--Eu já ando tão de saco cheio, sabe? – uma mulher se queixava – Essa vida dura de cuidadora, fazendo plantão de 12h, de 24h, numa escala apertada, ralando em casa alheia pra ainda aturar desaforo de idosos mal-humorados... – suspirou – Ai, madame, será que com esse tal ritual muçambínico que a senhora me ensinou eu consigo mudar meu destino? – perguntou esperançosa

 

--Muda e muda com raça, uai! – Vivinácia respondeu com fé – Lembra das fotos que madame te mostrou! – falava de montagens que havia feito – Bastou se submeter ao meu ritual que Catitta virou um sucesso internacional, a funkeira Tarsilla faturou o show do réveillon e o presidente Luiz Horácio ganhou as eleições! – forjou um olhar enigmático – Meu tarô caipira nunca erra e se ele te mostrou que o dinheiro abunda no teu destino, – espremeu os olhinhos – é porque a riqueza em ti abunda! – sorriu – E olha que madame ainda vai te fazer um precinho camarada como nunca se fez pra ninguém na história desse país! – lançou um suspense – Fica por mil e cem reais e não se fala mais nisso!

 

Sorriu animada. – Então eu vou investir com tudo nesse ritual! – decidiu – Riqueza, poder e fama, aí vou eu! – gesticulou afetada – “Hoje mesmo dispenso a agência e nunca mais quero saber de cuidar de ninguém!” – pensou resoluta

 

***

 

--Mas pelo amor de Deus, gente, quinta cuidadora que muda em menos de um mês?? – Yesmin reclamava ao celular – Eu pago uma fortuna pra essa agência e vocês repassam quanto pras profissionais, cinco porcento? Um porcento? – andava de um lado a outro da sala – Não é aceitável essa rotatividade toda! – estava aborrecida – Saiba que não tolero incompetência e já estou pensando em mudar de agência! -- ameaçou

 

--Por favor, senhora Yesmin, não nos leve a mal, são coisas que não podemos controlar. – a mulher do outro lado respondia envergonhada – Nós pagamos bem acima da média de mercado mas é difícil encontrar profissionais comprometidas. Os currículos delas mostram apenas a competência técnica, mas o resto só a experiência com a pessoa pode comprovar. – tentava se justificar – Imagine a senhora que essa cuidadora nos disse que estava se demitindo porque estava prestes a ficar rica! – riu brevemente para tentar aliviar o clima da conversa

 

--Não me interessam os motivos dela! – retrucou com rispidez – O que eu quero é que vocês coloquem alguém decente no lugar dela o mais rápido possível! – ordenou – Minha mãe não pode ficar desassistida e se isso acontecer eu processo vocês, entendeu? – ameaçou novamente – Fiquem sabendo que o escritório de advocacia mais conceituado desse país trabalha pra mim! – estava possessa – E eles nunca perderam uma causa sequer!

 

--Estamos providenciando, senhora, pode ficar tranquila. Daqui a instantes eu lhe envio a foto do documento de identificação da nova cuidadora assim como o currículo! – prometeu

 

--Vocês têm meia hora! – afirmou de pronto – Passar bem! – desligou o telefone sem esperar resposta – Que ódio! – jogou o celular sobre o sofá – Respira, Yesmin, respira! – falava consigo mesma enquanto dava voltas pela sala – Ódio e raiva prejudicam o fluxo criativo da mente e envelhecem o semblante! – controlava a respiração

 

--Você por acaso tem visto o que a sua filha anda postando no Fuçagram? – Rogério entrava na sala furioso acenando com o celular na mão direita – Essa menina tem extrapolado! – falava de cara feia – Você por acaso tem acompanhado? – cobrou

 

Respirou fundo antes de responder. – Até onde eu saiba, doutor Rogério Beckman, -- olhou para o marido -- você estava lá comigo naquele quarto de hotel em Mônaco onde ela foi concebida. – respondeu com ironia – Não me lembro de ter trans*do com mais algum outro homem na ocasião. – passou a mão nos cabelos – E claro que eu não perco meu precioso tempo vendo Fuçagram de jovem! – continuava aborrecida

 

--Pois deveria, porque não é qualquer jovem, é Stefany! – aproximou-se da esposa – Assiste o videozinho que ela postou ontem! – parou ao lado dela e clicou no play

 

--Humpf! – olhou para a tela fazendo um bico

 

--Hi, guys, oiê! – a filha do casal deu um tchauzinho breve – Eu falei pra vocês que ia causar total na festa da LokaPaluza, não foi? Sente o gostinho! – imagens se sucediam mostrando a moça ajoelhada sobre um balcão enquanto virava uma generosa dose de bebida de uma só vez – Vira, vira, vira, vira!! Aê, uhu!!! – moças e rapazes estimulavam batendo palmas – Até o chão, comigo! – Stefany falava enquanto em outra cena se abaixava devagar, rebol*ndo sensualmente, e esfregando as nádegas na virilha de um rapaz – Eu vou pegar a Paluza hoje, paga pra ver, paga pra ver? – a jovem olhava para a câmera em um novo trecho de vídeo – Chega junto! – fez um aceno – UHUUUU!!!!!!! – muitos gritavam enquanto Stefany e uma mulher mais velha trajando roupas pitorescas se pegavam em um fogoso amasso

 

--Nossa filha posta um vídeo enchendo a cara, fazendo todo tipo de imoralidade e a mãe sequer fica sabendo! – Rogério tornava a reclamar – Você tem que fazer alguma coisa, Yesmin! – cobrava – A vida não é feita de likes e daqui a pouco essa menina vai ficar totalmente mal falada por aí! – guardou o celular no bolso da calça – Sabe Deus se não anda usando drogas! – conjecturou preocupado

 

--Francamente, o que eu vi aí foi uma jovem se divertindo. – minimizou ao se afastar -- A diferença entre os dias de hoje e a nossa época é que não tinha redes sociais pra gente postar as merd*s que fazia. – caminhou até a poltrona e pegou o celular

 

Riu por achar absurdo. – Você não a viu se agarrando com uma tremenda lésbica da velha guarda? – acompanhava a movimentação da esposa pela sala – Pelo amor de Deus, Yesmin! Você não liga, não se importa com nada disso??

 

--Ah, todo mundo sabe que esse negócio de ser lésbica é um modismo no meio das meninas de hoje em dia! Depois passa, elas casam e têm seus filhinhos. -- pegou o notebook de sobre a mesa da sala -- Além do mais, você é o psiquiatra da família, então se diagnosticou alguma coisa errada em nossa filha, use o que aprendeu na faculdade e na prática médica ao longo da vida pra fazer alguma coisa. – seguiu para o cômodo que lhe servia de escritório – Tenho mais com o que me preocupar! – deu tchauzinho – “Faltam dois meses pra encerrar o prazo que dei pra versão beta do FalaGPiTaco aparecer e eu vou fazer de tudo pra acelerar isso aí!” – pensou resoluta

 

--Eu não acredito! – Rogério resmungou sozinho – Será possível que ela não se preocupa com outra coisa que não seja a BoFe? – balançou a cabeça negativamente

 

***

 

Zaida tirou o celular do bolso da calça ao perceber que havia acabado de receber uma mensagem pelo aplicativo QQOV?. – Mensagem da agência. – falou consigo mesma enquanto olhava para a tela – Vamos ver o que temos aqui. – clicou para ler

 

**CORINGA**

Necessidade urgente: plantão 12h. Paciente Adma Zahia, 80 anos, cadeirante, parkinsoniana, insone. Endereço: Rua General Artigas, 498, Leblon. Início às 20h de hoje!!

 

--Vou aceitar! – Zaida decidiu enquanto digitava a resposta – Fiquei sem paciente algum e preciso arrumar serviço. – falava sozinha – Tomara que a agência me aceite. – desejou – Ui! – levou um susto ao sentir um carrinho de compras esbarrando em suas nádegas – Que é isso? – olhou espantada para trás

 

--Ih, moça, desculpe! – Nazira pediu envergonhada – Eu vinha tão distraída procurando umas ofertas, tão distraída vendo aqui e ali, que quando dei por mim, BUFF: meti o carrinho na sua bunda! – gesticulava rapidamente – Doeu? Quer que eu faça uma massagem? – apertou a nádega da outra – Ih, tá durinha, cê faz o que, hein? Malha? – apertou de novo

 

“Eu hein, que louca!” – pensou desconfiada – Não precisa de massagem, obrigada. – removeu a mão da outra – Agora com licença, que vou continuar com minhas comprinhas. – sorriu brevemente – Tchau. – afastou-se rapidamente com uma cestinha nas mãos – “É cada coisa...” – acabou achando graça

 

--Tchau. – respondeu com um breve aceno – Disseram que esses mercadinhos perto da Rocinha tavam com boas ofertas, mas que nada! Sou mais comprar em Bonsucesso! – Nazira falava consigo mesma enquanto examinava os preços – E onde será que eu encontro comida prum Satanás de rabo quem nem o gato de dona Malika? – olhava para todos os lados – Hum, aquele ali bem tem cara de homem solteiro! – reparou em um rapaz que passava pelo corredor – É pra lá que eu vou! – seguiu na direção do homem

 

***

 

--Boa noite, tudo bem? – cumprimentou a colega que lhe abriu a porta – Como o porteiro anunciou, eu sou a Zaida. – estendeu a mão ao sorrir

 

Apertou-lhe a mão brevemente. – A coringa, né? – a mulher olhou a outra de cima a baixo – Entra logo e se troca porque a velha tá com o diabo no corpo. – fez sinal para a outra entrar e fechou a porta – Ó, -- deu as costas e foi andando -- não avisaram pra filha da velha, mas a garota que ia tá no plantão contigo hoje avisou que não vem. – contava -- Diz que é virose!

 

--Nossa! – surpreendeu-se com o modo de falar da cuidadora – O que a paciente tem? Tá sentindo alguma dor? – queria entender

 

--CELINA, MINHAS COSTAS TÃO QUEIMANDO, VEM AQUI AGORA! – Adma gritou – ANDA LOGO!!

 

--Cê vai descobrir. – seguiu para o quarto da idosa – E não demora que ela enche o saco. – aconselhou -- Tô indo, dona Adma. – respondeu de má vontade

 

Zaida entrou no banheiro, trocou de roupa e lavou as mãos. Fez uma oração rápida e se encaminhou para o quarto da paciente.

 

--As-Salamu Alaikum! (Que a paz esteja convosco!) – saudou -- Com licença, dona Adma? – pediu respeitosamente – Boa noite. – sorriu – Meu nome é Zaida e vou passar essa noite com a senhora. – apresentou-se – No que posso lhe ajudar agora?

 

--Outra?! – Adma se surpreendeu – E cadê a incompetente da Maria do Carmo? E Patrícia, a outra besta, onde tá? – olhava espantada para Zaida – “Essa chegou até falando árabe!” – pensou desconfiada

 

--A do Carmo não vem mais. – a outra cuidadora esclareceu – Essa aí é a coringa. – indicou Zaida com o olhar – E a Pat vai faltar. – pegou a bolsa -- Já vou, tá? – deu tchauzinho – Fui!

 

--Ei, você precisa me passar o serviço, dizer o que aconteceu hoje! – acompanhava os passos da colega com o olhar

 

--Tá passado! –abriu a porta da sala – Boa sorte! – desejou ao partir

 

Zaida ficou perplexa com a atitude, mas não fez comentários.

 

--Coringa! – a idosa fez um bico – Nunca nem gostei de Batman, faz ideia desse aí! – gesticulou

 

Achou graça do comentário. -- Coringa é como chamam as cuidadoras substitutas no nosso meio. – esclareceu sorrindo -- A senhora já tá deitada nessa posição há muito tempo? – aproximou-se – Que tal virar de lado e passar óleo dermatológico nas costas? – propôs gentilmente

 

--Não me interessa como vocês são chamadas! – respondeu rispidamente – Quero que pare de arder! Vê se faz alguma coisa porque minhas costas estão ardendo! – ordenou

 

--Tá certa. – reparou que um frasquinho de óleo estava na beira da cama – Vou virar a senhora e passar o óleo. Só tenha um pouco de paciência porque sozinha é mais difícil e eu pensei que seríamos duas. – preparou a idosa para virá-la – Vamos usar essas almofadinhas que a senhora tem aqui e... – virou a mulher usando o traçado – fixar a posição. – colocou um travesseiro para apoiar as costas, uma almofada para as pernas e outra para a cabeça – Está confortável? – prestava atenção

 

--Não, mas eu suporta. – olhava para a parede do quarto

 

(NOTA DA AUTORA: traçado é o nome dado a um lençol dobrado, colocado sobre o colchão do paciente acamado, o qual é usado para movimentar a pessoa no leito)

 

--A agência me passou que a senhora tem insônia apesar de tomar quetiapina 200 mg e zzezen 50 mg. – começou a massagear delicadamente o pescoço da mulher – O que a senhora sente? Algum mal estar? – queria saber – Eu gosto de conversar, se preferir bater um papo noite a dentro estou à disposição. – ofereceu

 

--Eu não tenho o que conversar. – respondeu com antipatia – E não sei o que sinto com remédio. A noite angustia. – não olhava para a cuidadora – “O que será que ela pretende? Tudo isso pra pegar o lugar da outra?” – continuava desconfiada

 

--Talvez a angústia venha do fato de que essa mistura de remédios não seja muito recomendável para uma série de pessoas. Tive vários pacientes que não se davam bem. – esclareceu – Mas não posso ser precipitada porque acabo de conhecê-la. – pausou brevemente – A senhora é libanesa, né? – tentava ganhar a simpatia da outra – Meus avós também eram mas eu não sei nada além de algumas poucas frases em árabe. Por exemplo, não sei pedir a sua bênção nessa língua e tampouco sei a resposta.

 

--Vai ficar sem saber. – não queria conversa

 

“Não insista, Zaida.” – pensou enquanto continuava com a massagem – “Tudo a seu tempo”.

 

--Não pensa que com isso vai conseguir coisa de mim. – Adma advertiu – Já perdi as contas de quantas passaram por aqui e não me importa.

 

--Mas eu me importo! – respondeu convicta e gentilmente

 

--Por que? – a idosa encarou a cuidadora querendo entender

 

--Nem tudo precisa de explicação, dona Adma. – olhava nos olhos – Desempenho meu ofício com Amor e é isso. – deu um sorriso acolhedor

 

Não houve mais diálogo ao longo da noite a partir daquele momento.

 

***

 

--E aí eu dei uma bronca no meu filho, sabe Malika? – uma mulher contava – Descobri que minha neta seguia uma tal de Stefany que simplesmente vive de postar tudo que é pouca vergonha no Fuçagram! – gesticulava indignada – Acredita que o último filminho que ela botou lá tem até agarramento com mulher? – olhava para outra – E só você vendo com que tipinho de sapatão que ela se pegava, Ave Maria! – benzeu-se

 

--Misericórdia! – benzeu-se também – Mas como é isso de seguir? – queria entender – A pessoa fica ali na boca de espera só esperando a outra botar besteira na internet, é isso?

 

--Eu sei lá, Malika, só sei que briguei com meu filho e briguei mesmo! Como pode não acompanhar o que a filha anda vendo? – não aceitava – Minha neta só tem 13 anos, não pode se guiar por essas moças perdidas!

 

--Tá certa... – respondeu pensativa – “Deus queira que Zaida não seja desse tipo que faz as patifarias e ainda posta na internet pro mundo todo ver!” – desejou – “E se for, que eu morra sem saber!” – benzeu-se novamente – “Muito desgosto pra uma só mãe!”

 

***

 

--A senhora pode não ter dormido, mas pelo menos não tivemos uma noite tensa. – Zaida afirmou assim que encerrou o banho de leito da paciente – Aquela massagem que fiquei fazendo ajudou a relaxar de alguma forma, não achou? – não ouviu resposta -- Daqui a pouco a colega das 8h chega e eu vou recomendar a ela que lhe leve pra tomar sol na beira da praia porque o dia promete que vai ser bonito! -- sorriu

 

--Não gosta de sair! – devolveu de pronto

 

--Tudo bem. – não argumentou – Esses seus vestidos são folgadinhos mas seria melhor se a gente cortasse a parte de trás pra facilitar sua vida. – reparava na roupa – Tipo camisola de hospital, sabe? – propôs

 

--NÃO OUSE!! – gritou imediatamente

 

--Não vou cortar, fique tranquila. – olhou para a idosa – Eu só faço o que meu paciente permite. – silenciou brevemente – Vamos nos vestir?

 

A outra cuidadora chegou às 8h e Zaida passou o serviço, esclarecendo que não havia dado café da manhã para Adma por não conhecer a casa. A mulher garantiu que faria isso e logo trocou de roupa iniciando o plantão. Zaida se trocou também e antes de partir foi se despedir da idosa.

 

--Não sei se um dia a verei novamente, dona Adma, porém agradeço a Deus pela oportunidade de conhecê-la. – beijou a mão direita da mulher – Fique em paz! – desejou com sinceridade – Bom plantão, colega! – olhou para a cuidadora

 

--Obrigada. Vai com Deus. – a cuidadora respondeu desconfiada – “Essa é puxa saco mesmo! Dizer que agradece a Deus por conhecer essa velha chata, eu hein?” – pensou recriminando

 

Antes de ver Zaida ir embora, Adma falou: -- Rahimaka Allah! – a cuidadora novamente olhou para a idosa – Quer dizer: Deus te abençoe... em árabe. – esclareceu

 

Zaida respondeu com um sorriso de satisfação e partiu.

 

Fim do capítulo