Capitulo 46
Cap 46 - acontecimentos premeditados - Flávia
- Sr Luiz? Desculpa, estava com o carro na estrada.
- Estacionou menina?
- Sim, sr Luiz. O que aconteceu?
- Você está onde filha?
- Estou perto de Araraquara, a umas 5 ou 6 horas de São Paulo, vim fazer um interrogatório no interior, quase em Minas. O que aconteceu? Tá tudo bem com a Fabi? Sr Luiz, como está a Fabi? Não me esconde nada, por favor.
- Vem pra São Paulo que conversamos.
- O que está acontecendo, sr Luiz, me fala por favor. A Fabi morreu? - perguntei sem filtro, minha apreensão estava gigante, meu coração na boca.
- Ainda não, mas está bem perto Flávia, vem pra cá, vem se despedir dela - Essa sensação vai ser difícil explicar, mais tudo que estava acontecendo em volta parou, diria que por segundos meu coração também. Aquela tensão no corpo, ousaria dizer que deu para sentir o jato de adrenalina passando pelo corpo, me tirando o calor, gelando o corpo, empalidecendo as extremidades.
- Eu vou acelerar aqui, sr Luiz, vou direto pro hospital - consegui responder segundos depois.
- Vem com calma minha filha, não precisamos de mais uma nessa situação, vem em segurança.
- Em umas 5 ou 6 horas eu chego aí, tô indo - Eu não esperei o sr Luiz responder ou se despedir, eu desliguei o celular e segui para a viatura. A Bia que estava ao meu lado, correu também, em direção ao motorista.
- Me dá a chave! Você não vai dirigir - me falou, suavemente.
- Claro que não, estou em condições para dirigir. Precisamos chegar rápido em São Paulo.
- Me dá a chave Flávia - colocou a mão na porta do carro - Não vou deixar você sentar nesse volante.
- Bia, eu tô em condições, só quero chegar logo.
- Exatamente, me dá a chave e vamos, simples - eu olhei pra Bia, pra toda aquela firmeza dela, realmente se colocando a frente - Ou volta sozinha ou me dá a chave - Não quis perder mais tempo discutindo, entreguei a chave pra ela - Simples né?! Vamos?
Entrei no carro em um silêncio absoluto, naquele momento nada passava pela momentânea cabeça, houve um clarão apenas, nada. Não sei se eu entrei em choque ou se eu travei, não sei. Minha mente ficou em branco, olhando pro restaurante que paramos, esperando a Beatriz acertar banco, retrovisor.
- Flavinha, quer conversar? O que o sr Luiz falou? Como a Fabi está? - ela falou olhando pra mim, não consegui responder, o clarão se manteve. Eu senti que não fazia parte daquele corpo, nem daquele momento. Consegui apenas sacudir o rosto, sem olhar pra ela - Tudo bem, no seu tempo. Quando quiser falar eu estou aqui - esticou a mão e passou no meu rosto, como carinho.
A Bia seguiu viagem com o carro, em uma velocidade que garantia segurança, mas que garante que chegue amanhã. Não consegui conversar. Aos poucos fui observando as paisagens e lembrei da Fabi, os cabelos negros esticados no ombro, ela tem alguma descendencia indígena, cabelos que foram enclausurados em coques muitas vezes, em muitas operações, mas cabelo que era uma delícia segurar forte, puxar.
Me lembrei dela, subindo a escada da academia que eu trabalhava, ela como aluna e eu na recepção, limpeza, manutenção e tudo. O cheiro do desinfetante que eu passava lá veio no meu nariz, na minha memória. Lembro que me encantei pela Fabíola na primeira vez que a vi. Mas eu sempre fui bobona, devagar, e ela de muito mais atitude que eu, ela que chegou em mim primeiro. Toda cheia de atitude, com uma roupa de academia colada no corpo, ela que puxou papo comigo, me convidou pra um açaí.
Lá na comunidade que morávamos tinha uma pedreira desativada, que fazia a alegria da molecada mais velha. Formava uma piscina, um lago depois da chuva. Hoje com um pouco mais de ensino e instrução penso na sujeira que deveria ser aquilo ou todas as doenças que poderia passar. Nosso primeiro beijo foi lá, depois de um dia no clube, o clube que os favelados da Brasilândia conseguem ir. Por isso a Roberta, minha irmã drogada, solta que eu “achei a Fabi na pedreira”. Nesse mesmo dia, enquanto eu beijava a Fabi, a Alice, irmã traficante, vendia pó mais pra frente e a Roberta, usuária, ficava louca. Como qualquer situação de comunidade, a realidade é meio que essa, não há divisão do lugar do pó e da diversão, é meio que a mesma coisa.
Eu e a Fabi aprendemos a crescer juntas, ela não sabia o que fazer depois do ensino médio, não tinha dinheiro pra faculdade, muito menos para cursinho para tentar uma universidade pública, mas era dedicada e muito inteligente. Dei a ideia de fazermos o concurso para polícia, para a civil e militar. Ela, um ano mais velha, começou a se dedicar aos estudos, trabalhava como vendedora de tarde e de manhã queimava o neurônio nas apostilas para polícia civil, pode não ter sido a melhor carreira, mas foi a carreira que abriu as portas, deu o recurso para começar. Mas infelizmente também foi a carreira que me tirou dela.
Enquanto eu ia lembrando desses momentos da nossa história, eu comecei a ter uma dor no peito, em aperto, tão forte, acompanhada de uma falta de ar e as lágrimas começaram a cair dos meus olhos, caindo sem controle, caindo copiosamente. Primeiro eu tentei me segurar, tentei respirar fundo, não queria chamar a atenção da Beatriz. Mas chegou uma hora que o ar não entrava mais, meu peito estava explodindo, eu tentava respirar e não ia, comecei a soltar o som, chorando, copiosamente, copiosamente mesmo, eu não conseguia parar. Por mais que eu tentasse segurar o choro, ele vinha, em um grito.
A Bia, ao meu lado e dirigindo, colocou a mão na minha perna e perguntou: Quer que eu pare o carro? - eu não consegui falar, no máximo sacodi o rosto com um não e virei abruptamente para o lado da janela, ficando em uma desconfortável posição de conchinha, casulo, fetal, para que eu pudesse chorar, em paz, até o fim dos tempos, e como doeu esse choro. Foram lágrimas seguidas de soluços profundos, intensas.
- Vem Flavinha - eu acordei assustada com a mão da Bia no meu rosto - desce, vamos tomar uma água, um café.
Estamos com a viatura parada em um desses restaurantes, franquias de beira de estrada. Minha cabeça estava latejando, pulsando, os olhos apertados e uma vontade de vomitar absurda.
- Quanto tempo eu dormi?
- acho que uma hora e meia mais ou menos, deixei você descansar. Vem, vamos tomar café para elevar sua moral.
- Não quero Bia, me deixa aqui. Só quero ficar aqui, quieta.
- Levanta Flávia - ela estava agachada, levantou, ainda em um tom calmo - eu vou tomar um café e não vou sozinha. Vem comigo, isso não é uma opção - a bonita falou firme, séria. Eu levantei do banco a contra gosto, esperei ela trancar a viatura e segui em silêncio para dentro do restaurante. Primeiro passei no banheiro, lavei o rosto, joguei água, meus olhos estavam inchados e posso dizer que já estava um pouco acabada. Fui me arrastando para o salão. Encontrei a Beatriz sentadinha já, mexendo no celular - Pedi um café preto pra você é uma coxa creme.
- Não estou com fome, Bia.
- Ah, Flávia, vai comer sim! - falou firme e séria - você começa a ficar triste, ter um problema, a primeira coisa que você deixa de fazer é comer. Já te conheço dona Flávia. E outra, como você vai superar tudo isso, segurar essa barra? Aguentar sua sogra, ver a Fabíola, se não conseguir ficar em pé? Porque se não comer, é isso, não vai ficar em pé - Olhei diretamente pra Bia, seria, firme, com uma postura respeitosa, mas de quem sabia o que estava falando, já maquinado a próxima resposta para minha negação.
- Você está certa.
- Claro que eu estou! Olha já o estado que você ficou só do sr Luiz te ligar. Imagina a bomba, o quanto desgastante vai ser pra você - eu não queria conversar isso com a Bia, não queria nem que ela me visse nessa situação - Flávia, eu quero você bem, em que você precisar eu tô aqui, não precisa me falar nada, mas estou aqui - Não consegui responder, só sacodi a cabeça e aceitei o carinho dela na minha mão - Você não acha importante avisar a Bruna? Não quero me intrometer, nem sei o que está acontecendo. Mas você não está bem, nunca te vi chorando dessa forma, você vai precisar de apoio, alguém junto. Não seria bom avisar a Bruna? Só uma ideia.
Fomos interrompidas pela mocinha trazendo os cafés e os salgados. A Bia ficou me olhando, esperando eu pegar no tranco e comer, achei muito bonitinho esse cuidado dela comigo. Quando eu coloquei um pedaço da coxinha na boca, a visão até brilhou, eu estava com fome, não dá pra esquecer que já tinha dirigido umas 4 horas e recebido uma notícia pesada. Depois que o primeiro pedaço desceu, o resto eu comi de bom grado, com um café preto, amargo, ruim, mas que ajudou, acordei.
Tomamos o lanche sem enrolar muito, a Bia tinha noção de que eu queria chegar logo em São Paulo. Nem meia hora depois já estávamos na estrada novamente, na velocidade de segurança dela. Apesar que nem posso reclamar, é melhor mesmo ela dirigir, eu estou muito dispersa, cansada. Peguei meu celular, se eu procurar foto da Fabíola, vai ter, aos montes, mas são fotos antigas, não vão me mostrar nem de perto como ela está hoje e confesso que não quero pensar, só quero chegar a tempo de pelo menos me despedir dela. Eu não entrei em detalhes com o Sr Luiz, mas será que eu vou poder chegar perto da Fabi? Há uma medida protetiva me impedindo disso.
Abri o WhatsApp, por um tempo pensei, aviso a Bruna ou não, mas a Bia não está errada, eu preciso de apoio, preciso de alguém comigo, e a melhor pessoa pra isso é minha namorada, que é a Bruna.
“ Bru… pode falar agora?”
“ Oi amor. Tá corrido aqui, mas claro, fala”
“ O pai da Fabi me ligou, o sr Luiz, ela tá indo”
“ Indo? Pra onde Fla? Ela não estava em coma?”
“ Isso. Ela está morrendo, ele não quis me contar exatamente, mas eu entendi pelas palavras dele”
“ Finalmente!” “Isso é bom amor, vai parar de pensar nela sempre, vai poder desligar dela”. “ Já tem horário de sepultamento? “
“ Bru, ela não morreu. Está no processo de morte!”
“Ah, entendi”. “Nada mudou?” “ É só esperar, então?” - Eu não respondi, não quis mais responder. Coloquei o celular no silencioso, voltei a sentar meio de lado, olhando a estrada, os pastos. A viatura é velha, o banco é seco, incômodo. Logo tive que voltar para a posição correta. Mesmo com o corpo para frente, olhei por um tempo para o lado, admirando os pastos. O olhar da Beatriz estava sempre comigo, dava pra sentir a preocupação dela, e isso me incomoda, não gosto de ser estorvo para ninguém, não quero ela cuidando de mim. Quem precisa de cuidado e paz é a Fabíola, que está nessa situação por minha culpa, por um cansaço e desatenção minha, por uma mentira minha. Até hoje eu revivo mil vezes aquele dia no vestiário: “ Você está bem Flávia, está em condições de ir nessa operação? Eu menti, respondi que sim, mas na verdade eu estava com sono, muito sono, isso pode ser fatal em uma operação, segundos de letargia, um reflexo mais lento, custa a vida de um companheiro, custar sua própria vida. Nesse caso meu cansaço, minha negligência custou a vida da única mulher que eu amei, desse ser humano extraordinário.
A Bia se manteve atenta comigo, olhando o tempo todo, prestando atenção a minha reação. O cuidado dela me chama a atenção, colocou pra rodar uma playlist que que gosto, de MPB. Deixou rodando, esperando, torcendo para eu me acalmar. Ela colocou a mão na minha coxa, deu pra sentir o tremor dela, o medo da ação dela, mas eu aceitei. Estou vivendo um momento ambíguo, de querer ser cuidada e de me odiar, querer me quebrar em dois e sumir do mapa. Conforme fomos nos aproximando de São Paulo eu fui ficando mais tensa, mais assustada.
- Vamos pra casa, te deixo lá e vou pro hospital - falei para a Bia.
- Você falou com a Bruna? Ela vai ir com você? - Beatriz sempre sabe me bater, caramba.
- Eu vou sozinha Bi, vou te deixar em casa, pra você fazer suas coisas e eu sigo pro hospital.
- Qual o endereço do hospital? Vou pra lá com você!
- Claro que não Bia - Tá, então me deixa lá e eu pego um Uber ou um ônibus depois.
- Flávia, eu vou ficar com você lá no hospital. Só abriria mão disso se a Bruna, sua namorada, fosse lá ficar com você. Sozinha você não vai ficar.
- Bia, eu causei tudo isso cara. Me larga lá que eu assumo minhas merd*s - meu olho começou a encher de lágrima de novo. Ela calmamente colocou a mão na minha perna, fazendo carinho e falando “calma, estou aqui, calma”. Voltei a chorar, soluçando. Quanta coisa no meu peito, quanta dor.
- Flávia, vou usar sua própria frase. Eu só vou embora se você pedir. - acho que foi meu primeiro sorriso desde que o sr Luiz me ligou.
Mais de uma hora depois, quase 3 da tarde, até um pouco mais, chegamos a zona sul de São Paulo, na região do Brooklin, eu não lembrava os detalhes das ruas até chegar no hospital, então a Bia colocou no GPS. Passamos pela lateral do hospital, procurando uma vaga para estacionar. Se fosse eu dirigindo, caminhoneira, já tinha feito baliza e enfiado o carro na vaga, mas a Beatriz só estaciona em vaga que ela entra de frente. Conseguimos uma na lateral do hospital. Faz uns 2 anos e pouco que não venho aqui, a fachada continua azul, limpa e muito bonita. É um hospital que posso dizer que bem caro, na época a Polícia civil, através da assistência social, conseguiu acertar uma vaga pra Fabíola. Esse hospital é destinado a cuidados paliativos, e eu posso garantir, pessoalmente, que a segurança é muito boa.
Estacionamos na lateral do hospital e parece que meu corpo não queria sair do carro, acho que uma autodefesa, medo do que poderia estar próximo. Sai do carro com um certo custo, e as pernas pareciam que não seguiam meus comandos.
- Flavinha, eu estou aqui com você. Pensa sempre no quanto você é forte, tudo que fez e o quanto você pediu por isso, que a Fabi fosse embora, o quanto é uma liberdade pra ela e pra você - eu ainda encostada no carro, voltei a chorar, a Bia esticou os braços, me oferecendo apoio. Eu fui! Ela me abraçou e ficou lá, até eu me soltar. Não falei, não respondi. Levantei o rosto, puxei um ar bem fundo e soltei com calma, assoprando. Preciso seguir em frente, por mais que doa em mim, esse é o momento da Fabi. Eu preciso rezar, amar ela. Virei a esquina, em direção ao acesso do hospital, tentando manter a calma, mas não durou nada. Logo na frente, saindo do hospital, estava a família da Fabi, pessoas que eu convivi por anos, pessoas que faziam parte do meu final de semana desde os 16 anos. A Dona Arminda, mãe da Fabi, quando me viu, abriu um olhar de ódio, que mesmo a uma certa distância eu percebi. O Sr Luiz, como sempre mais centrado e calmo, já foi para frente da Dona Arminda, não sei se exatamente para segurar ou só para barrar.
- O que você está fazendo aqui? Você avisou ela, Luiz? Fala Luiz! - Essas foram as primeiras coisas que a Dona Arminda gritou pra mim, gritou no meio da rua, na frente de quem estava passando. Por mais que eu esperasse, as palavras começaram a doer - Não vai entrar, não vai! Você fez isso com ela, você! Animal! Maldito dia que minha filha te conheceu - a essa altura eu já estava chorando, desabando dentro de mim, não sei, talvez já anestesiada a um ponto que só estivesse o corpo ali. Eu estava vendo a cena ocorrer na minha frente mas era como se eu não estivesse mais ali. A Rogéria, prima da Fabíola, tentou conversar com a Dona Arminda e colocar ela no carro, ela estava fora do corpo também, fora dos sentidos normais de um ser humano, o que a dor pode fazer com as pessoas.
Quando a velha conseguiu entrar no carro, esbravejando e gritando, o Sr Luiz conseguiu se aproximar de mim. Ao tempo que a Dona Arminda é o cão ch*pando manga, o Sr Luiz é um anjo, um ser humano evoluído. Ele aparentando calma me abraçou, transmitindo uma energia de paz, meus olhos voltaram a pingar, eu não conseguia mais segurar.
- Desculpa por isso filha. A Arminda está fora de si. Eu estou tão aliviado Flávia, tanto! Quantas vezes conversamos sobre esse dia. Acho que se dependesse de nós dois a Fabi não passaria por isso nunca, não teriamos investido jamais. Finalmente filha, finalmente - ele falou após soltar do abraço, mas segurando minhas mãos, sendo o ser humano de luz que ele é.
- Como ela está Sr Luiz?
- Indo, a minha expectativa é que não passe de hoje. A respiração dela já está estranha, puxa, para, soltar, aquela respiração agonizante.
- Ela está sofrendo?
- Não filha, ela está sendo libertada. Passei o dia lá com ela, coloquei as musiquinhas que ela gostava, conversei muito com ela, rezei. É o que eu posso fazer agora e quero que faça isso também. Sobe lá, abraça sua namorada, se despede dela.
- Sr Luiz, e a medida protetiva? O hospital não vai me dar acesso, muito menos a dona Arminda.
- Eu conversei com a equipe, falei que sou o pai da Fabíola. E eu sou, posso não ser biológico, mas sou. Não entrei nesses detalhes. A equipe da semi intensiva sabe que você está para chegar.
- A dona Arminda vai chamar a polícia. Vou ser presa.
- A Arminda eu seguro. Sobe lá filha, dá um beijo na Fabíola, se despede dela - ele me deu um novo abraço - eu vou embora, qualquer coisa me liga. E… Flávia… - falou após alguns passos de afastamento.
- Oi Sr Luiz.
- Você não tem culpa. Eu tenho um orgulho imenso da pessoa que você ajudou a Fabi a se tornar. Vocês seriam enormes juntas. Ela também tem orgulho de você - se em algum momento eu consegui segurar o choro, desabei novamente. Entrei no hospital, com os olhos inchados, tentando segurar o choro. Eu estou destruída. A Bia que se prontificou a ir na recepção e se apresentar, me apresentar. Minutos depois, liberaram nosso acesso ao segundo lugar, onde fica a unidade semi intensiva. Subimos andando, pela rampa, aquele cheiro de hospital, o barulho de pessoas falando, tudo parecia estar em outra dimensão, não onde eu estou.
A semi intensiva fica no mesmo lugar que a última vez que eu vim, há 3 anos, no segundo andar, na viradinha do corredor. Parece que estou revivendo tudo, o lugar é o mesmo. Quando toquei a campainha da UTI saiu uma técnica, muito educada, calma.
- Sra Flávia? - a Bia até tinha sentado em uma cadeirinha, mas eu não aguentei, estava em lê, andando de um lado pro outro.
- Pronto.
- Pode entrar - acho que essa é a frase que eu mais queria ter ouvido nos últimos anos, que eu podia entrar para ver a Fabíola. Acho que eu sorri nesse momento, porque era isso que estava acontecendo, eu estava sorrindo por dentro. Eu iria ver minha pequena rabugenta! A Bia perguntou se queria que ela entrasse junto, falei que não precisava. A expectativa era tanta, que o coração estava saindo pela boca.
A sala tinha 4 camas, uma ao lado da outra, separadas por cortininhas azul. Então eu não tinha acesso visual a onde estava a Fabíola. Acho que isso fez a ansiedade dar mais uma elevada. Fui andando atrás da Técnica de enfermagem, passamos pelo primeiro box e não paramos, fomos parar no segundo. Quando eu olhei por mais que eu saiba que o tempo passou, pra mim não passou. Lá estava a mini ranhenta, a pintinho pistola, o amor da minha vida, a Fabi. Estava completamente inconsciente, como a última vez que eu a vi, mas muito mais magra, pálida, descorada.
Meu coração tava batendo em um toque diferente, jamais em nenhum momento dó. Eu estava, claro, com raiva de mim, mas em um alívio imenso de ver a Fabi e mais ainda de saber que ela está partindo. Com muito cuidado, encostei na pele dela, no pé, frio, gelado, branco. Fui com carinho passando a mão nela, nenhuma, absolutamente nenhuma reação, quando cheguei ao rosto dela, acho que desabei mais uma vez. Encostei lábio no lábio, enquanto eu fazia um cafuné no cabelo. Minha menina!
- Tô aqui Fabi, tô aqui amor! - acho que falei isso enquanto estava ali. Depois dei um beijinho na testa dela. Nenhuma reação em nenhum momento. O rosto dela estava de lado, apoiado sobre um coxim e lá ficou sem absolutamente nenhuma reação. A respiração realmente estava forçada igual o Sr Luiz falou, uma respiração pesada e do nada ela parava de respirar, voltava sozinha, respirava pesado e voltava a parar. Segurei sua mão, fria, gelada, segurei firme, forte e comecei a conversar com a Fabi:
- Meu amor, estou aqui linda! Vim me despedir de você gostosa! Vim te ver antes de você partir - comecei a falar com os olhos pingando, encostada na testa dela - Quanta saudade de você Fabi! Não faz ideia meu amor! Vai com Deus meu amor, eu te amo muito, muito. Você sabe o quanto eu te amo! E vou continuar sempre te amando. Vai em paz meu anjo, vai em paz Fabi! - meu choto foi ficando mais e mais intenso, levantei o rosto, mas não me afastei muito, continuei segurando a mão dela. Era nítido como a respiração da Fabi estava falhando. Ela estava sem respirar vários momentos.
Eu me sentei ao lado da cama, com a mão segurando a dela. E comecei a rezar. Nunca fui uma pessoa religiosa, nunca fui de ir na igreja ou algo assim, mas a Fabi rezava muito sozinha. Nunca me opus, nunca atrapalhei ou desvalorizei. Com ela aprendi algumas preces e que rezar traz boas energias, traz calma, momentos de paz. Então, por mais que eu tenha dificuldade, deixei meu coração falar naquele momento. E garanto que a saudade é grande, mas nada supera a sensação de alívio por ela estar partindo. Acho que algo que mais me doía era saber que ela estava presa nesse corpo, sem resposta. E poder ver a Fabi, nem que por alguns minutos, me permitiu sorrir de verdade. Como sou apaixonada por ela, como amo essa pequena mesmo após anos sem vê-la, mesmo na terminalidade.
Ainda sentada ao lado da cama dela, peguei meu celular e abri nas fotos. Fui mexendo, mexendo, achei uma nossa, há uns 4 anos atrás, quando estávamos pensando em casar. Tínhamos ido em uma feira de noivas, lá na Barra Funda. Olhando pra foto, comecei a falar, como se estivesse conversando com a Fabíola. “Lembra amor, quando fomos lá, na feira de noivas e aquele senhor não conseguia entender que éramos duas noivas. Eu estava vendo você jogar sua bolsa nele. Quase tive que te segurar - comecei a rir lembrando daquele dia - e a fila do sorvete? Lembra amor? Quase meia hora pra pegar um sorvete, na propaganda. Que sorvete doce, quase queimou a garganta de tão doce. Quantos momentos gostosos vivemos juntas né?! Como fui e sou feliz com você, Fabi! - a respiração dela está mais esparsa ainda, a pausa respiratória está maior do que quando cheguei.
Olhei mais uma vez o celular e achei outra foto nossa, mais jovem, com uns 20 anos - Fabi, lembra desse show que nós fomos? Lá no espaço das artes. Lembra? Não tínhamos pulseira pra área vip e quando começou a cair aquele pé d'água nos pulamos na área isolada? Lembra, eu não conseguia sair depois. O segurança correndo atrás de todo mundo que invadiu - comecei a rir! Tenho certeza que se ela estivesse aqui iria gargalhar comigo, como fizemos em outras lembranças como essa. Foi em um show popular, proporcionado pela prefeitura, com um cantor sertanejo que ela adorava. Caiu um pé d'água tão tão grande e eu ela, jovens e inconsequentes, pulamos a grade pra área vip, depois que a chuva acabou o segurança veio tirar todos. Eu desengonçada fiquei presa. Foi uma história para anos de piada.
- Tô lembrando aqui aquela trilha que fizemos em Trindade, lembra amor? A gente sacudindo no jeep até começar a trilha e o cachorrinho do guia no capô, melhor que a gente. Que vista linda quando chegamos lá! Não lembro o nome, você que costuma decorar o nome das coisas. Que cachoeira linda! No caminho nos comemos jaca e aquelas frutinhas que o guia nos deu! Tenho vontade de voltar lá, fazer de novo. Acho que faria correndo, como um trail, sabe Fabi? - eu parei de falar no momento em que houve um reflexo dela, como se fosse um engasgo, voltei a segurar a mão dela e fiquei perto dela. Algo me dizia que tinha chego a hora e eu estava pronta pra acompanhar a Fabi. Apenas fiquei ao lado dela, segurando sua mão, dizendo o quanto eu a amava, e ela teve um segundo engasgo, a língua foi alto na garganta, jogando todo o ar pra fora. E parou! Sem mais movimentos, sem mais respiração, sem mais reflexos, sem mais a minha menina, sem mais o amor da minha vida, minha paixão, quem me ensinou a acreditar em mim, que valorizava nossas conquistas, que me amava e me cuidava. Sem mais Fabíola!
Fim do capítulo
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Mara Oliveira
Em: 22/04/2024
Chorei ...vai Fabi descanse em paz ...Força Flavinha...
Bruna vai pro inferno quem tem vc como namorada não precisa de INIMIGOS....
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jake
Em: 22/04/2024
Que cap.forte
Intenso marcante .Bia como sempre apoiando e estando ao lado de Fla sempre nos momentos em que ela mais precisa, lembro do dia que Flávia se feriu na operação. Ela que estava lá. Enquanto Bruna tá nem aí egoísta como sempre.Ja deu Bruna ...some tá pf.
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