Capitulo 27
A chave girou na fechadura com um estalo seco. O som ecoou pela casa como uma lembrança antiga sendo acordada à força. Eu empurrei a porta com o ombro e entrei, carregando uma sacola pequena com o que restava da minha breve estadia no hospital. Um pijama, algumas roupas íntimas e um livro que Luana tinha deixado na mesa de cabeceira. O resto, eu já tinha deixado por lá - ou esquecido de propósito.
O cheiro da casa estava diferente. Não havia mais o aroma do café fresco de manhã nem o leve perfume de manjericão que costumava vir da cozinha depois que Mariana cozinhava. Agora, era só um ar parado, empoeirado. O tipo de silêncio que faz barulho.
Fechei a porta com cuidado, como se não quisesse acordar fantasmas. Mas eles já estavam ali. Em cada canto.
O sofá onde ela me esperava com as pernas cruzadas, sorrindo com aquele olhar enviesado. O avental pendurado na cadeira da cozinha. A caneca azul-claro, esquecida no escorredor, que eu nunca consegui devolver pra ela.
Larguei a sacola no chão e me encostei na parede da sala, sentindo o peso do ar me empurrar para baixo. Respirei fundo. Estar de volta em casa era como entrar numa cápsula de tempo. As coisas estavam iguais - o que tornava tudo ainda mais doloroso.
Caminhei devagar até o quarto. As janelas fechadas, as cortinas puxadas. A cama feita, como deixei antes de ir pro hospital. Sentei na beirada do colchão, encostando os pés no chão gelado. Olhei ao redor, como se esperasse que alguma lembrança me atingisse com força, mas ela não veio com violência. Veio devagar, como um sussurro: o som da risada dela no final do dia, as mensagens deixadas, os livros empilhados no criado-mudo que lemos juntas até adormecer.
Toquei um deles. A lombada desgastada de A insustentável leveza do ser. Mariana odiava esse livro. Dizia que era pretensioso demais. Eu dizia que era exatamente por isso que ele era maravilhoso.
Sorri, triste. Depois fechei os olhos.
Fiquei ali. Só respirando.
Na manhã seguinte, levantei cedo. O corpo doía em silêncio. Não era uma dor que pedia remédio - era aquela que exige tempo, e coragem. Coloquei uma playlist qualquer, só para empurrar o silêncio para o canto da sala. Lavei a louça acumulada, troquei os lençóis, abri todas as janelas.
Deixei a luz entrar. Não porque eu queria, mas porque parecia necessário.
Fiz café, mesmo sabendo que tomaria só meia xícara.
Liguei a televisão, mas não prestei atenção.
Escrevi uma mensagem para Mariana, mas apaguei.
Fiquei assim por horas. Em gestos automáticos, tentando me convencer de que estar viva bastava.
No fim da tarde, saí. Peguei uma jaqueta leve, enfiei os fones de ouvido e fui caminhar. As ruas do bairro pareciam as mesmas, mas havia algo em mim que estava diferente. Como se meu corpo estivesse presente, mas meu coração ainda perambulasse por outros lugares.
Sentei num banco da praça. O mesmo onde, meses antes, Mariana me esperou com um copo de chá quente e uma torta que trouxe do restaurante.
Encostei as costas na madeira fria e fechei os olhos. Não chorei. Já tinha chorado demais. Só fiquei ali, sentindo o vento tocar meu rosto, como se o mundo ainda quisesse me lembrar que existia.
Pensei em Victória. Pensei em Mariana.
E pensei em mim.
Na mulher que sobreviveu às duas.
Ainda era cedo pra falar em recomeço. Mas talvez - só talvez - fosse hora de parar de fugir daquilo que doía. Porque, se não havia mais Mariana, então que ao menos houvesse eu. Inteira ou aos pedaços. Mas minha.
No outro dia, tentei retomar a rotina. Acordei cedo, como sempre fiz, e fui trabalhar. Afinal, os dias que passei ausente haviam deixado rastros e demandas. Peguei o mesmo caminho de sempre, parei no estacionamento do prédio e desliguei o motor.
Eu tentava continuar, mas não sentia isso.
Dei meu melhor sorriso forçado, distribuindo "bom dia" como quem tenta se manter à tona. Me sentei na minha cadeira e soltei um suspiro pesado. Eu não estava bem. E isso ia levar tempo. Eu ia levar tempo.
- Bom dia! - a voz de Luana atravessou a enorme sala, iluminando o ambiente com sua presença habitual. Eu balancei a cabeça, mesmo sem olhá-la.
- Que bom que voltou.
- Bom dia - respondi, sentindo olhares discretos pousarem sobre mim, como se minha dor ainda vestisse o meu corpo.
Tentei me concentrar no trabalho, mas a mente escapava. Não havia foco. Só um esforço desesperado para não naufragar. Eu tinha passado tempo demais no fundo do poço, e uma luz - Mariana - me tirou de lá. Agora, sem ela, eu precisava encontrar outra forma de permanecer na superfície.
No fim do dia, como havia combinado de manhã, fui para a casa da Larissa. Quando estacionei, uma pessoinha correu pelo jardim em minha direção, os bracinhos abertos, o rosto iluminado por um sorriso cheio de dentes miúdos.
- Tia Lena! - gritou Laís, se jogando nos meus braços com força. O corpinho pequeno e suado grudou em mim como uma âncora que me mantinha ali, viva.
- Oi, minha pequena! - falei, sentindo o nó na garganta se desfazer só por um instante.
- Preciso te mostrar uma coisa! - ela pegou minha mão e me puxou para dentro da casa, determinada.
Fomos direto para o quarto dela. Assim que abriu a porta, correu até a cama e pegou um ursinho marrom de pelúcia, com óculos escuros meio tortos no rosto.
- A Tia Mariana que me deu! - disse, orgulhosa, apertando o bichinho contra o peito.
Meu coração parou por um segundo. Aquilo me atravessou com mais força do que eu esperava. Me ajoelhei devagar diante dela, com cuidado para não deixar que a dor transbordasse na frente da criança.
- Ele é lindo, Laís - consegui dizer, a voz baixa, embargada de ternura.
Ela sorriu, inocente, sem saber que aquele ursinho carregava mais do que ela poderia imaginar.
- Ele se chama "Sol", ela veio ontem à noite. Eu tava assistindo desenho e ela falou baixinho com a mamãe na cozinha. Mas depois veio me dar boa noite e deixou o ursinho. Disse que era pra eu cuidar bem dele. - contou, e eu quase ri.
Claro que se chamava Sol.
Porque, por mais que eu estivesse vivendo uma noite longa dentro de mim, alguma parte de Mariana ainda insistia em deixar pequenas luzes espalhadas pelo caminho.
Meu coração parou por um segundo.
-O quê? - minha voz saiu baixa, quase sem ar. Eu me ajoelhei na frente da cama, na altura dela. -A tia Mariana esteve aqui?
Laís assentiu com força, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Eu fiquei em silêncio, sentindo o sangue pulsar nos ouvidos. Mariana esteve ali. Tão perto. E eu... eu não sabia.
Me levantei devagar, acariciando os cabelos de Laís com uma ternura automática, antes de sair do quarto. A raiva e o desamparo se embolando no meu estômago. Encontrei Larissa na sala, sentada com o celular na mão e um copo de vinho ao lado.
-Ela veio aqui? - perguntei, firme.
Larissa me olhou com um susto que tentou disfarçar em vão.
-Helena...
-Não enrola. A Mariana veio aqui, não veio?
Ela respirou fundo, largou o celular no sofá e cruzou os braços.
-Veio. Ontem à noite. Bateu na porta com aquela cara de quem carrega o mundo nas costas. Disse que queria saber como você estava.
-E você achou normal não me contar?
-Ela pediu, Lena. Pediu pra eu não dizer nada. Disse que não queria te atrapalhar, que só precisava saber se você estava bem. E você estava mal, eu achei...
-Você achou que era melhor esconder de mim? - minha voz subiu, sem querer. -Ela passa semanas sumida. Some da minha vida como se eu fosse descartável. E quando resolve aparecer, você acoberta?
-Não fala assim - Larissa rebateu, séria. -Você sabe que a Mariana nunca te tratou como descartável. Ela ficou destruída quando você foi pro hospital. Apareceu aqui parecendo um fantasma. Ela queria saber se você estava comendo, se estava dormindo. Quis saber se estava sozinha. Ela se importa, Lena.
-Se importar não é suficiente. Não depois de tudo.
Fiquei parada no meio da sala, sentindo os olhos arderem. Eu queria gritar, queria dizer tudo o que ficou entalado durante as semanas em que estive longe. Mas, no fundo, eu só queria entender.
-Ela perguntou por mim? - perguntei mais baixo, quase num sussurro.
Larissa se levantou, mais calma, e veio até mim.
-Ela perguntou, Helena. De tudo. De um jeito que doeu em mim ouvir.
Eu respirei fundo, os olhos fechados por um segundo longo demais.
-Ela vai voltar?
Larissa deu de ombros.
-Eu não sei. Mas talvez... talvez ela esteja tentando encontrar um caminho. Só que dessa vez, é você quem precisa decidir se quer que ela encontre.
Fiquei em silêncio, digerindo cada palavra como se fosse pedra. Depois peguei minhas coisas, beijei Laís na testa, e fui embora sem dizer mais nada.
Na volta pra casa, deixei a janela do carro aberta, o vento cortando meu rosto como se pudesse esfriar a confusão que borbulhava dentro de mim.
Mariana ainda estava ali. Nas entrelinhas. Nos silêncios. Nos pequenos gestos que vinham pelos outros. Mas eu não sabia se bastava.
Quando entrei em casa, larguei as chaves no aparador e olhei para a caneca azul-claro no escorredor. Peguei-a com as duas mãos e a levei até a bancada da cozinha. Enchi com água quente, preparei um chá e me sentei no sofá - o mesmo em que ela costumava esperar por mim.
Talvez ela volte.
Talvez não.
Mas pela primeira vez em muito tempo... eu não senti só a ausência.
Senti a possibilidade.
E, por alguma razão, isso doeu mais ainda.
Fim do capítulo
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