**VIVINÁCIA**

--Então eu li no meu horóscopo que Júpiter tava na casa de Sagitário. – uma mulher contava para outra – Isso quer dizer o que, hein, madame Vivi? – queria saber -- Tá vendo o que aí? – olhava para o curioso baralho diante de si

--Riqueza, uai! – a cartomante respondeu enfática – Essas duas cartas dizem tudo! – deu duas batidinhas em cada carta com a ponta do indicador direito – E quando Júpiter varleja pela casa de Sagitário, minha amiga, ele não quer saber de arredar o pé de lá! – gesticulava com raça – Nessa você se deu bem! Há! – bateu uma palma

--Jura?? – perguntou empolgada, mas resolveu ponderar – Como assim, como que essas cartas dizem isso? – não entendia – Aliás, eu nunca vi um tarô como esse aí! -- estranhava

--Não ouse desafiar o poder do tarô caipira de madame Vivi! – fingiu-se ofendida – Saiba que estas cartas foram feitas pela sabedoria milenar das curandeiras cegas de Muçambinho d’Oeste: o logradouro mais místico da história desse país! – lançou-lhe um olhar enigmático – Eu nasci lá e tenho amizade com uma ruma de ET no meu Fuçagram! – mentia descaradamente

--Nossa, que coisa geek! 👽 – exclamou impressionada – Coloca uns ETs na minha fita? -- bateu palminhas – Tem algum gatinho?

“Eita, que essa aí anda necessitada!” – pensou surpreendida – Claro, meu bem! Nada que uns trezentos reais não resolvam... – sorriu maliciosa

Pois é, meu povo... O trem anda descarrilhado nesse país, com tudo caro, faltando dinheiro e só o que eu ganho como diarista não dá conta, não... a patroa é cuidadora e também não ganha fortuna; tenho que me virar como cartomante, vidente, personal witch e toda forma de tirar um trocado em cima dos trouxas. O ruim é quando a mulher descobre...

--Vivinácia Soares Silva, que tanta peruca, renda branca e cachimbo são esses escondidos aqui?? – Zaida bradava furiosa – Não me diga que você já anda inventando moda pra enganar o povo de novo? – juntava os achados para jogar fora – Ah, mas eu vou dar um fim nisso! – fazia uma busca pelo guarda-roupas

--Ave Maria, quando ela me chama pelo nome completo... – resmungou apavorada – Calma, minha linda! – pensava no que falar – Isso tudo tem explicação... – seguiu até o quarto e parou na porta – Não é o que você tá pensando e... – falava com mansidão – NÃO!!! – gritou apavorada -- A BOLA DE CRISTAL NÃO, NÃO!! – correu para junto da outra ao perceber que a esposa estava prestes a quebrá-la

--Chega dessa patifaria! – estatelou a bola no chão com toda força – Já te disse que não admitido essas armações, não falei? – cruzou os braços enfurecida – Você tem que aprender a deixar de ser trambiqueira! – estava zangada

--Poxa... – lamentou ao ver o objeto quebrado – Essa bola tinha até conexão wi-fi...

Infelizmente me chamo Vivinácia, só que eu peço pra me chamarem de Vivi porque fica um trem mais simpático. A mulher só me lembra que o nome é esse quando fica com raiva! rs

No mais o que posso dizer? Sou nascida no interior de Goiás, estudei só um tantinho, fiz de tudo e mais um pouco nesses 35 anos de vida e vim parar na cidade do Rio de Janeiro. Moro num barraco na Rocinha e sigo na luta pra arrumar um jeito de ir viver na zona nobre. Já estaria satisfeita se conseguisse um cantinho tipo o de uma senhora pra quem fiz limpeza um dia desses. Pena que ela nunca mais me chamou. Acho que ela ou alguma das cuidadoras descobriu que trouxe comigo, assim, por um descuido, um jarro bem da hora que tava dando sopa em cima da mesinha da sala. Será?

**ADMA**

“Ragaounee eineik lei ayame elee raheit... (Eles me trouxeram de volta, seus olhos, para os meus dias que...)

Aleinou nee andam, alal maadee wei geiraho (Eles me ensinaram a lamentar o passado e suas feridas)...”

E aqui estou a lamentar o passado, enquanto ouço um velho disco reverberar minha própria voz junto à da saudosa Oum Kalthoum. Eu, Adma Zahia (pronúncia Zarría), outrora grande cantora e atriz libanesa, personalidade do mundo árabe, hoje me vejo sob as sombras do esquecimento. Vivendo em um apertado apartamento no Leblon, bairro da cidade do Rio de Janeiro, onde cuidadoras se acotovelam enquanto fingem que me cuidam, deixo o tempo passar esperando pelo que? Talvez pela morte, não sei, porque minha filha Yesmin raramente me visita e minha neta Stefany... essa aí é que nunca vem mesmo!

“Elee shooftou, able ma tshoufak eineya (O que eu vi antes, vocês viram meus olhos),

Omr da-yea, yeihseibou eizai alaya (É uma vida perdida, contando isso, como em mim)...”

--Dona Adma, hora de tomar a Dipirona! – uma cuidadora se aproximava com um comprimido em uma das mãos e um copo de água em outra – E vamos vendo essa fralda aí pro mijo não sair escorrendo perna abaixo, viu? – advertiu

--Agora é hora de Tylex, sua uma irresponsável! – a idosa protestou de cara feia – E veja como fala comigo, porque nunca vivi me urinando por aí! – reclamou – Preste atenção, aHHa!

--Ih, é Tylex mesmo. – admitiu – Cleide, -- chamou a colega – passa aí os comprimido da véia! – pediu

--Porr*, Marcilene, tu é foda, viu? – reclamou – Presta atenção, porr*! – foi para a cozinha

--Olha palavreado na minha casa! – Adma ralhou – E que negócio de me chamar de véia?

“Inta omri, elee eibtada bei nourak saba (Você é minha vida que começou esta manhã contigo),

Adei eih men omree ablak rah wei ada, ya habibi (Muito da minha vida antes de você já passou, meu querido)...

Inta Omri. Intérprete: Oum Kalthoum. Compositores: Ahmed Shafik / Mohamed Abdel Wehab. In: Inta Omri. Sono Cairo, 1964. 1 LP (~59min)

--Ô, dona Adma, vou baixar a altura desse som, tá? – Marcilene decidiu – Porr* de música feia, cafona! – falou em voz mais baixa

--Eu te pedi isso, pedi? – Adma gesticulou revoltada – Trate de deixar a música na altura que estava! – ordenou em vão

Estou com 80 anos, cadeirante e com o braço esquerdo permanentemente tremendo por causa do Parkinson. Já não mando em nada, decido nada e depois ninguém entende por que vivo de mau humor... Cuidadoras e diaristas vêm e vão; pessoas roubam meus pertences. Como me arrependo por ter me casado com um empresário brasileiro e dito “não” ao convite para ser atriz em Hollywood... Minha vida hoje seria bem outra!

**YESMIN**

--Bom dia, queridos, queridas e querides! – Yesmin saudava seus funcionários ao entrar na sala de reunião – Scheila, o pessoal fora do Rio já tá on? – perguntou à secretária enquanto deixava a pastinha sobre a mesa – A conversa aqui hoje é muito séria, decisiva e eu quero a BoFe toda conectada comigo! – referia-se ao nome da empresa

--Todo mundo on, dona Yesmin! – respondeu de pronto

--Perfeito! – preparou-se para começar a apresentação – Quero total atenção do time porque o destino da Builders of the Future vai mudar radicalmente a partir de hoje! – falava com empolgação

Meu nome é Yesmin Zahia Torricelli, tenho 52 anos, sou casada, tô inteiraça, gata e sempre me cuidando. Moro numa cobertura situada no quilômetro quadrado mais caro do Rio. Tenho formação em engenharia de produção e ciência da computação, sendo a atual CEO da empresa Builders of the Future, a BoFe, que é uma organização de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias avançadas de Inteligência Artificial (IA). Minha meta profissional, e até pessoal, é trabalhar para garantir que a IA mude o destino da humanidade!

--Daí como deixei bem claro a todos aqui, é fato que não vale a pena querermos disputar com as grandes que vieram antes de nós e geram receitas imensas com motores de buscas e publicidade direcionada. – caminhava pela sala olhando para os demais – Tampouco disputar com as outras grandes que monetizam às custas de redes sociais ou vendas on-line. – falava com propriedade – Essas empresas induzem as pessoas ao consumo com base na captação do superávit comportamental delas e com o que aprendem a partir desses dados. – mirou um ponto no infinito – Nós iremos além, bem além! – clicou no passador de slides e mostrou uma tela nova – Nós vamos moldar o futuro induzindo as pessoas a fazerem exatamente o que nós queremos que elas façam! – sorria – Apresento-lhes o projeto FalaGPiTaco: um modelo de linguagem avançado que será treinado com dados públicos e preparado para interagir de forma natural, entender e gerar texto em diversos contextos, oferecendo informações, dicas, conselhos, ou seja, -- pausou brevemente – vai dar muitos pitacos na vida dos outros! – riu brevemente – Penso, inclusive, num momento posterior, de fazermos a ferramenta gerar imagens, áudios, músicas e até vídeos! – sentia-se empolgada

--FalaGPiTaco?? – um analista de sistemas perguntou surpreso – E quem vai levar uma ferramenta com esse nome a sério, chefia? – estava descrente – E desenvolver um negócio desses não vai ser nada fácil! Não existe nada igual a isso no mundo! Seremos nós, aqui no Brasil, capazes de uma meta tão ousada?

Desmanchou o sorriso e olhou para o homem com seriedade. – Se você vive essa dúvida, meu caro, então não merece fazer parte do staff da BoFe! – afirmou com semblante firme

Todos os demais gelaram.

--Certamente outras concorrentes aí fora devem estar trabalhando em projetos do tipo, ou ao menos pensando em fazer, mas nós vamos sair na frente de todas elas e nos aproveitar de certos diferenciais competitivos! – falava com ênfase – Quero ver o FalaGPiTaco em versão beta pros primeiros testes com o público externo dentro de 6 meses! -- ordenou

--SEIS MESES?! – os funcionários perguntaram em choque

Eu não sou do tipo que pede licença pro destino. EU decido! Minha vida toda flui do jeito como quero e não tolero que na empresa seja diferente. A única exceção é minha filha de 18 anos, Stefany. Fui mãe aos 34 e talvez por isso devo ter sido meio boba. Ainda não consegui colocar aquela menina sob controle!

**STEFANY**

--Começa a gravar assim que eu levantar a blusa! – a jovem pediu falando alto– Quando chegar a 200, eu abro o teto solar, fico de pé e você capricha. – olhou rapidamente para a amiga – Posta direto no Fuçagram!

--Cara, isso é muito irado mas cê tá dirigindo, Stefany! – a moça respondeu preocupada – E se a porr* do carro bater enquanto você tiver de pé?

--Deixa de encagaçar, Luiza? – reclamou achando graça – Vai ser assim e fim! – decidiu – Eu quero curtir, quero receber curtidas e na vida é assim: se não tiver no Fuçagram é porque não aconteceu! – viu que o velocímetro marcava 200 km/h – Que comece o show, uhu!!! – abriu o teto solar, ficou de pé e levantou a blusa mostrando os seios – UHU!!! – gritou

Pra mim a vida que vale é como um reality show. Eu quero curtir ao limite e que todo mundo veja e fique me seguindo, stalkeando... Curtidas, likes, followers, comments, é isso que me dá prazer ao final! Amo viralizar meus posts e ver que tem gente engajada na minha!

Tô nem aí pro futuro. Minha mãe é CEO de uma empresa de tecnologia super fodástica e meu pai um psiquiatra famoso cheio dos clientes ricaços. Com uma herança dessas pra que eu vou me abalar? Fala sério, né? Tô terminando o ensino médio e se cismar, de repente, vou pra uma facul pra tirar onda num curso de web designer, jornalismo ou sei lá o que. Pode me ajudar a bombar como digital influencer. Tirar uma de intelectual pode ser divertido huahuahuahua!!

--Ih, olha lá a Valentina se pegando com aquela mina toda tatuada! – uma jovem apontou com o copo de bebida – Sabia que dizem que ela tá nessa de pegar mulher estranha nas festas só pra receber curtidas? – achou graça – Eu que não encarava uma sapata daquelas! – riu novamente

--Ela, eu não sei. – entregou o copo ao garçom que passou – Mas eu pego o boy ou a mina que me interessar. – falava sensualmente – E nessa noite eu juro que cê tá me deixando mais alta que a bebida. –olhou para a outra de cima a baixo – Tá difícil resistir...

--Que é isso, Stefany? – perguntou envergonhada – Agora você me deixou até sem saber o que dizer... – não conseguia encarar a outra

--Vamos ver se consigo te fazer ficar sem saber o que pensar! – segurou a amiga pelo rosto e a beijou nos lábios com fúria – “Tomara que Jessica tire uma foto boa da gente pra eu postar logo mais!” – pensou – “Eu falei pra ela que dava uns pega na Giordana hoje!”

Viagens, festas, balada, praia, shopping e dirigir a mil por hora, esse é a minha vibe. E que um monte de gente por aí morra de invejaaa!!!

Fim do capítulo