Capítulo 4
Sexta-feira. Levantei me arrastando da cama. Banho demorado. Como eu queria não ir hoje. Depois que me vesti, pegando uma calça e uma blusa sem pensar muito, tomei meu café. Meio copo de leite. Escovei os dentes. Parei em frente ao espelho para passar o hidrante. Estou parecendo um saco de batatas com essa roupa. Mas não iria trocar. Era um daqueles dias que eu não queria nem sair para trabalhar, não podia me exigir de ainda ter que me vestir bem.
Depois do hidratante, comecei a passar o protetor solar. Passei os dedos pelas linhas de expressão que já marcavam minha testa. Não que eu parecesse uma velha, até me achavam mais nova do que eu realmente era, mas os sinais da idade já apareciam. Trinta e dois anos! Fiquei me observando por alguns minutos. Eu era bonita? Sem falsa modéstia. Eu não era linda. Assim como também não era feia. Era normal. Uma pessoa que não se destaca em uma multidão, nem para melhor nem para pior.
Na adolescência, além de Ian, sabia de outros meninos que tinham uma quedinha por mim. Eu era uma adolescente considerada padrão para a época. Assim, bonitinha. Pequena, delicada. Mas aí os anos foram passando, minhas amigas foram ganhando corpo e eu continuei como na adolescência. Acho que só depois dos meus vinte e cinco anos comecei a “encorpar” um pouco.
Lembro que na época tinha uma conversa de que a menina só “ganhava corpo” depois que trans*va pela primeira vez. E aí sempre que alguma começava a se desenvolver — o que era o natural de acontecer, pelo amor de Deus, cadê as aulas de biologia? — começavam os cochichos de que ela não era mais virgem.
Perder a virgindade? Só depois do casamento. Claro, aqui nessa cidade que tinha os pilares da sociedade baseados na religião — cristã, obviamente — e quinze anos atrás… Mas isso também só se aplicava às meninas. Menina tem que ser comportada, casta, pura. Só que, pelo menos no meu círculo de amizade, ninguém casou virgem. As que casaram. Até porque isso era de uma hipocrisia sem tamanho. Virgindade se resumia ao hímen da mulher.
Se para mim foi toooodo um processo para dar o primeiro beijo, para trans*r deve ter sido bem pior, certo? Errado. Porque minha primeira vez foi com uma mulher. Talvez meio tarde. Depende do ponto de vista. De uma forma geral, fazendo uma média, acho que foi tarde.
Eu tinha dezoito anos. Tinha uma menina que conheci jogando futebol. Eu fazia parte do time da cidade e a gente sempre participava de campeonatos, ou jogos amistosos que aconteciam na região. Ela era de outro time. De outra cidade. Nos encontramos em várias oportunidades. Nos intervalos entre um jogo e outro as meninas sempre conversavam, faziam amizade. Trocamos número de telefone. Conversamos por semanas por SMS. Era um flerte meio velado. Até que em um fim de semana ela veio para a minha casa. Nos beijamos no primeiro dia, sentadas na minha cama. Eu completamente sem jeito. Parecia que iria beijar pela primeira vez de novo. Só que, diferente de como tinha sido naquela conversa com Ian, agora eu queria o beijo. Queria para caralh*. Meu corpo inteiro queria. Minha cama ainda era de solteiro. Ela dormiu em um colchonete no chão. Na segunda noite, assim que apaguei a luz, pulei para a cama dela. Literalmente me joguei. E aí fizemos amor. Foi ótimo. Eu ainda totalmente inexperiente, fui conduzida por ela e pelo meu desejo. Completamente diferente do que tinha acontecido antes, com Fabrício. Com ele foram várias e várias oportunidades, ele chegou a me levar até um motel. Mas eu sempre recuava, sempre inventava uma desculpa.
Eram quatro da tarde quando recebi uma notificação de mensagem. Grupo dos amigos. “Gigante hoje?” O bar do gigante era o melhor lugar da cidade, em termos de bar. Era um pouco afastado do centro, no parque, em um lugar ao ar livre, tinha opções variadas de bebida e porções. O que seria o básico de qualquer bar. Mas não aqui. Aqui isso era muito. Os outros bares só ofereciam duas opções de marca de cerveja. Duas opções de porções. E de brinde um péssimo atendimento.
O pessoal foi confirmando. Eu fiquei pensando. Não sei se estava animada para ir. Sexta-feira. Acabei confirmando também. O que não significava que eu realmente iria.
Mas acabou que eu fui. “Alguém quer carona?” Era costume que quem fosse de carro oferecesse. E eu iria. Não era longe. Mas para nós que tínhamos tudo muito perto, um pouquinho de distância já era longe. Entrei no carro. Fiz a ronda pelas ruas, buscando os dois amigos que aceitaram a carona.
O bar estava cheio. Cheio para nossos padrões. Umas trinta pessoas, talvez. Isso significava bar cheio aqui. “Oi” para lá, “oi” para cá. Todo mundo se conhece, todo mundo se cumprimenta. Alguns outros amigos já tinham chegado e estavam sentados. Debrucei no balcão:
— Gigante, me arruma um copo, por favor?
Ele trouxe. Aqueles copos de bar, com a lavagem duvidosa.
— Vai beber hoje, é?
Eu sorri:
— Ah, já tô aqui né…
Ele riu de volta. Era um homem de uns quarenta e poucos anos. Alto, certo? Claro que não. Arriscava dizer que era mais baixo que eu. Um baixinho atarracado. Um barrigão na frente do corpo. “Gigante” tinha sido um apelido irônico. O nome do bar era simplesmente “Bar do Ramalho”, que era o sobrenome dele. Mas claro que não pegou. Não demorou nada para virar o bar do gigante. E ele não teve o que fazer, a não ser se render.
Sentei na mesa dos meus amigos. O assunto era política. Assunto recorrente com as eleições a menos de um mês de acontecer. Enchi meu copo. Para ser bastante sincera, não gostava de cerveja, mas bebia para socializar. Enrolava bastante para beber e no fim da noite geralmente só tinha tomado uns três copos.
— O que adianta trocar o prefeito e a Câmara toda ser da oposição?
Política, sempre uma discussão acalorada. E política no interior tinha suas peculiaridades. Candidatos a prefeito, só dois. Aí virava um Fla-flu. Eu mesma, com meus trinta e dois anos, nunca tinha visto ser diferente. E candidatos a vereador? Pessoas que nem te olhavam na rua e de repente viravam um poço de simpatia. Era, no mínimo, engraçado.
Eu, particularmente naquele dia, não estava muito a fim de falar sobre política. Então fiquei com meu copo na mão, me desliguei do que meus amigos falavam, e fiquei olhando para frente, olhando tudo e nada ao mesmo tempo.
E foi aí que eu a vi. De novo.
Era a moça das tatuagens. E do piercing. Tinha acabado de chegar de carro com alguém. Olhei o mais disfarçadamente que consegui. Érica, de Henrique. As duas pararam no balcão e pegaram uma cerveja. Érica acenou de longe para nós. Depois foram se sentar um pouco afastadas, mas na minha direção. Continuei olhando. Não sabia se estava conseguindo disfarçar. Só precisava satisfazer a minha necessidade de analisar todos os detalhes da moça.
— Maria?
Voltei meu olhar para a mesa. Ricardo, meu amigo, me chamava. Maria? Sim, era meu nome. Maria Cecília. Quando eu era criança, tinha uma menina na minha turma da escola que se chamava Cecília. Só Cecília. E aí, para diferenciar, eu virei Maria. Mas em casa sempre fui Ciça. Para minha família, sempre Ciça. Na adolescência não gostava de “Maria”, achava nome de velha. Quando comecei a trabalhar, meio que impus o “Ciça”. E aí ficou. A maioria dos meus amigos também começou a falar Ciça, mas outros poucos mantinham o Maria. Já não me incomodava mais, de qualquer forma. Mas continuava preferindo Ciça.
— Cadê seu copo? Parou?
Ajeitei meu corpo e estendi meu copo para ele, que completou com cerveja. Aproveitei a pausa no assunto “política” e perguntei baixo:
— Gente, quem é aquela?
Alguns viraram a cabeça sem disfarçar, outros perguntaram, sem saber de quem eu estava falando:
— Quem?
Acho que foi Isabela quem respondeu:
— É prima de Érica… Tá morando ali no apartamento de Rita.
Eu só consegui pensar:
— Morando? Se mudou pra cá?
Não conseguia visualizar aquela moça nessa cidade. Sei lá, não encaixava. Ela ficava deslocada aqui. E outra coisa que eu sempre pensava quando acontecia — o que era raro — de alguém se mudar para cá: Por quê? Aqui, nesse lugar, por quê? Não era uma cidade que as pessoas vinham morar. Geralmente as pessoas saíam daqui.
Foi Léo quem completou:
— Ih fiquei sabendo. Parece que veio do Rio. Ela tá morando em cima do apartamento de Verônica, né… Verônica falou que ela fica o dia inteiro pintando na varanda.
Pintando. Pintando o quê? Eu tinha tantas perguntas. Essa era a profissão dela? E ia viver de pintar… Aqui?
— Alguém falou que ela já morou aqui quando era criança.
Como eu previ, já havia algumas informações sobre ela. A identidade de ninguém fica oculta aqui. Vão puxar seus familiares, vão descobrir de onde você veio.
— Qual é o nome dela?
Eu queria saber. Precisava saber.
— Não sei…
Mas em algum momento eu saberia. Tinha certeza. E não demoraria.
Meu olhar cruzou com o dela. A moça que eu — ainda — não sabia o nome. Fiquei morta de vergonha. Senti meu rosto arder. Sentei de lado na cadeira, para não correr mais o risco de aquilo acontecer. Puta que pariu.
Mas era quase inevitável. Quando eu percebia já estava olhando. Pelo menos ela não me olhou de novo. Percebi quando ela e Érica se levantaram, foram até o balcão para pagar e depois caminharam até o carro. Acompanhei, olhando. Ela entrou no carona. O carro saiu.
Na mesa o assunto continuava. Já tinha me perdido. Alguém estava grávida. Ou não estava mais grávida. Não sei, não prestei atenção. Eu estava presa na prima de Érica. A moça das tatuagens.
Fim do capítulo
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