Capítulo 2
Eu só fui realmente beijar na boca, beijo de verdade, com língua, boca aberta, três anos depois. Uma colega que passou a estudar comigo disse que tinha um amigo do namorado que queria conhecer alguém. E em quem ela pensou? Em mim.
— Posso passar seu MSN?
Sei lá. Tinha tanta gente adicionada no meu MSN que eu sequer conhecia:
— Pode.
E foi assim que eu comecei a conversar com Fabrício, meu primeiro beijo, meu primeiro namorado, e seria meu primeiro sex*, se dependesse dele. Ele era dois anos mais velho. Morava na cidade vizinha. Vinha me ver todo fim de semana. Tinha um carro que era, na verdade, do avô. Mas ele dizia que era dele. Sexta, sábado e domingo, sem falta. E aí nós ficávamos sentados no portão da minha casa. Abraçados. Beijos molhados. Beijos que não me faziam sentir nada. Mas na época eu achava que faziam sim.
Sete meses, foi o tempo do nosso namoro. E foi quando eu comecei a perceber que talvez olhasse para as outras meninas com mais do que admiração. Desejo. Acho que me apaixonei por uma das minhas amigas, mas na época não entendi. Achei que era só um apego da amizade exagerada da adolescência.
Voltei com Fabrício. Terminamos de novo. E nesse vai e vem foi quando um mundo novo se abriu para mim. Comecei na internet. Histórias de mulheres que amavam mulheres. Achei várias. Devorei cada uma delas, de madrugada, enrolada na coberta e sentada em frente ao computador velho que meus pais tinham me dado. Era usado. Um daqueles de tubo, branco meio encardido. Mas eu lembro exatamente da minha reação quando, um certo dia, cheguei em casa, abri a porta do meu quarto e ele estava lá, montado em cima de uma mesa improvisada, com a cadeira da cozinha na frente. Algumas amigas tinham computador — e internet — em casa. Eu e algumas outras ainda vivíamos de lan house. Eu estagnei na porta do meu quarto. Dei um tranco mesmo. Não estava acreditando. Um computador! Meu pai ficou no quarto comigo enquanto eu ligava. Não tinha internet.
— Vou pesquisar os preços…
Ele disse. Era caro. Para nossa realidade, era um gasto — naquela época — supérfluo. Lembro que ficava horas jogando “campo minado” ou só abria o paint e usava todas as ferramentas possíveis para criar qualquer desenho sem nexo. Até me cansar e desligar o meu computador. Meu computador.
Mas depois a internet veio. Lenta! Muito lenta. Mas eu não me importava. Era incrível ficar conversando com meus amigos, com quem eu tinha estado o dia todo, mas agora ali, online. Perder horas baixando músicas para colocar no meu MP3 — à pilha!
E foi aí que comecei a procurar sobre lésbicas. O Google. Ele me ajudou muito. Inevitavelmente cheguei em vídeos pornôs de sex* entre mulheres. Na época me pareceu um oásis no meio deserto. Aquilo era possível. Duas mulheres. Claro que na época não tinha a menor noção de como pornografia pode ser prejudicial, muito menos do que é a indústria pornográfica. Eu apenas assistia. E aí minha vida sexual — que se resumia em masturbação, sem penetração — tomou um outro rumo. Antes eu fazia só pelo prazer. Não pensava em nada, só gostava da sensação. Mas depois… Imagens, muitas imagens de mulheres, de coisas que eu tinha visto na internet, de cenas que minha imaginação tinha criado ao ler histórias. E era muito melhor. Fazia sentido. Mas só enquanto eu fazia. Depois?
Culpa.
Muita culpa. Por me masturbar. Por pensar em mulheres enquanto fazia isso.
Eu fazia catequese. Era quase uma extensão do nosso currículo escolar. Todo mundo fazia catequese, desde criancinha. Exceto quem era crente. Era assim que a gente chamava qualquer pessoa que fosse de outra igreja que não a católica.
Fazendo uma conta rápida: eram mais ou menos uns doze anos de catequese. Desde pintar desenhos de personagens da Bíblia, passar pela primeira comunhão, até fazer a crisma. Quando já tínhamos idade, sempre tocavam no assunto: masturbação é pecado. Claro, aquele monte de adolescente exalando hormônio. Mas não podia se masturbar. Era pecado. Acredito que não fazia muita diferença para os meninos, eles faziam do mesmo jeito. Para eles sempre tinha sido natural, não só fazer, mas falar sobre.
Agora, para nós, meninas? Tabu. Nenhuma amiga minha tocava nesse assunto. E quando falavam, era com nojo. Então eu também ficava quieta. Falava para mim mesma que nunca mais faria. Mas passavam uns dias e eu fazia de novo. E aí a culpa.
Quando voltei para minha sala, já estavam todos lá. Inclusive Diego. O único homem que trabalhava no meu setor. Gay! Graças a Deus, gay! Tudo o que eu menos queria era ter que conviver com um exemplar de Cláudio dentro da mesma sala que eu, oito horas por dia.
— Bom dia, Ciça…
Respondi mais um bom dia. Eu gostava dele. Era um rapaz delicado, mas ao mesmo tempo másculo. Não sei bem explicar. Se o visse de longe, diria que era hétero. Mas se trocasse meia dúzia de palavras com ele saberia que era gay. Discreto, assim como eu. Nós nos tornamos amigos. Não melhores amigos, mas amigos, para além do trabalho. Eu sabia dele e ele sabia de mim. Conversávamos sobre ser LGBT+ em uma cidade pequena. Pequena não, minúscula! Sem exagero. Em torno de seis mil habitantes. Contando a cidade e as localidades rurais.
Hora do almoço. Restaurante? Marmita? Eu trabalhava a três minutos de casa. Bloqueei o computador, peguei minha bolsa — bem pequena, com a alça grande, não tipo bolsa de mulher — e fui para casa. No caminho mais: “Oiii” “Ciça, tá boa?” “Manda um beijo pro seu pai e pra sua mãe” “Tudo bem, querida?” E claro, seu Manoel. Se eu passasse por ali trinta vezes ao dia, nas trinta nós iríamos nos cumprimentar.
Abri o portão de casa que fazia um barulho, anunciando que alguém estava entrando. Minha tia apareceu na janela:
— Tem comida lá, Ciça?
Eu morava na casa dos fundos. Era um único terreno que um dia foi dos meus avós. Meu pai construiu a casa dele nos fundos, quando se casou com minha mãe. Era a minha casa. A casa que eu sempre tinha morado. A minha vida inteira. A casa da frente ficou com minha tia quando meus avós faleceram. E para chegar na minha casa, precisava passar pelo corredor ao lado da dela.
— Tem sim, tia.
Eu morava sozinha há uns três anos. Meus pais? Se aposentaram, construíram um sítio num terreno que compraram, numa cidade próxima, e se mudaram para lá. Eu achei ótimo. Não porque fiquei com uma casa só pra mim. Isso também, não vou mentir. Mas eu me dava bem com eles, sempre fomos uma família tranquila. Eu só ficava feliz de vê-los curtindo a vida depois de aposentados.
Passei pelo corredor, subi as escadas e entrei em casa. Deixei a bolsa no sofá e fui para a cozinha. Eu sabia cozinhar? Bom, eu não passava fome. Já tinha o arroz e o feijão na geladeira. Coloquei as panelas no fogão para requentar. O peito de frango eu tinha deixado pronto na véspera. Era isso. Ah, e o tomate. Tomate era ótimo, sempre um complemento prático e fácil. Era só lavar e picar.
Depois que almocei, preparei um sanduíche para levar e comer na hora do lanche. Ainda tinha quinze minutos antes de voltar. Deitei no sofá, peguei o celular e fiquei pulando de uma rede social para outra. Lá fora, o único barulho era dos passarinhos. Ficavam numa árvore em frente minha casa. Muitos, muitos mesmo. De vez em quando passava um carro ou uma moto. Àquela hora o barulho das crianças saindo da escola, os ônibus escolares que levavam os alunos para a zona rural, os pais buscando os filhos, já tinha acabado.
Dez minutos. Levantei, escovei os dentes, peguei a bolsa, o sanduíche e voltei. O mesmo caminho. Seu Manoel. As mesmas pessoas que via todos os dias.
No trabalho, minha rotina, nenhum problema, nenhuma urgência. Cinco para as cinco. Jussara e Gabriela já tinham ido embora. Diego se despediu de mim. Eu esperei. Cinco em ponto. Assinei minha saída, desliguei as luzes e tranquei a porta.
— Tchau…
— Até amanhã, Ciça.
Uma pessoa ou outra que encontrava também saindo.
E aí o mesmo caminho de volta para casa. Pessoas que eu via todo dia. Seu Manoel. Minha tia na calçada. Entrei no portão. Cheguei em casa. Direto para meu quarto, tirei a roupa e deixei em cima de uma cadeira. Até sexta-feira, ali ia se formar um pilha de roupas usadas. Precisava me exercitar. Preguiça. Muito a contragosto abri um vídeo qualquer no YouTube. Polichinelo, abdominal, flexão. Já estava cansada. Peguei uma barra com peso, pequena, que tinha comprado na internet. Ali no meu quarto mesmo, fazia exercícios olhando os vídeos. Ótimo. Por hoje tá ótimo. Academia? Tinha uma na cidade inteira. Não ia porque não gostava do ambiente. As mesmas pessoas, todo mundo se conhecia. Às vezes eu gostava de caminhar no parque municipal. Não era bem um parque, era só uma área arborizada onde as pessoas iam caminhar, correr, levar as crianças para brincar… E nos fins de semana tinha um bar que abria à noite. Há duas semanas eu não ia caminhar. Semana que vem eu volto, sem falta.
Depois fui tomar banho. O banho da noite era um pouco diferente. Quando não precisava lavar os cabelos, tomava banho no escuro. Breu mesmo. Eu amava. Ah, e música. Era relaxante. Saía e colocava meu roupão. Desbotado. Preciso comprar um novo. Depois os pijamas. Pijamas seis e meia da noite? Sim, por que eu colocaria outra roupa? Não iria sair. Numa terça-feira, fazer o que naquele lugar? Não tinha nada. Nada mesmo. Era melhor colocar meus pijamas, aí colocava alguma série ou filme. Lia alguma coisa. Até chegar a hora de jantar. O mesmo cardápio do almoço. Comia sozinha na mesa. De companhia só o celular, que deixava rodando algum vídeo. Às vezes chegava notificação de mensagem de algum amigo. Nada importante, uma pergunta, uma fofoca…
Depois que eu lavava a louça, iria de novo para o quarto. Cama. Assistir alguma coisa. Lá fora silêncio. Nove e meia da noite, um silêncio. Às vezes um cachorro latia. Uma moto acelerava. E mais silêncio. Mas não estava reclamando. Tinha me acostumado e até preferia assim.
Não sei que horas exatamente peguei no sono. Meu pulso vibrou. O despertador do relógio. Adiei algumas vezes até sentar na cama. E de novo a mesma rotina. Todos os dias. Em casa, no caminho e no trabalho.
No fim do expediente, tudo igual. “Tchau, Ciça!” Tranquei a porta. Saí na rua e me lembrei, precisava passar no mercado. Uma pequena mudança na rotina que acontecia de vez em quando. Às vezes precisava passar no mercado, ou na farmácia… Uma mudança. Precisava passar no mercado, não ia direto para casa.
O mercado? O único da cidade. Juro. Era mais para um armazém. Não era grande, as prateleiras ficavam amontoadas perto demais. Sempre tinha caixas — de produtos que chegavam — espalhadas pelo chão. Mas desde que eu me lembro, era igual. As coisas ficavam no mesmo lugar. Eu já sabia de cor. Qualquer produto, eu sabia onde ficava. Acho que conseguiria me guiar de olhos fechados ali dentro.
— Oi, Ciça!
Respondi sorrindo. Uma pessoa que eu sabia quem era, sabia o nome, sabia onde morava, sabia quem era a família.
Ovos. Eu precisava comprar ovos… E mais o que? Fui passando pelas prateleiras. Peguei alguns biscoitos. Depois fui até os ovos. Tinha uma moça do lado de dentro de um balcão, pesando batatas. Ela não trabalhava ali, era cliente. Mas era assim, você mesma podia pegar, ensacar, pesar… Ela mesma imprimiu a etiqueta da balança, colou na sacola e gritou para a atendente — que realmente trabalhava ali:
— Deu seis e trinta. Anota pra mim.
E saiu com a sacola de batatas. Não precisou falar seu nome. A atendente sabia. Eu sabia. Acho que todo mundo dentro daquele mercado sabia.
Peguei os ovos. Não estava com cesta. Estava tudo na minha mão, a cartela de ovos e os biscoitos em cima. Me virei para ir em direção ao caixa. O único caixa. Por isso geralmente tinha uma pequena fila.
E foi aí que eu a vi.
Naquele momento a única coisa que senti foi curiosidade. Como sempre acontecia quando chegava alguém de fora na cidade. Todo mundo sabia que era alguém de fora. Por quê? Porque a gente conhecia todas as pessoas que moravam ali.
O cabelo foi a primeira coisa que notei. Tinha mechas por baixo, meio desbotadas. Acho que algum dia foram coloridas. Roxo, talvez. Mas agora estavam desbotadas, quase um cinza. Depois olhei para as tatuagens. Muitas. Em todas as partes do corpo que estavam descobertas. E eu podia apostar que as partes em que a roupa não permitia ver, também estavam tomadas de desenhos, frases, formas. E ainda tinha o piercing. No septo. Eu achava lindo. Já tinha pensado em fazer, mas tinha nervoso só de pensar. Uma agulha atravessando minha carne. Não iria conseguir. Tatuagens eu tinha. Treze, exatamente. Mas, diferente da moça que eu analisava sem perceber, eram pequenas. E localizadas em lugares estratégicos, onde a roupa poderia sempre cobrir. Por quê? Bom, quando eu ainda era adolescente tinha uma história de que, quem tinha tatuagem, não podia assumir cargo público. Que não podia trabalhar em um monte de profissão e etc. Meus pais eram contra. Diziam que enquanto eu fosse menor de idade não poderia fazer. Quando fiz dezoito anos, juntei um dinheiro e fiz a primeira. Não foi escondido, eu falei para eles. Nem foi um ato de rebeldia. Eu realmente queria fazer.
A moça passou por mim, ao meu lado, indo na direção contrária. Eu a olhei. Ela não me olhou. Acho que sequer notou minha presença. Continuei parada na fila. Olhava para trás de vez em quando, tentando vê-la de novo. E percebi imediatamente que eu não era a única curiosa. Algumas pessoas cochichavam:
— Quem é essa?
Não consegui ouvir nenhuma resposta. Mas, se a moça não estivesse só fazendo uma breve passagem, eu logo saberia. A fofoca se espalharia. A identidade de ninguém ficava oculta ali.
Uns anos atrás, chegou uma família. Tinham uma tia que morava ali. Mas eles nunca tinham vindo sequer visitá-la. E aí, de repente, vieram para morar aqui. Um marido, a esposa e dois filhos, crianças. Ficaram alguns meses, mas quase não eram vistos. As crianças iam de casa para a escola e da escola para casa. Aí começaram as fofocas: eles vieram fugidos. Fugidos de quê? Ou de quem? Várias histórias. Meses assim. Até descobrirem que o casal tinha uma empresa de cerimonial, aqueles de casamento, aniversário… e deram vários golpes. Recebiam e não entregavam o serviço. Passou até na televisão. Mas ninguém aqui fez nada, ninguém os dedurou, ninguém os destratou. Só tinha a fofoca. E aí, tão de repente como chegaram, foram embora. E nunca mais vimos.
Às vezes penso que essa cidade é para-raio de maluco. Aparece cada coisa aqui. Gente estranha, gente fugindo da cidade grande, gente com um histórico horrível.
Será que era o caso da moça? A moça das tatuagens. E do piercing.
Chegou minha vez na fila.
— Tudo bem, Ciça? Hoje tá quente, né?
Deyse, a caixa do mercado, que também era a dona. Ela e o marido. Herdaram do pai dele.
— Pois é, esquentou bastante…
Ela não falava o preço total da minha compra. Eu mesma olhava na tela do computador. Assim como eu mesma empacotava os ovos e os biscoitos:
— Passa no débito pra mim?
A voz era excessivamente alegre, que ela provavelmente adquiriu com os anos trabalhando com comércio:
— Passo, claro!
Aproximei meu relógio da maquininha de cartão. Bip.
— Obrigada!
Ainda olhei para trás uma última vez, tentando ver a moça misteriosa, mas ela não estava no meu campo de visão. Provavelmente estava entre as prateleiras.
Virei para frente de novo e caminhei até a minha casa, pelo mesmo caminho de sempre.
Fim do capítulo
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