A conversa que tive com Bianca ficou martelando na minha cabeça. Na infância Xarid acreditava que todos os insetos eram simplesmente besouros e por não conseguir falar “besouro”, dizia “buzuzo”. Este acabou sendo seu apelido por muitos anos.

Não comentei com Bianca sobre isso, mas passei o resto do dia juntando os fatos e a cada momento tudo me parecia mais nítido. Tarde da noite, sozinha em minha cama, as lembranças pipocavam na mente.

 

“–O pior foi um telefonema que Elzira recebeu e não me deu palavra mas eu ouvi tudo! – Suhaila gesticulou – E só quero ver se vai ser besta como sempre! – deu um tapinha na coxa da outra

 

--Ai, tia... – passou a mão sobre a pele dolorida

 

--Que telefonema foi esse? – Camilla perguntou curiosa

 

--Foi seu irmão... – respondeu meio constrangida – Ele disse que te ligou e como não atendesse, ligou pra mim. Afinal de contas, né? Sou a madrinha dos menino dele (...) Ele queria saber da tia Suhaila e depois disse que... agora que a pandemia passou, os meninos pediram pra ir pros Estados Unidos...”

 

“– Depois passa lá na dinda pra ver maama. Ela se queixou que só você ainda não apareceu. – Camilla pausou brevemente – E Xarid, é claro. – salientou

 

--E eu não fui pela falta de tempo... – dizia a verdade – Mas vou amanhã mesmo, pode deixar! – prometeu – Quanto a Xarid não deixa ela ficar zangada com ele. – pediu – É que o pacote de viagem que ele comprou tinha data certa pra começar e se chegasse depois perdia tudo. – justificou – Quando ele marcou a viagem ninguém sabia que vocês vinham passar a Páscoa mais tia Leyna, não sabe? – sorriu sem graça

 

--Quando ele marcou a viagem que você bancou, né, prima? – percebeu que Elzira corou”

 

“Eu nunca vi compadre ou comadre algum fazer o que Xarid faz e como faz. Nunca vi madrinha como Elzira!” – pensei enquanto olhava para o teto – “Aline Maria vai na onda porque se sente estimulada pelo comportamento do marido!”

 

“--Chorando, Elzira? – Camilla perguntou ao surpreender a prima – A essa hora da noite, -- acendeu a luz – aqui na cozinha, no escuro... – aproximou-se – O que houve? – perguntou mansamente – Se não quiser falar, não fale. Mas tô aqui pra te dar um colo se precisar. – ofereceu

 

--Ai, prima... – secou o rosto com as mãos – É tudo e nada, não sabe? – olhou para a outra—(....) E essa minha vida amarrada, que nunca anda pra frente...”

 

“E logo depois daquilo, voltei de uma viagem de serviço e Xarid tava lá em casa!” – lembrei – “Ainda veio querer me chamar atenção por causa de maama!”

 

“--E se for por aparência, mil perdões, só que mal reconheço aquela que era tida como a menina mais bonita dessa cidade! Você tá se acabando ano após ano pra que? Por que?

 

--Pare com isso, prima! – levantou-se rapidamente e andou em direção a janela – Amo aqueles menino como se fosse filho meu! Os filho que nunca vou ter... – os olhos marejaram

 

--E eles não precisam que você se mate endividada pra te amar também! – levantou-se igualmente – Até quando vai se deixar explorar por Xarid e Aline Maria? – aproximou-se da outra – Por que permite que seja assim? – não entendia – Eles não merecem isso! Ninguém merece!

 

Elzira subitamente irrompeu num pranto sofrido que surpreendeu Camilla, a qual apenas a abraçou e ouviu calada seus soluços de dor.”

 

“--Sabe que eu ainda não entendi por que Elzira saiu correndo desvairada pra Triunfo em plena sexta-feira à tarde? -- Camilla dizia enquanto servia o jantar – O que foi que Xarid pediu dessa vez em nome dos filhos pra causar toda essa sangria desatada?

 

--Eu não sei, porque ela não me disse nada. – Suhaila respondeu de pronto – Seu irmão me ligou, perguntou sobre como eu tava e logo pediu pra falar com sua prima. – pegou a colher -- Aí ficaram proseando por uns 20 minutos e quando ela me devolveu o celular, chega tava num aperreio doido! – contava – Subiu correndo atrás de Pombinha e pediu pra ela ficar mais eu enquanto você não chegava. Aí arrumou as trouxa e foi, mas disse que domingo à noite tá de volta. – começou a comer”

 

“Meu Deus, parece que fomos todos cegos durante anos! Tudo ali, na nossa cara, e a gente não viu!” – revoltava-me comigo mesma – “É o óbvio, Camilla: Elzira e Xarid são amantes!" – concluí – “Isso explica a posição em que ela se coloca numa absurda relação entre compadres!”

 

Decidi que iria para Triunfo logo nas primeiras horas do dia seguinte, que era um sábado. Combinei tudo com Rute, que prontamente se dispôs a ficar com maama, e me justifiquei dizendo que precisava muito ver Elzira. Por estar com muita dor, maama não fez questão de ir mas me deu muitas recomendações de cuidados. Cheguei na cidade por volta das 13h e fui direto para a casa de Xarid. Dei de cara com Aline Maria na porta; ela estava saindo para fazer não sei o que. Não perguntei pelos meninos e deduzo que meu olhar de mulher bomba a desestimulou de me questionar por qualquer coisa. Ela saiu e eu entrei como um foguete, surpreendendo meu irmão preguiçosamente naquela rede, na qual o abordei.

 

--E então? – Camilla insistiu com firmeza – Vai me responder logo ou pretende continuar igual peixe de aquário, que abre e fecha o bico sem fazer nada?

 

--Oxe! – ajeitou-se para se levantar – Eu não sei o que Elzira andou lhe dizendo, mas ela tá é maluca! – ficou de pé – Tentou se matar, logo se vê que num tá regulando bem! – disfarçou

 

A professora se levantou também. – Ah, vai ser assim? Tudo bem, maninho. – falava com ácida ironia – Vou indo pra sua sala e esperarei por Aline Maria e as crianças. – dirigiu-se em direção ao cômodo – Aí faço de novo a mesma pergunta e a gente leva a conversa em família, que tal? – sentou-se no sofá e cruzou as pernas – Aproveito, ligo pra maama, deixo no viva voz e ela participa do proseado. – pegou o celular – E eu ainda nem tinha contado nada a ela, sabe? – começou a mexer no aparelho – Como dizem meus alunos: vai ser peba! – riu brevemente

 

--Você não tá nem mordida do cachorro da muléstia! – correu até a irmã e a levantou segurando pelo braço – Nem uma palavra sobre isso na frente de minha mulher! – afirmou com o dedo em riste – Tá querendo o que, causar uma desgraça? – falava com rispidez – Você não tem o direito de vir aqui me cobrar satisfação de nada!

 

Desvencilhou-se do homem movimentando o braço com força. – Você me conhece muito bem pra saber que não sou do tipo que ameaça com coisas que não pretende cumprir! – respondeu no mesmo tom – Vai abrir o bico ou não vai? – olhava nos olhos -- Prefere levar a coisa no modo discreto ou no modo espalhafatoso, decide aí?

 

Xarid afastou-se da irmã e caminhou em círculos no meio da sala. Depois de alguns segundos calado começou a falar: – As coisa entre nós começaram meio que por brincadeira, não sabe? – confessou – Elzira era muito bonita, boazinha, carente... – não tinha coragem de olhar para a irmã – E eu... garoto novo, cheio de disposição, solteiro... o diabo atiça, né? Bicho homi...

 

--Solteiro?? Isso vem desde que você era solteiro??? – não conseguiu se conter – “Então a patifaria vem de longa data!” – concluiu mentalmente

 

--Mas não era pra ter durado tanto! – defendeu-se – Tentei terminar quando fiquei noivo, mas ela não deixou... – passou a mão na cabeça – E depois quando os menino nasceram, mas...

 

--Tentou terminar e pediu pra ela ser madrinha das crianças? – perguntou descrente – Esquisito isso, né?

 

--Elzira não pode ter filho, Camilla! – olhou rapidamente para a irmã – Eu queria dar uma alegria a ela, né? – respondeu sem graça

 

--Ah, claro. – respondeu irônica – E com isso você aproveitou pra viver batendo as fandanga por aí com mulher e filhos às custas dela, né? – mal controlava a fúria – Fora os presentinhos que sempre pediu!

 

--Ela é madrinha dos menino, só tava fazendo as vontade deles... – argumentou

 

Camilla riu gostosamente. – Tenho que rir de seu descaramento! Fico me perguntando se você acredita em alguma palavra do que me diz! – balançou a cabeça contrariada – E essa história de ir morar em João Pessoa? – prestava atenção nas reações dele – Era a última tentativa pra terminar o relacionamento interminável? – perguntou debochada

 

--Humpf! – franziu o cenho – O chefe perguntou quem queria ir trabalhar na filial que abriu lá e me ofereci. Tô pensando em ir pra nunca mais voltar! – confessou – Tive que contar pra Elzira e daí... – abriu os braços brevemente – Juntou com as demissão dela, acho que... foi muita coisa duma vez só, não sabe?

 

A professora deu um suspiro profundo. – Você se aproximou dela na má intenção, não foi? – perguntou acusando – Sabia que ela não podia ter filhos, então sem risco de uma gravidez indesejada. Sabia que era uma pessoa carente e daí se aproveitou dos sentimentos dela!

 

--Oxe, Camilla, que conversa? – passou a mão na cabeça e andou em círculos na sala – A prima não era nenhuma donzela indefesa e nem eu um lobo mau! – parou de costas para a outra – Ela tava largada mesmo... E eu era muito novo... – gesticulou rapidamente – Coisa do bicho homi, você não vai entender nunca!

 

Aproximou-se do homem e o fez virar de frente para si. -- Infelizmente, embora sejamos irmãos, eu não sou nada chegada a sua pessoa; e claro que você nota, né? É recíproco. – olhava nos olhos -- Mas nunca imaginei que você fosse um tipinho de homem tão canalha! – falava com desprezo

 

Pensou em revidar, mas se conteve por medo de um escândalo. – E o que você vai fazer agora, hein? – perguntou mal disfarçando o temor – Contar pra mãínha, botar no jornal? – olhava para a irmã – Aline Maria não sabe de nada, os menino nem imagina, nossos irmão e as muié nem sonha! – tremia um pouco -- Pelo amor de Deus, Camilla, eu não consigo me imaginar separado de minha muié, eu amo Aline Maria e... – falava nervosamente

 

--VOCÊ NÃO AMA NINGUÉM! – respondeu exaltada, mas se conteve – E eu não vim aqui pra jogar a titica no ventilador, mas precisava entender. Só iria tocar um rebu se você continuasse mentindo. – afastou-se de Xarid e circulou brevemente pela sala – Agora que já sei do que precisava saber, tô indo embora. – preparou-se para sair – Mas te deixo um recadinho: -- olhou firmemente para o homem – vá atrás dela com conversinha fiada que aí sim, a fofoca vai se espalhar pelo estado de Pernambuco inteiro! E trate de tirar dinheiro desse fiofó, como bem te advertiu minha madrinha, porque tudo que a prima precisar gastar pra se tratar vai ser pago por você! – afirmou enfática – E eu não vou repetir isso! O recado tá dado! – foi até a porta e a abriu – Fica esperto, meu irmão! -- saiu da casa e fechou a porta com força – “Sorte a sua que expor você é expor Elzira!” – pensava com raiva do homem

 

Saí da casa de Xarid com muita revolta e inconformada com tudo aquilo.

Decidi que partiria de Triunfo sem buscar minha prima para uma conversa franca. Isso ficaria para depois, durante minhas férias de julho.

 

***

 

--E já usava barriga de fora naquela época? – Suhaila olhava desconfiada para a fotografia – E eu que não me lembrava que a comadre era um bocado atrevida, não sabe?

 

--Que barriga de fora, mulher, é meu cinto! – Leyna protestou

 

Camilla, Bianca e Elzira riram. – Ô, maama, confundir cinto com barriga? – a professora brincou

 

--Oxe, mas o cinto é da grossura de dois palmos! – Suhaila se justificou – Como que eu ia adivinhar?

 

--Dois palmos? – Leyna aproximou-se para espiar a fotografia – E não é? – constatou – Como é que eu usava uma pistinga dessa? – questionou-se. As outras mulheres riram novamente

 

--Eu tô adorando conhecer o passado da família nessa sessão de fotos antigas! – Bianca comentou enquanto olhava as fotos – Ai, que coisinhas lindas! Quem são? – perguntou curiosa

 

Camilla esticou o pescoço para ver. – A prima e eu indo pra festa junina do tio Faruk.

 

--Own, que fofinhas! – Bianca mandou um beijo para as crianças na fotografia – Que criancinhas lindas que vocês eram! Não à toa se tornaram mulheres poderosas! – sorriu

 

--Poderosa... – Elzira suspirou – Quisera eu... – lamentou

 

--Comadre, quem é essa mulher gordinha aqui segurando um porco? – Suhaila mostrou a foto ao grupo – O bicho tá até de laço no pescoço, espia!

 

Leyna espremeu os olhinhos para examinar. -- Oxe, comadre, pois não é mulher, é Lutfi, meu filho! E tá segurando minha afilhada, visse? – a risadaria foi geral

 

--Maama, cadê seus óculos, hein? – Camilla perguntou fingindo contrariedade – Confundir a única filha com um porco??

 

--Se ainda fosse porca, né, amore? – Bianca provocou achando graça

 

--É Camilla?? – Suhaila olhou para a foto novamente – Vôti! – exclamou intrigada – Lutfi tá até de peito, espia! Não pode ser! – mostrou a foto novamente

 

--Ai, ai, tia, só a senhora mesmo... – Elzira balançou a cabeça divertida

 

--Espia pra essa. – Leyna mostrou uma foto ao grupo – A comadre e a falecida Elissa toda bonita pra ir no casamento de meu filho. – sorriu – Ói também pra essa aqui, na formatura de minha afilhada! – mostrou outra foto – Espia que boniteza que tão Camilla e Elzira!

 

--Nossa, tão lindas! Dona Suhaila e a irmã, que gatas, viu?– Bianca olhava para as imagens – Amore, adorei esse teu vestido! – reparava nas roupas da namorada e da prima – Esse macacão de Elzira também tá um arraso! – olhou para a mulher – E que corpão, hein? – piscou para ela

 

--Os homi de Triunfo vivia de suspiros por Elzira. – Suhaila comentou – Quando ela e minha filha entrava nos lugar, os bicho chega perdia o prumo, não sabe? – afirmou orgulhosa

 

--E tudo por causa da prima. – a professora esclareceu – Eu entrava e saía por todo canto e ninguém me dava nem tchum! – riu brevemente

 

--Sei... – Bianca beliscou a namorada de leve

 

–São os tempo que não volta mais, né? – Elzira respondeu com ar nostálgico – Ói, a prosa tá muito boa, mas eu tenho que terminar de arrumar as trouxa, não sabe? – levantou-se do chão – Agradeço muito a acolhida em vossa casa, – olhou para Leyna – mas já tá na hora de retomar minha vida. Pretendo voltar pro meu cantinho ainda hoje.

 

--Oxe, e por que não espera ao menos tua tia, Camilla e Bianca voltar pro Recife? – Leyna perguntou cruzando os braços – Não carece de sangria desatada pra voltar pra tua casa!

 

--Eu sei, mas não adianta ficar adiando. Tenho que voltar pra minha vida e agora já me sinto forte de novo. – respondeu mansamente – Com licença. – fez um gesto de cabeça e se retirou da sala

 

--Essa menina tá tão estranha! – Suhaila comentou com as demais – Ninguém pode amarrar ela no pé da mesa, mas dá até uma consumição de pensar nela vivendo sozinha naquela casa!

 

--Será que não seria o momento de falar pra ela daquela proposta de emprego? – Bianca perguntou para as mulheres – Vai que dá um up no astral dela?

 

--Deixe quieto, ainda não é a hora. – Camilla respondeu – E se ela quer ir simbora hoje, não vamos impedir. – aconselhou – É até melhor, porque eu vou lá na casa dela e a gente vai ter uma conversa muito séria e de mulher pra mulher! – balançava a cabeça pensativa – Dinda, Xarid tem pago os exames, remédios e tudo mais que a prima precisa? – olhou para a madrinha

 

--Tem sim. – confirmou de pronto – É só ela ter precisão que eu falo com ele e ele vem aqui mode trazer o dinheiro vivo pra dar na minha mão! – olhava para a afilhada – Diz que não entrega na mão dela pra que não se sinta humilhada, não sabe? Eu acho que é bom!

 

--É bom... – Camilla concordou – “E ai de Xarid que não seja assim!” -- pensou

 

***

 

--O que você quer, hein, prima? – Elzira perguntava impaciente -- Ainda não entendi por que viesse pra cá pra cidade do nada, naquele bate e volta antes de tuas férias. Era só pra me curiar? – não encarava a professora – E agora viesse aqui em minha casa mode me curiar de novo e tentar saber por que tentei me matar. – caminhou até a janela da sala – A cidade inteira sabe que é porque fui demitida e tô mais lisa do que nunca! – olhava para fora – O que te falta mais? – cruzou os braços – Mãínha e paínho nem tão mais aqui de muitos anos! Eu não devo satisfação a ninguém, não sabe?

 

--Pode me dizer os desaforos que quiser, -- falava mansamente – mas eu não tô aqui simplesmente pra satisfazer uma curiosidade. – caminhou para perto da janela – A gente precisa conversar porque o que te aconteceu foi uma coisa muito grave! – olhava para a prima – E eu já não aguento mais te ver como uma flor que murcha cada vez mais, ano após ano. – pausou brevemente -- Eu sei porque você tentou se matar, Elzira! Sei que você e Xarid são amantes desde que ele era solteiro e que ele quer ser transferido pra longe e finalmente poder dar um fim nisso!

 

--O que??? – perguntou sobressaltada – Mas da onde tirasse isso, será possível que...?

 

--Ele me confessou tudo! – interrompeu a fala da outra – Foi por isso que fiz aquele bate e volta antes das férias. – olhavam-se nos olhos – Uma coisa que Bianca me contou me fez juntar as peças, passei horas pensando e concluí o que tava na cara de todos há anos e a gente não via: vocês são amantes e é por isso que você se deixava explorar de uma forma anormal! – falava sem acusação – E eu queria entender porque! – aproximou-se um pouco mais – Por que você se permitiu abusar dessa forma e por que não dá um basta nessa situação? – tentou segurar uma das mãos dela

 

--QUEM VOCÊ PENSA QUE É? – desvencilhou-se chorando – VOCÊ NÃO TINHA O DIREITO DE SE METER NISSO! – afastou-se andando sem rumo pela sala

 

--A partir do momento que você sempre foi como uma irmã pra mim e que sua maama pediu que nós cuidássemos de você na ausência dela, me senti no direito sim! – respondeu mantendo a calma – E não tô aqui pra te condenar. Eu só quero te ajudar e...

 

--POIS EU NUNCA QUE PEDI AJUDA A VOCÊ, NEM A NINGUÉM! – continuava chorando – VOCÊ NÃO TINHA O DIREITO... – olhou para a professora com raiva e tristeza – VOCÊ TEM QUE PARAR COM ESSA MALDITA MANIA DE ACHAR QUE TEM QUE RESOLVER OS PROBLEMAS DE TODO MUNDO!

 

--Talvez você esteja certa. – buscou se aproximar mais uma vez – Mas o que me pede é como pedir que eu deixe de ser eu mesma e isso ainda não consigo! – os olhos marejaram – Por que isso, Elzira? – queria entender – Será que não percebe que Xarid não merece isso de você? Ele sequer merece você! – afirmou enfática – É um homenzinho pequeno que parece não saber amar ninguém além dele mesmo! Talvez só aos filhos, não sei. – considerou – Mas o fato é que desde o começo ele só se aproximou de você pra poder se aproveitar.

 

--VOCÊ NÃO SABE DE NADA! – afastou-se mais uma vez

 

--Então me deixe saber? – pediu quase em desespero – Será que não percebe que essa relação não te faz bem? – queria fazê-la despertar – Xarid não quer saber de se separar de Aline Maria, não te parece óbvio? – gesticulou – Ele tem se portado em todos esses anos como um grandessíssimo canalha e eu só queria entender por que você não aceita se libertar dessa prisão!

 

--É MUITO FÁCIL PRA VOCÊ PENSAR ASSIM, PRA VOCÊ ME DIZER ISSO! – calou-se e gastou uns segundos para tentar se recompor – Você é uma mulher de sucesso, estudada, viajada, fala línguas, é respeitada por aí afora... – falava com certa inveja – Você tem seu dinheiro, não depende de ninguém. – secou os olhos com as mãos – Pra você nem fica muito feito chegar nos lugar e se apresentar sem marido, sem filhos. As pessoas perdoam... – considerou – Sua solidão é o preço do sucesso. – passou a mão nos cabelos – Agora olha pra mim! – bateu no peito – Eu não fui bem sucedida em nada! – soluçou – Não casei, não tive filhos, nunca consegui um emprego que não fosse explorador, nunca recebi um salário decente! – derramou uma lágrima – Não tenho mãe, não tenho pai, vivo nessa casa que a finada tia Jandira me deixou e é tudo que consegui juntar! – balançou a cabeça negativamente – Depois de Zé Pedro, ninguém nunca mais quis saber de me namorar! – falava do ex namorado – Quem que ia querer casar com uma mulher que ficou de útero seco porque abortou do namorado rico que não quis ficar com ela? – voltou a chorar – Quem que ia querer casar com uma mulher que o nome caiu em tudo que é fuxico de boteco na cidade? – lembrava do passado – Xarid era tudo que eu tinha... – lutava para conter o choro

 

--Meu Deus! – emocionou-se com o que ouviu – Eu não sabia que você tinha feito aborto, eu não sabia que aquele playboyzinho canalha tinha sujado seu nome com os outros salafrários da laia dele! – sentiu raiva ao ouvir

 

--Claro que não soubesse! – devolveu de pronto – Se afastasse de mim naqueles tempos e elegesse tua carreira como o mais importante! – acusou

 

--Ah, não diga isso! – retrucou revoltada – Eu me afastei de você porque não tinha mais estômago pra te aturar esfregando Zé Pedro na minha cara como se fosse um troféu! – devolveu a acusação – Você parecia querer provar que era melhor que eu em alguma coisa e o namorado filho de fazendeiro era o prêmio que eu não tive competência pra conquistar, não foi?

 

--Pois eu queria me sentir vitoriosa em alguma coisa sim! – confessou chorosa – Já não aguentava ser só a garota bonitinha e nada mais que isso! – esfregou as mãos no rosto – Sempre fosse perfeita e eu queria me sentir igual a você pelo menos uma vez na vida!

 

Respirou fundo. – Eu nunca fui perfeita! – secou os olhos com as mãos também – E ao contrário de você, sempre me senti rejeitada por ser a filha sem pai e a garota com modos de moleque! – confessou – Eu queria muito ser como você, que as pessoas bajulavam, aceitavam e não cobravam nada! – admitiu – Mas apesar dessa inveja que confesso ter sentido, nunca esfreguei minhas conquistas na sua cara como você fazia com Zé Pedro a cada vez que eu voltava pra casa! – lembrava com mágoa

 

Elzira virou-se de costas e abraçou-se consigo mesma. – Eu nem sei por que fazia aquilo, mas muito me arrependi... – confessou timidamente – A vida me fez pagar... – não conseguia evitar de chorar – Porque ele só me quis pra se exibir por aí, ser uma rapariga na cama dele e quando engravidei me jogou fora como se eu fosse um traste! – lembrava com muita tristeza – Ainda saiu dizendo que eu era uma rapariga descarada, que aceitava tudo... por isso que fiz o aborto... como ia dar conta de criar menino? – silenciou brevemente – Aí o tempo passou e quando Xarid se aproximou de mim, tão gentil, tão romântico... mesmo que fosse bem mais novo que eu... me apaixonei...

 

A professora lamentava imensamente por tudo que ouvia. – Eu não sei como que meu irmão soube que você ficou estéril, mas ele não se aproximou de você com boa intenção. Só queria trans*r com uma mulher bonita, carente e que ficaria comendo na mão dele pelo tempo que ele quisesse! – acusou

 

A outra mulher pareceu não ouvir o que foi dito. – Quando aquela Aline Maria apareceu, pensei que fosse morrer! – chorava – Ela roubou ele mim! – fungou – E quando eles se casaram... quando ela ficou grávida, meu Deus! – balançou a cabeça contrariada – Mas eu entendi... ela era da idade dele, moça virgem e podia engravidar. Eu tinha tudo contra: mais velha, usada e seca!

 

--Pelo amor de Deus, prima! – a professora não aceitava que a outra pensasse daquele jeito

 

--Eu engoli muita coisa! – riu brevemente – Oxe, eu aceitei tudo! Na cama e fora dela! – cuspiu a verdade – Mas quando ele disse que ia me deixar pra viver mais a família em João Pessoa... quando ele disse que não me queria mais... aí tudo perdeu o sentido pra mim!

 

--Elzira, pelo amor de Deus, olhe pra mim! – virou-a de frente para si – Você não pode deixar que o julgamento de homens tão pequenos como Zé Pedro, Xarid e os outros fuxiqueiros que andaram sujando seu nome determine quem você é e o que você merece! – falava com firmeza – Mulher nenhuma merece tão pouco! E o que Xarid te deu em todos esses anos foi nada além de um relacionamento tóxico que só fez bem pro ego dele!

 

--E O QUE VOCÊ SABE DISSO? – retrucou inconformada – VOCÊ NUNCA SE APAIXONOU POR NINGUÉM, NUNCA SOUBE O QUE É SOFRER POR AMOR! – gesticulou revoltada – SEMPRE SOUBE SE COLOCAR EM POSIÇÃO ACIMA, ENTÃO ACHA QUE PRA TODO MUNDO É FÁCIL!

 

--POIS É VOCÊ QUEM NÃO SABE DE NADA, PRIMA! – respondeu no mesmo tom – SE VOCÊ NUNCA ME VIU SOFRENDO POR CAUSA DE HOMEM É SIMPLESMENTE PORQUE SOU LÉSBICA! – percebeu o choque da outra ao ouvir – É ISSO MESMO QUE VOCÊ OUVIU! NUNCA SOFRI POR HOMEM, MAS SOFRI POR MULHER!– pausou brevemente – Não sou perfeita, não sou autossuficiente, não vivo sobre um pedestal e sou uma lésbica que sequer tem coragem de se assumir, por medo dessa mesma sociedade que te humilhou tanto! – confessou tudo de uma vez – E é essa ignorância, que vai muito além de Triunfo, que faz com que as mulheres vivam competindo, como você e eu vivemos um dia a ponto de nos distanciar! – derramou algumas lágrimas – É essa ignorância que faz com que você aceite as migalhas de carinho que Xarid te dá a ponto de pensar em se matar porque ele quer fugir de você! – gesticulava – É essa ignorância que faz com que eu viva presa dentro de mim mesma e você não queira saber o quanto isso é doloroso, porque a pior coisa do mundo é não ter o direito de ser! – aproximou-se novamente – Eu não quero te julgar, não expus você pra ninguém da família, nem mesmo pra maama, tampouco pra Bianca que é minha namorada há anos! – percebeu novamente o espanto da outra – O que conversamos aqui será um segredo nosso! – prometeu – Mas tudo que eu quero, de verdade, com todas as forças, é que você se liberte dessa prisão em que Xarid te meteu e dê uma guinada na sua vida porque você é importante! – chorava – Tão importante que sua mãe veio das Altas Esferas, onde com certeza ela vive, só pra me pedir pra te proteger! – fungou – E eu tô aqui pra te proteger sempre que você precisar! Eu juro!

 

Elzira não aguentou e se lançou nos braços da prima chorando como criança.

 

Segundo Joanna de Ângelis, “a amizade é o sentimento que imanta as almas”. Aquela partilha que fizemos numa conversa que mais parecia uma catarse me fez me sentir próxima a Elzira como há anos não me sentia. Ela chorava e eu chorava também. Nossas lágrimas expunham os retratos de mulher que nós somos e quantas como nós existem por aí?

Não estamos nessa Terra para viver em competição com homens ou com todos aqueles que pensem diferente de nós. Nosso compromisso deve ser sempre contra a ignorância e a favor da liberdade que vem com o progresso do entendimento.

Mulheres, cada vez mais e especialmente nestes tempos em que o atraso deseja impor sua ordem ao mundo, precisamos de sororidade!

 

Fim do capítulo