Não pergunte o porquê
Fátima se levantava sempre mais cedo do que qualquer um daquela casa. Sempre fora assim. Abria os olhos, e seu primeiro pensamento assim que recobria a consciência por completo da noite de sono, era o que tinha que fazer no dia.
Água no fogo, porta do quintal aberta, um respirar fundo e uma oração silenciosa. Assim que o café ficava pronto, a garrafa posta na mesa, pegava os trocados que ficava em cima do armário que suportava a televisão e ia comprar o pão fresquinho na esquina de casa. Um cumprimento ao padeiro, o papel pardo morno em mãos, o bater de volta no portão.
Helena ainda dormia, de bruços, a cabeça levemente inclinada para a esquerda, envolvida em seu sono profundo. Sua tia a olhava pela fresta da porta entreaberta. Parecia tão frágil ali que pensou até mesmo em entrar no quarto e se sentar ao seu lado, apoiando a mão na sua cabeça, como um gesto que a pudesse protegê-la de todo o mal que pudesse pensar em se aproximar da mesma.
No entanto, ainda tinha a roupa de Assis para passar, seus sapatos para lustrar e as meias brancas para separar. O uniforme na tábua de passar, devidamente alinhado para que os vincos se firmassem uma vez mais. Deixou a calça e a camisa ali dispostas para que não se tivesse o risco de amassar. Depois, foi até o sofá e, deixando as meias lavadas à mão no encosto do sofá, se dispunha a engraxar os sapatos com o pano umedecido de graxa até que começassem a brilhar, os colocando abaixo da mesa para que ele já os localizassem.
Lavou as mãos, e foi para o lado de fora. Começava a aparecer os primeiros sinais do dia quando seu telefone tocou. Era Cassandra. Primeiro, uma benção seguida para saber se estava tudo bem na casa, então vinha as perguntas.
“Como está a Helena? Ela está dormindo bem? Comendo direito? Ela tem falado se está gostando do trabalho? Ela tem conversado com vocês? Ela está se enturmando? O que ela anda fazendo no tempo livre dela para ocupar a mente? Ela já colocou o aparelho? Como assim não colocou?!”
Começava a vociferar, dizendo que iria ligar para Helena e mostrar para ela as verdades que ela não queria lidar, e, como sempre, Fátima pedindo para que tivesse calma, que Helena tinha o tempo dela e, quanto mais brigasse com ela pelas mesmas coisas, menos ela iria querer manter contato. Não era isso que ela queria, no final das contas. Um suspiro cansado do outro lado da linha. As coisas não estavam fáceis para o lado de lá. Trabalhavam demais, e pareciam e ganhar de menos. Pensava em ir atrás de outro emprego ou qualquer outra coisa que complementasse a renda, mas estava difícil.
Então, aquela pergunta, e a resposta de sempre.
“Não, eu acho que não.”
Ouviu os passos de alguém vindo, e logo teve que desligar. Era Assis, indo para o banheiro tomar seu banho. Tomaram café como o habitual, se despediram e ela continuou com as tarefas domésticas. Helena ainda dormia. Devia ter ficado até mais tarde lendo ou vendo televisão. Não era do tipo de pessoa que passava muito tempo no telefone, e isso se dava a toda vez que o estava em mãos, reclamava da irmã mandando mensagens ou querendo contato a todo instante. Já havia tentado conversar com ela sobre isso, mas, sem sucesso.
Louça lavada, casa varrida e feijão no fogo. Sentava-se no sofá, ligava a televisão, pegava a sacola que ficava ao lado do encosto direito do sofá, e com linha e agulhas em mãos, começava a tricotar. Estava fazendo um conjunto novo de tapetes para o banheiro há pelo menos duas semanas, e já devia estar na terceira volta do suporte para papéis higiênicos quando Helena se levantou, deu bom dia e seguiu para a cozinha. Tomou o café, e se sentou ao seu lado para também ver a televisão.
Deveria perguntar para ela como estava sendo as coisas no trabalho? Como estava se sentindo? Helena nunca falava nada, e quando questionada, era só um “sim”, “não”, ou uma frase curta como resposta.
Só que, com o toque no ombro, ela chamou sua atenção, coisa que poucas vezes fazia. Pigarreou, e começou a falar.
“Tia, quero lhe dizer uma coisa.”
Perguntou com atenção para ela sobre qual assunto se tratava.
“Posso ir com a Daniele para o trabalho?” Ela tinha sugerido isso da última vez que tinham se encontrado. Além do mais, sua casa ficava no caminho para lá.
Fátima exasperou por um segundo. Quando se tornaram tão próximas? Não iria questionar aquilo naquele momento, mas seu pensamento posterior a isso foi se perguntar se aquilo era uma boa ideia. Primeiro, porque não gostava da ideia da Helena andando sozinha na rua no começo da noite. Segundo, estaria andando para a casa de Daniele, indo a encontrar todo dia, caminhando juntas, provavelmente conversando ou tendo algum nível de intimidade proporcionada pela amizade que formava. Por mais que pudesse alegar que trabalhavam juntas, com certeza falariam alguma coisa, e terceiro...
Ainda imersa em pensamentos, Fátima notou a angústia que tomava conta de uma Helena sem resposta. Logo, também começou a ficar angustiada para dar seu parecer final sobre a pergunta. A sobrinha, que já era fechada, poderia ficar ainda mais por querer impedir que a única colega que estava fazendo ali a encontrasse. Depois, pensou que talvez estivesse pensando demais. São meninas da mesma idade, com gostos em comum e que trabalham juntas, por que não poderiam ser vistas juntas? Não aconteceria de um jeito ou outro? Helena cerrou as sobrancelhas, e virou o rosto de volta para a televisão. Já tinha tomado suas conclusões, mas Fátima tocou no seu ombro de volta.
“Claro que pode, minha filha. Não tem problema algum.”
A simpatia voltava aos ares. Perguntou se poderia ser a partir de hoje, e ela mais uma vez disse que não havia nenhuma questão sobre. Apenas concordou com um aceno e voltou a ver o programa, e Fátima ao seu crochê. Voltou para o quarto, e a tia à cozinha para terminar o almoço. Saiu do quarto quando sentiu o cheiro de carne assada invadir a cozinha e arrumou os pratos. Assis não iria almoçar em casa naquele dia, então as duas se fizeram companhia na mesa. Fátima tirava o cochilo da tarde e Helena via alguns vídeos aprimorando um de seus truques com o baralho.
Se seus pensamentos pudessem ser lidos, neles estariam evidentes em como ela se divertia consigo imaginando a cara de Daniele ao ver como ela adivinharia a carta que seria tirada do monte. Isso sempre impressionava as pessoas, mesmo sendo um gesto mais simples do que imaginavam. Já Fátima, ao se levantar no meio da tarde, fez o café e deixou o jantar de prontidão para o marido que logo chegaria. Viu Helena passar para o banheiro. Ligou a televisão mais uma vez, mas, em vez de se voltar para o suporte que fazia, pegou o telefone. Disse a Sueli sobre a investida das garotas, mas não obteve resposta imediata.
Quando ouviu Helena destrancando o banheiro, se voltou entre os novelos coloridos. Ao voltar já uniformizada, sua tia gesticulou até chamar sua atenção e ofereceu café. Agradeceu, mas recusou, alegando que tomaria no trabalho. Pegou a mochila, se despediu e foi embora. Ao ouvir o trancar do portão, pegou o telefone de volta.
“Daniele já tinha dito. Está esperando aqui na frente, inclusive.”
Orou mais uma vez consigo, torcendo para que tudo desse certo. Tinha medo de tantas coisas que não conseguia listá-las, mas, suas preocupações logo se dissiparam quando Assis chegou, deu um beijo no topo de sua cabeça e perguntou como tinha sido o dia enquanto falava do que tinha acontecido no trabalho.
Jantaram juntos, e conversaram sobre o novo passo de independência de Helena. O esposo, compassivo, mandava ela se preocupar menos e afirmava que Helena era tudo, menos frágil, por mais que parecesse, e que deveria parar de se influenciar tanto pelo que a irmã controladora dela falava. Lavou a louça mais uma vez, viu Assis sair para jogar, foi tomar banho e assistir à novela a qual não perdia um capítulo. Nisso seu telefone vibrou. Era Sueli.
“Tenho medo do que Isidoro pode achar disso.”
Era um dos seus maiores temores. No entanto, a resposta que a amiga e confidente esperava veio em seguida.
“Isso não será outra preocupação para sua vida. Eu garanto”.
O marido chegou pouco depois do final da novela. Foram se deitar juntos e, vencidos pelo cansaço da rotina, nem mesmo ouviram a porta se abrindo no dia posterior.
Fim do capítulo
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