o estágio na Alesp.

Sônia largou o papel e encostou-se na cadeira. Ficou alguns segundos em silêncio.

— A gente tem obrigação de notificar. — falou por fim. — Isso extrapola qualquer procedimento pedagógico. É um relato de suspeita de violência contra adolescente. Mesmo sem confirmação, mesmo sem prova — a suspeita precisa ser comunicada.

Luciana assentiu.

— Eu imaginei. Já fiz o relato por escrito e registrei no sistema. Só falta enviarmos o comunicado formal.

Sônia abriu seu notebook e começou a redigir um e-mail com cautela. Copiou os dados da ficha escolar da estudante, consultou os canais institucionais da Alesp e inseriu os destinatários oficiais.

Assunto: Notificação urgente — Possível situação de vulnerabilidade envolvendo estudante vinculada a programa de estágio

Destinatários: gabinete.juventude@al.sp.gov.br, coord.programas@al.sp.gov.br
Cópia: supervisao@educacao.sp.gov.br

Corpo do e-mail:

À coordenação do Programa de Estágio Educacional da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,

Por meio deste, a Direção da Escola Estadual [NOME DA ESCOLA] vem, de forma oficial, notificar esta instituição acerca de possível situação de vulnerabilidade envolvendo a estudante Valentina Moraes de Souza, matrícula 100248X, atualmente cursando o 2º ano C do Ensino Médio nesta unidade.

Informamos que, na data de hoje (27/05/2025), compareceu a esta escola o Sr. Carlos Santos de Souza, pai da referida aluna, relatando indícios de sofrimento psíquico grave, apatia e afastamento escolar, observados desde o encerramento do estágio que a estudante realizou no âmbito da Alesp, durante o primeiro semestre do ano letivo.

Durante a reunião com a coordenação pedagógica, o pai da aluna manifestou, de forma espontânea, suspeita de que sua filha possa ter sido vítima de abuso psicológico e/ou sexual no período de realização do referido estágio. Diante da gravidade das alegações, e conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990, esta unidade escolar cumpre seu dever legal de comunicar as autoridades e os órgãos competentes.

Solicitamos, portanto, que as instâncias responsáveis pela gestão e supervisão do Programa de Estágio Educacional Jovem Futuro, adotem as providências cabíveis, com o devido rigor e sigilo, a fim de preservar os direitos da adolescente e garantir apuração transparente dos fatos mencionados.

Colocamo-nos à disposição para esclarecimentos adicionais e reforçamos nossa total colaboração com o que se fizer necessário.

Atenciosamente,

Profª Sônia da Silva
Diretora Geral
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro
Telefone: (11) 2273-4916
E-mail: direcao.[escola]@educacao.sp.gov.br

Sônia releu tudo com atenção antes de clicar em "Enviar". O som do e-mail sendo transmitido ecoou pequeno na sala, mas ali dentro, tinha o peso de um sino grave.

Ela se recostou devagar.

— Agora... a gente aguarda o retorno. E documenta tudo. Cada passo.

Regina assentiu. Luciana já começava a organizar os registros da Valentina em uma pasta de atendimento prioritário. Ali, ninguém mais trataria aquela adolescente como apenas "uma fase". O que quer que estivesse acontecendo, a escola estava, oficialmente, em campo.

Gabinete de Verena Castilho 11h18 — Sala de apoio dos assessores —  Segunda-feira

O e-mail chegou discreto, como tantos outros, mas carregava um peso invisível.

Assunto: Notificação urgente — Possível situação de vulnerabilidade envolvendo estudante vinculada a programa de estágio

Destinatários: gabinete.juventude@al.sp.gov.br, coord.programas@al.sp.gov.br
Cópia: supervisao@educacao.sp.gov.br

A mensagem caiu diretamente na caixa institucional de Rafaela, coordenadora dos programas de estágio da Alesp. Ela lia com a atenção dividida entre o relatório de frequência dos alunos e o café já frio sobre a mesa. Mas bastou o título para sua coluna se endireitar automaticamente.

Abriu a mensagem.


Assunto: Notificação urgente — Possível situação de vulnerabilidade envolvendo estudante vinculada a programa de estágio

Destinatários: gabinete.juventude@al.sp.gov.br, coord.programas@al.sp.gov.br
Cópia: supervisao@educacao.sp.gov.br

Corpo do e-mail:

À coordenação do Programa de Estágio Educacional da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,

[...]

Atenciosamente,

Profª Sônia da Silva
Diretora Geral
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro
Telefone: (11) 2273-4916
E-mail: direcao.[escola]@educacao.sp.gov.br

Rafaela terminou a leitura com as mãos imóveis sobre o teclado. O silêncio da sala pesava. Um ponto de suor escorreu em sua nuca. Ela ficou um tempo encarando a tela. Depois passou a mão no rosto com força, como quem tentava acordar de um pesadelo em tempo real.

— Puta que pariu... — sussurrou.

Sem hesitar, clicou em “Responder”.

Prezadas,

Acusamos o recebimento da mensagem e informamos que a situação será encaminhada imediatamente à chefia da Coordenação Geral de Estágios, bem como à assessoria jurídica da Casa, conforme protocolo da Alesp para situações envolvendo possível violação de direitos de menores de idade.

Ressaltamos o compromisso institucional da Assembleia Legislativa com a integridade e a proteção dos estudantes em estágio. Em breve, retornaremos com maiores informações, inclusive sobre os responsáveis diretos pela supervisão da aluna durante o período mencionado.

Atenciosamente,
Rafaela Campos
Coordenação de Estágios – Alesp

Rafaela respirou fundo antes de levantar da cadeira. Precisava alertar o setor jurídico. Mas no fundo, o que mais a angustiava não era o trâmite técnico — era o nome que vinha à mente, quase inevitavelmente.

Valentina.
Gabinete da Verena.
Supervisão direta.

Ela passou a mão na nuca. Sentiu o estômago embrulhar.

Pegou o celular. Hesitou.

“Será que eu aviso a Verena agora? Não... não assim. Não sem entender antes o que tá acontecendo.”

Mas sabia que não demoraria até que o nome da deputada fosse envolvido formalmente. E o estrondo, quando viesse... não seria pequeno.

O e-mail da escola ainda piscava em segundo plano quando Rafaela imprimiu duas vias: uma para arquivamento e outra para encaminhamento interno. A máquina cuspiu o papel com lentidão irritante, como se sentisse o peso do conteúdo.

Com as folhas em mãos, ela atravessou o corredor rumo ao Setor Jurídico da Casa. O som dos saltos ecoando no piso encerado contrastava com o silêncio da repartição.

Ela bateu levemente na porta de vidro fosco com a placa:

ASSESSORIA JURÍDICA INSTITUCIONAL
Responsável: Dra. Amanda Guimarães – OAB/SP 155.830

Do outro lado, uma secretária atendeu com um sorriso automático.

— Oi, Rafa. Tudo bem? A doutora Amanda tá finalizando um parecer, mas acho que já pode te atender.

— É urgente, Bia. Recebemos uma denúncia grave vinda de uma escola pública, envolvendo uma ex-estagiária nossa. Precisa ser tratado com sigilo e prioridade máxima.

O semblante da secretária mudou instantaneamente. Ela se levantou e entrou rapidamente na sala interna. Um minuto depois, retornou com a porta aberta.

— Pode entrar. Ela já tá te esperando.

Gabinete da Assessoria Jurídica  —  11h48

Dra. Amanda tirou os óculos de leitura e sinalizou para que Rafaela sentasse.

— O que houve?

— Recebemos um e-mail da direção da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro. — Rafaela entregou os papéis enquanto falava. — A aluna Valentina Moraes de Souza, 2º ano C, fez estágio aqui conosco até mês passado. A escola relata mudanças graves de comportamento após o encerramento. Hoje, o pai foi até lá e levantou a possibilidade de que ela tenha sofrido algum tipo de abuso durante o período em que esteve aqui.

Amanda se inclinou, lendo em silêncio. Os olhos percorreram as linhas do ofício com crescente atenção. Quando terminou, soltou um suspiro contido.

— A escola seguiu corretamente o protocolo. Esse tipo de comunicação deve mesmo ser tratado com máxima seriedade. E como se trata de menor de idade, temos obrigação legal de averiguar internamente e, se necessário, comunicar ao Ministério Público.

Rafaela engoliu seco.

— Eu sei. Por isso vim direto aqui. Só que tem uma coisa...

Amanda ergueu os olhos.

— Pode falar.

— A Valentina... foi supervisionada diretamente pelo gabinete da deputada Verena Castilho.

Silêncio. Amanda recostou-se na cadeira.

— Você tem certeza?

— Absoluta. Eu mesma aprovei o plano de estágio. Ela atuava três vezes por semana no gabinete da deputada, com tarefas administrativas e apoio a eventos. Tudo assinado, protocolado, dentro da legalidade.

Amanda ficou alguns segundos em silêncio.

— E você tem alguma suspeita específica?

— Não. Nenhuma evidência concreta, nenhum nome citado. O e-mail é técnico, cuidadoso, como tem que ser. Mas é inevitável o impacto se isso vazar. Estamos falando de uma deputada em pleno mandato. E de uma menor.

Amanda se levantou, foi até um armário, e tirou de lá um formulário interno de “Registro de Situação de Vulnerabilidade com Envolvimento Institucional”. Sentou-se novamente e começou a preencher com o auxílio de Rafaela.

— Preciso saber o período exato do estágio.

— Início em 04 de fevereiro. Encerramento em 25 de abril. Os pais pediram desligamento após um episódio de mal-estar relatado por e-mail, sem entrar em detalhes.

— Alguma ocorrência registrada durante o período?

— Não. Nenhuma reclamação, nenhum incidente oficial.

Amanda preencheu mais algumas linhas. Depois, parou e respirou fundo.

— Rafaela, a gente precisa manter isso restrito por enquanto. Nada de falar com a imprensa, nada de circular esse conteúdo fora do canal jurídico. Eu mesma vou acionar a chefia de gabinete da presidência da Casa e recomendar a instauração de uma verificação preliminar sigilosa. Preciso que você me envie por escrito um memorando relatando tudo que você sabe sobre o estágio da aluna, com datas, funções, nome da supervisora direta e cópia do plano de atividades.

— Ainda hoje?

— Agora.

Rafaela assentiu.

— E... a Verena? Eu aviso?

Amanda hesitou. Depois respondeu com calma:

— Não agora. Se for necessário, ela será notificada por via formal. Se isso for apenas um mal-entendido, precisamos proteger a integridade de todo mundo. Inclusive da deputada. Mas se tiver alguma coisa... será apurado com rigor.

Rafaela assentiu, com a cabeça latejando.

Alesp — Setor Jurídico  —  12h49

Dra. Amanda terminava de preencher os campos finais do formulário quando Rafaela desviou o olhar para o relógio digital da parede. O tempo parecia escorrer como areia fina.

— A gente precisa considerar uma coisa — disse Rafaela, com a voz firme, mas a tensão evidente no maxilar travado.

Amanda ergueu os olhos, atenta.

— Diga.

— Se essa denúncia ganhar corpo… o nome da Verena vai ser o primeiro a circular. Todo mundo aqui dentro sabe que a Valentina estagiou no gabinete dela. Foi o único estágio em que ela esteve alocada, e a menina era muito quieta, muito tímida. O impacto institucional disso pode ser devastador. E não é só pela política. Tem o lado humano também, Amanda… se houver verdade nisso, a gente tá diante de algo muito sério.

A jurista assentiu com lentidão. O peso da responsabilidade já se fazia presente no olhar.

— Você tem razão. Por isso a verificação precisa ser rigorosa, mas discreta. E precisa começar hoje.

— Eu fico no gabinete com a Verena o dia inteiro — Rafaela continuou, quase como um desabafo. — Se isso estoura agora, sem preparo, ela vai achar que foi armação. Vai bater de frente. E sinceramente... eu não faço ideia de como ela vai reagir.

— Não conte nada ainda — Amanda disse com convicção. — Quando for o momento certo, será por via oficial. A gente protege a instituição assim: com técnica, não com emoção.

Rafaela respirou fundo. Engoliu o nó na garganta. Pegou o formulário carimbado, se levantou e saiu.


Gabinete 312 — Deputada Verena Castilho — 13h00

A porta de vidro se abriu com um click discreto. Verena surgiu no corredor com os cabelos presos em um coque apressado e a pasta de documentos ainda debaixo do braço. Acabara de sair de uma reunião com a presidência da Comissão de Cultura.

— Alguém viu a Rafa? — perguntou, ao passar pela sala de apoio.

Os estagiários se entreolharam.

— Faz um tempo que ela desceu pro jurídico — respondeu um deles. — Acho que teve uma demanda da Casa.

Verena assentiu com um murmúrio distraído. Entrou na própria sala e jogou a pasta sobre a mesa. Tirou o blazer, checou o celular e, estranhando o silêncio no grupo da equipe, digitou rapidamente:

Vê:
“Rafa, você tá viva? Preciso de você aqui. A reunião com a Cultura foi um caos.”

Aguardou a resposta por alguns segundos. Nada. Reclinou-se na cadeira de couro, inquieta. Pegou o celular novamente, quase mandando uma mensagem de voz, mas parou ao ver a hora. Meio-dia e vinte.

Ela nunca demora tanto sem avisar.

Sala da Assessoria Técnica da Coordenação de Estágios — 12h21

Rafaela finalmente sentou-se à própria mesa. Tinha em mãos o formulário preenchido, o e-mail impresso, a cópia do plano de estágio da Valentina e um pen drive com os registros eletrônicos.

Ligou o computador. Digitou com rapidez o memorando solicitado:

MEMORANDO INTERNO — URGENTE

Remetente: Rafaela Barbosa Campos – Assessora Parlamentar / Coordenação de Estágios
Destinatária: Dra. Amanda Guimarães – Assessoria Jurídica Institucional
Assunto: Informações complementares sobre a ex-estagiária Valentina Moraes de Souza

Venho por meio deste informar os dados complementares referentes à estudante Valentina Moraes de Souza, matrícula nº 100248X, aluna do 2º ano C da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro, que esteve vinculada ao Programa de Estágio da Alesp no período de 04/02/2025 a 25/04/2025, com carga horária de 12 horas semanais.

A aluna foi alocada exclusivamente no gabinete da Deputada Estadual Verena Castilho, sob supervisão direta da própria assessoria do gabinete (em especial desta signatária), tendo exercido funções administrativas e apoio em eventos e agendas parlamentares.

Não houve registro de ocorrências disciplinares ou incidentes durante o período. O desligamento foi solicitado por iniciativa da aluna, via e-mail, em 25/04/2025, alegando razões pessoais e não especificadas.

Segue anexo:

·         Plano de Atividades aprovado.

·         Termo de Compromisso de Estágio.

·         Registro de Presença.

·         E-mail de desligamento da estagiária.

Coloco-me à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais.

Rafaela Barbosa Campos
Assessora Parlamentar – Gabinete Verena Castilho
Coordenadora do Programa de Estágios


Rafaela anexou os documentos, salvou em PDF e enviou o memorando para o jurídico. Assim que clicou em "Enviar", o celular vibrou de novo.

Vê:
“Tá tudo certo com você? Não me deixa falando sozinha. Preciso de você aqui. Urgente.”

Ela encarou a tela por alguns segundos. Depois soltou o ar devagar, como quem se prepara pra desarmar uma bomba.

Digitou.

Rafaela:
“Tô aqui na sala de apoio resolvendo uma demanda do jurídico. Daqui a pouco subo.”

Apagou. Reescreveu.

Rafaela:
“Já tô voltando. A gente conversa pessoalmente.”

E enviou.

Enquanto caminhava de volta ao gabinete, com a cara composta e a alma em ebulição, só conseguia pensar numa coisa:

Se isso vaza… não é só o nome da Verena que vai pro buraco. É o gabinete inteiro.

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO – NÚCLEO JURÍDICO INTERNO - 12h47

A porta envidraçada da sala do Núcleo Jurídico se fechou com um leve clique, abafando o burburinho dos corredores. Dentro, o ar era frio e metódico, com pastas etiquetadas por cor, três monitores ligados e um relógio digital piscando em silêncio.

Sentada diante da tela principal, a advogada Dra. Clarice Brandão, servidora de carreira há mais de quinze anos, lia com atenção o e-mail da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro. Os dedos pairavam sobre o teclado sem digitar nada por alguns segundos. O teor era delicado demais para qualquer resposta apressada.

Ao lado, o assessor jurídico-chefe, Dr. Leandro Cunha, surgia com uma xícara de café na mão, franzindo a testa ao notar a expressão da colega.

— Chegou mais alguma intimação do Ministério Público? — perguntou, apoiando-se no encosto da cadeira dela.

Clarice balançou a cabeça negativamente, mas virou o monitor discretamente na direção dele.

— Não... mas talvez a gente esteja diante de uma bomba parecida.

Leandro leu o texto em silêncio. O e-mail oficial da escola descrevia preocupações com a saúde emocional da aluna Valentina Moraes de Souza, do 2º ano C, ex-estagiária da Alesp, indicando indícios de sofrimento psíquico grave desde o término do estágio. Havia sugestão de que o ambiente da Assembleia poderia ter contribuído para esse quadro, e, com mais gravidade, a visita de um responsável escolar — pai da estudante — havia levantado, ainda que de forma informal, a hipótese de um possível abuso ou assédio ocorrido durante o estágio.

— E ela realmente estagiou aqui? — Leandro perguntou, mais sério.

Clarice já tinha feito a checagem.

— Sim. No gabinete da deputada Verena Castilho. Foi desligada há pouco mais de quatro semanas. O motivo oficial? Sem especificações, assinado pela própria assessora de gabinete, Rafaela Barbosa Campos.

Ela girou a tela novamente, mostrando o protocolo de encerramento do estágio digitalizado no sistema. A justificativa estava lá, em linguagem objetiva:

“[...] O motivo informado foi de ordem pessoal, sem especificações adicionais, conforme direito previsto na legislação vigente.”

Leandro soltou um longo suspiro, recostando-se na cadeira.

— Mesmo que não seja uma denúncia formal, isso não pode ser ignorado.

Clarice assentiu.

— Já encaminhei o conteúdo pro Comitê de Integridade Institucional. E estou redigindo um parecer preliminar de risco, pra saber se abrimos sindicância ou se aguardamos manifestação formal da família.

— Tem que avisar o chefe de gabinete da Verena. — disse Leandro, mais grave. — Ou melhor... não. Antes disso, temos que entender se há risco institucional. Qualquer ação precipitada pode gerar ruído político.

Clarice digitava enquanto falava.

— Vou também notificar o setor de Recursos Humanos e o coordenador do Programa de Estágio, pra verificar se houve qualquer outro registro sobre essa aluna. E quero levantar com o Cerimonial se ela participou de algum evento fora das dependências.

— A escola já ouviu a menina? — perguntou Leandro.

— Não. Só falaram com os pais. A menina não quis contar nada até agora.

— O que é pior. Porque o silêncio nesse tipo de caso pode ser um sintoma do próprio trauma.

O silêncio na sala ficou pesado.

Leandro então se adiantou:

— Clarice, trata isso como prioridade absoluta. Mesmo que não tenha denúncia formal, isso envolve uma menor de idade, em estágio institucional, em um gabinete parlamentar. Qualquer erro de gestão aqui pode virar um escândalo de proporções...

Ele não precisou terminar a frase. Clarice já sabia.

GABINETE DE APOIO AO PROGRAMA DE ESTÁGIO – 13h34

O e-mail do Núcleo Jurídico chegou com o selo vermelho de “urgente”. Rafaela o leu duas vezes antes de conseguir se mover. As mãos tremiam. O nome da Valentina ali, junto de palavras como “risco institucional”, “sinais de sofrimento psíquico” e “possível abuso”, fez seu estômago revirar.

Abriu o protocolo de desligamento. Lá estava a justificativa que ela mesma assinara:

“[...] O motivo informado foi de ordem pessoal, sem especificações adicionais, conforme direito previsto na legislação vigente.”

Agora, com o jurídico investigando e os olhos da escola voltados pra Alesp, a bomba estava prestes a explodir. E mais do que isso: Verena ainda não sabia de nada. Rafaela fechou a tela e olhou pra porta da sala principal, onde a deputada estava em reunião com dois prefeitos do interior.

O relógio marcava 13h37.
A cada segundo, o mundo que elas conheciam parecia se estreitar um pouco mais.

Gabinete de Verena Castilho

O salto de Verena ressoou firme ao atravessar o corredor central, os olhos ainda semicerrados pela luz branca do anexo. A porta do gabinete se fechou atrás dela com um baque surdo. No mesmo instante, Rafaela levantou os olhos da tela — estava ali, sentada, como se estivesse esperando por aquele momento há horas.

— Finalmente apareceu — Verena resmungou, jogando a pasta sobre a mesa. — O partido quer reorganizar a pauta das comissões. Semana de caos à vista.

Rafaela não sorriu. Nem comentou. Só permaneceu imóvel por um segundo, como se medisse cada palavra antes de responder.

— Vê... — começou, baixando o tom — a gente precisa conversar.

Verena franziu o cenho.

— Que foi agora? O relatório da CPI atrasou de novo?

— Não é isso. — Rafaela apertou os lábios, e o jeito como ela desceu os olhos pro chão fez o coração de Verena se contrair. — Chegou um e-mail da escola da Valentina.

Silêncio.

Verena endireitou a postura na cadeira, como se instintivamente se preparasse para um embate.

— Sobre o desligamento?

— Não exatamente. — Rafaela girou o monitor, puxando a janela de um sistema interno. — É um ofício assinado pela coordenação pedagógica e endereçado à presidência da Casa. Entrou pelo setor de atendimento institucional e foi imediatamente redirecionado ao jurídico.

Verena se inclinou. Leu rápido. Depois devagar. O rosto foi mudando.

— " ...suspeita de que sua filha possa ter sido vítima de abuso psicológico e/ou sexual no período de realização do referido estágio ..." — ela leu em voz baixa, os olhos congelando na tela. — Eles estão insinuando que aconteceu alguma coisa aqui?

Rafaela assentiu. O tom era grave.

— O pai foi até a escola. Disse que a filha voltou diferente depois do estágio. A escola ficou em alerta. Formalizou por escrito.

— E ninguém me procurou? Ninguém perguntou nada antes de... de mandarem isso?

— Não é assim que funciona, Vê. É menor de idade. Quando entra a palavra "abuso", todo protocolo muda. — Rafaela respirou fundo. — A escola alegou que a Valentina não estava emocionalmente estável. E que os pais solicitaram o desligamento imediato. Com isso, já está tudo arquivado no sistema da SEDUC. E não era nem pra eu tá te falando isso agora.

Verena fechou os olhos por um segundo.

— Eu sou a supervisora direta. Era o meu gabinete.

— Justamente por isso — Rafaela apertou os olhos. — Eles vão investigar tudo. Estão cruzando nomes. E, Vê... — ela hesitou, quase como se não quisesse dizer — o nome dela no primeiro ofício que enviaram estava errado.

Verena abriu os olhos de novo.

— Errado como?

— Botaram “Valentina Moraes da Silva” em vez de “de Souza”. O jurídico já detectou a divergência, mas isso tá gerando ruído. Teve gente achando que eram duas alunas diferentes. E agora estão revisando tudo: presença, relatórios, assinaturas...

— Mas o relatório foi assinado por mim. Eu mesma preenchi. Está lá: "Valentina Moraes de Souza". — Ela apertou os dentes. — Isso pode gerar nulidade documental?

— Pode gerar suspeita de inconsistência. Se for um processo administrativo mais sério — Rafaela puxou outro arquivo da pasta — o jurídico vai cruzar os dados antes de dar qualquer parecer. Mas isso já está chamando atenção. E, convenhamos... — ela olhou diretamente pra Verena, como quem fala com alguém que já sabe da resposta — todo mundo aqui dentro sabe quem era a estagiária no seu gabinete.

O silêncio caiu pesado.

— “Moraes da Silva”? Como vocês assinam uma porr* de um ofício com o nome da estagiária errado, Rafaela?

A voz não era alta, mas o tom cortava. Rafaela respirou fundo. A exaustão estava estampada nas olheiras.

— Eu li rápido. Achei que fosse só procedimento padrão. O pedido veio da escola, assinado por coordenadora, diretor, o pai. Nem cogitei que tinham errado. Só conferi se era o mesmo número de matrícula e...

— E você protocolou um erro. — Verena levantou da cadeira. — Você protocolou um erro grotesco! E ainda botou no sistema da SEDUC com um nome que não é dela, caralh*!

— Verena... você também leu. — A voz de Rafaela não era defensiva. Era... triste. — Você assinou o parecer complementar. Passou os olhos pelo dossiê antes de devolver. Ninguém percebeu. Foi uma sucessão de erros. Eu não tô jogando nas suas costas. Mas não joga nas minhas sozinha também.

Verena passou a mão pelos cabelos, nervosa. Andou pela sala, como se tentasse fugir do próprio corpo.

— E agora? Agora tem um ofício dizendo que houve “conduta imprópria” no meu gabinete. E um erro de nome que pode ser usado pra dizer que a gente maquiou a identidade da menina! — Ela parou em frente à estante, de costas pra Rafaela. — Isso é surreal...

Rafaela hesitou. Mordeu os lábios. Depois soltou, num fio de voz quase neutro:

— Surreal... mas não exatamente impossível de imaginar, né?

Verena girou o corpo.

— O que você quer dizer com isso?

A pausa veio com peso.

— Eu só tô dizendo que... — Rafaela encarou a amiga, os olhos sérios, sem raiva — você sabe que a relação entre vocês nunca foi exatamente simples.

Verena congelou. As palavras chegaram como uma descarga elétrica. O estômago afundou.

— Rafaela... — ela deu um passo à frente — você tá insinuando o quê? Que eu... que eu passei de algum limite com ela?

— Eu não tô insinuando nada. — Rafaela ergueu as mãos. — Eu só... vi coisas. Vi como você olhava pra ela. Como ficava nervosa, como perdia o controle. E sei também o quanto você lutou contra isso. Mas a gente não escolhe tudo que sente, Vê. E às vezes...

— Não. — Verena interrompeu. O rosto estava pálido. — Você... Você acha que eu abusei dela?

— Claro que não. — Rafaela foi rápida. Enfática. — Eu nunca pensaria isso de você. Mas você também não pode fingir que sempre teve clareza. Que nunca passou dos seus próprios limites internos. Quantas vezes você gritou com ela, falou coisas que depois se arrependeu?

Verena cambaleou um pouco. Sentou na beirada da mesa. A voz saiu embargada:

— Você acha que ela saiu por minha causa?

— Eu acho... — Rafaela hesitou. — Que talvez ela tenha saído porque estava confusa. Assustada. E talvez porque você — mesmo sem querer — tenha deixado ela mais vulnerável do que já era.

O silêncio que se seguiu foi o mais devastador. Verena ficou ali, sentada, com o corpo curvado. Os olhos baixos. Pela primeira vez desde que tudo começou, ela parecia... pequena.

— E se eu tiver feito isso? — ela murmurou. — Se ela tiver ido embora... por minha culpa?

— Então a gente vai ter que encarar. — Rafaela chegou mais perto. — Juntas. Mas você precisa ser honesta. Comigo. Com você mesma. E com o que essa menina significava pra você.

Verena fechou os olhos, como quem tenta abafar o som do próprio coração. Por um instante, tudo pareceu desmoronar: a força, o mandato, o controle. E no centro daquele abismo... estava o rosto de Valentina.

— Vão dizer que eu abusei dela? — a voz de Verena saiu mais baixa do que ela gostaria.

— Ninguém está dizendo isso. Mas você sabe como essas coisas funcionam. Uma denúncia mal interpretada... um documento mal redigido... — Rafaela suspirou. — A gente tá na Alesp. Não é qualquer repartição pública. Se esse negócio vaza, é manchete no dia seguinte.

Verena se levantou. Caminhou até a janela, o corpo rígido, os punhos fechados.

— Eu vou falar com o jurídico.

— Não, espera. — Rafaela levantou também. — Deixa eles cuidarem da triagem inicial. Se você aparecer agora, pode parecer interferência. A Camila já recebeu notificação. A presidência da Casa também. Vê, nem pra era pra vocçe saber agora, eu só tô te dizendo, porque achei que você precisava saber agora.

Verena virou o rosto, encarando a amiga.

— É claro que eu preciso saber agora! E se isso respingar no meu mandato?

— Aí, minha cara — Rafaela respondeu, com aquele tom que era metade afeto, metade realismo puro — a gente vai precisar de muito mais do que um parecer técnico pra apagar esse incêndio.

Verena caminhou devagar, como quem carrega chumbo nas pernas. Passou pela amiga sem olhar. Parou à porta do gabinete interno e, antes de entrar, soltou num tom baixo — mas firme:

— Sai.

Rafaela, ainda de pé no meio da sala, vacilou.

— Vê... não é o momento pra você ficar sozinha. Você tá alterada, eu conheço esse seu olhar, e se fizer alguma besteira...

— Eu mandei você sair. — Verena virou, a mandíbula cerrada. — Preciso pensar. Sozinha.

— Porr*, Verena... — Rafaela deu um passo. — Não faz isso com você. Pelo menos me diz o que vai fazer agora. Eu tô preocupada.

— Quer ganhar uma advertência formal por descumprimento de ordem superior? — A voz saiu alta. Cortante. Os olhos faiscando. — Porque é isso que vai acontecer se você continuar bancando a sombra.

Rafaela parou. Respirou fundo. O olhar cheio de urgência.

— Eu só não quero acordar amanhã com a porr* de uma notícia na imprensa dizendo que você surtou, entendeu? — a voz saiu mais baixa, quase um sussurro tenso. — Porque se tiver mesmo alguma chance de que... de que fizeram alguma coisa com aquela menina... a última pessoa que pode perder o controle agora é você.

As duas se encararam por longos segundos. Verena não disse nada. Apenas abriu a porta do gabinete e esperou que Rafaela saísse, trancando por dentro.

Silêncio.

Só o som do próprio coração batendo no peito como um tambor descompassado. Verena afrouxou o colarinho com raiva. O ar parecia rarefeito. Deu três passos em direção à estante. Parou. Voltou. Sentou-se na beirada da mesa e passou as mãos pelo rosto.

Imagens vieram.

O sorriso tímido.
Os olhos castanhos desviando quando ela encarava.
A voz suave dizendo “com licença, deputada”.
As mãos trêmulas segurando os papéis.
O quase-beijo.

E agora... agora a dúvida latej*v* como um soco no estômago.

Alguém tinha tocado nela?
Machucado?
Apossado?

— Filhos da puta... — ela sussurrou, engolindo a raiva.

Foi até a mesa, pegou o celular que sempre guardava ali. Desbloqueou.

O nome estava ali.
“Valentina Moraes”

Verena ficou olhando a tela. Os dedos pairando sobre a conversa.
A última mensagem enviada há quase dois meses

Ela abriu a conversa. Rolou pra cima.
Leu. Releu.
Voltou pro fim.

O botão escrever mensagem piscava. Verena apertou. Os dedos tremiam.

“Valentina, você está bem?”

Apagou.

“Boa noite.”

Apagou de novo.

“Preciso conversar com você”

— Droga. — Ela largou o celular na mesa como se queimasse.

Se levantou. Andou de um lado pro outro.

Queria vê-la. Tocar o rosto dela.
Descobrir com as próprias mãos.
Ela era tão frágil. Tão doce. Tão...

Deu um soco na parede. Ficou ali, encostada, respirando fundo. Tentando não chorar. Não gritar. Não quebrar tudo. O medo do que poderia ter acontecido era maior que qualquer fantasia que já tivesse sentido por Valentina.

Maior que o desejo.
Maior que o controle.

Era pavor.

Pátio da Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — Sexta-feira, 10h37

O sol da manhã batia direto sobre o cimento gasto do pátio, onde grupos de alunos se espalhavam em rodas, lanches improvisados na mão e vozes misturadas em conversas sem fim. O intervalo mal tinha começado.

Valentina estava sentada num canto próximo ao muro, encostada numa das pilastras. Os olhos baixos, os ombros curvados, como se o corpo inteiro estivesse encolhendo aos poucos pra caber num espaço menor que o próprio silêncio.

Carol, em pé ao lado dela, tentava arrancar alguma resposta:

— Valen, fala comigo, por favor. Você nem comeu nada hoje de novo... — sussurrou, a voz embargada pela angústia.

A menina não respondeu. Só mexeu lentamente a cabeça, como se negar custasse força demais. Estava pálida. Mais que nos outros dias. O olhar vazio. Um vazio que assustava. Carol se abaixou, colocando a mão no ombro da amiga com delicadeza.

— Valen…? Valen, olha pra mim...

Foi nesse instante. O corpo de Valentina cedeu de repente, como se tivesse sido desligado.

— Valentina?! — Carol gritou, segurando-a como pôde, o desespero rasgando o peito. — ME AJUDA! ALGUÉM! SOCORRO!!

A queda atraiu os olhares mais próximos. Um dos professores de Educação Física correu, vindo da quadra, junto com dois alunos. Ao mesmo tempo, Dona Dalva, que fazia uma de suas rondas pelo pátio, se aproximou apressada ao ouvir os gritos.

— Meu Deus do céu... — murmurou ela, ajoelhando com dificuldade ao lado da menina caída. — Ela tá gelada! Rápido, vai alguém chamar a Regina. Agora!

Enquanto um dos garotos corria na direção da sala da coordenação, o professor retirou a mochila das costas de Valentina com cuidado, tentando erguê-la de leve.

— Ela desmaiou por completo… Tenta ver se responde. Valentina? Você me ouve?

Carol chorava em silêncio, sentada no chão, agarrada à mão da amiga. Seus olhos pediam socorro, mas a boca tremia demais pra falar qualquer coisa.

Minutos depois, Regina apareceu, apressada, com o semblante tomado pela tensão.

— O que aconteceu?!

— Desmaiou do nada — explicou o professor, enquanto Dona Dalva abanava com um caderno na tentativa de aliviar o calor no rosto da menina. — Tá com a pressão lá embaixo.

— A Sônia tá vindo. Já mandaram chamar — disse Regina, se ajoelhando ao lado de Valentina. Tocou na testa dela, depois segurou o pulso. — Ela tá com os sinais lentos. Precisamos levar pro pronto atendimento.

— Eu ligo pro SAMU? — perguntou Dona Dalva, já puxando o celular.

— Liga — respondeu Regina, firme. — E avisa na secretaria pra buscar os dados dela. Emergência. Contato dos pais. A gente vai acionar agora.

Carol, ainda sem conseguir se levantar, murmurou num fiapo de voz:

— Ela não tá bem faz dias. Eu tentei... tentei falar... ninguém...

Regina olhou pra ela com ternura, mas sem tempo pra palavras longas.

— Você fez certo, Carol. Calma agora. A gente tá com ela, tá bom?

Sônia chegou pouco depois, séria, já recebendo as informações dos presentes. As instruções foram rápidas, profissionais, sem pânico.

— Avisa a Luciana também — disse ela a um dos professores —, e prepara a ficha de acompanhamento. Vamos registrar tudo com clareza. Depois que ela for atendida, vamos entrar em contato com o Conselho Tutelar. Não podemos mais tratar isso só como questão pedagógica. Entenderam?

Todos assentiram. A atmosfera ali já não era de uma simples intercorrência escolar. Era algo maior. Mais fundo. A escola inteira, naquele instante, sentiu. Enquanto isso, Valentina ainda estava desacordada, a cabeça apoiada no colo de Dona Dalva, que rezava baixinho com os olhos fechados, sussurrando palavras quase inaudíveis.

Carol, ainda sentada ao lado, segurava a mão da amiga com força, como se quisesse trazê-la de volta apenas pela insistência do afeto. O barulho do pátio parecia ter desaparecido. O mundo, naquele pedaço de concreto, estava suspenso num silêncio de urgência e cuidado.

Fim do capítulo


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Comentários para 23 - Caindo no Abismo:
Zanja45
Zanja45

Em: 02/06/2025

As coisas saíram de controle de tal forma que está tomando proporções alarmantes. - Envolveu todos nesse emaranhado e sucessão de eventos. - E Verena vai se lascar mais ainda. - Porque ela mandou aquele documento para a escola sem o conhecimento do setor responsável.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 10/06/2025 Autora da história
Oieee. Boa noite!

Ahh a Verena não aprende. A situação pegando fogo, mas ela sempre consegue se complicar mais.


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Sem cadastro
Sem cadastro

Em: 02/06/2025

Valentina desmaiou porque está estagnada tanto fisicamente quanto emocionalmente. E também não está se alimentando de forma adequada. - Esses momentos finais foram densos- Emoções fortes.

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Hanna28
Hanna28

Em: 01/06/2025

Nada que não se possa explicar é exatamente físico. É um grito silencioso e gutural vindo da alma em frangalhos enquanto sangra,sangra,sangra...

Colapso emocional é mais perigoso do que podemos discernir e elaborar uma solução rápida diante desse buraco negro em que somos sugados para um vazio infinito.. Pois nem sempre é questão de ter ou não Deus em nossas vidas e sim,algo enraizado e inteiramente profundo


anonimo2405

anonimo2405 Em: 10/06/2025 Autora da história
Oiee. Boa noite!

Exatamente. Não é porque é psicológico que o sofrimento é menor. E no caso da Valentina, que ainda é muito nova, o perigo é ainda maior. Um momento difícil, que se não lidar com cautela, pode deiar marcas grandes na vida dela.

E já vou me desculpar pela demora rs.


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Hanna28
Hanna28

Em: 01/06/2025

Eita... agora é a hora que tudo escurece e bate a vontade de virar um personagem da história levando visão aos pais da garota sobre o por quê isso está acontecendo.

Sua escrita é tão profunda que nos faz sentir tudo como se fôssemos espectadores de fora apenas assistindo a queda de ambas 


anonimo2405

anonimo2405 Em: 10/06/2025 Autora da história
Oiee, boa noite!

Já vou me desculpar pela demora rs.

Dá uma vontade mesmo de chegar e falar de uma vez só. rssr

Ahhh e obrigada pelo carinho. É muito bom saber que está gostando.



Hanna28

Hanna28 Em: 11/06/2025
Sobre a demora confesso sempre olhar o celular para conferir novas atualizações...kkk
É constrangedor,eu sei!
Mas é que...sua escrita é tão visceral e forte que torna uma tarefa impossível esperar.

Sei que tens sua rotina
É injusto quando sempre tem gente cobrando autores como se fossem robôs e não ser humano


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