Capitulo 26
Por Isabela:
Dirigir até a casa da minha tia parecia uma viagem interminável. A cada quilômetro percorrido, meu coração batia mais forte, e minha mente se enchia de preocupações. A chuva parecia não dar trégua, e as ruas alagadas, que normalmente eram um problema comum na cidade, estavam agora tomadas por uma força que eu nunca tinha visto antes. A sensação de impotência aumentava a cada curva, e eu me sentia cada vez mais perdida naquele cenário.
— Vai dar tudo certo — Helena disse com calma, olhando para mim com um sorriso reconfortante. Eu queria acreditar nas suas palavras, mas o medo me consumia. Eu sabia que ela percebia o quanto estava nervosa, o quanto a situação estava me tirando o controle, e isso apenas aumentava a minha sensação de estar à deriva.
Quando finalmente subimos a rua para a casa da minha tia, um alívio momentâneo me invadiu, até que ao chegar mais perto percebi que a casa estava vazia.
— Acho que ela não está — disse, parando o veículo em frente ao portão. A chuva havia diminuído um pouco, mas ainda estava tensa, receosa de que a qualquer momento ela pudesse voltar com mais força.
— E agora? — Helena perguntou, com uma preocupação evidente nos olhos. Eu sabia que ela também sentia a pressão do momento, mesmo tentando manter a calma.
— Vamos entrar. Vou colocar o carro na garagem. — Resolvi agir. Sai do carro e, ao abrir o portão manualmente, me molhei mais uma vez. O vestido grudado no meu corpo me deixava desconfortável, mas não queria perder mais tempo. Entrei no veículo novamente, acelerei até a parte coberta da garagem, e quando estacionamos, uma luz suave iluminou o ambiente, quebrando um pouco o breu da casa.
— Minha tia realmente não está em casa, mas ela sempre deixa uma chave nos fundos dentro de um vaso — disse, começando a me dirigir para a porta dos fundos. Helena me seguiu sem questionar, e logo entramos na cozinha, onde acendi as luzes. Foi então que, ao me virar para olhar para ela, percebi seu olhar percorrendo meu corpo. Eu ainda estava de vestido, e o tecido molhado estava colado em minha pele, o que me fez sentir uma onda de calor no rosto. Meu corpo respondeu de forma estranha à sua atenção, um misto de nervosismo e algo mais.
— Eu vou ligar para a minha tia — falei, tentando quebrar o silêncio desconfortável. — Aqui já tem sinal. Ela, com a mesma naturalidade, pegou seu celular e começou a digitar uma mensagem.
Liguei para minha tia Raquel, contando o que havia acontecido e como as coisas estavam complicadas. Ela estava em algum lugar barulhento, provavelmente ainda no festival, pois pude ouvir a música de fundo. Ela me disse, com a voz em alta intensidade, devido a competição sonora, que as saídas estavam interditadas lá também e senti um peso ainda maior se abater sobre mim. Ela me tranquilizou, dizendo que ficaria na casa de uma amiga até o dia seguinte e que eu poderia ficar à vontade na sua casa. "Tem massa na geladeira e toalhas limpas no armário do seu antigo quarto," ela completou, e me senti um pouco mais aliviada, ainda que a situação fosse um caos.
— Ficaremos por aqui hoje. Vou pegar minha mala e as coisas... — comecei a dizer, mas antes que eu pudesse concluir, Helena se adiantou.
— Eu te ajudo — ela ofereceu, com um sorriso gentil.
Pegamos as malas e as sacolas com as compras do festival. Uma parte de mim se sentiu grata pela sua presença, por sua calma em meio ao turbilhão que essa noite se tornou, mas outra parte ainda estava dividida entre o que eu queria e o que deveria sentir.
— Você se importa se eu tomar banho primeiro? — perguntei quando voltamos para dentro, a sensação de um dia longo e tumultuado tomando conta de mim.
Ela me olhou por um momento. Percebi os olhos dela passando lentamente por meu corpo, o que me fez sentir um frio na barriga.
— C...claro que não — ela respondeu, com a voz baixa e desviando o olhar rapidamente.
No banheiro, aproveitei para enviar uma mensagem para Lucas, explicando o ocorrido e avisando-o que não conseguiria retornar. Ele respondeu com um simples "ok", e não pude deixar de imaginar o quanto ele deveria estar furioso. Eu sabia que ele também devia estar preocupado, mas, ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade me invadiu, pois agora eu estava em um lugar mais seguro, longe da tensão dos alagamentos.
Senti meu corpo relaxar enquanto a água quente escorria sobre minha pele. Após o banho, apliquei um spray corporal que deixava um perfume suave e refrescante no ar. Escolhi um pijama de seda preto, com alças delicadas adornadas por renda e calças leves e soltas.
Ao sair do banheiro, peguei uma toalha limpa para Helena e separei o outro pijama que tinha levado — um modelo quase idêntico ao que eu usava. Observei o tecido macio em minhas mãos, pensando que provavelmente ele caberia perfeitamente no corpo dela. Por um momento, hesitei, imaginando se ela se sentiria à vontade com a escolha.
Encontrei Helena na sala, mexendo no celular, e ela me olhou assim que entrei no espaço.
— Outra vida após o banho? — ela disse, sorrindo. Sua expressão parecia mais leve agora, como se a tensão do dia tivesse diminuído um pouco.
— Com certeza — respondi, tentando sorrir também. — Deixei uma toalha e um pijama para você no banheiro. Fique à vontade.
— Obrigada — ela disse, se levantando e indo em direção ao banheiro.
Enquanto ela ia, uma sensação estranha e reconfortante me invadiu. Ali, na casa da minha tia, longe da chuva e do caos do mundo exterior, havia algo de novo se formando entre nós. Algo que eu não sei se conseguiria mais negar.
Enquanto Helena tomava banho, decidi ir à cozinha preparar algo para comermos. Não foi difícil encontrar massa e molhos congelados na geladeira da minha tia. Ela sempre foi extremamente organizada, e a familiaridade daquele ambiente trouxe leveza em meio ao dia estressante. Coloquei água para ferver em uma panela e o molho para esquentar em outra. Enquanto o aroma começava a se espalhar pela cozinha, ajeitei a mesa, colocando os pratos e talheres no lugar. Meu olhar pousou em uma garrafa de vinho.
Instantaneamente, minha mente voltou à cena da Helena na cozinha com a Bia. Ela estava tomando vinho naquele dia. Será que ela gostaria de tomar aqui também? Será que ela desejaria que a Bia estivesse aqui agora? Suspirei, balançando a cabeça para afastar aqueles pensamentos. Não era hora para isso. Tentei me concentrar no que estava à minha frente. “Vamos comer algo, dormir e pronto. Nem precisamos conversar muito,” pensei, tentando me convencer.
Quando tudo estava quase pronto, Helena surgiu na cozinha, com os cabelos ainda úmidos e um leve sorriso.
— Está com um cheiro ótimo — ela disse, encarando-me de forma tão natural que senti meu corpo relaxar.
— Espero que você goste. É tudo feito pela minha tia, e como sou suspeita para elogiar… — respondi, tentando manter o tom descontraído.
— Já comi o pão da sua tia aquele dia na casa da Geralda, e sei que ela tem mãos boas — ela disse, sorrindo.
Desliguei o fogo e me virei para ela.
— Está pronto.
Ela sorriu novamente, um sorriso simples, mas que mexia comigo de uma forma que eu não queria admitir. Começamos a nos servir, e sentamos à mesa em silêncio por alguns minutos. Foi então que me lembrei da garrafa de vinho.
— Tem vinho. Você gosta, né? Aquele dia no restaurante você tomou, e hoje também ia tomar quando estava com sua… sua… — Senti o nervosismo tomando conta de mim. Por que eu estava falando isso? Por que eu estava falando tanto? A ideia era manter as coisas simples, e ali estava eu, tropeçando nas palavras.
— Com minha amiga — Helena completou, visivelmente constrangida.
Tentei disfarçar, mas meu olhar entregou mais do que eu queria. Antes que eu pudesse responder, ela continuou.
— O que foi? A Bia e eu somos amigas.
Revirei os olhos antes de responder, tentando parecer indiferente.
— Se é esse o nome que dão agora… Tudo bem. — Levantei-me para pegar a garrafa de vinho, mas minha mente estava longe de estar calma. Por que aquilo mexia tanto comigo?
— Olha… aquilo… — Helena começou, hesitando. — Por falar nisso, por que você entrou daquele jeito? Eu nunca…
— Eu chamei por vocês, mas a música estava absurdamente alta e a porta estava entreaberta… — respondi, virando-me para encará-la.
Podia sentir a tensão entre nós aumentando. Não era apenas sobre o que havia acontecido naquele dia. Era sobre tudo que não estávamos dizendo. Algo estava se passando entre nós, e era impossível fugir disso ali.
— E então você decidiu entrar… — Helena continuou, sua voz carregando um tom curioso, quase desafiador.
Respirei fundo antes de responder.
— Entrei, sim. Fui devolver a carteira do Marcos que estava lá fora, e aí tudo aconteceu. O hospital ligando, vocês na… — falei rapidamente enquanto colocava a garrafa, o abridor e uma taça na mesa, diante dela. Sentia meu coração acelerado, quase como se o ar ao meu redor estivesse acabando.
Helena me encarou por um momento e, para minha surpresa, começou a rir levemente.
— Tem algo errado nessa história.
— Errado? — perguntei, franzindo a testa, sentindo meu rosto esquentar. — Não tem nada errado. Aconteceu exatamente como estou te contando. — Meu tom saiu mais defensivo do que eu pretendia, enquanto uma onda de irritação começava a percorrer meu corpo.
— Estou falando do vinho, Isabela. — Helena sorriu, inclinando-se levemente para mim, seus olhos brilhando com um humor travesso. — Você trouxe apenas uma taça. Não vai beber comigo?
Fiquei sem palavras por um segundo.
— Eu… eu não costumo beber, Helena. — A resposta saiu quase em um sussurro, como se eu estivesse tentando justificar algo para mim mesma.
— Vai ser extremamente chato beber sozinha. E hoje é sábado, Doutora Isabela, um dia perfeito para quebrar suas próprias regras.
Senti um arrepio percorrer minha espinha quando seus olhos encontraram os meus de forma tão intensa. Não havia como escapar.
— Então… uma taça apenas, Doutora Helena — murmurei, sustentando seu olhar, desafiando-me a não desviar.
— Você costuma ficar perigosa com mais de uma? — Helena perguntou, sua voz carregada de provocação. Ela ergueu uma das sobrancelhas, um gesto que me deixou completamente sem reação por um instante.
Abri a boca para responder, mas as palavras falharam. Fechei-a novamente, sentindo-me inexplicavelmente vulnerável sob aquele olhar.
— Você nem imagina quanto — consegui dizer por fim, com um sorriso que escondia mais do que revelava. Virei-me em direção à cozinha para pegar minha taça, tentando parecer casual, enquanto meu coração disparava no peito.
Helena começou a abrir o vinho, e eu pude sentir seu olhar ainda me observando. Eu sabia que havia algo mais por trás de suas palavras e gestos. Sentia uma eletricidade em meu corpo, que parecia preencher todo ambiente.
Voltei com a taça e sentei-me à mesa, de frente para Helena, que encheu minha taça com o vinho. Saboreamos a comida, que como sempre estava deliciosa.
— Nossa, está uma delícia! — Helena comentou, enrolando o macarrão no garfo antes de levá-lo à boca.
— Está muito bom mesmo. — Respondi, sorrindo enquanto terminava o meu prato.
— Mais vinho? — Ela perguntou, com um sorriso de canto, ao notar minha taça quase vazia.
— Não, obrigada. Aliás, já estou satisfeita. — Repliquei, empurrando levemente o prato vazio.
— Eu estou quase. — Ela riu, terminando a última garfada.
Assim que Helena terminou, recolhi os pratos e levei-os até a pia. Quando voltei para pegar minha taça de vinho, ela segurou minha mão. O toque fez uma corrente quente percorrer meu corpo, como se acendesse algo em mim.
— Deixa aqui. Você vai tomar mais uma taça comigo. Mas antes, vou lavar a louça. — Helena falou rapidamente, levantando-se e caminhando para a pia.
— Não precisa lavar! Deixa que eu faço. — Insisti, indo atrás dela.
Mas Helena já havia aberto a torneira e começado a ensaboar os pratos, ignorando minha tentativa de tomar o controle. Acabei me rendendo, sentando na banqueta da cozinha para observá-la.
Ela era linda. Cada vez que eu tentava criar distância, ela encontrava um jeito de se aproximar. Era como se existisse uma força invisível que nos empurrava uma para a outra, ignorando qualquer tentativa de resistência.
— Pronto, louça finalizada! Agora vamos tomar mais vinho na sala. — Helena anunciou com um sorriso travesso, secando as mãos e se virando para me encarar.
Na sala, tentei reforçar minha posição:
— Eu não quero tomar mais uma taça. — Falei enquanto me jogava no sofá, sentindo meu corpo relaxado depois da primeira dose.
— É sábado, Isa. Amanhã não trabalharemos. E escute… — Ela respondeu, sentando ao meu lado e colocando a mão atrás da orelha, como se quisesse ouvir algo distante.
— Escutar o quê? — Questionei, franzindo o cenho, sem entender o que ela estava fazendo.
— Não está mais chovendo! — Ela comemorou, rindo, enquanto enchia minha taça pela metade e a entregava. — Essa última taça é para celebrar isso.
Peguei a taça, sentindo nossas mãos se tocarem por um breve momento. Outro choque percorreu meu corpo, tão intenso quanto o primeiro.
— Você acha que tem sempre a resposta para tudo, não é? — Provoquei, tentando disfarçar o nervosismo que começava a tomar conta de mim.
Helena inclinou a cabeça levemente e aproximou-se, com um brilho intenso no olhar.
— Não para tudo… mas para você, talvez eu tenha. — Respondeu com a voz baixa, quase como um sussurro, enquanto nossos rostos se aproximavam ainda mais.
Senti o calor subir pelo meu rosto e, tentando manter algum controle, desafiei com um sorriso:
— Então me diga… o que eu quero agora?
Helena direcionou o olhar para minha boca, aproximando-se ainda mais, quase encostando nossos rostos e respondeu com a voz rouca:
— Talvez a mesma coisa que eu.
Fim do capítulo
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