Capítulo 3
Acordei com uma vaca berrando. Uma porr* de uma vaca. Levantei completamente irritada, fui até a janela da cozinha e olhei para cima. A minha vista era um pasto. Cara, um pasto! Inacreditável. Eu riria se não estivesse tão… Derrotada, talvez. A vaca continuou berrando. Sozinha lá naquele morro.
Já que já estava acordada, iria começar meu dia. Tirei a roupa toda no quarto, andei nua pela sala, corredor, até chegar no banheiro. Entrei no chuveiro de uma só vez, molhei os cabelos, os jogando para trás. Lavei meu rosto, depois passei o shampoo. Esfreguei meu couro cabeludo com a ponta dos dedos, em todas as partes. Minha mente começou a divagar. Sempre tinha esse momento do banho em que começava a pensar demais. Sobre tudo. Sobre minha vida. Puta que pariu, o que vai ser da minha vida? Comecei a sentir minhas unhas arranharem minha cabeça. Estava fazendo força demais.
Enxaguei o cabelo, peguei o condicionador. Passei pelo comprimento dos fios, até a ponta. E já estava pensando de novo. Eu tinha voltado. Tinha voltado para aquele fim de mundo. O que eu iria fazer ali? Em todos os aspectos da minha vida, aquele lugar não se encaixava.
Eu era artista. Pelo menos tentava me considerar assim. Sempre que perguntavam, era minha resposta. “O que você faz da vida, Marcela?” “Ah, eu sou artista… Artista independente.”
As reações à minha resposta variavam. Dependia de quem estava perguntando. Se fosse uma pessoa que eu conhecesse na rua, na praia, ou em festinhas de amigos, geralmente responderiam “Pô, que legal!” “Sério? O que você faz?” Eu responderia: “Um pouco de tudo, sabe? Mas principalmente pintura e fotografia.” “Já quero ver suas coisas”, eles responderiam. Agora, se fosse alguém mais velho, mais careta, me olharia estranho, balançaria a cabeça e diria “Ah sim…”.
Foi mais ou menos o que aconteceu com meus tios. No começo, essa tinha sido a reação. Depois ficaram preocupados. “Isso dá dinheiro, Marcela?” Dava? Bom, não o suficiente. Senão eu não estaria ali, no apartamento que era deles, que eles deixaram de alugar — e ganhar um extra — para que eu passasse a morar. Apartamento porque não era casa. Era um prédio pequeno de três andares e eu morava no segundo.
Mas eu já tinha um plano, que comecei a bolar na longuíssima viagem de ônibus que fiz até ali. Parecia que não iria chegar nunca. A última rodovia até chegar na cidade era quase infinita, o ônibus subia, subia, subia… a ponto de eu pensar que chegaríamos no céu.
Não iria me abater. Aquilo tudo era provisório. O apartamento, meus tios morando a algumas casas de distância de mim, eu de novo naquela cidade péssima. Fim de mundo. Aliás, estava bem pior do que eu me lembrava. A última vez que estive ali foi há doze anos, quando minha avó morreu. Foi um único dia, com meu pai. Chegamos quase na hora do sepultamento. Depois paramos na casa da minha tia, uma xícara de café, e fomos embora. Mas antes disso, bem antes, eu tinha morado ali. Por pouco tempo, é verdade. A raiz da família do meu pai era desse lugar. Mas ele saiu para fazer faculdade e nunca mais voltou. Conheceu minha mãe, se casaram, eu nasci. Isso tudo na Capital… Rio de Janeiro. Mas, quando eu tinha acabado de completar quatro anos, meu pai foi demitido do Banco. O Banco acabou, na verdade. Fez uma reformulação, sei lá. Ficamos alguns meses no Rio, vivendo com o dinheiro da indenização que ele recebeu. Depois meu pai percebeu que, se não arrumasse logo alguma coisa para fazer, o dinheiro acabaria. Isso foi o que ele me contou, pois eu não lembro, óbvio. E aí ele e minha mãe tiveram a brilhante ideia de vir para cá. Nessa cidade. Onde meus avós e minha tia moravam.
Morei aqui dos meus quatro aos sete anos. Não tenho muitas lembranças do lugar. Uma imagem ou outra da casa dos meus avós. Eu brincando com minha prima. No recreio da escola. Mas tudo muito borrado. Quando minha mãe morreu, eu tinha dezessete anos. Meu pai uma vez falou comigo sobre a possibilidade de voltar a morar aqui. Quase surtei. Eu adolescente, sair do Rio de Janeiro para morar em uma roça? Preferia morrer. Ele percebeu que eu não tinha gostado nem um pouco da ideia. Na verdade, tinha odiado. E nunca mais falamos sobre aquilo. E agora, olhe só. Aqui estou eu.
Desliguei o chuveiro, me enrolei na toalha, enxuguei os pés no tapete e saí assim para o quarto. Quando passei pela sala, tive a impressão de que alguém na rua olhava em minha direção. Pronto, não posso mais nem andar pelada em casa. Fui para o quarto e fechei a janela, que dava para rua. Aí sim fiquei completamente nua. Estava calor. Iria deixar que meu corpo secasse naturalmente.
Mas meu plano… era simples. Eu ficaria ali por alguns meses, produzindo, criando, ofereceria meus serviços de fotógrafa. Juntaria um dinheirinho e pronto. “Obrigada, tia. Está tudo bem. Vou voltar pro Rio.” E pronto. Era isso. Talvez um seis meses seriam suficientes.
Depois que já estava praticamente seca, coloquei uma roupa. Uma calça e uma blusa velhas e largas. Fui para a varanda, com uma tela de tamanho médio e minhas tintas. As que consegui trazer do Rio. No dia anterior tentei comprar mais algumas, mas não tinha. Em lugar nenhum. É óbvio que não tinha. Então iria me virar com aquelas mesmos. A varanda era de frente para a rua. O silêncio era muito estranho para mim. Passava um carro a cada, sei lá, cinco minutos. Eu ouvia mais o som da natureza do que da cidade, das pessoas. Assim era melhor para me concentrar e trabalhar, certo? Errado. Já estava acostumada com a barulheira da cidade grande, o silêncio me atrapalhava.
Duas pessoas passaram na calçada, do outro lado da rua. Olharam na minha direção sem nenhuma cerimônia. Olharam mesmo, sem disfarçar. E depois me cumprimentaram. Um aceno de cabeça com um “oi” falado meio cortado, como se fosse “ooo”, o “i” sumindo. Também meneei a cabeça. Não fazia ideia de quem eram. Assim como muito provavelmente eles também não me conheciam.
A atitude não me surpreendeu. Já tinha notado, no dia anterior ao ir no mercado, todo mundo me olhando. Como se eu estivesse cagada. Até verifiquei minha roupa, meus cabelos. Todos me olharam. Alguns abertamente. Outros mais disfarçadamente. Provavelmente não estavam acostumados a ver uma pessoa como eu. Cabelos ondulados desalinhados, mechas pintadas. Tatuagens. Piercing.
— Marcela!
Ouvi a voz que só podia ser da minha tia. Levantei do chão e me apoiei na sacada. Ela estava na minha calçada, olhando para cima, com uma mão sobre os olhos, tentando fazer sombra para enxergar.
— Vem almoçar…
Continuou gritando da rua. Campainha? Interfone? Não tinha. Não vi outra alternativa a não ser gritar de volta:
— Já preparei meu almoço, tia. Pode ficar tranquila.
Como eu já imaginava, ela não ia ficar tranquila:
— Vai comer o que? Tem verdura aí? Legume?
Não tinha.
— Tem sim! Não se preocupa não.
Depois de mais algumas perguntas ela finalmente desistiu. E saiu andando por alguns metros abaixo, até chegar na casa dela, do outro lado da calçada. Eu vi quando abriu o portão e entrou. Voltei para minha pintura. Não estava com fome ainda. Olhei a hora no meu celular. Dez e cinquenta e quatro. Almoçar às dez e cinquenta e quatro. Era por isso que não estava com fome. Mas ali era assim, acordavam cedo, almoçavam cedo e dormiam cedo. Pelo menos na casa da tia Rita era assim.
No fim da tarde, minha tela já estava bastante adiantada. Ainda longe do que eu queria, mas estava no caminho certo. Ouvi meu celular tocar, me estiquei para pegá-lo em cima da mesinha da varanda:
— Oi, tia Rita.
— Marcela, vem tomar um cafezinho. Acabei de fazer. Tem pão de queijo… Érica tá aqui com Luize.
Bom, um café e pão de queijo não faria mal a ninguém. A luz do dia também já tinha quase ido embora, não conseguiria pintar por muito mais tempo. E não podia fazer tantas desfeitas com tia Rita, ela estava sendo ótima comigo.
Desci do jeito que estava mesmo, só calcei um chinelo. Durante o curtíssimo trajeto até a casa da minha tia, passou um carro por mim. A pessoa virou tanto a cabeça para me olhar que achei que bateria o carro.
Abri o portão e subi direto. Ninguém aqui usa campainha? Eu que não iria ficar gritando no meio da rua. Quando cheguei na porta da cozinha já pude ver minha tia, Érica, minha prima, e a filha dela de… Quantos anos? Acho que quatro. Ou cinco. Beijinhos para lá, beijinhos para cá. “Como você está?” Conversamos por alguns minutos até meu tio chegar. Tio porque era casado com tia Rita. Que era minha tia de verdade. Eu gostava dele. Sempre brincalhão, sempre bem-humorado.
— Oi, tio Nando…
O nome dele era Fernando? Hernando? Não. Era Everaldo. De onde tinha saído o “Nando”? Não faço a menor ideia.
Ainda fiquei um tempo com eles, brinquei com Luize, conversei com Érica:
— E o Henrique?
O marido dela. Coitada da minha prima. Mesmo de longe eu sabia que ele era péssimo, tanto como marido quanto como pai. Mas ela largava dele? Nunca. Acho que ela, literalmente, preferia morrer.
— Tá lá no sítio mexendo com os bois.
Não perguntei mais nada. Só tinha perguntado por educação mesmo. Que se foda o Henrique. Só o vi pessoalmente no velório da minha vó, quando ele e Érica eram apenas namorados. Poucas horas foram suficientes para perceber como ele a tratava. E depois meu pai soltava alguma reclamação ou outra que tia Rita fazia por telefone. E aí ela engravidou. Eles foram morar juntos. E uns anos depois decidiram que iriam se casar. Ou melhor, minha prima decidiu. Eu não fui convidada. Talvez se meu pai ainda estivesse vivo, me chamariam junto com ele. Mas ele tinha falecido alguns meses antes. Minha tia me ligou pedindo milhares de desculpas, mas que a lista de convidados estava absolutamente seleta e tinha sido feita pelos noivos. Ela não poderia intervir. O casamento seria numa terça-feira, duas horas da tarde. Eles queriam se casar igual aos famosos, numa terça à tarde? Os ricos e herdeiros? Não. Claro que não. Tinha sido assim porque Henrique disse que se fosse de outra forma, não casaria. Queria a igreja o mais vazia possível. Sem muita pompa. E minha prima, coitada, que tinha o sonho de casar na igreja, abriu mão de muitas coisas. E casou daquela forma.
Eu achava um absurdo. Mas quem era eu para falar alguma coisa? Eu que vivia falando para os quatro ventos que achava a instituição casamento heteronormativo um horror. Eu que choquei a família toda ao assumir um namoro com uma menina, quando tinha quinze anos.
— Mauro, isso é falta de Deus. Vocês têm que começar a ir à igreja.
Eu ouvi um dia minha avó ao telefone com meu pai, ouvindo da extensão que ficava na cozinha, enquanto ele estava na sala. A partir daí meu pai não contava mais nada para minha família do interior. E não sei se por conta disso eles acharam que eu tinha “me curado” do que eles consideravam doença, ou se eles pensaram que tinha sido só uma fase, pois no velório da minha avó, tia Rita fez a clássica pergunta “e os namorados, hein, Cela?”
Eu ia responder. Ia falar que, na verdade, tinha uma namorada. E ela só não tinha ido conosco porque meu pai me pediu para não criarmos problemas num momento delicado como aquele. Respirei fundo e só respondi “não tenho namorado, tia.”
Quando me levantei e entreguei Luize para Érica, para me despedir, Evandro chegou. Meu primo. O filho caçula dos meus tios. Nos cumprimentamos rapidamente. Ele com um capacete na mão, foi direto para o quarto. Tinha vinte e três anos, morava com meus tios, fazia cursinho. Mas eu desconfiava que ele só enrolava, não tinha pretensão nenhuma de entrar numa faculdade. Queria mesmo era andar de moto o dia inteiro. A moto que meus tios tinham dado de presente quando ele completou dezoito anos. Depois fiquei sabendo que Evandro fazia uns bicos de entregador de lanches. Mas não colocava um real dentro de casa. Pelo contrário, ainda ganhava mesada.
Me despedi e Érica disse que aproveitaria a carona. Que carona? Eu estava a pé! Mas era essa carona mesmo, até a rua, depois ela seguiu para a casa que ficava em outra rua. Era uma construção que tinha feito junto com Henrique, em cima da casa da mãe dele.
Quando minha tia me ofereceu o apartamento que eu agora morava, questionei: “Érica não mora lá?” Não morava. Henrique não quis. Acho que ele não queria ficar tão perto dos sogros.
Cheguei em casa e fiquei parada no meio da sala. Eram cinco e quarenta da tarde. O que eu iria fazer? Se estivesse no Rio, sairia para dar uma volta. Andar na orla. Caminhar em algum parque. Mas ali, não tinha o que fazer. Eu vou enlouquecer nesse lugar, tenho certeza. O céu começou a escurecer. Fiquei um tempo vendo vídeos no meu notebook, sobre técnicas de pintura. Levantei algumas vezes, fui até a cozinha, bebi uma água. Fiz xixi. Uma hora tinha se passado. Me pareciam oito. Fui tomar banho e tirar a tinta que ainda tinha no corpo. Dessa vez um banho rápido, para não dar tempo de pensar muito. Jantei. Deitei. Oito e meia da noite. Caralh*. Coloquei qualquer coisa para assistir no streaming e assim fiquei por mais longas horas. Era apenas meu terceiro dia naquele lugar.
Eu vou enlouquecer.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: