Nazira descia para receber uma encomenda deixada com o porteiro quando reparou que alguém estava de mudança. -- Quem vem lá, seu Pedro? – perguntou ao homem – Morador novo pro 101? – fofocava

 

--Não, ele veio pro 502. – entregou a encomenda à mulher – Vai ser seu vizinho de cima. – pausou brevemente – E é um sujeito um bocado estranho! Tem que ver as coisas que já descarregaram desse caminhão! – fofocou também

 

--E será que ele é solteiro? – perguntou interessada

 

Nisso, um homem que regulava seus 30 anos, aparece carregando uma máscara de Darth Vader, uma espada luminosa e um imenso monitor. Nas costas, uma mochila preta com estampa repleta de ovnis prateados. – Boa tarde! – cumprimentou de cabeça baixa, ajeitou os óculos de armação grossa e subiu os degraus da escada correndo

 

--Meu Deus, um nerd! – Nazira exclamou empolgada – Responde, seu Pedro, ele é solteiro?? Sabe o nome dele? – sorria de orelha a orelha

 

--O nome dele ainda não sei e também não sei se é solteiro, mas tá vindo se mudar sozinho. – olhava para a moradora – Isso eu garanto! – balançou a cabeça positivamente

 

Nazira suspirou pensando em possibilidades. Minutos depois, sentada no sofá da sala, matutava sobre como poderia fisgar um nerd. “Eu não sou habituada com esse tipo de homem! Tenho que me preparar prum bote certeiro...” -- pensava

 

Tão entretida que estava, nem percebeu que Malika a chamava há algum tempo.

 

--FUÊÊÊÊÊÊÊ!!!!!!!!!!! – o estranho som de um instrumento de sopro se fez ouvir -- FUÊÊÊÊÊÊÊ!!!!!!!!!!!

 

--Meu Deus, que coisa horrível é essa? – levantou-se de um pulo – Dona Malika! – correu para o quarto da idosa – Mas o que é isso?? – perguntou espantada

 

--Isso, minha filha, é uma legítima corneta da Copa! – jogou a vuvuzela em cima da cama -- Passei no Centro da cidade hoje, vi pra vender e comprei. Nem você que vive com os ouvidos sei lá onde, haveria de deixar de ouvir esse barulho horrível! – olhava para a outra – Preciso pegar meus documentos porque amanhã é dia de prova de vida no banco. – apontou para uma pequena escada – Suba aqui e pegue minha pastinha amarela que tá ali em cima. – apontou para a parte mais alta do armário

 

--Ai, dona Malika, a senhora quer me matar de susto, né? – abriu a escada e subiu três degraus – Eu tava com a cabeça em alfa porque hoje acho que conheci o homem da minha vida! – abriu a porta e pegou a pastinha – A senhora tem que ver! – fechou a porta do armário e desceu os degraus – Nosso novo vizinho do apartamento de cima! – sorria abobalhada -- Nerd, jeitão de intelectual, tímido e dono de uma voz tão encorpada, tão macha! – suspirou

 

--Obrigada. – pegou a pastinha das mãos da outra – Imagino o tipo que deve ser! – lembrava dos outros homens pelos quais Nazira se apaixonou – Você deveria se filiar ao Hamas, porque nunca vi gostar tanto de homem bomba, misericórdia! – foi andando para a sala – E vê se vai cuidar de esquentar o almoço porque tá chegando a hora!

 

--Ela nem conhece e já fica falando mal! – resmungou enquanto retirava a escada para guardá-la

 

***

 

--Salmão ao molho de maracujá, cuscuz marroquino com camarão VG -- falava enquanto servia a refeição – e pra acompanhar, um vinhozinho do Porto bem docinho! – piscou para a mulher

 

--A julgar pelo cheiro e aparência, essa comida tá um espetáculo! – Zaida sorriu animada – O que estamos comemorando, Vivi? – perguntou curiosa

 

--A vida, a saúde – terminou de encher os copos – e o Amor! – reclinou-se para beijar a amada brevemente nos lábios – Agora é encher os buchinhos e sorrir de alegria! – sentou-se – Simbora! – esfregou as mãos

 

--Vivinácia Soares Silva! – refletiu um pouco mais e ficou desconfiada – Quero saber da onde veio o dinheiro pra comprar salmão, camarão VG e vinho do Porto! – examinava a esposa com o olhar – Não me diga que já desenterrou aquele maldito tarô caipira, montou-se de madame Vivi e saiu enrolando o povo? – queria saber

 

--Que é isso, uai?? – fingiu-se ofendida – Pois fique sabendo que o hotel Merlinton precisou de diarista extra pra cobrir camareira afastada por virose e eu consegui entrar nessa! – falava parte da verdade – Eles tavam no sufoco, hotel cheio e ofereceram uma diária de simplesmente quinhentos reais! Trabalhei lá três dias e com isso deu pra juntar um cascalho. – olhava para a outra – Além disso fiz faxina simplesmente na casa de Fernanda Torres! – mentiu -- Pense!

 

--Fernanda Torres, jura? – arregalou os olhos – Mas se aconteceu tudo isso como é que você não me contou nada? – estranhava – “Será verdade?” – pensou desconfiada

 

--Porque eu queria fazer surpresa, uai! – respondeu de pronto – E fique sabendo que por causa disso de indicação pra Oscar, Globo de Ouro e award daqui e dali, dona Fernanda anda numa felicidade tamanha que simplesmente me pagou uma diária de três mil reais! – mentia descaradamente

 

--Nossa! – surpreendeu-se mais uma vez – Três mil reais?? – ficou pasma – Vivinácia, Vivinácia, você não tá me enrolando não, né? – examinava as reações da parceira

 

--Ô, diacho de mulher desconfiada, sô! – cruzou os braços contrariada – Pois se a mulher tá fazendo um sucesso que chega dói, você acha isso estranho? – gesticulou – Atriz sagrada e consagrada, o dinheiro abunda naquele peito! – justificava – Poxa, minha linda, eu fiz a comida com tanto gosto pra comemorar essa onda boa que tá acontecendo e você me retribui assim? – fez um drama – Desconfiando de cada palavra que eu digo?

 

--Hum... – continuava olhando para a outra – “Ela não teria coragem de mentir pra mim dessa forma e olhando nos meus olhos!” – considerou pensativa – “Deve ter sido isso mesmo; maré de sorte.” – concluiu – Tá bom, amor. – respondeu em tom mais brando – Agora vamos saborear esse almoço que você fez com tanto carinho. – começou a comer – Ai, que delícia! -- elogiou

 

“Graças a Deus ela acreditou no meu kaôzinho básico!” – Vivi pensou aliviada – Gostou? Que bom! Fico feliz por demais da conta! – deu uma garfada – Agora me conte você. – queria deixar de ser o foco da conversa – Conseguiu arrumar novos pacientes? – bebeu um gole de vinho

 

Limpou os lábios com guardanapo. – Infelizmente a família daquele senhor que lhe falei não queria uma cuidadora, mas uma escrava. – bebeu um gole de vinho – Plantões de 72h com apenas um dia de descanso, sem direito a nada além de trabalhar. E pagando um dinheiro que mal dava conta das passagens de ônibus. – deu uma garfada – Em resumo, continuo sem um trabalho fixo e aguardando oportunidades que postam no grupo das coringas. – referia-se a um grupo de aplicativo – Por ora, nada em vista. – mais outra garfada

 

--Ave Maria! – revoltou-se – Eu fico mordida com isso! Esse pessoal acha que cuidadora é o que? Abuso! – deu outra garfada – “É muito injusta essa vida! A gente que é pobre trabalha pra caramba, ganha pouco e ainda tem que aturar exploração!” – pensou indignada – “É por isso que eu faço miséria com minha madame Vivi! Tá pensando o que?” – bebeu mais um gole – E aquela senhora do Leblon que você fez um plantão coringa? Não te quis? Cê não disse que no final ela até te abençoou? – queria saber

 

--Dona Adma. – sorriu ao lembrar da idosa -- A agência deve ter arrumado alguém com mais preparo e currículo que eu. Não é qualquer uma que entra no quadro deles como trabalhadora permanente. – deu mais outra garfada – Eu queria muito trabalhar pra ela, me deu uma dó tão grande daquela criatura tão acuada, solitária... – via o rosto da outra em sua mente – Ela tem um olhar tão profundo, sabe? Tão expressivo! – gesticulou brevemente – Parece capaz de ver no fundo da nossa alma! – pausou brevemente – Você sabe o quanto eu presto atenção nessa coisa do olhar e do que ele diz!

 

--É mesmo? – sorriu insinuante – E o que meu olhar tá dizendo que a gente vai fazer logo mais, hein? – bebeu um gole de vinho mantendo os olhos fixos na esposa

 

--Não sei... – fingiu inocência – Mas tô doida pra descobrir... – soprou um beijinho

 

“Hoje tem!” – Vivinácia pensou excitada – “E tome das curnicha piar!”

 

***

 

--Francamente, maama! – Yesmin reclamava olhando para a idosa – Por que não quis a cuidadora nova? – cruzou os braços – Tudo isso porque cismou com aquela coringa? E só porque a tal é descendente de libaneses? – reclamava – Preconceito bobo!

 

--Eu não gosto disso de coringa, o nome dela é Zaida! – Adma respondeu de pronto – Quero ela trabalhando aqui no lugar daquela safada que pediu pra sair! – falava de cara feia – Não gostava de Maria do Carmo e não gosta de Verônica! – fez um gesto de desagrado

 

“Sorte da Verô.” – Marcilene pensou – “Aturar essa velha chata...” – revirou os olhos discretamente

 

--Marcilene, será que você me faria um favor, querida? – queria conversar a sós com a mãe – Prepara um mingau de aveia pra ela? – olhava para a cuidadora

 

--Claro. – balançou a cabeça e saiu do quarto da idosa

 

--E qual o problema da Verônica, posso saber, maama? – pôs as mãos na cintura – Eu vi o currículo dela! Uma mulher que trabalhou na casa de gente famosa, de socialites, de... – enumerava nos dedos

 

--Pois ela que tenha trabalhado até na casa de aš-šeiTaan (Satan) não me interessa! – retrucou – Quero Zaida aqui!

 

--Mas, maama, eu vi o currículo dessa aí também! – continuava discordando – Só trabalhou pra gente pobre e...

 

--NÃO ME INTERESSA! – começou a gritar -- EU QUERO ZAIDA, QUERO ZAIDA, QUERO ZAIDA!

 

--Ai, tá bom, tá bom! – gesticulou desesperada – Para de gritar que eu odeio escândalo! – passou a mão nos cabelos – Vou falar com a agência pra contratar essa Zaida e fim da discussão! – cedeu

 

--Que seja logo! – exigiu

 

Deu um suspiro profundo. – Hoje mesmo eu ligo pra lá. – olhou rapidamente para o relógio – Era só isso, maama? Tenho um monte de coisas pra fazer ainda hoje! – queria ir embora

 

--Você nunca tem tempo pra mim. – respondeu magoada – Não me admira que minha neta nunca tem tempo pra você também. – olhava para a filha – Pra mim, muito menos. -- lamentou -- Stefany nem lembra que tem uma gidda (avó)...

 

Não gostou do comentário. – Stefany só tem 18 anos, maama! Na idade dela quem quer ficar agarrada na barra da saia da mãe? – justificava – Nem eu quero que seja assim! Tenho uma vida agitada e me agrada uma filha independente. – dizia parte da verdade – Não sou como a senhora, que casou, se largou, ficou vivendo em função de casa e acabou perdendo o baba pra uma louca quase da minha idade! – pegou a bolsa para ir embora

 

Ficou sentida com o que ouviu. -- Yawm maa sata'talim (Um dia você vai aprender), – começou a cantarolar uma de suas antigas canções – anna alrajul yadhhab faqat li'annahu yuridu (que um homem vai embora apenas porque quer). – olhava para a filha com tristeza – Hiya mas'ala ananiyya wa laysat dhamb almar'a (É uma questão de egoísmo e não culpa da mulher)...

 

Yesmin não entendeu o que ouviu por não falar árabe. – Bem, eu vou indo. – beijou a testa da mãe e caminhou até a porta do quarto – Pode deixar que a tal Zaida será sua cuidadora também. – deu tchauzinho e partiu

 

Adma acompanhou a filha com o olhar sem nada mais dizer.

 

“Stefany não respondeu a nenhuma das minhas mensagens!” – Yesmin constatou ao olhar rapidamente para o celular – “Hoje à noite vou buscar essa menina pra uma conversa séria.” – decidiu – “Quero que ela entre pra uma boa faculdade em breve.” – pensava enquanto andava rapidamente em direção ao carro – “Não vai dar se continuar cheia de notas baixas do jeito que está!” – abriu a bolsa para tirar as chaves

 

***

 

MC Tha - Bonde da Pantera (ft. Omulu & King Doudou) [Clipe Oficial] - YouTube

“Vem pra minha festa,

Vem entra e sai,

O bonde da pantera,

Não te deixa em paz...”

 

Stefany requebrava dentro do quarto se esfregando com duas moças enquanto um telão de 52 polegadas exibia um clipe.

 

“Fora tá quente,

Lá dentro tá mais,

Mão na parede,

E o tambor pra trás...”

 

--Eu acho esse funk tão elegante! – Jaqueline dizia ao dançar – Adoooro!

 

--Também! – Tatiana concordava – Ai, Stefany... – reclamou dengosa ao sentir a outra apertando-lhe os seios

 

“E dance, e dance, e dance,

E dance, e dance...”

 

--Esse clipe me deu inspiração! – Stefany rebol*va até o chão – Cês vão ficar passadas quando verem a roupinha que paguei pra uma costureira fazer pra mim. Huahuahuahua! – riu rapidamente

 

“Dance, sobe e vai,

E dance, e dance...”

 

--Só faltava você dizer que é uma roupa igual a delas no clipe! Hahaha! – Tatiana riu também

 

--Pois a minha roupa vai fazer a delas parecer roupa de igreja! – a moça respondeu dançando

 

“Dance, desce mais,

E dance, e dance,

Dance, sobe e vai...”

Bonde da Pantera. Intérprete: MC Tha. Compositores: MC Tha / Omulu / King Doudou. In: Bonde da Pantera. Man Records, 2017. 1 Álbum Digital, faixa 1 (4 min)

 

--Peraí, Stefany! – Jaqueline parou de dançar – Essas roupas são coisa de artista, só pra abalar no clipe, ninguém vai pra rua com isso! – olhava para a colega – Tá louca?

 

--Espera e você vai ver! – a jovem respondeu resoluta – E nunca duvide de mim, mon cher! – soprou um beijinho – O que Stefany Zahia Torricelli Beckman diz que vai fazer, ela faz! -- prometeu

 

(NOTA DA AUTORA: A MC Tha é uma bela artista e vale a pena conhecer o trabalho dela)

 

Fim do capítulo